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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5078: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (10): Como descobri o jogo do Ôri

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 5 de Outubro de 2009:

Caro amigo Vinhal:

Volto hoje com mais uma pequene crónica que é mais uma nota para a divulgação de um jogo que descobri em Pirada e que afinal já é velho como a Humanidade.
No entanto deve haver muito boa gente que nunca ouviu falar nele nem suspeita da sua existência o que para nós, antigos lutadores por África é uma ingratidão.
Junto duas fotos retiradas de revistas com mais de vinte anos, a primeira de 1981 e a segunda de 1973!

Um abraço do
Carlos Geraldes


O Jogo do “Ôri”

Conforme tinha prometido vou falar agora de uma curiosidade, ou melhor, de um jogo que descobri na Guiné-Bissau, na região de Bajocunda, salvo erro em Março de 1965.

///

Quando o jeep entrou na tabanca deu um solavanco ao passar por cima de qualquer coisa que estava encostada junto à divisória de carentim e que àquela hora da noite o condutor não conseguiu lobrigar a tempo. Ao saltar da viatura para ver se tinha havido estragos de maior, encontrei um pedaço de madeira esculpida que me pareceu uma canoa, talvez um brinquedo infantil. Achei graça e resolvi juntá-la às minhas recordações, apesar de estar um bocado danificada num dos extremos.

Alguns dias mais tarde, um rapazito que andava sempre pela Messe, a ajudar a limpar as instalações dos oficiais e sargentos da CART 676 estacionada agora em Pirada, viu aquele pedaço de tronco pousado junto da minha cama e deu mostras de o conhecer. Atento à reacção do miúdo não deixei de lhe perguntar se sabia o que era aquilo.

- É um jogo, disse ele. É o ôri. Toda a gente joga. Muito antigo.

- E como é que se joga? Perguntei curioso.

- Ah, não está aqui tudo. Faltam as sementes. Mas melhor é falar com o régulo Sólo. Olha ele vem aí, nosso alfero.

De facto a figura alta e seca do nosso amigo Sólo Só, o régulo de Pirada, desenhava-se nesse momento na entrada do nosso quintal, virada para o caminho. Todas as tardes costumava aparecer por ali. Gostava de conversar, contar coisas do passado, velhas batalhas com os mandingas, inimigos de sempre, rir dos nossos espantos e perguntas ou simplesmente matar o tempo à toa que é o que os homens grandes da tribo adoram fazer.

- Sólo conheces isto?

Deu uma longa risada e pegando no pau escavado, perguntou logo:

- Hei, nosso alfero, querer jogar comigo?

- Talvez, mas como se joga? Eu não sei o que isso é - respondi começando a ficar cada vez mais curioso com o que já considerava um valioso achado.

- É fácil, eu ensina!

E virando-se para o rapaz disse-lhe qualquer coisa em fula. Ele saiu a correr e passado uns instantes voltou com um saca cheia de uma espécie de feijões gigantes, pretos e vermelhos, as sementes da árvore da sumaúma, segundo vim depois a saber.

O velhote apanhou meia dúzia na mão e começou a espalhá-las pelos buracos escavados no pedaço de madeira.

Aquilo que me parecia a escultura de uma canoa era apenas um tabuleiro para um jogo. Um pedaço de madeira muito dura com uma forma, mais ou menos, semi cilíndrica e com duas fiadas de seis cavidades cada, rematadas nos topos por outras duas, maiores, uma das quais tinha ficado partida pelo atropelamento do jeep naquela noite escura.

O régulo foi enchendo os buracos com quatro sementes em cada um deles. Ao todo duas dúzias de sementes mais duas dúzias no outro lado. Depois, em modo de desafio, colocou o tronco escavado atravessado entre nós e disse-me para tirar todas as sementes de um dos buracos que estavam do meu lado.

- De um qualquer?

- Sim, de um qualquer, mas do teu lado.

- Pronto, já está. E agora?

- Agora deitas uma a uma nos buracos que estão a seguir para a direita. Como se estivesses a semear.

Obedientemente fui fazendo o que ele dizia sem perceber muito bem qual a finalidade daquilo tudo. Quando acabei, o velho régulo, num ápice, fez também a mesma coisa agora do lado dele. Ficou a olhar para mim e eu para ele.

- Está bem, disse eu, e agora?

- Faz outra vez, alfero Gerárdis! Repete! Tira as sementes de outro buraco qualquer, mas só do teu lado!

- Mau, mas para que serve isto afinal? - resmunguei depois de fazer o que ele dizia.

Ele não me respondeu e com um olhar de lince, fez de novo um rápido movimento com a mão e retirou todas as sementes que estavam nos primeiros buracos do meu lado onde se encontravam agora grupinhos de duas ou três sementes soltando uma sonora gargalhada.

- Hei! Como é que foi isso? Explica-me o que quer isso dizer! Repliquei percebendo cada vez menos o que se estava a passar.

- Olha nosso alfero, eu jogo por ti, queres ver? Intrometeu-se o garoto que ainda rondava por ali.

E os dois começaram então a praticar aquele jogo, inédito para mim, numa sucessão de rápidos gestos ritmados apenas interrompidos quando no final o miúdo baixou os braços e desistiu descoroçoado, perante as gargalhadas do velho que num instante se tinha apoderado de mais de metade das sementes que circulavam pelo tabuleiro, retirando-as para uma das cavidades maiores ao seu lado direito.

Lentamente e, fazendo-lhes sempre muitas perguntas e interrupções, comecei a entender qual o propósito daquele jogo.

Afinal aquilo era mesmo um jogo a sério! E com muitas particularidades capazes de despertar a curiosidade da nossa mentalidade de gente do, supostamente, mundo civilizada.

Tratava-se na verdade de um jogo baseado em cálculos matemáticos (na base seis, curiosamente) muito simples mas que podiam atingir algumas variantes bem complicadas.

Bem, ao fim da tarde como já tinha ficado a perceber mais ou menos bem a mecânica do jogo fiquei de tal maneira entusiasmado que fui logo propagandear aquela descoberta aos outros companheiros da messe, oficiais e sargentos. Rapidamente o interesse foi-se generalizando de tal maneira que, havia já quem quisesse saber onde poderia arranjar outro tabuleiro como aquele para jogarem também.

Durante algum tempo aquela nova distracção serviu para nos entreter nas horas de ócio, distraindo-nos da tentação de nos entregarmos à solidão que em Pirada começava a roer-nos os nervos.

Quando regressámos, aquele pedaço de madeira acompanhou-me até casa, onde está exposto como um dos mais valiosos despojos de guerra.

///

Muito mais tarde, em 1973, ao folhear um catálogo de livros, (do “Clube Expresso”, n.º 18 de Março desse ano, para ser mais exacto) dei com um anúncio de um livro em francês, intitulado “Le Jeu de L’Awélé” de Juliette Raabe. Na capa apresentava uma fotografia de uma escultura africana representando dois jogadores deste jogo com o respectivo tabuleiro entre eles.

Imediatamente compreendi que se tratava do mesmo jogo que anos antes eu tinha descoberto em Bajocunda, Guiné-Bissau. Fiquei então a saber que o “ôri” que eu conhecera era nem mais nem menos o “Jogo Nacional de África”. Era igualmente conhecido e praticado em todas as regiões da zona subtropical terrestre. Só na Europa era quase desconhecido.

É conhecido em toda a África pelos mais diversos nomes: Awale, Awélé, Ayo, Mancala, Oware, Wari, Chisolo e na nossa Guiné-Bissau, na região de Pirada, por “Ôri” que em dialecto fula significa o algarismo “um” ou a unidade. Chega também a ter diversas formas, havendo mesmo tabuleiros com 4 filas paralelas de cavidades, mas a ideia base é sempre a mesma, a sementeira.

Hoje é amplamente conhecido em todo o mundo e é um dos mais interessantes patrimónios da Humanidade.

O jogo de toda a Africa (Ôri, Wari, Solo, Mancala, Awélé, etc..) - Revista Jeux & Strategie, n.º 7, Fev/Mar de 1981

Clube Expresso - Março de 1973


As regras são as seguintes (versão de Pirada, 1964):

Depois de colocar 4 pedras em cada casa, um dos jogadores começa, retirando todas as pedras de uma casa qualquer, do seu lado (que se designam por Norte e Sul) e vai semeando uma a uma nas casas imediatamente a seguir, no sentido dos ponteiros do relógio ou seja da esquerda para a direita, passando para o lado do adversário se a quantidade de pedras retirada da cavidade escolhida assim o permitir. E assim sucessivamente até que um dos jogadores, ao colocar a última das suas sementes no lado do adversário encontra nessa cavidade apenas um ou duas sementes, (formando assim um grupo de duas ou três), tem o direito de as tomar, retirando-as para a sua cavidade maior (à sua direita). Igualmente pode retirar todos os outros grupos de duas ou três que formar, ainda e só no campo adversário, e que sejam imediatamente anteriores à casa onde terminou a sementeira.

Quando um dos jogadores não tiver mais nenhuma pedra ou semente do seu lado para movimentar, o adversário deverá jogar de modo a passar para o seu lado uma ou mais pedras de modo a permitir que ele possa jogar. Se tal movimento não for possível, o jogo termina, contando como suas as pedras restantes no tabuleiro.

O objectivo é comer a maior quantidade de pedras (25 no mínimo) para ganhar.

Carlos Geraldes
Viana do Castelo, Out.2009
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5037: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (9): Súmula sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5037: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (9): Súmula sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

1. Publicamos hoje um trabalho escrito pelo então Alf Mil Carlos Geraldes (*) da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, à ordem do seu CMDT, sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu), enviado em mensagem de 26 de Setembro de 2009.


Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

(Súmula dos conhecimentos adquiridos no período de Out. 1964 a Abr. de 1966)

Situação Geral:


Presentemente, não existem “tabancas” (aldeamentos indígenas) aliciadas pelo “IN” (Inimigo), embora em 1963, um grupo de terroristas que pretendia actuar na zona de Paúnca se tivesse acoitado em Madina Mamadu Sanússi (da etnia “Fulas-pretos”).

Foram escorraçados e mantida a população da tabanca sob vigilância, tendo-se criado lá um posto de cipaios. Todavia, tendo, os elementos suspeitos da tabanca, procurado refúgio no Senegal, nunca mais a referida população manifestou tendências suspeitas.

Durante o período 64/66, não se registaram quaisquer infiltrações ou tentativas de aliciamento por parte do IN.

Poucas são as tabancas e os caminhos que não estão devidamente assinalados na carta de 1/ 50.000, sendo, no entanto, de chamar a atenção para o traçado do caminho que vai de Fasse à ”cambança” (sítio onde se atravessa um rio), que não é o que vem indicado na carta. Na realidade, o caminho inflecte para Norte, cerca de 45 graus, atravessando por completo o Mato de Sacaio e localizando-se a cambança no ponto de intersecção de uma linha que fosse traçada de Fasse a Sare Bacar, com o rio Gêba.

Pelo facto de quase toda a região estar protegida, a Norte pelo rio Bidigor, a Oeste pelo rio Gêba e a Sul pelo rio Cumtimbo, goza naturalmente de certos privilégios no que diz respeito às defesas naturais contra possíveis acções do IN. Apesar disso, apenas na época das chuvas se poderá confiar nessas “muralhas”, pois somente o rio Gêba mantém, durante todo o ano, um nível de caudal suficiente para impedir a passagem a vau.

Existem três tabancas-chave, situadas junto de outras três cambanças utilizadas por quem vai ou vem do Senegal: Guiro Iero Bocari (Sinchã Queuto), Madina Mamadu Sanússi e Fasse.

Em todas elas a população tem-se mostrado digna de confiança, colaborando activamente com as “NT” (Nossas Tropas), no controle e vigilância das respectivas cambanças. Todas as canoas, durante a noite, ficam presas a cadeado, na margem de cá.

Em Guiro Iero Bocari existe uma ponte feita com troncos e “carentins” (grandes esteiras feitas de entrançado de bambu), de construção recente, mas apenas utilizável em tempo seco. É também de fácil controlo, pois só permite a passagem, em fila indiana, de três pessoas de cada vez, no máximo.

Todo o “chão” (território, nação) tem demonstrado estar incondicionalmente do lado da tropa, posição que não deixa de aproveitar largamente em seu favor, com constantes pedidos de transporte dos seus haveres, além de ajuda material em armas e munições, medicamentos, etc. No entanto, evidenciam um forte sentido de hospitalidade, notando-se até uma certa rivalidade entre as tabancas mandingas e fulas, nos actos de bem receber os visitantes.

A tabanca do interior, de maior importância, é, sem dúvida, Fasse, não só pelo valor estratégico, como pelo valor que tem por ser o centro mais importante no ensino do Alcorão, em todo o regulado. O “mouro” (sacerdote) da mesquita de Fasse é tido como uma das personagens mais importantes da região. O próprio traçado das ruas do interior da tabanca de Fasse, chama a atenção pelo seu traçado geométrico, pela largueza e higiene, denotando um elevado nível cultural da população, relativamente a todos os habitantes do resto do “chão”.

Existe uma mesquita, coberta com folhas de zinco, oferta do Governo da Província.

Pertencendo à etnia “Fula-Forro”, dedicam-se com êxito às culturas tradicionais, assim como à manutenção de um Horto de bananeiras e outros frutos comestíveis.


Situação Particular: Paúnca

1) A Povoação:

É um dos centros populacionais e comerciais mais importantes da zona de Gabu e Bafatá. Com um perímetro de pouco mais de 4 mil metros, está cercada por uma rede de arame farpado c/ aba.

Todas as casas ficam situadas no interior da rede e existem abrigos para atiradores deitados ao longo da face Norte e Oeste.

De Paúnca partem caminhos, para todas as tabancas da periferia, perfeitamente transitáveis pelos carros militares em qualquer época do ano.

As vias mais importantes são: Paúnca-Fasse; Paúnca-Sinchã Queuto e Paúnca-Sinchã Molele. A mesquita de Paúnca é uma das maiores e mais característica da região, pois obedece a um estilo de construção já pouco comum neste género de edifícios.

Outra casa que se destaca, no interior da tabanca, é a casa do régulo, de forma rectangular e com um mastro para hastear a bandeira nacional em dias de festa.


2) A População:

É quase toda constituída por indivíduos de etnia “Fula-Forro”, seguindo-se por ordem numérica, os de etnia “Saracolé” e os “Mandingas”, estes em menor número. Existe também uma numerosa colónia de “Balantas”, “Papéis” e “Manjacos” que constituem os grupos de trabalhadores das casas comerciais. Vivem separados numa espécie de bairro, situado nas traseiras do aquartelamento. São ordeiros, embora se embriaguem frequentemente, pois não praticam a religião muçulmana, como o resto da população.

Os fulas dedicam-se ao cultivo da “mancarra” (amendoim), do milho, do arroz e da mandioca, além da secular criação de gado vacum. Outros dedicam-se ainda ao pequeno comércio e outros são alfaiates.

São amigos de festas, que promovem com assiduidade, pedindo sempre a prévia autorização, à tropa.

Existem 3 ferreiros situados junto das entradas da povoação e o mais importante é o que tem a oficina à entrada do caminho que vem de Sinchã Queuto.

O “cherno” (pessoa de respeito) é o velho Amadu Bari, que apesar de idade avançada (mais de 80 anos) mantém uma excelente saúde e um humor muito especial. É um grande amigo da tropa e, sempre que pode, não deixa de visitar o quartel. O filho, Iaia Bari tornou-se um excelente colaborador da tropa como intérprete e informador. Domina com facilidade o dialecto Mandinga, o dialecto Saracolé, assim como alguns outros dialectos do Senegal e da Gâmbia. Fala e escreve bem o Português e dedica-se à prática de enfermagem, auxiliando o 1º Cabo Enfermeiro do Destacamento, no tratamento de civis, com os medicamentos destinados ao serviço da “Psico”. Tem um irmão, quase cego, que goza da fama de ser informador directo do Governador.


3) O Comércio:

Reveste-se de características especiais, diferente do que é praticado noutras localidades da fronteira, pois não depende do trânsito dos “gilas” (contrabandistas semi-autorizados), nem dos senegaleses que vêm ao nosso lado fazer compras. O comércio mantém-se sempre em qualquer altura do ano, abastecendo, tanto a população deste regulado como a dos outros, situados no interior. Durante a campanha da mancarra (Janeiro a Março) é muito intensa a circulação de burros carregados com os habituais dois sacos e a das camionetas de caixa aberta que depois os transportam para Bafatá. Não existem, durante todo o ano, períodos mortos, mas apenas pequenas flutuações.

As casas comerciais existentes são seis, com representação das firmas, “Barbosas”, “Gouveia” e “Pinheiros”. Todos os comerciantes mantêm boas e cordiais relações com a tropa, sendo de destacar o que dirige a filial dos “Barbosas”, o Sr. Correia. É o comerciante mais antigo de Paúnca, com amplos conhecimentos sobre os problemas do regulado. É, também, o único comerciante que se preocupa em manter uma certa rede de informações, que tem sido muito útil à tropa. No entanto, tem medo de prováveis represálias do IN sobre a sua pessoa, pois em 1963 foi alvo de um atentado na estrada Paúnca-Bafatá. Actualmente tem adoptado, por isso, uma atitude fria e de quase completo mutismo, quando a tropa o aborda directamente ao balcão da loja. Mas abre-se em confidências se a “entrevista” for mantida num clima de discrição.

Por vezes o receio dele chega a parecer excessivo e até infundado.

É muito amigo do Administrador Barros, de Gabu, a quem fornece sempre em primeira mão as informações que recebe, algumas de interesse apenas militar e que, não raras vezes, têm servido para criar situações falsas, à tropa, que se encontra destacada.

É de evitar fornecer-lhe quaisquer informações referentes ao IN, de acção imediata.


4) O Régulo:

É um velho sem energia e espírito de mando. É pouco conceituado pelos súbditos, pela fraqueza de ânimo dele. No entanto é apoiado por alguns homens “grandes” de grande poder e prestígio.

Nas relações com a tropa mostrou-se sempre de grande humildade, fazendo amiudadas visitas para “partir mantenhas” (apresentar cumprimentos) e também com o fito, menos louvável, de pedinchar um pão ou um pouco de açúcar.

Colaborou sempre de forma eficiente quando o furriel encarregado do rancho necessitava de comprar galinhas ou cabritos.

Tem muito medo da guerra, da qual nem gosta de ouvir falar.

Cavaleiro Embaló, um chefe terrorista, de pouca importância, é seu sobrinho, mas ele renegou esse parentesco, ameaçando-o de morte.


5) Os Cipaios:

Existe um corpo de cipaios comandados por um Cabo, directamente dependentes do Chefe de Posto de Sónaco. Têm uma actividade bastante reduzida, limitando-se à cobrança dos impostos e à resolução de pequenos litígios entre os civis. São muito reservados em relação à tropa.


6) A Milícia:

É uma força constituída por 18 elementos, comandados por um “alferes” e por um “cabo”.

Fornecem, para o serviço de transporte de água e lenha para o aquartelamento, 3 homens por dia, que durante a noite fazem também um posto de sentinela à entrada da Casa da Milícia. São integrados nas Secções do Pelotão, quando estas efectuam patrulhamentos. Psicologicamente são pouco aguerridos e bastante preguiçosos. Contraem dívidas sem grande dificuldade e abusam facilmente se lhes são concedidos alguns favores.

Quase todos se ofereceram para cumprir o serviço militar, na próxima incorporação. Os que são casados são bastante ciumentos, surgindo atritos entre eles e os soldados europeus que estão menos esclarecidos quanto ao modo de tratar a mulher indígena.

Constituição do grupo:

Comandante: Samba
1.º Cabo – Bamba Jamanca
N.º 61 – Manca Baldé
N.º 64 – Demba Embaló
N.º 65 – Aliu Candé
N.º 67 – Bobo Jau
N.º 70 – Puloro Candé
N.º 75 – Samu Baldé
N.º 76 – Jarga Jaló
N.º 80 – Turá Baldé
N.º 82 – Bobo Quitá
N.º 85 – Umaro Jau
N.º 86 – Braima Jaló
N.º 87 – Aliu Embaló
N.º 89 – Ussumane Camará
N.º 90 – Sare Jaló


7) Os Soldados Africanos:

São quatro: Sadú, Jau, Santos e Sáco. Os dois primeiros são fulas, os outros balantas. O Santos é natural de Bissau, onde foi empregado comercial. É o mais culto e o mais pretensioso. Tanto ele como o Saco embriagam-se com frequência se não forem reprimidos. Os outros dois são mais sossegados e nunca deram origem a qualquer distúrbio. Estão todos desarranchados.


8) A Escola:

É um edifício de construção recente, com apenas uma sala de aula e alojamento para o professor que, em caso de necessidade, já tem albergado um pelotão de reforço, durante dois ou três dias.

A frequência é bastante reduzida, devido ao natural costume do fula de evitar que os filhos tenham outra educação que não a tradicional.

O professor, Timóteo, é de etnia manjaco, protótipo de negro meio civilizado, arrogante com a pouca sabedoria que adquiriu sem a necessária profundidade e preparação, mas que julga ser muita. Tem grande dom de palavra e gosta de organizar festas onde se possa evidenciar. Levando uma vida de estroina, descura por completo as suas funções de ensino, tendo até criado a fama de tratar brutalmente os alunos.

É um elemento de forte poder aliciante, imiscuindo-se entre os soldados de quem, facilmente, conquista a confiança. Por mais de uma vez, e por motivos diversos, se mostrou suspeito, embora nunca tenha havido provas concretas. Todavia evidencia uma forte tendência racista.


9) A Taberna:

Situa-se em frente do quartel e é propriedade de João Vieira (por alcunha “O Passarinhas”), casado com uma cabo-verdiana. O resto da família é constituído por duas filhas e uma sobrinha, que o auxiliam no balcão. Alberga também hóspedes ocasionais.

Todos têm procurado, sempre, captar as simpatias das tropas recém-chegadas, na mira de benefícios futuros, pois vivem na expectativa de poder explorar, o mais possível, quem lhes frequenta o estabelecimento.

Os conflitos entre esta família e os soldados são pois inevitáveis e frequentes, provocados quase sempre pela existência das raparigas, utilizadas pelo “Passarinhas” como um autêntico chamariz.

Em 1963 levantaram suspeitas de colaborar com o grupo IN acoitado em Madina Mamadú Sanússi, mas não apareceram provas.

O “Passarinhas” dedica-se também à prática ilegal de dar injecções, deslocando-se até às tabancas do interior.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5032: Blogoterapia (128): Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5013: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (8): A Poderosa Rainha

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5032: Blogoterapia (127): Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas (Carlos Geraldes)

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 26 de Setembro de 2009:

Caro amigo Vinhal:

Quando me atrevi a enviar os meus escritos para a Tabanca Grande nunca poderia adivinhar a recepção de que estou a ser alvo.
Fiquei tão emocionado como na véspera do dia em que embarquei de regresso à, então chamada Metrópole, após aqueles dois anos de incertezas, dúvidas e terrores por que passei. Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas. As atitudes que por vezes alguns tomam de machismo violento, não passam de uma máscara a que recorrem os fracos e os cobardes, receosos de os tomarem por isso mesmo.

Assim, não poderei afastar-me por muito tempo nem para muito longe. Estou irremediavelmente ligado ao blogue como se um cordão umbilical ainda me ligasse ao ventre materno. Os comentários que me foram dirigidos são as vozes dos meus irmãos que julgava mortos e enterrados no meio do matagal para lá da curva do rio.

Felizmente estão aqui bem vivos e vão-se juntando cada vez mais para ajudar a sufragar a dor e o sofrimento que um povo fez a outro povo. Levaremos ainda muito tempo a tentar compreender como foi possível aquela guerra, as cruezas daquela guerra entre homens bons e simples, sonhadores e sábios, que no dia do armistício se abraçaram comovidos com a memória lavada, mas com o coração quente de alegre fraternidade.

Como foi possível esquecer os massacres, os assassínios, as humilhações, os roubos, as violações? Só pela presença de um outro poder, que nunca quisemos admitir, constatar. Não, não me refiro a Deus, esse ser criado pelo homem, para lhe servir de panaceia e o livrar de pensamentos vertiginosos quando se debruça nos porquês do Universo. Não, refiro-me talvez a um poder que provém das profundezas do Cosmo, que nos antecedeu, nos guiou até aqui e irá conduzir toda a Humanidade até ao fim dos tempos. Uns dirão: é o Amor! Balelas! É fácil demais.

Eu diria antes que é o progresso das civilizações, o aperfeiçoamento das relações humanas. Hoje já não olhamos com estranheza outro ser humano só porque é de outra cor. Mas era assim há 300 anos atrás, quando o considerávamos um objecto, um ser sem alma, tal como um animal ou um vegetal? Agora é muito diferente não é?

Bom, mas desculpa-me estar para aqui a filosofar sem jeito. O que eu queria dizer também é que vou anexar a este e-mail um documento escrito em Paúnca, a pedido dos chefões daquela altura (1965) e que é mais ou menos um Relatório de Situação que obedecia a um esquema já predeterminado para aquele tipo de relatórios usados pelas NT (e para mostrar serviço, é claro). Fui eu que o escrevi por ordem do meu capitão e o que é facto é que não contém qualquer facto empolado ou embelezado. Naquela data, a situação ali era mesmo aquela, pelo menos aos meus olhos.

Hasta siempre,
Carlos Geraldes
__________

Notas de CV:

O texto referido pelo nosso camarada Carlos Geraldes, por ser muito extenso, vai ser publicado na sua série Gavetas da memória.

Vd. último poste da série de 16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4963: Blogoterapia (126): Pensar em voz alta: Em noite e dia de "cerrar dente" (Torcato Mendonça)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5013: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (8): A Poderosa Rainha

1. Das Gavetas da Memória de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, saiu esta história/refexão sobre nós, como sentimos Áfica e como a vivemos naqueles longínquos anos.


Gavetas da Memória

A Poderosa Rainha

Acordei a meio da noite com uma sensação estranha que nunca tinha sentido. Saí da cubata para o meio da aldeia tentando adivinhar que mistério seria aquele que sentia crescer em volta de mim. A lua já se tinha escondido e dera lugar a uma espantosa toalha de luzinhas fulgurantes que se deixavam cair, langorosamente, sobre a minha cabeça, cobrindo-me como um manto da cabeça aos pés.

Foi então que me pareceu ouvir os sóis, as estrelas e todos os corpos celestes. Era um zumbido muito leve que apenas se deixava adivinhar. Era como um coro de anjos fabulosos, vindos lá do fim do Universo, afogando-me numa tal estupefacção que fiquei ali, pregado ao chão, de olhos esbugalhados.

Quando recuperei da surpresa procurei uma tosca plataforma de troncos onde os homens se reuniam durante o dia e ali me deitei, com os braços abertos em cruz, deixando que todo o céu desabasse sobre o meu corpo estarrecido.
Naquela tabanca, edificada numa pequena elevação que parecia estar no umbigo do Mundo, avaliei profundamente, a verdadeira dimensão de todos nós, pobres seres pensantes que julgamos tudo dominar. O tempo rugia nas roldanas do mundo que vogava pelo infinito, sem destino.

Num silêncio sepulcral toda a aldeia dormia sob um manto mágico que parecia proteger as casas, os homens, os animais e dar mais força às árvores dispostas agora em redor, velando por nós como sentinelas atentas.
Quando julguei que apenas eu era testemunha daquela revelação, vi um pequeno clarão e o acender de um cigarro de alguém que como eu, estava evidentemente com insónias.
Era o alferes Machado.

Na véspera tínhamos recebido uma mensagem de Bissau que o surpreendera tanto a ele, como a todos nós. Viriam brevemente buscá-lo para uma missão que diziam ser da mais alta responsabilidade. Acabara de ser nomeado oficial adjunto do Governador.
Naquela tarde, mal soubéramos da novidade, tínhamos ido todos festejar para a Cantina e ele acabou por pagar várias rodadas de cerveja como se estivesse fazendo as despedidas finais, como se tratasse do embarque de regresso à metrópole.
Mas o entusiasmo acabou por abrandar, pois era só uma mudança de morada. O pior seria depois, com as fastidiosas recepções oficiais, os salamaleques imbecis para agradar às gordas matronas dos oficiais superiores, sempre de ar muito cansado como se carregassem o enorme fardo daquele guerra absurda e irreal, dos salões com ventoinhas por todos os lados, dos olhares laterais da criadagem, das cozinheiras sempre na espreita de alguma oportunidade para consumarem a vingança por ancestrais humilhações (?)

Seria uma boa vida, claro! Mas o que diriam os antigos camaradas? Aqueles que ficaram roendo o capim debaixo de um sol pavoroso?
O preço a pagar iria ser muito alto. E isso atormentava-o como um ferro em brasa espetado no peito.

Em vão procurava ânimo e sossego na quietude da noite e viera comigo para aquela tabanca na tentativa de um esquecimento total que tornasse toda a realidade num mundo de brincadeirinha, de história em quadradinhos que logo arrumamos para o lado.
Agora sob a protecção de um magnífico manto de estrelas, sóis tão longínquos que a imaginação não pode alcançar, só assim podia acalmar a alma e sonhar que era outra vez menino, correndo de volta da saia da mãe.

Agarrou a arma e disparou uma rajada de fúria como se quisesse rasgar o véu negro da noite para deixar entrar de novo a luz da vida de verdade.
Ninguém respondeu. Ninguém se atreveu a acordar.
Ficámos ainda calados um bom pedaço. As palavras tinham desaparecido, apenas a memória matraqueava nos nossos cérebros.

- Quando eras pequeno também gostavas de revistas com histórias aos quadradinhos? - perguntou ele, rompendo de súbito o silêncio. - Era apaixonado pelo Tintim - continuou sem me dar tempo a responder. – O meu pai mandava-mo vir directamente da Bélgica, por intermédio de um parente que lá morava.

- Tem graça! - respondi, surpreendido pois nunca poderia imaginar vir encontrar alguém, aqui na negrura de África, que também tivesse tido uma infância parecida com a minha.

- Nos meus tempos de miúdo esfarrapava tudo o que eram revistas de quadradinhos ou banda desenhada como agora lhe chamam. Era o Cavaleiro Andante e o Mundo de Aventuras coleccionados religiosamente e rivalizando um com o outro. Que saudades isso agora me veio fazer!

E o resto da noite foi passado quase sem darmos por isso a evocar as doces recordações de infância, espantando com a maior das eficácias, os medos, as angústias que o mistério do futuro imediato, o inesperado da morte, há tanto tempo nos perseguia.

Dois adultos ainda com sonhos de criança, sob um céu cravejado de estrelas, no meio da imensa noite africana.

Nunca tinham estado tão perto do firmamento, nunca tinham sentido aquela estranha sensação de vertigem em direcção do espaço infinito, de sentir sobre os ombros o peso colossal do cosmos ali tão perto, quase ao alcance da mão.
Era então este o verdadeiro mistério da noite africana, a mágica iniciação da adoração de Mãe África, a poderosa Rainha?



Fotos: © Carlos Geraldes (2009). Direitos reservados
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Nota de CV:

Vd. poste de 21 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4988: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (7): A Mina

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4997: Cartas (Carlos Geraldes) (10): 2.ª Fase - Abril de 1966 - Epílogo - O Regresso

1. Décimo e último poste da série "Cartas" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


Epílogo: O Regresso

Paúnca, 03 Abril 1966
Hoje, domingo, apareceram cá, o Médico, o Castro, o 2.º Sargento Sousa e o Furriel Hugo. Só o Médico é que veio almoçar, os outros vieram cortar o cabelo. Acontece que o melhor barbeiro da Companhia pertence ao meu Pelotão. É sempre ele que nos corta o cabelo a todos, à borla claro! O pobre do rapaz não tem mãos a medir. Encara esse trabalho como mais uma das tarefas que lhe calhou na vida militar.
O Sargento Sousa veio para conferir o Depósito de Material existente e elaborar as respectivas guias de entrega ao pessoal que nos vier render.
Também já fechei as contas da cantina que, afinal pouco ou nenhum lucro deu, pois o cantineiro costumava enganar-se nos trocos… acabei por distribuir os livros de extinta Biblioteca (na maioria fotonovelas todas estafadas de tanto serem lidas e relidas), por aqueles que se mostraram mais interessados, pois não era um património que valesse muito a pena legar aos vindouros. Eles trarão com certeza coisas mais actualizadas e, se quiserem, rapidamente poderão ter também a sua própria Biblioteca.
Começámos a fazer as despedidas pelos comerciantes e houve um que por força queria que lá ficássemos toda a tarde a beber e a petiscar. O Doutor (claro!) e os furriéis ficaram, mas eu logo que apanhei uma aberta, raspei-me para o quartel para tratar da entrega do material com o Sargento Sousa.

Tinha acabado de tomar banho, já passava das 18 horas, quando me vieram chamar para ir continuar a festança. Contrariado mas curioso fui só ver como paravam as modas. E lá estavam eles como de costume a amparar o Médico que já não se segurava em pé, com a habitual carraspana. Assim não há pachorra e como não conseguia achar graça nenhuma àquilo, regressei ao aquartelamento.
São agora 11 da noite e eles ainda não apareceram. E o que mais me chateia é que o Doutor vai com certeza ter de dormir cá esta noite. Aqui no meu quarto onde é capaz de vomitar por tudo o que é sítio que nem um desgraçado.
Já estou farto de aturar este tipo de gente!
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Finalmente já se sabe qual o dia em que seremos rendidos.
Começaremos aqui pelo destacamento de Paúnca, primeira fracção da Companhia a seguir para Bissau no próximo dia 6 logo pela manhã.
As malas já estão feitas, quase tudo arrumado e pronto para ser entregue aos maçaricos que vierem para cá e que, diga-se de passagem, estão cheios de sorte. Não há dúvida que foi uma temporada bem passada!
Mas que estou a dizer? Até parece que fiquei com saudades disto, a gostar disto! Raios me partam!
Depois de chegarmos a Bissau ficaremos a aguardar a chegada do navio. Vão ser mais uns longos 15 dias de espera. Mas que, caramba, também vão passar!
Quando aqui desembarcámos, pensava que 24 meses eram uma eternidade e, afinal já passaram, já chegámos ao fim.
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Mas bem ao nosso estilo, surgem sempre as alterações de última hora. Agora não seremos nós, os primeiros a ser rendidos mas sim, os de Pirada.
Só daqui a uma semana (dia 11 talvez) é que marcharemos para Bissau. Espero que ainda cheguemos a tempo de apanhar o barco…

Bissau, 15 Abr. 1966
Finalmente em Bissau.
Saímos de Pirada e Paúnca pelas 15H00 de terça-feira (dia 12) e chegámos a Bambadinca, onde dormimos, cerca das 11 da noite.
Às 4 da madrugada do dia seguinte, embarcámos num batelão para Bissau.
Viagem horrível. O batelão vinha cheio de vacas e de nativos que tinham entrado primeiro que nós. Viemos durante quase todo o dia de pé ou sentados em caixotes à torreira do sol. Chegámos finalmente a Bissau às 15H30.
O alferes que me foi render a Paúnca era um tipo estupendo. Foi locutor na rádio Huila em Sá da Bandeira, Angola e também já é casado. Mas deixou a mulher lá, o que fez muito bem, pois as mulheres dos oficiais que por cá passaram, só têm dado barraca. Temos ouvido histórias inacreditáveis.

Embarcaremos, até ordens em contrário, no dia 27 e deveremos chegar a Lisboa no dia 3 de Maio. Agora estamos instalados no mesmo quartel em que estivemos antes de irmos para o mato. O velhinho Batalhão 600. Os soldados até estão a dormir na mesma caserna.
Os oficiais que viemos encontrar são todos periquitos, muito mal encarados. Nem falam com a malta. Eu também nem lhes dou os bons dias ou boas tardes.
Hoje estou de serviço, como oficial de piquete e prevenção. Um outro oficial que, também veio do mato e tem o mesmo tempo que eu, está de oficial de dia. Assim vou ter, felizmente, o fim-de-semana livre.

Ontem jantei no Grande Hotel, na companhia do Cardoso que, desde que aqui chegámos não me tem largado a perna pois mais ninguém lhe liga. Acabámos por ir ao cinema ver “Fanny”, com a Leslie Caron. Gostei. Foi uma noite bem passada. A temperatura na capital é mais fresca que a do mato. As ruas aumentaram e parece que os prédios cresceram de um dia para o outro. São os efeitos da guerra. Os preços nas lojas também subiram. Este mês creio que o ordenado fica cá todo.

Bissau, 19 Abr. 1966
Todas as noites, depois de jantar, reunimo-nos e vamos até qualquer bar ou esplanada da baixa, petiscar camarão ou ostras.
No quartel temos mantido um comportamento tão acima da média que toda a gente está bem impressionada connosco. Acabaram-se os problemazinhos quotidianos que surgiam constantemente, quando estávamos no mato, em Pirada e em Paúnca. Agora acordamos todos os dias, alegres e descontraídos, pensando sempre que falta menos um dia.
Uma das coisas que mais me impressiona no comportamento que os nossos soldados estão a ter agora é precisamente a calma com que estão a encarar estes últimos dias de comissão. Até parece que reina entre nós uma certa nostalgia por deixarmos estes lugares.
A nossa despedida de Pirada foi extraordinariamente comovente. Todos os amigos que lá fizemos e que por lá ficaram, o M. Santos e a família, o velhote Gomes e os outros comerciantes, a Ti Clara, a Cumba e todas as outras meninas do régulo Solo Só, vieram despedir-se com lágrimas nos olhos e correram atrás dos camiões até os perderem de vista no pó da picada.
Foi até hoje, uma das despedidas mais dolorosas que vivi. Deixámos ali abandonada para sempre (?) aquela gente que não tem outro modo de existência senão ficar ali, expondo-se a uma ameaça eminente, desaparecendo aos poucos da nossa memória.

(A ameaça eminente a que me referia, era a das presumíveis retaliações, logo que a guerra terminasse, pois os guerrilheiros, futuros vencedores iriam, certamente tratá-los como gente traidora, como cobardes que nunca fizeram qualquer sacrifício em favor da causa. O que infelizmente veio a acontecer, nos primeiros anos de euforia da independência)

Confesso que também me vieram as lágrimas aos olhos.
Agora aqui em Bissau levamos uma vida regalada, pois o serviço até nem é muito e a camaradagem com aqueles que, como nós, também vão regressar, é entusiasta e franca.
Estes últimos dias são de uma emoção fora de todos os limites. Estou ansioso de subir para o barco.

Bissau, 26 Abr. 1966
O Uíge já chegou!
Embarcamos hoje às 17H00 e largaremos de Bissau durante a noite. Estes últimos momentos têm sido fantásticos. A balbúrdia parece reinar, mas o que existe de facto é apenas uma alegria esfuziante em cada rosto dos que partem.
Ontem tivemos a cerimónia da entrega das medalhas comemorativas das Campanhas da Guiné e agora pavoneamo-nos por Bissau com a fitinha verde e vermelha no peito.
Quanto aos soldados estão todos a portar-se muito bem. Não tem havido qualquer contratempo e até estamos (nós os oficiais) admirados com isso.
Ontem à noite, o Quartel-General ofereceu um espectáculo de variedades que agradou em cheio e serviu de relax para todo o pessoal.
Enfim, estou a viver a maior alegria da minha vida.
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Nota de CV:

Vd. postes da série:

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo

21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4848: Cartas (Carlos Geraldes) (2): 1.ª Fase - Maio a Julho de 1964

25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4861: Cartas (Carlos Geraldes) (3): 1.ª Fase - Agosto e Setembro de 1964

28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

3 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965

15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

20 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4980: Cartas (Carlos Geraldes) (9): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1966

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4988: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (7): A Mina

1. Mais um episódio de Gavetas da Memória de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


A Mina

Era meia-noite em Pirada, pequeno povoado situado na fronteira norte, algures na Guiné Portuguesa.

A lua ainda tardava e um céu de veludo negro salpicado de jóias brilhantes pesava sobre as habitações, os homens, os animais e as coisas.
Há muito que reinava o mais profundo silêncio. A tabanca dormia tranquila. O nativo regula sempre todas as suas tarefas pelo nascer e pelo pôr-do-sol. Não precisa de outros horários.

Apenas, no quartel, se notavam alguns indícios de actividade. Rendiam-se as sentinelas, aqui e acolá, nos postos respectivos. Pela única rua da aldeia, regressava ainda o último grupo de retardatários. Dois oficiais, dois jovens alferes, confraternizavam com alguns sargentos, jovens também, companheiros desde os centros de instrução na Metrópole. Fumavam-se os últimos cigarros na perspectiva de uma noite sem história.

Foi nessa noite, uma noite vulgar, igual a tantas outras que a primeira surpresa viria a surgir.
No início, mais parecia ser o eco surdo de alguma trovoada seca, bem longe, para leste, ou nordeste, lá para as bandas de Bajocunda ou do Senegal, mas depressa chegaram à conclusão que os sons que o telégrafo do vento lhes trazia, eram na realidade detonações, tiros de armas de guerra. Tiros que estavam a ser disparados a poucos quilómetros dali.

E de facto ouviu-se, agora perfeitamente, o som inconfundível do matraquear de uma metralhadora ligeira, a arma preferida pelo inimigo. Desfeitas as dúvidas, todos se quedaram imóveis à escuta, perplexos, procurando uma explicação.

Alguém correra já a chamar o capitão que rapidamente também se veio juntar ao pequeno grupo que continuava a tentar perscrutar os sons que, a ligeira brisa da noite, conseguia fazer-lhes chegar. Entretanto, mais soldados, alertados pela movimentação inédita, foram-se juntando no meio da praceta da entrada do quartel, alguns, já com a arma segura numa das mãos, enquanto com a outra apertavam o cinto das calças, outros, espreguiçando-se lentamente, tentando perceber o que é que se estava a passar, perguntavam sem cessar:

- O que foi? O que foi? Aquilo são tiros mesmo?

Tão repentinamente como começaram, as detonações deixaram de se ouvir. Quando já se começavam a aventurar algumas hipóteses de explicação para tão insólito caso, uma sentinela, chamou baixinho:

- Meu Alferes! Meu Alferes! Pareceu-me ouvir um ruído qualquer, ali para os lados da estrada que vem de Bajocunda. Oiça! Oiça! Já se ouve melhor! Não está a ouvir?

De facto, um ligeiro rumor começava a deixar-se aperceber, entre a sinfonia monótona de todos os insectos nocturnos.
Um ligeiro roçagar que se ia tornando cada vez mais audível.

- É alguém que vem aí de bicicleta, meu Alferes! - Afirmava convicto a sentinela.

Distinguiu-se então, perfeitamente, um vulto branco a deslocar-se velozmente pelo caminho que vinha desembocar no largo, onde todos estavam. Seguiam-no um grupo de homens negros que resolutamente se dirigiam para o quartel. Entre eles distinguia-se a figura alta e esguia do régulo Solo Só. Chegando junto do capitão, rapidamente contou o que tinha chegado ao seu conhecimento. O jovem da bicicleta era um morador da tabanca de Sinchã Samba, aquela que ficava ali mais perto, cerca de uma hora de caminho pela estrada que levava a Bajocunda.

Segundo ele, quando regressava a casa, depois de uma noite de caça infrutífera, reparara nuns vultos estranhos que, no meio da estrada que passa mesmo junto à sua aldeia, pareciam estar a escavar o chão. Julgando que seria alguns dos seus vizinhos, chamou. Mas quando lhe responderam, notou logo se tratava de gente estranha e que algo de muito suspeito se estaria a passar. Rapaz avisado, como era, não hesitou, meteu a arma à cara, a fiel longa e fez um aparatoso disparo.

Como por encanto o grupo eclipsou-se, mas deixando como aviso uma rajada de pistola-metralhadora. Os habitantes da aldeia, por sua vez, já despertados pelo primeiro disparo, acorreram também com as suas longas e um pouco às cegas, na densa escuridão da noite, responderam aos tiros de armas automáticas que vinham do outro lado da estrada.

Quando tudo serenou e se deixaram de ouvir mais tiros, montou na bicicleta e viera para Pirada buscar auxílio e contar tudo à tropa. Não conseguia dizer ao certo quantos elementos teria aquele grupo terrorista, pareceu-lhe que seriam poucos, mas que de certeza estavam a fazer um buraco no meio da estrada.

Perante tais declarações e perante o olhar inquieto dos nativos que escutavam, ofegantes, tudo o que o bravo Braima (assim se chamava o rapaz da bicicleta) então dizia, o comandante do destacamento tomou rapidamente duas decisões:

- Primeiro, enviar um Grupo de Combate o mais urgentemente possível, fazer um reconhecimento, sem alarido, à zona afectada e atacar, se possível, o grupo inimigo que se infiltrara.

- Segundo, manter o destacamento em estado de alerta durante toda a noite, enviando para os caminhos da mata, que davam acesso à fronteira, alguns elementos da auto-defesa nativa, jovens decididos que, por sua própria decisão, tinha armado.

Tinha tido conhecimento, já há alguns dias, que um grupo inimigo se localizara do outro lado da fronteira. Era de prever qualquer tentativa de infiltração e talvez aquele pequeno grupo surpreendido pelo Abdulai Braima pretendesse de facto instalar uma mina que isolasse o aquartelamento, do lado nascente, para, no caso de resolverem atacar, ficarem com um caminho de fuga protegido.

Sem hesitações, os homens do 1.º GCOMB prepararam-se para partir. Ninguém falava ou gracejava e todos se mostravam interessados apenas no armamento a levar, que se queria leve, mas poderoso. Fixaram-se as últimas instruções, estudaram-se pela última vez, os mapas. O Sargento de Transmissões afinou os rádios, fixou as frequências indispensáveis. Todos os minutos eram preciosos. Não se poderia desperdiçar o efeito surpresa.

A um sinal do alferes, o grupo de combate embrenhou-se silenciosamente na escuridão do caminho, precedido por dois guias nativos que, ligeiros, ardiam de impaciência. Um a um deslizaram, como felinos, guiando-se pela estreita faixa clara da estrada, até que se deixaram de ver. O silêncio quase que não fora perturbado. O ar frio da noite que, de repente, começara a correr numa aragem fina, parecia querer impelir aqueles homens, sempre para a frente, de encontro ao negrume da mata.

Após os primeiros momentos de habituação, cada homem procurava não perder de vista o que lhe ia na frente, perscrutando ao mesmo tempo as sombras da noite em todas as direcções. Respiravam a curtos espaços, com os músculos tensos, prontos a qualquer reacção necessária. Em frente sempre aquela estrada branca, que mais parecia um estranho fantasma pairando diante deles.

Quando já estavam longe do aquartelamento, como medida de precaução, fizeram então o primeiro alto e todos se agacharam na berma do caminho, no lado mais escuro. O jovem alferes consultou os guias, confirmou, mentalmente, as distâncias e, depois de passar palavra, deu início a uma manobra de envolvimento, evitando o contacto directo com o desconhecido, e qualquer possível emboscada. Todos os cuidados não seriam demais.

Desta vez, o grupo embrenhou-se, depois de seguramente localizada pelos guias, por uma antiga picada que seguia paralela à estrada e que os levaria directamente à tabanca ameaçada. Esta, que se localizava um pouco a Sul da estrada, poderia ser assim atingida sem se ser visto da estrada. Era uma zona de mata densa, pela proximidade de um curso de água, propícia ao aparecimento de bolanhas, zonas alagadiças, locais de preferência para quem se quisesse ocultar.

Daí a pouco começavam a distinguir-se as copas arredondadas dos mangueiros, árvores de fruto, quase sempre identificadoras da proximidade de algum povoado.

A coluna redobrou de atenções e cuidados. Contra a impetuosidade dos guias, o oficial contrapunha calma e precaução. A aproximação deveria ser feita com o máximo de eficácia, pois o imprevisto poderia ser fatal.

Finalmente, a tabanca surgia no meio de uma imensa clareira. A Lua começava a despontar e iluminava já o cume das cubatas o que tornava, daí em diante, de certo modo arriscada a progressão daquele grupo de homens. Felizmente o vento vinha de frente e os cães não dariam pela aproximação deles.
O oficial fez um curto sinal com o braço e todos estacaram, ouvindo o vento, fixando os pontos característicos do terreno. Um silêncio de beatitude parecia querer desmentir todo aquele aparato de guerra.

Após uma ligeira troca de impressões, um dos guias partiu lesto na direcção da tabanca, confundindo-se com as sombras.

Os homens dividiram-se e uma secção embrenhou-se de novo na mata, com o outro guia, rodeando a tabanca pelo lado Sul, numa tentativa de conhecer melhor o terreno. O resto do grupo aguardou notícias do primeiro guia. Este não se fez esperar muito e, daí a pouco, estava já de volta, acompanhado por outro indígena que cumprimentava o alferes dando mostras de já o conhecer, de anteriores visitas, à tabanca.

Comunicou que os bandidos tinham feito muito fogo sobre eles, mas que se foram embora ao verem que da tabanca lhes respondiam também com tiros de espingarda. Todo o pessoal da aldeia estava de vigia e ninguém tinha fugido, acrescentou com um certo ar de vaidade. Só tinham pena que as munições tivessem acabado, senão tinham ido atrás deles. A tropa devia dar-lhes mais espingardas e mais balas, pois assim ficavam com medo que os bandidos voltassem para se vingarem.

Tranquilizado com estas informações, o alferes deu então ordem de avançar até à tabanca, deixando, no entanto, uma secção a proteger a retaguarda.
A tabanca parecia deserta, só aqui e ali se via uma cabeça a emergir de dentro de uma cubata. No largo central da aldeia, dois velhos e algumas mulheres. Um deles era o jarga, o chefe da tabanca. Acolheu a tropa com evidentes sinais de alegria e as mulheres, ao princípio atemorizadas, em breve começaram a tagarelar e a rir.
Surgiram depois os soldados da secção que fizera o envolvimento pelo sul, assustando algumas crianças desprevenidas, que correram a refugiar-se debaixo das saias das mães.

Nada de anormal do lado Sul. Restava portanto fazer o reconhecimento da estrada junto da tabanca, no local onde tinha sido avistado o grupo inimigo. Depois de uma breve comunicação rádio com o comando, o grupo espalhou-se, procurando então acercar-se da estrada. O silêncio continuava, interrompido apenas por um ligeiro rumor do vento nas copas frondosas dos grandes mangueirais. Os soldados esperavam, de armas prontas para uma qualquer reacção de um inimigo que poderia ainda estar presente por ali, emboscado.

Lentamente, atingiram a berma da estrada sem que nada acontecesse. A noite continuava a esconder os seus mistérios.

Um dos nativos indicou o local exacto onde tinham avistado os vultos suspeitos, uma cova escura, mesmo ali onde ficava a fonte da aldeia, segundo também informava.
A título preventivo e depois de prevenir o aquartelamento pelo rádio, dispararam-se algumas rajadas nas direcções mais prováveis, mas não houve qualquer resposta. Não havia dúvida, o campo estava livre.

Alguns soldados atravessaram a estrada e colocaram-se na outra berma. Outros, seguindo um dos nativos, embrenharam-se cautelosamente na mata que rodeava a fonte. Um deles, tropeçou num objecto duro e logo verificou tratar-se de uma caixa de ferro. Por precaução, tacteou a toda a volta com cuidado, certificando-se que não estaria armadilhado. Era um simples cunhete de munições abandonado talvez na precipitação da fuga

O guia regressava também com qualquer coisa na mão. Uma sandália de plástico e um boné de caqui.
Ali estavam, portanto, as provas definitivas de que, de facto, um grupo inimigo estivera naquele local e que teria retirado precipitadamente, abandonando, inclusive, uma pesada caixa de munições.

O alferes, entretanto, tinha localizado o sítio da estrada, onde o Braima tinha visto os suspeitos a cavar um buraco. Realmente, na parte onde a estrada descia para a bolanha, à luz fraca da lanterna eléctrica, conseguia notar-se uma ligeira depressão formando um quadrado, onde a terra parecia mais fofa e remexida. Como o local era muito escuro, não se fizeram todavia mais averiguações.

O inimigo, àquela hora estaria certamente do outro lado da fronteira e, não serviria de nada persegui-lo. Contactando novamente o Comando, ficou decidido então que metade do grupo permaneceria no local, guardando a estrada e impedindo a circulação de quaisquer veículos.
O resto regressaria ao quartel, trazendo tudo aquilo que tivesse sido encontrado, abandonado pelo inimigo.
Quando o pequeno grupo de soldados reentrou no quartel, todos ainda se mantinham na mesma expectativa aquando da saída deles.
A caixa metálica continha vários carregadores de espingarda metralhadora de origem soviética, ainda por utilizar e em perfeito estado de conservação.

Naquela noite, ainda, a sentinela deixada junto à estrada, perto do local onde se supunha estar a mina, deteve o condutor de uma pesada camioneta carregada de mancarra, vinda dos lados de Canquelifá, na ponta leste e que nada sabia do que tinha acontecido.
O motorista e algum pessoal que o acompanhava, encavalitado em cima das sacas do amendoim, tiveram mesmo de pernoitar ali na tabanca de Sinchã Samba, esperando que a tropa, mal amanhecesse, limpasse a estrada, assegurando-lhes uma passagem segura.

Logo que o dia clareou, uma força composta, então, por outro Grupo de Combate dirigiu-se ao sítio onde estaria a suposta mina. Cuidadosamente, foram picando o solo e mesmo no local onde o alferes estivera na noite anterior, detectou-se uma depressão coberta por terra fofa. Afastada a areia, destaparam uma caixa quadrangular de madeira. Era de facto uma mina anti-carro. Os turras, afinal, sempre tinham tido tempo para terminar o trabalho.

Com uma pequena carga de trotil, o Sargento Especialista rebentou o engenho, que fez um estrondo tremendo, perfeitamente ouvido a vários quilómetros de distância.

O motorista do camião de mancarra limpou o suor da testa e soltou um profundo suspiro de alívio. Profissional experiente, de muitas campanhas, nunca tinha sentido tão perto a perspectiva de poder vir a saltar com o rebentamento de uma mina. E daquela, escapara quase por milagre.

Pirada, 15 e 16 de Janeiro de 1965
(Publicado no “A Aurora do Lima” em 14.01.2009)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4898: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (6): Os amores do Soldado Valença

domingo, 20 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4980: Cartas (Carlos Geraldes) (9): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1966

1. Nono poste da série Cartas, (JAN a MAR66), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66


2.ª FASE: O MATO

Paúnca, 04 Jan. 1966
Espero a visita de um coronel de Bafatá, o chefão cá do sítio e isto tem de ficar tudo a brilhar. O pior é que os soldados estão outra vez a perder o hábito de trabalhar.
Neste fim de mês de Dezembro, vivi atulhado em contas da Cantina. Fui obrigado a deslocar-me a Pirada, para na máquina de calcular de Secretaria, conseguir acertar as contas. Felizmente que tudo deu certo e até com um lucro bastante satisfatório.
As distracções continuam sempre as mesmas. Às segundas-feiras, um passeio matinal pela aldeia para ver a feira. À noite joga-se à Sueca ou às Copas. Perco quase sempre, porque não dou atenção às cartas que vão saindo, nem conto os trunfos já jogados. Agora, com esta mania das cartas, já não nos deitamos com as galinhas. Dá para passar o tempo, mas não me entusiasma muito.

Ao Sábado à tarde e ao Domingo parece que o quartel fica deserto pois toda a gente se deita na Caserna a dormir a sesta ou a ouvir rádio.
Quanto à Passagem do Ano, aconteceu sem novidade de maior. Quase sem darmos por isso, estávamos já em 1966.
À meia-noite do dia 31 de Dezembro, fizemos um arraial de trinta demónios e até disparámos, para o ar, foguetões luminosos de várias cores (os very lights). Mesmo assim a festa durou pouco tempo e antes das 02H00 da madrugada já todos dormiam sossegadamente.
Os soldados estão todos chateados comigo por ter comprado uma camisa verde do novo fardamento, mas não tive outro remédio porque as amarelas estão a desfazer-se aos bocados e já não existem à venda. Dizem que os atraiçoei, pois a farda antiga é que nos dá o valor de veteranos.

Paúnca, 17 Jan. 1966
Percorremos toda a região banhada pelo maior rio da Guiné, o Gêba, que entra no território da Província, aqui por esta zona.
O silêncio e a serenidade das margens, onde se escondem numerosos crocodilos, quase nos retinham ali, especados para sempre.
Éramos só 12 homens, 6 brancos e 6 pretos e na primeira paragem, acampámos no local de uma antiga tabanca, um grande espaço ainda limpo de mato, apenas com duas ou três árvores frondosas no centro. Ainda se viam por aqui e por ali, as ruínas de antigas vedações, paus e estacas que sustentavam as palhotas.
Deitámo-nos debaixo de dois mangueirais e fizemos uma fogueira enorme com algumas estacas das ruínas que, como estavam muito secas, arderam às mil maravilhas. Não tivemos que recear o frio, pois toda a noite a fogueira ardeu com força.
Apenas fomos importunados pelas formigas de um monte de bagabaga que inadvertidamente destruímos, quando limpávamos o chão junto das árvores. A nossa intenção era a de passarmos despercebidos por entre as tabancas que há nesta região, mas por nosso azar, ou apenas por imprevidência, quando estávamos a montar o acampamento apareceram quatro crianças vindas do mato, possivelmente em trânsito de uma tabanca para outra. Tentámos pregar-lhes um susto, dizendo-lhes que não éramos da tropa, mas sim guerrilheiros a caminho do Senegal. Por isso não os podíamos deixar seguir, teriam de ficar prisioneiros para não irem contar que nos viram. Mas os miúdos não acreditaram muito, talvez porque até já tivessem conhecido alguns de nós em Paúnca.
De modo que, ao fim de algum tempo, vendo que o ardil não resultava, optámos por deixá-los ir embora, não sem antes nos prometerem que, logo que chegassem à tabanca para onde iam, nos mandariam laranjas.
E na verdade, daí a um grande bocado, apareceu outro rapaz, de bicicleta, com um saco de laranjas e mandioca. Dei-lhe dinheiro e ele lá foi todo contente e ao mesmo tempo muito admirado.

No dia seguinte, como já não estávamos mais na clandestinidade, fomos direitos a uma outra tabanca, mais a Norte. Ao longo do rio a paisagem continuava soberba. Tirei inúmeras fotografias.
O chefe da tabanca é um velho amigo (pelo menos assim me parece) e, apesar de ele não perceber quase nada do que nós dizíamos, esteve um grande bocado a conversar connosco.
Passámos ali o resto do segundo dia a descansar, sempre rodeados de miúdos curiosos que enxameavam à nossa volta como moscas teimosas. Alguns eram muito engraçados, mas também havia muitos sofrendo de doenças nos olhos. Os mais fortes e desembaraçados eram com certeza os sobreviventes de toda uma enorme mortalidade infantil. Dormimos nas palhotas deles e, no dia seguinte, num local previamente combinado, apareceram as viaturas que nos levaram de volta ao quartel.

Nada de importante se tinha descoberto, a não ser que aquela zona, conhecida pelo nome de Mata do Sacaio, não era tão cerrada e inóspita como se dizia, pois afinal qualquer grupo de pessoas que, passasse por lá, seria facilmente detectado.
Fiquei no entanto com vontade de lá voltar, mas tão cedo não o poderei fazer porque, infelizmente dos meus 30 homens já só posso contar com 18 de boa saúde, o resto está, na maioria dos casos, com paludismo e outras doenças mais graves. Não têm o mínimo cuidado e apanham todas as doenças.
Com a milícia Fula não tenho problemas. Aquartelados num barracão ao lado do quartel, vivem felizes e despreocupados, alguns acompanhados pelas mulheres e os filhos.

No sábado à noite estava lá sentado ao pé da fogueira, conversando com eles, quando apareceram dois carros militares cheios de pessoal, numa grande algazarra. Prevendo o pior, voltei logo ao meu aquartelamento para ver do que se tratava.
Afinal vinham só divertir-se. O Capitão, o Alferes Castro que ainda julga que isto tudo é dele e o Doutor que nunca diz que não a uma promessa de farra.
Quando lhes perguntei o significado de tão inesperada visita, o Capitão explicou que tinham vindo ensinar o caminho a uma equipa de trabalhadores das Obras Públicas que anda a arranjar as estradas e que convidara o Castro e o Doutor para nos fazer uma visita informal

- E para bebermos uns copos! - acrescentaram logo o Castro e o Doutor, rindo às gargalhadas.

Como não achei muita graça, ripostei, perguntando se por acaso já estaríamos no Carnaval, para se fazerem assaltos. Mas perante a insistência dos foliões, não tive outro remédio senão abrir a Cantina. Acabaram por beber tudo o que havia e gastaram-me mais de 300$00 que, agora nesta altura me fazem muita falta, pois os negócios andam fraquinhos. Mas o que mais me irritou foi a atitude de gozo do Capitão, compactuando nesta farra de bêbados o que nele não é nada o seu estilo.
Como habitualmente, o Doutor quando se foram embora já ia de rastos, disparatando e cantando fados à lua. E o pior foi que, depois de eles saírem, um dos soldados que, por acaso nem é do meu Pelotão, mas do Pelotão do Castro e está cá emprestado, aproveitando o mau exemplo do seu chefe, embebedou-se também e foi para a caserna fazer reboliço. Armado com um pau começou a distribuir cacetadas a torto e a direito, mas logo por azar (seu) acertou num soldado negro que estava a tentar descansar. O Jau (um dos meus melhores soldados negros) acordado tão inesperadamente, não esteve com meias medidas, saltou da cama, pegou na primeira coisa que lhe apareceu à mão… uma pá e, zás! Enfiou com ela na cabeça do rufia, fazendo-lhe um golpe na testa que lhe curou instantaneamente a bebedeira.
O indivíduo ainda andou por ali a rosnar umas ameaças, mas nessa altura cheguei eu e tudo serenou como tinha de ser. Mais uma vez se comprovou que estas farras dentro do quartel dão sempre mau resultado.

Paúnca, 17 Fev. 1966
Ultimamente tem havido uma série de falsos alarmes, convergindo as atenções para esta mísera localidade.
Assim, de repente, sem qualquer aviso, surgiu aqui um Grupo de Combate de Nova Lamego e um Pelotão de Autometralhadoras Panhard, perguntando a toda a gente onde é que estava o inimigo!
Tratava-se, é claro, de mais um falso alarme, que fez logo saltar dos sofás, os chefões na sede do Batalhão.
Confirmado o engano, óbvio é claro, o Grupo de Combate regressou ordeiramente a penates, deixando, no entanto, para trás as Autometralhadoras Panhard, que já agora aproveitavam para fazer umas patrulhas pelas redondezas, não fosse o diabo tecê-las…
Assim temos passado agora umas noites bem divertidas com a companhia destes hóspedes inesperados, aliás excelentes camaradas, especialmente o Comandante, o Alferes Alexandre, um gigante de Angola, sempre bem-disposto.
A população que, tem um medo terrível das Panhard, com as suas imponentes metralhadoras de 20 mm, nem quer passar ao pé delas. No entanto soube que as populações mais afastadas parecem ter ficado tranquilizadas com o poderio de fogo que a tropa mostrou ter, para os proteger daqueles a quem eles chamam os bandidos (os turras).

Mas a miudagem atrevida, passada meia hora já andava encavalitada em cima dos blindados, brincando com as fitas das balas tracejantes de 20 mm, rindo com as brincadeiras dos soldados.
E tem sido assim esta guerra, sempre bem encenada, mas sem grandes palmas.
Agora que o Pelotão de Blindados também já se foi embora, voltámos àquela paz bucólica de sempre. Amanhã temos de dar uma grande limpeza no quartel e repor tudo nos seus lugares como dantes. Ficou como uma casa depois de uma grande festa, toda desarrumada e cheia de lixo.
Não deixei de ir a Pirada apresentar os meus hóspedes ao M. Santos, mas, não sei porquê, fui recebido com má cara. No entanto o Castro soube fazer as honras da casa e pagou as bebidas da praxe. Quando nos viemos embora, o M. Santos nem apareceu para as despedidas. Fiz de contas que não reparei. Afinal, não lhe devo nada e portanto, boa tarde!
Consta que já fez as pazes com o Cardoso e o recebe muito bem lá em casa. Alguém percebe isto?

Paúnca, 22 Fev. 1966
Hoje foi um dia extraordinário. Um dia de Carnaval como nunca gozei na minha vida. Resolvemos deitar fora as tristezas e brincar até fartar.
Felizmente, só houve um único caso de bebedeira, o soldado, o Facha, um pobre diabo que não faz mal a uma mosca, distraiu-se e bebeu mais do que a conta. Todos os outros, incluindo os furriéis, portaram-se sempre na linha, sem descarrilar nem perder a noção das realidades.
Começámos por organizar uma orquestra com os meus tambores, uma gaita-de-beiços, uma concertina, umas castanholas e um reco-reco, além dos já tradicionais ferrinhos. Dois dos soldados mascararam-se de casal de noivos, casados de fresco e um outro de polícia sinaleiro com um chapéu colonial na cabeça. Eu e um furriel pedimos umas vestimentas nativas e mascarámo-nos de fulas, simplesmente.
Formámos então um grande grupo e, logo depois do almoço, saímos pela povoação a fazer a nossa passeata. Foi um sucesso!
Rapidamente se juntou à nossa volta uma verdadeira multidão de crianças, de adultos e velhos primeiro julgando que nós teríamos endoidecido mas depois convencidos que aquilo era só festa aderiram também à pândega, acabando até a dançar o vira. Muitos acreditavam que nós tínhamos recebido a ordem de voltar para casa no dia seguinte.
Percorremos toda a povoação de casa em casa e foi um verdadeiro assalto carnavalesco às lojas que, àquela hora, estavam abertas como sempre. Mas tudo correu bem, sem excessos. Só muita brincadeira e muito ronco, muita festa e alegria.
À noite, repetiu-se a dose, agora com a orquestra mais afinada, só para fazer serenata no centro da povoação e não deixar os comerciantes irem cedo para a cama. Houve logo um deles que veio oferecer um garrafão de 10 litros de vinho que desapareceu em menos de um fósforo.
Eu, que de tarde me tinha mascarado, conseguindo não ser reconhecido por ninguém, desta vez limitei-me a assistir e a manter a ordem. Correu tudo bem e conseguimos contagiar de tal maneira os civis que, às dez horas da noite, Paúnca vivia num ambiente louco de Carnaval. Só se via gente a cantar e a dançar. Por todo o lado ouviam-se batuques e o som da nossa orquestra, mais conhecida como o Quinteto do Lopes que teve um sucesso inesperado. Quando tudo começou a esfriar, quem ainda bulia veio para o aquartelamento para um fim de festa rematado por um grandioso baile. Esgotaram-se as reservas da cantina para todo o mês.
Não sei como, desatei também a tocar desenfreadamente um tambor, enlouquecendo a multidão que pulava e se rebolava pelo chão numa completa histeria.
Curiosamente, ninguém se embebedou! Durante toda a noite bebi apenas um whisky, oferecido na casa de um dos comerciantes e naturalmente era o que estava mais lúcido.
Enfim, foi uma festa magnífica. Amanhã, Quarta-feira de Cinzas é dia de trabalho.

E eis que surgiram novas ideias ao nosso Capitão. Teremos de construir uma casa-abrigo para o novo gerador de energia eléctrica que, virá (ou não…) dentro de dez dias! Quer tudo feito em bidões cheios de terra, à prova de bala de canhão…
Falta saber quem é que amanhã se vai levantar mais cedo para começar a trabalhar nessa obra.
Eu cá, é que não!

Paúnca, 01 Mar. 1966
A estação da mancarra está quase a acabar. Já circulam menos camponeses pela estrada, puxando os seus burros, carregados com os enormes sacos cheios de mancarra, a caminho dos armazéns dos comerciantes daqui que, depois se encarregam de a fazer chegar a Bafatá para aí embarcar para Bissau.
A temperatura chegou a descer tanto que me vi forçado a dormir de pijama e cobertor. Mas agora já está a subir de novo.
Passo o tempo entretido a ler ou a jogar às cartas com os furriéis. Neste último fim-de-semana, pela primeira vez, tivemos a visita de dois turistas. A fama da boa vida em Paúnca está a tomar tal consistência que já aparecem pedidos do pessoal de Pirada para virem passar aqui os fins-de-semana. Os dois primeiros turistas foram uns furriéis, nossos especiais amigos que solicitaram ao Capitão licença para passar cá o sábado e o domingo numa espécie de mini-férias.
A razão principal sei eu qual é. A comida da nossa Messe é muito melhor que a de Pirada. Se acrescentarmos a isso, os ares mais puros, a convivência mais alegre e sadia, as bebidas frescas e à borla que, os donos da casa sempre acabam por oferecer, e sobretudo o facto de estarem longe do 1.º Sargento e do Capitão, está explicada a razão deste fenómeno que não deixa de ser curioso. E agora são também os soldados que querem fazer o mesmo.
Quase que chega a haver necessidade de se meter uma cunha para conseguir gozar uma pequena licença em, Paúnca!

Este mês a cantina ia ficando completamente vazia. A alegria de estarmos a chegar ao fim da comissão é talvez uma das razões, mas o calor também tem ajudado. Os refrigerantes desaparecem num ápice, tal é a venda. Continuo a ser o gerente da cantina e até agora só tem dado lucro. No fim deste mês entrego tudo a outra Companhia o que já representa alguma coisa. Quando aqui chegámos não havia nada. Estou em crer que até meados de Abril deveremos marchar para Bissau. Até que enfim!
Soube agora pela rádio que os soviéticos atingiram Vénus com uma nave não tripulada. Agora só nos falta a nós sairmos daqui.

Paúnca, 08 Mar. 1966
No sábado passado, fui a Bafatá passear, pois apeteceu-me mudar de ambiente. No entanto apanhei uma valente estafadela pois a estrada está em péssimo estado e ainda por cima o jeep já não tem amortecedores.
Na companhia do M. Santos, almocei num café e depois fomos às compras. Apenas comprei uns livros e não encontrei mais nada de especial, a não ser um pequeno tapete com motivos árabes, alguns panos típicos, um canhangulo novo e uns pratos feitos de ráfia que podem servir de resguardo, quando se colocam panelas ou outros recipientes quentes em cima da mesa.
Mas o que mais de encontrava eram coisas feitas na China! Louça, lenços de seda e até cestas de vime colorido. Comprei ainda, antes da hora da partida uma espécie de rosário, ou simplesmente um colar de contas, que os fulas maometanos como são, usam constantemente, para os ajudar a recitar orações ou os versículos do Alcorão, julgo eu. Infelizmente, os indígenas de cá têm muito pouco artesanato para vender. As coisas mais bonitas vêm de fora, o que as torna mais caras, como é óbvio.

Como o Manel Jaquim agora parece ter medo de vir cá cima, não sei porquê, o nosso entretenimento continua a ser jogar às cartas ou ler alguma coisa. Quanto ao quinteto do Lopes, passou agora a octeto, com novos números e novas orquestrações.

Paúnca, 13 Mar. 1966
Na semana passada estive dois dias em Pirada, a pedido do Capitão. Esperava a vinda de umas autoridades senegalesas e como não tem lá ninguém que fale francês, pediu-me para lhe ir dar uma mãozinha.
Afinal a entrevista limitou-se a uma breve apresentação de cumprimentos mesmo sobre a linha de fronteira.
Em seguida, limitei-me a ficar por lá, ir até casa do M. Santos conversar e ouvir um pouco de música dos novos discos que tem recebido. Em suma passei dois dias sem fazer nada, tal como um verdadeiro turista, passeando e cumprimentando velhos conhecidos.
Quando regressei, todos me vieram falar como se tivesse voltado de uma longa viagem. Na minha ausência tudo tinha corrido sem problemas. Hoje está marcado um almoço, aqui no quartel, para o qual foram convidados todos os comerciantes de Paúnca, uns furriéis de Bajocunda e ainda o nosso Alferes Médico que, agora se dá muito bem comigo e com todos os militares de Paúnca. Foi uma grande festa que só acabou às 6 da tarde, porque os furriéis de Bajocunda tinham de regressar a casa e ainda tinham de percorrer uns 40 kms por picadas de 3.ª categoria.
O almoço foi galinha de chabéu, um prato típico cá do sítio que, consiste em galinha cozinhada em óleo de palma, acompanhado de arroz branco. Tudo muito picante, como é da tradição. O nosso cozinheiro (um balanta que anda quase sempre bêbado) desta vez esmerou-se e toda a gente gabou e repetiu, embora para alguns, tivesse sido a primeira vez que comiam tal especialidade. Éramos 10 pessoas à mesa e consumiram-se 10 galinhas!
Depois, como estava muito calor, fomos até casa de um dos comerciantes comer bolinhos de bacalhau e umas frituras de pasta de camarão, de origem chinesa, e beber whisky com muito gelo. Finalmente para espairecer, fomos dar uma volta pela tabanca e mostrar os locais mais interessantes aos nossos visitantes que, como nunca tinham vindo até cá, se mostraram encantados. Nós, depois de nove meses de estadia, como é o nosso caso, é que já não achamos graça nenhuma.
Acabou-se a tarde a jogar as cartas em casa de outro comerciante. O Doutor ficou para jantar que, entretanto se foi atrasando, pois tivemos de esperar pelo Furriel Vicente que tinha ido levar os camaradas de Bajocunda. Só voltou depois das 10 da noite, mas, bem atestados como estávamos com o almoço, aguentámos bem a espera. Apesar, do jantar (Bacalhau à Gomes de Sá) já estar completamente frio àquela hora, mesmo assim até soube melhor.
Ao serão rematámos com um campeonato de King que só terminou às 03H00 da manhã!
O pior é amanhã, segunda-feira…

Paúnca, 21 Mar. 1966
As novidades para esta semana resumem-se à chegada do Manel Jaquim e a pouco mais. Finalmente reapareceu por cá, com um filme tão ordinário que até senti ganas de lhe apertar o pescoço. Chamava-se “O Capitão Sindbad” e era uma historieta desconchavada tirada das Mil e Uma Noites, excedendo tudo o que já vi de mau gosto e estupidez.
Durante o resto dos dias fui até Pirada várias vezes, para mudar de ambiente, conversar com o M. Santos, ver alguns amigos.

No domingo tivemos cá a visita de um velho comerciante de Pirada, o Gomes que vive muito só, acompanhado apenas por um criado preto, quase tão velho como ele. Muito amigo de alguns furriéis, foram estes que se lembraram de o convidar para vir também conhecer esta já famosa estância turística. Bebemos uns whiskies e comemos galinha assada no espeto. Com o desenrolar da conversa, caiu na esparrela de se gabar que tinha uns paios no frigorífico em casa dele, em Pirada e, no meio do entusiasmo geral acabou por convidar toda a gente para ir lá prová-los.
Claro que nem foi preciso repetir, todos tinham ouvido perfeitamente bem. Corremos para os jeeps e depois de uma louca corrida por 30 kms de picada, caímos em casa dele. Em menos de um fósforo desapareceram três paios e uma garrafa de whisky. O pobre do homem ao ver aquela pressa toda, acabou por fugir para os fundos do quintal a pretexto que precisava de tomar banho.
Por acaso, nesse dia, o Capitão e o Alferes Castro tinham ido a Nova Lamego fazer um piquenique (!) e só voltaram à noite.
Imagine-se! Darem-se ao luxo de fazerem piqueniques aqui. Aposto que ninguém acredita.

Ah! É verdade, segundo os últimos boatos a nossa partida está marcada para 21 de Abril e seguiremos para Bissau no dia 5, mas nada é oficial ainda.
Aqui os dias permanecem sempre iguais. Se começa a chover é porque começou a estação das chuvas. Quando pára de chover, pronto, começou a estação seca!
E é tudo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

1. Mais um poste da série Cartas, (OUT65 a DEZ65), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66


2.ª FASE: O MATO

Paúnca, 10 Out. 1965
Todos os dias procuro levantar-me cedo, lavar-me, vestir-me como se tivesse algo muito importante e diferente para fazer.
Depois da cerimónia do hastear da bandeira, do pequeno-almoço e da distribuição dos trabalhos pelos homens que estão de faxina, vou até a caserna, ao posto de socorros, ao refeitório e está mais uma manhã passada!
Ultimamente tenho-me dedicado à limpeza do aquartelamento, principalmente a cortar o capim que cresce que eu sei lá e a reforçar a rede de arame farpado. E como os soldados estão a ficar uns sornas e só trabalham se forem obrigados, tenho de andar sempre atrás deles, muitas vezes até com um pau na mão (na brincadeira, é claro)

À noite, quando não chove, geralmente sento-me cá fora e coloco o gira-discos a tocar. Como sei que eles não apreciam jazz, pedi ao M. Santos uns discos emprestados, entre eles, os do Solnado (os famosos discos com os monólogos da “Ida à Guerra”), que têm tido um sucesso estrondoso, pois ficam ali à minha volta, sentados em cadeiras, caixotes ou mesmo no chão. E assim passamos grandes bocados da noite, entretidos a conversar e a rir.

Anteontem, quando receberam o pré, lembraram-se que eu lhes poderia descontar todos os meses uma pequena quantia para poderem comprar uma bola de futebol. Assim o fiz e descontei 5$00 a cada um. Eu e os furriéis pusemos o resto para os 300$00 que custava a bola. Ontem, fomos a Bafatá, aproveitando a boleia dos carros de Pirada, para comprar a bola, uma bela bola vermelha e à noite já cá a tinham. Hoje de manhã levantaram-se todos mais cedo para a estrear.
Organizei um jogo entre solteiros e casados e, é claro, ganharam os casados 3-2. Eu não joguei, mas já ficou combinado que, a partir desta semana, todos os dias orientarei os treinos. Isto vai servir às mil maravilhas para abater as gorduras que se estão a acumular nesta vida tão sedentária. Passaremos a levantarmo-nos às 05H00 para um pequeno crosse e um bocado de ginástica. Depois tentarei dar-lhes um pequeno treino de futebol mais ou menos no estilo do velho Szabo, tal como ainda me recordo de o ver, quando esteve no Vianense. Com palavrões e tudo!
Temos cá uns soldados pretos muito jeitosos e tenho esperanças de qualquer dia ir a Pirada e fazer uma surpresa aos soldados do Comando da Companhia que têm a fama de ser os melhorzinhos

Paúnca, 17 Out. 1965
Novidades do futebol: o Nacional de Paúnca já começou. A equipa do Comando do Pelotão formada pelos condutores, radiotelegrafistas, o maqueiro e o corneteiro, ganhou à 1ª Secção de Atiradores, por 3-0. No segundo dia, a 2ª Secção de Atiradores ganhou à 3ª Secção, por 6-0, deixando-a completamente desanimada. Na caserna não se fala noutra coisa. E, para cúmulo, uma equipa constituída por uma selecção dos melhores do Pelotão jogou contra uma equipa de civis (quase todos rapazes indígenas, que jogam muito bem) tendo ganho por 3-0.
A glória já começou a subir-lhes à cabeça e ninguém os atura. Os civis ficaram amuados e pedem a desforra que será disputada ainda hoje por volta das 17H00, para evitar o calor. É provável que ganhemos novamente, estou cá com uma fezada.
O futebol faz muito bem ao moral das tropas. Tenho a impressão que até andam com melhor aspecto, melhores cores. Eu também me sinto bem e, embora não jogue, participo nos treinos e de manhãzinha lá vou fazendo os meus crosses.

Paúnca-Pirada, 24 Out. 1965
Hoje fui até Pirada ver um jogo de futebol com a Companhia de Cavalaria que está em Bajocunda.
Em Paúnca já temos professor primário, é o Timóteo, um rapaz negro muito alto e ligeiramente coxo. Grande falador e grande bebedor também, como deu também para verificar. Esperemos que não me venha a dar problemas, pois parece ter prosápia a mais.

(De facto, como que a comprovar a minha estranheza quanto a alguns aspectos da sua conduta, vim a saber depois, pelo M. Santos, quando já estava na Metrópole, que ele afinal, tinha sido sempre um elemento do IN infiltrado e que, desaparecera repentinamente, quando sentiu avolumar as suspeitas sobre ele.)

Quanto a batuques, são todos os dias, mas não têm metade da graça dos que se faziam em Pirada. A população daqui é menos simpática e pouco comunicativa. Se não fosse por causa do capitão e daquela convivência forçada com o porcalhão da companhia (refiro-me ao Cardoso) andaria desejoso de voltar para lá. Mas assim é preferível ficar estagnado nesta absurda calma de Paúnca. À noite, tenho até experimentado ir até casa de um ou outro comerciante, para uma visita, mas francamente, são de tal maneira broncos e soezes que, regresso sempre sem vontade nenhuma de lá voltar.
Ultimamente, eu e os furriéis entretemo-nos a jogar ao Poker de dados ou à Sueca, mas também cansa e aborrece. Recebi no correio os quatros rolos de revistas que a mãe me mandou. Foi vida nova, mas também já devorei tudo!
À noite tento ouvir as emissões da Voz da América, em ondas curtas, pois costuma dar boa música de jazz, mas nem sempre se consegue ter boa audição.
Enfim, o tempo passa e, não passa…

Paúnca, 09 Nov. 1965
Fiz ontem seis meses de casado e só hoje é que me lembrou.
O Martins, o meu quarto furriel, foi para Pirada fazer parte, com a Secção dele, do novo Pelotão que o Capitão resolveu criar para o oferecer ao Alferes Cardoso que, por se o alferes adjunto dele, tinha tido sempre a sorte de nunca comandar nenhum. Apenas comandava o grupo de sargentos e praças que constituíam o núcleo de comando e serviços da Companhia, embora na verdade quem mandasse fosse o 1º sargento. Assim acabou por nunca ter participado em nenhuma das grandes operações que fizemos em Bissau e em todos os patrulhamentos regulares que fazíamos no dia-a-dia. Isso era até, como seria de esperar um dos motivos de celeuma e discórdia entre os alferes e sargentos que viam nesse facto um favorecimento de que ele soube sempre aproveitar-se escandalosamente. Agora que ele tinha pregado aquela partida de ter ido de férias que, seriam de trinta dias, e ter lá ficado três meses fingindo-se doente, o Capitão que finalmente o começou a topar, resolveu alterar a orgânica da Companhia, tirando uma Secção a cada um dos Pelotões (ou melhor, Grupos de Combate, por terem 4 secções) dos outros três alferes para, assim constituir um Pelotão para o Zéquinha (como jocosamente nos referimos ao José Cardoso) começar a alinhar como toda a gente.
Agora que ele regressou, está ainda mais repugnante. Toda a gente diz o pior dele e quase ninguém lhe fala, inclusive eu próprio. No entanto, só agora é que o Capitão fez uma coisa que já deveria ter feito logo de início. Assim talvez ele não se tivesse tornado tão nojento e cobarde.
Parece que até a própria namorada cortou relações com ele e o pobre coitado vai de mal a pior.

Paúnca, 16 Nov. 1965
O Alferes Castro que, está agora em Pirada, fez anos no passado dia 11 e convidou-me a mim e a mais dois dos meus furriéis, para irmos lá festejar com ele. Dois dias antes pedi autorização ao Capitão para me deslocar com os furriéis a Pirada. Respondeu-me que autorizava, mas no dia seguinte mandou uma mensagem via rádio a dizer que afinal só poderia ir acompanhado apenas por um furriel, pois nesse dia, teriam de ficar, obrigatoriamente, dois no quartel. Fiquei tão chateado com aquela manobra deselegante que resolvemos não ir ninguém à tal dita festa de aniversário do Castro.

O que tornou este caso ainda mais desagradável, foi o facto de o Capitão estar até a esquecer-se que, naquele dia em que me mandou fazer aquela patrulha a pé de 40 km, que durou 48 horas, no quartel tinha ficado apenas um furriel! Então para quê dois pesos e duas medidas?
Conforme depois me contaram, parece que a festa esteve um bocado fria. O Cardoso fez-se também convidado e não largou a casaca do Capitão, portando-se como um autêntico verme, sempre a bajulá-lo. Aliás o Capitão também não se portou melhor, pois insistiu com o Castro para convidar igualmente o patife do 1º sargento com quem ele não pode nem à lei da bala. Não sei porquê, o Capitão desdobra-se em mesuras com o 1º sargento, favorecendo-o com todas as benesses. Se calhar porque também pretende ficar de bem com ele ou lhe deva alguns favores, não sei.
Agora que o tempo vai acumulando tantos factos ridículos, a paciência vai-se também esgotando.

Paúnca, 21 Nov. 1965
Já são quase 5 horas da tarde, pois estou a ouvir preparar o Unimog que todos os dias vai buscar água à bolanha.
Agora mudámos de patrão. A nossa Companhia deixou de pertencer ao Batalhão de Cavalaria de Nova Lamego, para passar a pertencer ao de Bafatá. A nova estrutura do Sector modificou-se e tanto Pirada como Paúnca passaram a constituir uma faixa de terreno dependente inteiramente de Bafatá. Estamos a fugir da zona Oeste e simultaneamente da zona Norte, pois agora já não seremos chamados para actuar em Canquelifá (no canto superior direito do mapa da Guiné), como quando dependíamos de Nova Lamego, que continua a comandar essa zona.

No passado dia 19, tive cá a visita do novo Comandante que me pareceu ser um tipo mais simpático que o anterior.
Como tinha mandado caiar todo o quartel na semana antecedente, estava tudo com um aspecto impecável, o que pareceu agradar de sobremaneira ao indivíduo.
Os soldados fizeram a formatura com o melhor fardamento que ainda possuíam e ele dirigiu-lhes algumas palavras de elogio que os encheu de vaidade.
Naquela tarde, depois de se ter ido embora, decretei feriado geral e ninguém trabalhou mais, pois merecem coitados. Fazem sacrifícios que, se fosse eu a fazê-los, me tornariam esta vida mais negra que uma folha de papel químico (do preto, claro!).

Quando, em conversa, aqui na Messe, contei o boato que corria na Metrópole, sobre a possibilidade de regressarmos a casa mais cedo, um dos soldados, o Zé Maria que trabalha aqui e eu dispensei de fazer sentinela de noite por estar muito fraco, até disse:

- Se isso for verdade até engordo com a alegria!

Hoje o Furriel Ricardo adoeceu com paludismo. É a sétima ou oitava vez que lhe acontece. É também o mais fraco dos furriéis. De todos nós, parece que só eu e alguns muito poucos, é que ainda não adoeceram com a febre. Também, tenho muito cuidado de não me esquecer de tomar o comprimido de Resoquina, o que raramente acontece com a maioria dos outros soldados.
Estamos a caminhar para os 14 meses de mato e estamos de tal modo mergulhados neste ambiente que já tratamos e compreendemos os fulas como se fôssemos da mesma raça.
Ontem fomos fazer uma emboscada numa cambança (local onde habitualmente se atravessa um rio de piroga) não muito longe daqui. Suspeitava-se da presença inimiga, o que, felizmente não se confirmou mais uma vez.
Enquanto estávamos escondidos entre os arbustos junto à margem, alguém do outro lado chamou pelo rapaz que tomava conta das pirogas e que estava, muito calado, junto de mim. Depois de lhe ter feito sinal para que respondesse ao chamado, atravessou para a outra margem para satisfazer os fregueses.

O frete da passagem do rio tem uma tabela: 3$00 uma pessoa só; 6$00 uma pessoa e uma bicicleta. Ora estes nossos fregueses, que não suspeitaram que, na outra margem, os estavam a vigiar e a ouvir, quiseram intrujar o rapaz e um deles só queria mesmo pagar 5$00 por ele e pela sua bicicleta.
Por fim, o rapaz lá os trouxe e, qual não foi o espanto do mariola, quando ao desembarcar do lado de cá se viu rodeado por soldados armados.
Sentado calmamente num tronco caído, chamei-o e disse-lhe por intermédio de um soldado da milícia negra que, o que ele tinha feito não estava correcto e que teria de pagar tudo conforme a tabela, senão que o atirava ao rio obrigando-o a voltar para trás a nado. Assustado começou numa grande ladainha jurando que não tinha mais dinheiro, que tinha vindo de um enterro de um parente, etc. etc.
Mesmo assim e para que não julgasse que nos levaria por trouxas obriguei-o a pagar o resto do que devia ao rapaz, em nozes de cola que, trazia num embrulho, amarrado à bicicleta.
Mas ficou-me cá a parecer que, o que o tinha assustado mais, foi ele ter percebido que eu tinha entendido tudo o que ele tinha dito ao rapaz na outra margem do rio. E deixei-o ficar nessa convicção…
O rapaz da piroga é que estava todo divertido. Conquistei mais um amigo que, para aqui ficará a desaparecer nas brumas da memória…
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No próximo dia 1 de Dezembro, Timóteo, o professor da escola de Paúnca, vai organizar uma festarola comemorativa do feriado. Vai haver desfile e grupos folclóricos!?
Só não sei onde é que os miúdos foram buscar as fardas de Mocidade Portuguesa que exibem com tanta vaidade e orgulho, mas aquele Timóteo consegue sempre surpreender-me.

Paúnca, 10 Dez. 1965
O Alferes Castro foi a Bafatá e disse-nos que falou com o Comandante do Batalhão de Nova Lamego, acabado de chegar de férias. Segundo ele o nosso regresso está previsto para 27 de Abril, no navio Niassa.
Cheira-me a mais um boato, mas no entanto…
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O futebol continua, mas a bola é que está toda esfarrapada, de tanto bater na cerca de arame farpado. Ainda apareceu um sapateiro improvisado para a cozer, mas agora mais parece um melão.
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Finalmente acabei por me tornar empreiteiro!
Caiámos novamente o quartel e vamos agora cimentar o chão da Cantina que era em terra batida. Fiz um balcão com bambus entrelaçados e uma grossa prancha de madeira, tudo pintado com tinta de esmalte vermelha. Consegui que o Capitão me emprestasse o carpinteiro da Companhia por uma semana. Arranjei uma estante e organizei uma pequena biblioteca com livros e revistas que vou pedinchando por aqui e por ali, para que os soldados tenham mais qualquer coisa com que se entreter.
Vamos também montar um sistema de chuveiros nos balneários dos soldados que, vai evitar muito lodaçal. Felizmente toda a gente tem aderido e trabalha com entusiasmo. Já nem é preciso perder tempo a convencê-los.

Fui a Bafatá comprar bebidas e outros artigos que cá em cima não havia e agora podemo-nos gabar de ter uma Cantina em condições. Há cerveja, sumos de frutas, limonadas, leite achocolatado, vinho da Madeira, whisky, brande e licor Tríplice e até licor Drambuie. Tabaco de todas as marcas, pilhas para as lanternas e para os rádios, sabonetes, pastas de dentes, papel de carta, canetas, creme para a barba, lâminas, latinhas de Foie-Gras, espelhos e roupa interior.
Temos também latas de pó de talco Gardénia, da Diana Marsh. Até vou guardar uma para levar no regresso. Enfim, um sortido como nunca se viu igual.

Em Bafatá comprei também quatro baralhos de cartas e um jogo de Dominó. À noite, a Cantina está sempre super lotada. Espero fazer a inauguração oficial antes do Natal e até vou convidar o Capitão.

Na ceia de Natal, contamos dar a toda a gente bacalhau cozido com as tradicionais batatas e couves, bolos, fruta em calda e vinho do Porto. Para o almoço do dia de Natal, será um quarto de galinha para cada um, vinho a dobrar e pudim Flan, que conseguimos comprar num comerciante daqui.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965