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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23020: Historiografia da presença portuguesa em África (305): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (9) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Vale a pena insistir quanto às razões por que se é minucioso (senão mesmo excessivo) no tratamento das questões do Casamansa e de Bolama. Foi Senna Barcelos o primeiro investigador a pôr por ordem toda a documentação que jazia nos arquivos referente às mesmas. Relevam, por muita documentação trocada, a manha de argumentos dos franceses e a pura hipocrisia britânica que pretextava que a ocupação de Bolama era para impedir ou punir o tráfico negreiro. É surpreendente a qualidade da epistolografia portuguesa, aqueles simples governadores de praças não dobram a servir e tratam o boi pelos nomes. Vai agora entrar em cena Honório Pereira Barreto que não esconderá a sua amargura, em Lisboa o que se passava na Senegâmbia Portuguesa era assunto mais do que subalterno, o país está entregue a uma luta política partidária desenfreada, Fontes Pereira de Melo ainda não está à frente da Regeneração. E não deixa de provocar pasmos como aqueles comandantes longe de tudo e sem poder algum ripostavam contra atos de pura pirataria.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (9)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

A saga de Ziguinchor é neste período do fim da década de 1850 a questão política crucial. Antes, porém, importa pôr em cima da mesa alguma informação dada por Senna Barcelos. Em maio de 1849, o Governador de Cacheu, José Xavier Crato de seu nome, descrevia assim o miserável estado da Praça: “Era defendida por uma estacada e quatro arruinadíssimos redutos; o quartel militar e arrecadações estavam cobertos com palha; a artilharia, de bronze, constava de duas peças de calibre 1 e duas peças de calibre 3 e não havia pólvora”. Os presídios de Farim e Ziguinchor eram também defendidos por uma estacada e por baterias de barro que se cobriam de palha, no tempo das chuvas, para não se desmoronarem. A igreja ou capela de Cacheu, construída de pedra e cal, estava coberta de palha. E mais um dado curioso que envolve Honório Pereira Barreto. Também em maio de 1849 ele insistia com o ministro da Marinha sobre a educação de rapazes em escolas de aprendizagem ou de ofícios, pedindo-lhe que fosse autorizado mandá-los para Lisboa, e naquela data enviou nove pretos para os ofícios de alfaiate, funileiro, carpinteiro, serralheiro, torneiro e sapateiro; solicitou para que essa instrução fosse mais cuidadosa nos ofícios do que na leitura, para não acontecer o mesmo que em 1826 ou 1827 com rapazes mandados de Bissau que sabendo só ler não se dedicaram a nenhum ofício.

Honório Barreto alerta sem parar as autoridades para a questão do Casamansa, deplora numa carta a autorização dada por Lisboa para a navegação do rio, Ziguinchor ficou isolada, sobrevivendo graças ao comércio do sal, autorizou-se os franceses a fundarem Selho, propõe medidas concretas: “Julgo que para salvarmos os nossos direitos é suficiente que o governo-geral da província comunique aos de Gâmbia e Senegal quais são os pontos neste distrito, havidos por tratados feitos com os gentios, onde só podem vir exclusivamente os portugueses. A demora que houve nesta participação talvez cause hoje alguma dúvida não em Jagubel e Assinhame, mas em outros pontos do Casamansa, onde me consta que estrangeiros têm ido, apesar dos tratados que fiz em 1841. Não são necessários destacamentos em tais pontos que só servem para aumentar a despesa e relaxar a disciplina; o que nada pode impedir, antes pode embaraçar. Em Bolor, onde há um destacamento, nada se há impedido; o destacamento de Matta não sei para que serve”.

Tudo vai de mal a pior no rio Casamansa, os franceses já querem cobrar impostos aos portugueses. Chega ao porto de Ziguinchor uma embarcação com o comandante de Selho que vem pedir explicações porque fora mandado retirar uma chalupa francesa que tinha ido a Jagubel comprar sal. O comandante de Ziguinchor respondeu que recebera ordens do governador de Cacheu, havia um tratado celebrado em 1844 por Honório Pereira Barreto. O francês não aceitou a explicação, os portugueses não tinham exclusividade do comércio, e que se a situação se voltasse a repetir viria a Ziguinchor com um navio de guerra e tomaria o presídio. O comandante de Ziguinchor protestou para o governador de Cacheu e este protestou contra tais ameaças para o governador do Senegal e comandante do Goré. A pressão francesa aumenta. O comandante de Selho, em nome do governador do Senegal e dependências, preveniu o comandante de Ziguinchor que ele seria forçado a retirar a bandeira e soldados do rio de Jagubel se impedisse o comércio de sal aos franceses. Seguiu-se outro ultimato: ia ser lançado um tributo em Selho às embarcações portuguesas que ali iam comerciar e ficava proibido negociar com as francesas em Jagubel. Os protestos da autoridade portuguesa prosseguem, os franceses fazem vista grossa dos tratados feitos pelos portugueses.

As acusações sobem de tom. O governador José Xavier Crato oficiou ao governador do Senegal nos seguintes termos:
“Pondo de parte tudo quanto V. Ex.ª se abaixou a dizer contra mim e contra o comandante de Ziguinchor, tratarei só de responder ao que diz respeito ao serviço, deixando a V. Ex.ª a glória de me ter insultado gratuitamente em correspondência oficial. Logo que recebi este ofício de V. Ex.ª, enviei um expresso ao comandante de Ziguinchor para me informar sobre a acusação grave que V. Ex.ª, fundado nas informações que lhe deu o capitão do navio Casamansa do mesmo comandante de Ziguinchor. Julgo que V. Ex.ª não duvidará da honra e lealdade daquele comandante, pois é bem conhecido pelos diferentes comerciantes franceses que habitam Goré e Senegal, e então conhecerá que o capitão do Casamansa faltou à verdade nas declarações que fez ao governo (…) O comandante de Ziguinchor é um homem sisudo, prudente e honrado, e jamais seria capaz de negar o que tivesse dito ou obrado; nem eu negaria dar uma satisfação se o facto fosse verdade. Rogo a V. Ex.ª que livre de toda a prevenção e sangue-frio e me ajude a conhecer a verdade. Permita-me V. Ex.ª que note uma contradição entre seus dois ofícios. No ofício de 20 de setembro diz V. Ex.ª que vai submeter ao chefe do seu governo este negócio; em seu ofício de 28 de setembro diz que o seu governo tem mais a fazer do que pensar nos fortins de Selho, Ziguinchor e Cacheu; e outro tanto não direi eu do meu governo que se presta de boa vontade, movido só por justiça, a dar uma satisfação ainda mesmo nos objetos mais insignificantes. Apesar do que V. Ex.ª diz, estou certo de que o governo francês, visto a sua lealdade e cavalheirismo, não se negará a dar aquela satisfação que a justiça exigir”.

E voltamos ao tormento da questão de Bolama. Em 8 de dezembro de 1850, fundeou no porto de Bissau o brigue de guerra inglês Ranger, sob o comando do Tenente Thomas Miller; este oficiou ao Governador da Praça, declarando ter instruções do governador da Serra Leoa para ir à ilha de Bolama fazer arrear a bandeira portuguesa e aprisionar o destacamento que ali se achava. Pela recusa do governador, declarou Miller que seria obrigado a hostilizar a praça, e que começaria por incendiar a povoação. O Ministro da Marinha reclamou do Ministro dos Negócios Estrangeiros as devidas previdências. E o comandante de Bissau escreve ao comandante Miller: “Vós podeis, Sr. Comandante, aprisionar os três soldados que estão em Bolama, porque eu não os retiro, e eles não têm forças para se defenderem; porém, quando os soldados portugueses forem feitos prisioneiros por um navio de guerra inglês, teremos os preliminares da guerra. Portanto Sua Ex.ª o Governador de Serra Leoa, que vou deu estas ordens, e vós, Sr. Comandante, executando-as, serão os responsáveis de tudo o que puder sobrevir pelas consequências”.

Segue-se nova troca de correspondência, mas o ato de pirataria foi consumado. Na troca de correspondência com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, a hipocrisia britânica veio à tona, acusava-se a família de Caetano José Nozolini de maus-tratos dados a vários escravos em Bissau, o governo de Sua Majestade iria prosseguir em prol da emancipação de todos os escravos nos domínios da Coroa Portuguesa.

Vai iniciar-se um novo período de atividade de Honório Pereira Barreto, o Casamansa e Bolama continuarão a fervilhar na agenda política.

(continua)

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23002: Historiografia da presença portuguesa em África (304): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (8) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23002: Historiografia da presença portuguesa em África (304): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (8) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Poderá parecer excessivo a alguns o espaço que reservamos à narrativa de Cristiano José de Senna Barcelos. Acontece, salvo melhor opinião, que não dispomos de uma outra narrativa com a mesma dimensão sobre este período tão turbulento em que as autoridades não ignoram o cerco dos franceses no Casamansa e a pressão britânica em Bolama e no Sul. É, pois, um período crucial em que a presença portuguesa corre um perigo de morte, ademais falta dinheiro para tudo e há um mercador que paga o funcionamento da presença portuguesa, como se pode ler neste documento. Senna Barcelos foi extremamente minucioso, para além das sublevações, atos de revolta, questões de mão baixa, dá-nos um quadro preciso, de acordo com o que existe nos arquivos, de como Lisboa ia sendo informada das pressões estrangeiras. E ninguém, como Senna Barcelos, consegue iluminar essa figura de dimensão gigantesca que foi Honório Pereira Barreto, o indiscutível fundador do território que hoje se chama Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (8)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

O leitor que se prepare agora para a narrativa quase obsidiante de dois acontecimentos que irão marcar o território da Guiné-Bissau: a infiltração francesa no Casamansa e as pretensões britânicas nos Bijagós e no sul da Guiné. Em quadro resumido das questões desta década de 1843 a 1853, podemos dizer que os ingleses teimam em apossar-se de Bolama e do Rio Grande de Bolola. Num quadro de grande decadência, em que os mercadores portugueses não podem concorrer com os mercadores estrangeiros e se caminha para o fim da escravidão, Caetano Nozolini mantem o contrato de comércio da Guiné e Cabo Verde, obrigando-se a fornecer à Comissão de Fazenda na Guiné todo o numerário preciso para o pagamento das tropas e empregados da Guiné e Cabo Verde. A década começa com uma rebelião de soldados em Bissau, de 3 a 5 de julho de 1843. Os soldados haviam pedido ao seu comandante para que o pagamento lhes fosse feito em géneros e não em cédulas, porque o fornecedor os explorava com o elevado preço das fazendas. Os soldados rejeitaram receber pólvora e tabaco, queriam dinheiro; com a soldadesca exaltada conseguiu o governador que o negociante Nicolau Monteiro de Macedo abonasse a importância em causa; só no dia 5, depois de muito ameaçados os oficiais e o governador da praça, receberam os revoltosos o pagamento; seguiu-se então a embriaguez em que se transformou a casa da guarda em adega. Em dezembro desse ano foram os postos de Ganjarra e de Fá, no rio Geba, cedidos a Portugal pelo régulo Mamadu Sanhá, senhor do território de Badora. O descontentamento na praça de Bissau era permanente e por isso se tomara a decisão de pagar o pré às praças em dinheiro vivo. Tinha-se apurado que os soldados morriam de fome e andavam nus devido ao famigerado pagamento feito em cédulas que sofriam desconto, mais de 50% nas lojas, no tabaco e na aguardente. Recorde-se que os rendimentos da Guiné estavam arrendados a um contratador que recebia sete contos de reis em metal e pagava 16 em géneros e cédulas à Fazenda, como é evidente eram roubados os servidores do Estado. A guarnição da praça de Bissau vivia numa degradação enorme. Na mudança de efetivos na guarnição apurou-se que quem tinha partido deixara no interior da praça mais de 40 choupanas de barro, cobertas de palha; cada soldado tinha duas a três mulheres e nalgumas dessas choupanas vendiam-se bebidas alcoólicas. O chefe do Estado-maior mandou pôr fora da praça todas as mulheres antes do desembarque da nova guarnição e ordenou a demolição das barracas.

A situação da fortaleza de Cacheu era também deplorável. O quartel da guarnição estava inabitável e para que os soldados se não vissem obrigados a fazer barracas para suas habitações foi ordenado o indispensável conserto de uma parte do quartel. As muralhas estavam com falta de cal e o fosso completamente entolhado, o que permitia aos gentios, em ocasião de guerra, subirem as muralhas e entrarem de noite na praça para matarem as sentinelas. Bem propôs este Chefe de Estado-Maior a demolição de choupanas para melhorar a segurança do efetivo militar, nada se conseguiu.

Na ilha de Bolama continuava a existir um pequeno destacamento, porém os navios de guerra ingleses não permitiam que se içasse a bandeira portuguesa. Por insensibilidade do Patrão-Mor da Praça de Bissau, em setembro de 1844 voltaram as guerras. É que o Patrão-Mor negou um copo de aguardente ao régulo e o governador mandou-o prender. Seguem-se ataques em cadência, morticínios, pedidos de auxílio a Goré e à Gâmbia, veio mesmo uma embarcação norte-americana em auxílio dos sitiados de Bissau. Foi uma situação de guerra que durou três meses e meio, por fim celebrou-se a paz com os régulos de Intim, Bandim e Antula, foi mediador o régulo do rio Grande. Prometeram os régulos revoltosos submeterem-se a todas as condições. A descrição é muito curiosa, vale a pena transcrevê-la. A cerimónia de paz realizou-se segundo o uso do país, debaixo dos poilões na frente do portão da casa do governo, depois de reunidas ali as autoridades e habitantes de Bissau, acompanhados pelo pároco com as suas insígnias, assistiram também comissões de Beafadas e Balantas; e da parte dos gentios o fidalgo enviado pelo rei do Rio Grande, e por parte de cada um dos régulos três fidalgos com a sacerdotisa da sua seita (balobeira) com as suas insígnias. Consiste esta cerimónia em beber aguardente que é abençoada com água-benta pelo pároco em uma grande bacia de arame, onde se acham balas de artilharia, de espingarda, planquetas dos gentios e pólvora como sinal de amizade. Escusado é dizer que foi paz de pouca dura, em breve recomeçaram os desacatos.

E de Bolama passamos para Casamansa. Era intenção dos franceses expulsarem os portugueses de Casamansa, procuraram indispor os Balantas que, com as suas embarcações, andavam nesse rio exercendo pirataria e roubavam fazendas às embarcações de Ziguinchor e as iam vender a Selho. É neste contexto que nos anos de 1844 e 1845 Honório Pereira Barreto andou a comprar terrenos no Casamansa e os ofereceu à Coroa. Este governador da Guiné irá ter um papel capital na formação da futura colónia devido a uma hábil política de aquisições.

Continuando este resumo, há que realçar o estado decadente da Guiné devido em parte à tutela particular dos arrematantes de alfândega, eram sucessivas as sublevações e os atos de indisciplina também em Cacheu e Farim, Honório Pereira Barreto bem tentava pôr cobro às rebeliões, chegou mesmo a dirigir uma ação punitiva contra os sublevados de Farim, isto em dezembro de 1846. Meses antes, foi agraciado com o grau de Cavaleiro da Torre e Espada.

Estamos em 1847, os gentios Beafadas fecharam o rio Geba e declararam guerra, saqueando as feitorias, isto em setembro. O Tenente Coronel Caetano Nozolini escreveu ao Governador-Geral:
“Há 30 anos que resido em Bissau e tenho visto por sete vezes, em diversas épocas, fechar-se o rio Geba por estes negros; antigamente se lhes comprava a paz e a liberdade com dádivas no valor de três mil reis e às vezes mais”.

Nesse mesmo ano, procurou Caetano Nozolini chamar à paz os Papéis de Intim e Bandim, mas o assassinato da balobeira que conduzia a embaixada para se realizar essa paz fez levantar o gentio contra a praça, o que obrigou Nozolini a solicitar urgentes socorros de tropa de Cabo Verde. Nesse mesmo ano, em novembro, a guarnição do brigue inglês Dart atacou em Bolama a propriedade de Aurélia Correia, levando à força sete domésticos para a Serra Leoa. E extrai-se de um documento oficial uma curiosa informação:
“Era costume de data antiga dar-se aos reis de Matta e Pecau, em Cacheu, em cada triénio, um luxuoso vestiário, que o Governador-Geral requisitava ao ministério. Em 7 de março de 1848 requisitou o Governador de Cacheu, em duplicado, o fardamento seguinte: dois chapéus armados agaloados, com penachos encarnados; dois capotes de pano encarnado, com mangas e agaloados; dois coletes de damasco encarnado, agaloados; dois pares de calções encarnados, agaloados; dois pares de meias brancas compridas; dois pares de sapatos com fivelas; duas bengalas de tambor-mor; duas camisas brancas; dois lenços de seda encarnada para o pescoço; duas cadeiras de assento”.
Caetano Nozolini, a expensas suas, levou a bom termo no sítio chamado Duas Palmeiras, pertencente ao rei de Goles, uma fortificação destinada a fechar a comunicação com o presídio de Geba e aquele ponto foi batizado com o nome de S. Belchior. O folhetim de Ziguinchor e Bolama parece interminável, e aqui se interrompe dizendo que em vária correspondência de 1848 mostrou Honório Pereira Barreto o estado decadente de Ziguinchor. Achou o seu estado o mais triste e vergonhoso, “apesar dos seus habitantes, dignos de melhor sorte, serem os únicos da Guiné que defendiam com coragem e bom vontade o presídio e que, além disso, iam prestar a Cacheu qualquer socorro, em caso de guerra. Como não havia igreja nem padre em Ziguinchor, Barreto “levado pelo amor do bem público, convidou os habitantes daquele presídio a construírem uma pequena igreja; acederam ao convite e prontificaram-se a fornecer cal, pedra e tijolos necessários, gratuitamente. Ao governo cumpria o resto, pagar aos obreiros e cobrir as obras de telha. Ofereceu-se Honório Pereira Barreto para dirigir a construção e adiantar as somas precisas”.

(continua)


Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Imagem retirado do blogue ePortuguêse, com a devida vénia
Destroço da estátua de Honório Pereira Barreto no interior da fortaleza de Cacheu
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22982: Historiografia da presença portuguesa em África (303): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (7) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22982: Historiografia da presença portuguesa em África (303): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Pergunto-me muitas vezes quantos investigadores vieram beber a este trabalho de longa cifra e decifra de Senna Barcelos, João Barreto, que escreveu a primeira História da Guiné, seguramente que o consultou à exaustão. Este brioso oficial da Marinha foi não só meticuloso com os factos e feitos que a História registou como nunca se escusou a dar opiniões, releva as situações de incúria e desleixo, as traquibérnias e assaltos, as incompetências e o estado de hostilidade permanente à volta das praças e presídios. Agora apertam-se as pressões da França a norte e da Inglaterra a sul, dentro de décadas iremos legalmente perder a nossa presença no Casamansa (estava praticamente circunscrita a Ziguinchor) e os brigues ingleses destroem e até matam em Bolama ou na Ilha das Galinhas, sonham deter a hegemonia no Rio Grande de Buba. A figura que sobressai é a de um político exemplar, Honório Pereira Barreto, e todo o período que Senna Barcelos a seguir vai descrever tem algo de tétrico, a rapina estrangeira cerca o que resta da Senegâmbia Portuguesa, Lisboa está praticamente indiferente, há um deputado alarve que nem sabe o que era o Casamansa e Alexandre Herculano, que se estreava nas lides parlamentares, zurziu a animália. O leitor que se prepare, a intimidação e a gula estrangeira vão ganhar intensidade.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (7)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

Avançamos para o material restante da parte IV dos Subsídios para a "História de Cabo Verde e Guiné" que conheceram edição em 1910. A figura central deste período é Honório Pereira Barreto. Sabe-se de todas estas sublevações, assassinatos, roubos, intromissões e ingerências de potências estrangeiras graças aos relatórios que Senna Barcelos leu atentamente. O ex-Governador da Guiné Gonçalves Barbosa entregou um relatório referente à Guiné em 1841, mas dois anos antes Honório Barreto já tinha dito verdades como punhos e dava um quadro bastante cru da situação:
“As possessões portuguesas na Senegâmbia compõem-se dos Estabelecimentos seguintes: no rio de Geba, a Praça de Bissau; e nas dependências, Nova Peniche (Ilhéu do Rei), Geba, Fá; e Bolama no Arquipélago dos Bijagós; no Rio de S. Domingos o presídio de Cacheu e dele dependentes Farim, Bolor, Ziguinchor e Gonzo, tudo com uma população de 3 a 4 mil almas entre brancos, pretos, livres e escravos. Estes estabelecimentos todos são hoje de pouca importância pela indiferença culpável com que a maior parte das autoridades da província olham para as elites, indiferença que produz muitas outras causas para a sua decadência. Antigamente Bissau e Cacheu formavam dois governos separados, mas desde 1834 ficaram debaixo de um só governo. A sede é Bissau”.

E segue-se a descrição de Bissau como residência do governador, apresentada como uma praça de guerra regular, quadrada, tendo cem toesas de cada lado e estando ao tempo guarnecida com 70 baionetas e 22 peças de artilharia; dentro da Praça havia um quartel para 300 praças, mas em mau estado, e que ameaçava já ruína; o quartel para oficiais também estava degradado, havia uma pequena igreja, um armazém e falava-se mesmo num vergonhoso quartel do governo. Fora dos edifícios da Praça estava a povoação onde havia apenas cinco casas cobertas de telha, todas as outras eram de barro, cobertas de palha, indicando tudo o maior atraso e miséria. A figura de Honório Pereira Barreto agiganta-se como governante, com o seu elevado patriotismo, pelo seu timbre de lealdade. Adquiriu a amizade das populações, dava sinais de revolta contra a ociosidade, fosse dos Grumetes, fosse dos cristãos, sonhava com guineenses competentes e bons profissionais. Veja-se o teor de uma carta que manda ao Ministro da Marinha em Cacheu a 16 de dezembro de 1845:
“Ilustríssimo e excelentíssimo Senhor,
O bem do meu país é o único alvo a quem se dirigem todos os meus esforços, e todas as minhas vistas. Eu o promoverei com as poucas forças que tenho.
Por mim pouco ou nada posso fazer; mas eu tenho conhecido que Vossa Excelência também deseja e promove a felicidade das possessões ultramarinas.
Não posso ver sem dor a ociosidade, ou por melhor me explicar, a selvagem indolência em que vivem os habitantes deste presídio, chamados Grumetes. Nenhum deles sabe ofícios mecânicos; para se fazer a mais pequena obra é preciso mandar vir obreiros da Gâmbia. O governo sem dúvida quer propagar a civilização em África, e para isso tem mandado fundar escolas primárias: sem dúvida é um passo muito acertado, mas não é menos necessário que haja oficiais mecânicos. O país ganha com isso e é também um passo para a civilização.
Tenho observado que ensinados aqui os Grumetes, nada aprendem: porque cedo se dão à embriaguez ou à crápula e tornam-se por isso estúpidos. Proponho, pois, a Vossa Excelência que expeça ordens para que eu lhe remeta pelos navios do Estado, que vierem buscar madeira, um número de rapazes livres para aí se aplicarem a diversos ofícios.
Dir-me-á Vossa Excelência talvez de que Bissau se enviaram há tempos uns poucos de rapazes que estiveram no Arsenal, e nada aproveitaram do ensino. Permita-me porém que lhe observe que os Grumetes de Bissau são diferentes dos deste governo; e que lhes ensinaram a ler, e por isso desprezaram o ofício que aprenderam e se tornaram mercadores; eu creio ainda que quando eles foram para esse, já tinha uma idade suficiente para levarem consigo ao menos uma insuperável disposição para todos os vícios dominantes nestas praças; e por fim direi – a crer o que eles afirmam, nem os trataram bem, nem o seu ensino era muito rigoroso.
Outro tanto não acontecerá agora; porque eu escolherei a gente que mandar e estou inteiramente certo que Vossa Excelência vigiará sobre a sua aplicação. Deus guarde Vossa Excelência”
.

Voltando ao espírito destes relatórios, não é difícil concluir a existência de um quadro permanente de incúria, incompetência e detenções permanentes com as populações limítrofes, tanto em Bissau como em Cacheu. Lê-se constantemente queixas sobre a indolência, a perda de respeito à bandeira portuguesa, o gentio só obedece aos régulos: “O gentio insulta quotidiana e impunemente os habitantes sujeitos ao governo, espancando-as dentro das suas casas”. E concretamente em Bissau fala-se do que é o descontentamento militar:
“Os pagamentos às Praças de Pré são feitos em toda a colónia em pólvora, tabaco e algumas outras mercadorias; e aos empregados oficiais, inclusive o governador, metade como aos soldados e outra metade em cédulas que são umas notas emitidas por Manuel António Martins quando Prefeito. Ora, esta maneira de pagar bem mostra a desgraça do país; não há uma botica, e isto num país onde o clima é letal; a casa que serve de hospital é própria para fazer adoecer os que têm saúde e para matar os que estão doentes”.

Falou-se anteriormente na chegada a Bissau de Alois de Rolla, Dziesaski. Polaco, tal como de Chelmicki, nascido naquele país em 1997, veio para Portugal ao serviço da rainha em junho de 1883, depois de promoções sucessivas foi tenente-coronel em 1882. Revelou-se um oficial brioso, tendo prestado relevantes serviços à Guiné, pugnando sempre pelos interesses da sua pátria relativa.

Os ingleses voltam a cometer tropelias, raptos e destruições. Senna Barcelos regista a queixa do agricultor, que foi coronel de milícias e antigo Governador, Joaquim António de Matos, proprietário na Ilha das Galinhas, contra o comandante do vapor inglês Pluton, a tripulação praticou extorsões e destruições em série na ilha, roubaram-lhe a casa e tiveram a barbaridade de assassinar a filha mais velha. A queixa foi endereçada a António Tavares da Veiga Santos, então Major Governador de Bissau, em março de 1842. Nesse mesmo ano, o ministro inglês em Lisboa, Lord Howard de Walden, reclamou do Duque da Terceira, Ministro dos Negócios Estrangeiros, contra as ordens expedidas pelos governadores de Bissau e Cacheu para que os navios estrangeiros não pudessem subir os rios Geba e Cacheu, e isto na ocasião em que se negociavam os tratados de comércio e navegação e em que se procurava pôr termo à escravatura. Acontece, como informou o Ministro da Marinha e Ultramar ao Duque da Terceira, estava proibida aos navios estrangeiros por direito estabelecido e reconhecido por todas as nações e continuaria a ser, com exceção dos casos de arribada forçada. Os apetites ingleses não paravam. Em maio desse ano chegava novo vapor inglês cujo comandante vinha reclamar os direitos de Inglaterra à soberania e posse da ilha. A questão de Bolama ganhava intensidade. A bandeira inglesa será arreada e até 1848 os ingleses não exercerão mais nenhum ato de pirataria em Bolama. Depois sim, no período até 1853 voltarão à carga, não querem só apossar-se de Bolama, querem também o rio Grande de Bolola, é a região de Buba.

Vejamos agora em síntese alguns acontecimentos relevantes apontados por Senna Barcelos no período correspondente a 1843 até 1853.

(continua)

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22958: Historiografia da presença portuguesa em África (302): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (6) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22958: Historiografia da presença portuguesa em África (302): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Do que até agora se transcreveu do importantíssimo trabalho de Senna Barcelos, a continuidade que o autor pretendeu dar à sua ampla investigação que se inicia com as primeiras viagens à região da Senegâmbia, e passando por três dinastias, dá perfeitamente para compreender o papel subalterno que era politicamente conferido à subcolónia, tudo era decidido em Cabo Verde, o governador punha e dispunha, embora as nomeações para Cacheu e Bissau viessem de Lisboa. O que agora se reporta corresponde ao período de intervenção de Honório Pereira Barreto, que sai claramente engrandecido na narrativa de Senna Barcelos. Barreto não só compra porções de território e oferece-os à Coroa, como troca correspondência bem frontal com os franceses em Gorée. E os ingleses também estão à espreita, não querem só a Serra Leoa, ambicionam estacionar no Rio Grande de Buba e apoderar-se de Bolama. Tudo é sempre precário em Bissau, como iremos ver na continuação e conclusão destes Subsídios para a História da Guiné e de Cabo Verde, parte IV, 1910, sublevações, homicídios, raptos, cercos à fortaleza e à povoação limítrofe serão fartura.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (6)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. 

O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

Estamos em 1837, Honório Pereira Barreto está atentíssimo ao que se passa na região do Casamansa, assiste à gradual infiltração francesa. Em 16 de junho, dava conta ao Ministro da Marinha e do Ultramar da ida do governador da Gorée ao rio Casamansa numa escuna de guerra, com o fim de ocupar uma das margens, fazendo-se ali um estabelecimento comercial. Enviou-lhe cópias da correspondência trocada entre as novas autoridades e o comandante e governador do Senegal. O governo de Lisboa manifesta-se pouco sensível à gravidade da situação. Ora a presença a francesa tem o seu histórico. 

Foi em 1828 que o negociante francês comprou aos gentios na foz do Casamansa a Ilha dos Mosquitos (hoje Ilha Carabane), onde fez depósitos para guardar mancarra e outros géneros comerciais. Sorrateiramente, compraram também os franceses em 1837 a um chefe Mandinga um terreno denominado Selho para ali estabelecer as suas feitorias. 

Forçada em Ziguinchor a passagem pelo rio acima, sem que a nossa diplomacia por essa época conseguisse sacudir dali os franceses, o governador da Gorée mandou levantar a fortaleza guarnecida de boa artilharia e tropa. Era a política do facto consumado. E inventou-se a patranha de que o território estava associado à França. Vejam-se os argumentos. O governador do Senegal escreve em 28 de abril de 1838 que muito antes dos ingleses e portugueses a França tinha criado estabelecimentos no Senegal e que em 1713 o Tratado de Utrecht, entre a França e Portugal, tinha reconhecido o direito da França. O governador francês pura e simplesmente inventava argumentos, será prontamente refutado, o Artigo 21º do referido Tratado de Utrecht previa que a França evacuasse todos os territórios portugueses. A refutação não ficou por aqui, foi-se à história, invocou-se a Crónica da Guiné de Zurara, a Bula Papal que erigiu o bispado de Cabo Verde e onde se reconhecia a legitimidade dos portugueses no descobrimento e posse da Guiné, adicionando mais elementos, como o Tratado Breve dos Rios da Guiné, de 1594, o seu autor foi André Alvares d’Almada, a Relação do Padre Fernão Guerreiro, de 1605 e a Descrição da Guiné escrita em 1669, por Francisco de Azevedo Coelho.

Senna Barcelos é minucioso em toda esta documentação sobre a presença francesa no Casamansa, a troca de correspondência com o Ministro da Marinha e Ultramar é abundante. Logo a carta de Sá da Bandeira, datada de 21 de junho de 1838 em que dá notícia que a rainha ordena ao governador-geral de Cabo Verde que expeça ordem ao governador de Bissau para que com a maior brevidade erija um forte com bandeira portuguesa na margem do sul da embocadura do rio Casamansa, no mesmo braço do rio em que se acha o estabelecimento francês feito em 1828. E há os protestos de Ziguinchor pela atitude soberana e provocatória de barcos de guerra franceses. O cinismo deixa de ter limites na gula francesa, veja-se a carta do comandante da ilha de Gorée, G. Dagorne enviada para Ziguinchor:

“Tenho a honra de vos informar oficialmente que acabamos de adquirir em nome de Sua Majestade, o rei dos Franceses, na aldeia mandinga de Selho, um terreno destinado para estabelecer uma feitoria. Estando convencido que as relações mais extensas, que esta circunstância vai estabelecer entre o comércio e os habitantes de Ziguinchor, serão úteis e agradáveis a ambos os lados, eu espero que as embarcações mercantes francesas, que navegarem no Casamansa para cima e para baixo, longe de experimentarem o menor embaraço neste lugar, onde comandais, acharão pelo contrário todo o bom acolhimento e benevolência, que prestam ordinariamente as nações civilizadas e amigas”.

Honório Pereira Barreto deu-lhe prontamente a resposta:

“Acabo de ser informado pelo comandante de Ziguinchor que Vossa Excelência a bordo de um navio de guerra passou aquele presídio, foi pelo rio acima e comprou um terreno aos Mandingas em Selho. Por este motivo o supradito comandante protestou contra semelhante ato e eu da minha parte me dirijo a Vossa Excelência para dizer que a compra que Vossa Excelência fez do terreno nada influi, muito bem sabe que não tinha direito algum de passar a bandeira portuguesa dentro do rio Casamansa; e que Vossa Excelência não fez mais do que usar do direito da força que nada valida, e assim eu protesto contra uma tal agressão por Vossa Excelência cometida”.

Todas estas peripécias estão minuciosamente inventariadas por Senna Barcelos, dá-se mesmo conhecimento ao governador da Gâmbia de tudo quanto se está a passar, mas da Gâmbia não chegaram os socorros pedidos por Honório Pereira Barreto. O governador do Senegal insiste com os direitos históricos franceses, sempre refutados e o governador de Cabo Verde informa da situação para Lisboa.

Mas os acidentes não acabam por aqui, vão-se estender a Bolama, isto enquanto Honório Pereira Barreto procura adquirir mais parcelas na Guiné. Ele passa por Bolama em dezembro de 1937, é governador da Guiné, e ratifica a posse da ilha, onde Caetano Mozolini e Aurélia Correia possuíam boas propriedades agrícolas e urbanas na região oeste. 

Barreto celebra em 25 de dezembro desse ano um acordo com Ondoton, rei do Chão de Intim, obrigando-se o governador a entregar a este rei mensalmente 12 frascos de aguardente e 25 libras de pólvora e o rei de Intim obriga-se a submeter toda e qualquer questão ou desavença à decisão do governador da Praia. Barreto compra o Ilhéu do Rei em novembro de 1839. Mas a chamada questão de Bolama já está em curso. O tenente Kellet, comandante do Brisk, deixou cometer os maiores desatinos em Bolama em dezembro de 1838, também aqui Senna Barcelos deixa abundantes referências à ação do governador. Barreto pede exoneração em 1839, e é-lhe concedida. Da força existente em Cabo Verde e Guiné, era assim a sua distribuição na Guiné em 1840: 96 em Bissau, 39 em Cacheu, 13 em Farim, 10 em Ziguinchor (com um alferes), 4 em Bolor, 15 em Geba (com um alferes), 15 em Bolama (com 2.º sargento e um cabo), um total de 184 militares. São crónicas as insubordinações das forças militares de Bissau. Em 18 de novembro de 1840 passou a Bissau o Major Alois de Rolla Dziesaski, será governador de Bissau em diferentes períodos.

(continua)


Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Rio Casamansa
Estátua de Honório Pereira Barreto em Bissau, período colonial. O Estado independente ainda não reviu a sua posição com um dos seus pais-fundadores
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Notas do editor

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Último poste da série de 2 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22956: Historiografia da presença histórica portuguesa em África (301): mapa francês dos anos de 1680 que mostra a região de Casamansa, Cacheu Farim e Bissau

Guiné 61/74 - P22956: Historiografia da presença histórica portuguesa em África (301): mapa francês dos anos de 1680 que mostra a região de Casamansa, Cacheu, Farim e Bissau

 

La coste d'Afrique | A costa ocidental de África


La coste d'Afrique depuis la  rivière de Gambie  jusques à celle de |Cherbe (?) ou Madrebombe (?), presentée à Monsieur  "monseigneur de Pontchaulyaire (?) | Mapa da costa da África Ocidental desde o rio Gâmbia ao de Cherbe  (?) ou Madrebombe (?), apresentado a Monsenhor de Pontchaulyaire (?)

Eschelle de quarante lieuz (?) françaises et anglaises | Escala de quarenta lugares (?) franceses ingleses


Royaume de Cazamance | Reino de Casamansa

Feloupes sauvages |  Felupes selvagens



Feloupes sauvages | Felupes selvagens 

Feloupes dociles | Felupes pacíficos ... Fort portuguais | Forte português (Bol0l)...Royaume des Baguns  | Reinos dos Banhuns


 Farim colonie portugais... Gesves (?), colonie portugaise | Farim, colónia portuguesa... Geba (?), colónia portuguesa


Cacheau, colonie portugaise... Bolol... île de Boulama... Bissaau | Cacheu, colónia portuguesa, Bolol...Ilha de Bolama,,,Bissau

R. de St. Domingue... Bolol,  Mata de Poutama (?) | Rio de São Domingos...  Bolor/Bolol... Mapa de Putama



Fotos (e legendas): © João Schwarz da Silva (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de
 João Schwarz da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, nº 768, desde 30 de março de 2018. (Recorde-se que o João nasceu em Alcobaça em 1944, e foi para a Guiné pela primeira vez com 4 anos. Depois da morte do seu avô Samuel Schwarz em Lisboa, em 1953, voltou para Bissau onde frequentou o Colégio Liceu Honório Barreto, onde a mãe era professora, até à sua vinda para a universidade, em Lisboa, em 1960; vive em Paris; é o autor da página Des Gens Intéressants, onde tem perpetuado as memórias de amigos e familiares; Tem já uma dezena e meia  de referências no nosso blogue.)


Data - quarta, 26/01/2022, 08:52

Assunto - Mapas da Guiné

Caro Luis

Nas minhas andanças pela BNF - Biblioteca Nacional de França, em Paris,  descobri um mapa muito interessante que mostra a região da Guiné nos anos 1680. Aparentemente o mapa est baseado nas viagens de um Michel de la Courbe que era delegado da companhia do Senegal e que visitou Cacheu, Bissau e Farim.

Aqui vão as imagens.

Um grande abraço

João Schwarz da Silva

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22941: Historiografia da presença portuguesa em África (300): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22830: Historiografia da presença portuguesa em África (295): Memória dos Felupes, artigo de José Joaquim Lopes de Lima, 1839 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Não é novidade para ninguém que os Felupes sempre atraíram a literatura de viagens, quem percorria a costa que hoje corresponde ao Senegal, até para comerciar o rio Casamansa, debandava estas paragens atraído por alguns elementos exóticos e seguramente pela lenda de que este povo tinha costumes antropófagos. O relato de José Joaquim Lopes de Lima tem notas muito curiosas, começa logo por uma extensa exposição das práticas imateriais de cariz religioso, como bom aprendiz de antropólogo e etnólogo revela-se muito atento aos casamentos e funerais e envereda pela observação dos usos e costumes, indo direito às atividades económicas, aos recursos, às formas de habitar. Nunca refere antropofagia nem as relações interétnicas, os Felupes pertencem ao vasto mosaico dos Djolas que existem no Sul do Casamansa e até ao Rio de São Domingos. Não esquecer igualmente os mercadores e viajantes que se dirigiam para o presídio de Cacheu e comerciavam na região de Farim, seguramente que lhes atiçava a curiosidade esta etnia animista e ciosa da sua identidade.

Um abraço do
Mário



Memória dos Felupes, artigo de José Joaquim Lopes de Lima, 1839 (2)

Mário Beja Santos

O nome José Joaquim Lopes de Lima não nos é estranho, pode aparecer associado às principais narrativas referentes à Senegâmbia na primeira metade do século XIX, podemos juntá-lo aos trabalhos de Conrado de Chelmicki, Senna Barcelos, Travassos Valdez e Honório Pereira Barreto.

De todos os seus escritos, o mais útil e continuadamente estudado pelos investigadores são os Ensaios sobre a estatística das possessões portuguesas na África Ocidental e Oriental, tomos publicados em 1840 e 1846. É no livro I – parte II que descreve a Guiné de Cabo Verde (páginas 80 a 119). Despede-se deste seu trabalho frente à Guiné com a seguinte observação: “Em mais de um lugar nesta obra eu fiz ver os imensos lucros que daria o comércio de Bissau e Cacheu a uma companhia mercantil portuguesa a quem se concedesse o exclusivo da navegação e resgates de compra e venda dentro nos rios de Geba e Farim (e muito mais se ela tentasse explorar de novo o Rio Grande e o Rio Nuno), com a única condição de ela compreender no seu grémio portugueses que se resolvessem, como os nossos antepassados, a ir afrontar por uma vez somente uma febre aguda, para depois gozarem por anos dilatados de todas as vantagens do homem rico e poderoso, sem mais receio pela sua existência, de que se vivessem na Europa”. Esta memória sobre os Felupes foi publicada em O Archivo Popular, Semanário Pintoresco, N.º40, em 5 de outubro de 1839 e no N.º41 de 10 do mesmo mês e ano. Já se fez referência a tudo quanto ele menciona sobre a religião dos Felupes, vejamos agora os casamentos e funerais.

“Os Felupes adotam a poligamia e mudam de mulher quando lhes apraz. No dia do consórcio envia o noivo um pote de vinho de palma a cada uma das chinas (balobeiras) do lugar, para ser derramado e bebido. Em chegando a noite, o noivo e a noiva se dirigem em companhia dos parentes ao covil de jambacós (feiticeiro), e lhe ofertam uma galinha para que ele se digne tirar uma manilha delgada de ferro que tanto o noivo como a noiva trazem no pulso direito; tirada esta pela mão do impostor, a cerimónia está concluída”. E escreve acerca dos funerais: “É uso logo que alguém morrer darem uma salva fúnebre de tiros de espingarda: imediatamente se lhe arma defronte da porta uma espécie de eça feita de paus cruzados à maneira dos tronos antigos: sobre esta se deposita o cadáver amortalhado. Se o morto é mancebo, ou homem na flor da idade, todo o povo se cobre de lama, e se repetem amiudadamente as salvas de espingardaria; se é mulher, não se dão sinais de alegria nem de tristeza; se é velho ou velha todo o mundo se regozija durante o tempo das exéquias: estas duram 24 horas, no fim das quais, tendo aberto a cova no lugar que o defunto tinha indicado em vida, a ela se conduz o corpo em umas andas. A cova não é aberta como as nossas: começam por cavar um poço redondo de 8 ou 10 pés de profundidade e alguns 15 de diâmetro: em um dos lados dele abrem uma pequena mina em que o corpo possa caber e forram-na de tábuas de cibe; trazido ali o corpo descem-no ao poço com muita honra, é introduzido na mina, tapada a entrada com uma tábua, e novamente atulhado o poço”.

E o autor explica que é interdito sepultar pessoas em terrenos de lavoura e que em casa do morto as mulheres cantam e choram três vezes no dia. Falando agora dos usos e costumes, depois de nos dizer que os Felupes são ágeis, robustos em geral, que têm fisionomias interessantes, que não têm beiços grossos nem nariz chato, trata-se de um povo afável, amigo dos brancos (sobretudo dos portugueses), são hospitaleiros. Mas há o reverso: “Uma vez ofendidos, são iracundos, bravos e mais de aplacar, resolutos e firmes no momento da cólera ou no combate; de caráter franco, mas desconfiado e a desconfiança torna-os dissimulados: são teimosos, traiçoeiros, imitadores, imitam mesmo os nomes portugueses, das pessoas e coisas. São muito laboriosos; mas também sabem mal repartir o tempo, e qualquer conversação insignificante é bastante para distraí-los. São incansáveis na agricultura do seu arroz, aferrados a más rotinas e possuidores de um terreno demasiadamente alagadiço.

Os mancebos Felupes enquanto não casam, andam de ordinário nus com um pequeno avental nas partes que a natureza ensina a cobrir, em cuja pele pregam botões que o enfeitam e embaraçam que flutue este avental que é preso em roda das virilhas; na cabeça usam os mais ricos um capacete de cauris furados, enfiados em fio de vela. Os homens casados apenas conservam nos braços uma manilha delgada e um fio de contas no pescoço, com algum anel de cobre no dedo. Tanto rapazes como raparigas, em chegando à idade de casar, aguçam os dentes da maneira mais bárbara: vão a casa do ferreiro, que habituado já a esta operação, com talhadeira e martelo afeiçoa ao uso da moda os dentes do malfadado. De resto, os costumes deste povo são extraordinários para uma nação selvagem: vêm-se entre eles mui raros aleijões, pelo cuidado que têm as mães de abafar ao nascer as crianças que vêm defeituosas. Ignoram os conhecimentos humanos até o que muitas nações bárbaras conhecem: o aspeto do seu nada lhes ensina, apenas conhecem as lunações e dessas só as conjunções; não têm meio algum de figurar tradicionalmente os seus pensamentos nem de memorar as suas épocas; não contam nem nomeiam os meses; e mesmo o dia primeiro de cada ano (que festejam) é amovível à vontade dos grandes, contanto que entre na Lua Nova de Novembro. A sua semana é de 6 dias, 5 dos quais empregam no trabalho, e o 6º em dormir, beber e lutar, tais são os seus divertimentos. Usam também de uma dança modelada ao som do tambor, muito semelhante à de todos os povos africanos. Nas Artes apenas conhecem imperfeitamente a cultura do arroz, a ferraria e a olaria: os seus ferreiros sabem igualmente trabalhar o ferro, o cobre, o latão e a até sabem fundir e caldear estes dois últimos.
As casas felupes são construídas de um barro que em secando é tão rijo como o adobe; são quase todas de forma circular, têm todas uma sala espaçosa que abre comunicação com vários quartos laterais; se não cozinhassem dentro seriam sofríveis. A mobília de um Felupe é um coiro em que se deita, um búzio de mar que lhe serve de candeeiro, uma escudela de pau em que come, as panelas de barro em que faz a comida (que consiste em arroz cozido em água e sal e algumas vezes peixe e marisco)
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Falando da sua economia o autor diz que os Felupes possuem um terreno parte lodoso parte arenoso; mas em toda a parte alagadiço e cortado de rios. A única produção valiosa dos terrenos Felupes é uma imensa quantidade de arroz ordinário, cuja cultura seria suscetível de melhoramento se os cultivadores o fossem de instrução rural: este é semeado em alfobres ou viveiros, e dali transplantado às terras em que produz, como se usa na Europa para com as hortaliças: conservam-no na palha de uns anos para os outros nos sótãos das casas em que todo o ano dura um fumo insofrível, podem muito bem ser estas as causas da cor escura que apresenta, pois ele de seu natural é claro.

As árvores que mais trivialmente se encontram nestes países são o poilão, de que se fazem as canoas; o mangue, bom para lenha; o cibe, excelente para emadeiramento das casas; e a palmeira, de cujo fruto se faz o azeite; é muito raro encontrar árvores frutíferas. Os Felupes vendem muito arroz no presídio português de Cacheu e ao gentio Papel em troca de vacas pequenas. Quando algum branco chega a Bolor para fazer negócio, é do uso mandar ao rei um ou dois frascos de aguardente e algum tabaco, rogando-lhe que venha a casa do seu hóspede para pôr as medidas.

Os Felupes negoceiam pouco em escravos, pois que eles não escravizam pessoa alguma, e apenas servem de corredores dos escravos que lhes remetem do Interior para serem vendidos aos brancos. Os Felupes não cultivam legumes nem hortaliças, mas o seu terreno é muito próprio para uma e outra coisa. Em geral, esta costa não é tão doentia como se supõe. As frutas do país são a banana, a papaia, a laranja e o ananás.

Eis aqui o que pude colher dos costumes felupes, que diversificam algum tanto na forma do governo, mas em tudo o mais se assemelham aos dos outros gentios que povoam as costas da Guiné Portuguesa.


Gravura antiga de Felupe
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22810: Historiografia da presença portuguesa em África (294): Memória dos Felupes, artigo de José Joaquim Lopes de Lima, 1839 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22746: Historiografia da presença portuguesa em África (291): O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves; Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
É incontestável que o período filipino foi altamente danoso para a presença portuguesa na Senegâmbia, a retração foi enorme, o abandono e a incúria chegaram a levar a crer que a presença portuguesa estava definitivamente condenada. Cacheu era um ponto fulcral para o comércio negreiro e até para a economia de Cabo Verde. D. João IV, ouvido o Conselho Ultramarino, procurou tomar medidas eficazes, e por mais controversa que possa ser encarada a atividade de Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-Mor de Cacheu, por ele nomeado, apresentou resultados, o fundamental foi melhorar a presença portuguesa, Gamboa criou Farim e Ziguinchor, perseguiu com todos os meios ao seu alcance os navios estrangeiros, viveu em permanente tensão com os comerciantes de Cacheu que faziam o jogo duplo, juravam fidelidade a D. João IV mas ansiavam pelo regresso dos Áustrias. Maria Luísa Esteves oferece-nos o retrato de uma década e mostra à evidência que se deve a Gamboa ter travado o descalabro em que se encontrava a então denominada Senegâmbia Portuguesa. Resta acrescentar que neste século XVII a mobilidade da nossa presença se circunscrevera entre os rios Casamansa e Nuno.

Um abraço do
Mário



Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-Mor de Cacheu (1640-1650)

Mário Beja Santos

O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988, trabalho que se associou às comemorações do IV Centenário da Fundação de Cacheu, permite-nos visualizar os danos sofridos durante o período filipino na então denominada Senegâmbia Portuguesa. 

Com a Restauração, descobre-se que aquela zona de África estava praticamente desguarnecida tanto do ponto administrativo como militar, e, no entanto, era uma das principais saídas do comércio negreiro. O primeiro rei Bragança encontrou dificuldades inesperadas, como observa a historiadora Maria Emília Madeira Santos:

“Os comerciantes locais, beneficiando de uma rede de comércio internacional montada por poderosos mercadores de Sevilha e Cádis, iriam resistir a um corte de relações tão lucrativas. Os corsários franceses, holandeses e ingleses, legitimados pela guerra contra Espanha, atacavam ferozmente qualquer tentativa portuguesa de domínio na área. Gonçalo de Gamboa de Aiala, o Capitão-mor da Capitania de Cacheu, encarregado de construir uma fortaleza naqueles rios, precisaria de lutar em várias frentes: a oposição das populações locais, os interesses dos comerciantes negreiros, a rede comercial intercontinental com sede em Espanha, os corsários de todas as nacionalidades”.

A autora começa por nos dar uma visão geral das consequências que a perda da independência acarretou para as colónias portuguesas, dá-nos depois a situação da Guiné, aquando da Restauração e finalmente a ação desenvolvida por Gonçalo de Gamboa da Capitania de Cacheu. Não há nenhum excesso em dizer que o domínio castelhano acentuara as dificuldades de manutenção das possessões portuguesas, houvera que seguir a sua política internacional, completamente desastrosa para o nosso império, vinham ataques de todas as proveniências e D. João IV ascende ao trono com obstáculos aparentemente insuperáveis e numa vastidão incomportável: Guerra da Independência, uma força marítima mais do que insuficiente, tempos de decadência da arte de construção naval, falta de armamento, situação financeira crítica, a crónica exiguidade de meios humanos. A Guiné, a concorrência comercial de franceses, ingleses e holandeses era feroz, todos sedentos da compra de escravos. 

“Quando rompeu a madrugada do 1.º de Dezembro de 1640, a presença portuguesa na Guiné limitava-se à faixa compreendida entre o Casamansa e o Bolola. O comércio da escravatura, fonte de riqueza da colónia, estava praticamente na mão dos negreiros espanhóis que embarcavam para as Antilhas todos os escravos que podiam arranjar, fugindo ao pagamento dos direitos aduaneiros e provocando com isso o descalabro da vida económica. Para além da quebra de rendimentos, resultante do contrabando que os mercadores de escravos praticavam, acrescia ainda o facto de as receitas da colónia estarem arrendadas a contratadores particulares que depositavam em Lisboa o pagamento dos seus contratos. As autoridades da Guiné ficavam, deste modo, sem recursos para satisfazer as necessidades mais prementes, com os ordenados dos funcionários e quaisquer obras de fortificação que impedissem o comércio ilícito”.

Assim se explica a decadência, a fácil fixação dos ingleses na Gâmbia, a incapacidade de agir do governo de Cabo Verde. 

“Cacheu era, na altura da Restauração, a praça mais importante da Guiné, a presença portuguesa naquela região, como em toda aquela costa, era precária, embora fosse o núcleo populacional mais numeroso de toda a colónia”

A autora debruça-se sobre Cacheu e os seus mercadores de escravos, não se pode iludir a anarquia e indisciplina que grassavam em consequência dos abusos cometidos pelos comerciantes espanhóis e outros estrangeiros. O Capitão-mor de Cacheu é Luís de Magalhães que pede ao rei que tome medidas tendentes a evitar a ruína total, entre elas a permissão do resgate de escravos para o Brasil e o incremento das relações comerciais nas ilhas de Cabo verde. O rei pretende agir, ordena a construção da fortaleza e escolhe para futuro Capitão-mor Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor e Feitor de Cacheu por três anos, este oficial servira no Brasil e na Índia, aqui acobertara-se de valor militar. Gamboa vai demorar tempo a chegar a Cacheu, elabora a relação de material e pessoal que precisava para construir, artilhar e guarnecer militarmente a futura fortaleza; precisa de algum poderio naval para salvar a Guiné das pretensões estrangeiras, é um processo demorado. 

Enquanto tudo isto se passa, chegam ao rei e ao Conselho Ultramarino notícias inquietantes provenientes do Governador de Cabo Verde: Luís de Magalhães era acusado de cumplicidade e trato com os castelhanos; comerciantes de Cacheu insistem em embarcar escravos com destino ao Brasil, pagando direitos na feitoria de Cacheu, o monarca acede.

Finalmente o novo capitão-mor encaminha-se para Cacheu encarregado da construção da fortaleza, o dinheiro destinado à obra estava confiado à guarda do Capitão Paulo Barradas da Silva, os dois muito cedo entrarão em litígio, ora por falta de materiais, ora por não haver concordância quanto ao local escolhido, e Gamboa não esquece a obrigação de procurar suster a presença constante de navios estrangeiros nas costas da Guiné. Barradas da Silva queixa-se ao rei das afrontas praticadas por Gamboa e diz proteger os devedores de grandes somas à Fazenda Real. Dado fundamental, Gamboa põe-se em campo para resistir às tentativas espanholas de ocupação, fortifica e guarnece de artilharia Ziguinchor, o presídio adquiriu extraordinário valor como centro comercial e de fixação portuguesa. Gamboa tinha a noção de que precisava de controlar a navegação no rio Farim ou de S. Domingos, arrendou em nome da Fazenda Real o comércio do rio Geba, recorde-se que nesta altura os moradores do presídio de Geba tinham-se, na sua generalidade, transferido para Cacheu e para a recém-fundada Farim. O capitão-mor dá como reforçada a presença portuguesa na região e lança-se na perseguição dos concorrentes, apresa barcos espanhóis. No entanto prosseguem as tensões entre Gamboa e Paulo Barradas por causa do dinheiro que este retém e que é fundamental para a construção da fortaleza. Os moradores de Cacheu fazem queixas ao rei, protestam-lhe lealdade, se bem que Gamboa os acusa de traidores e partidores de Castela.

O estudo de Maria Luísa Esteves está altamente documentado, toda a sua investigação assenta em documentos do Arquivo da Torre do Tombo e do Arquivo Histórico Ultramarino. Atenda-se às suas conclusões. Gamboa trazia a incumbência de conservar e desenvolver Cacheu, afastar o ocupante espanhol e perseguir o comércio ilícito. Fundou e fortificou a povoação de Farim, construiu o presídio de Ziguinchor, o melhor porto do Casamansa que irá dominar durante dois séculos o tráfego no rio; Farim será a extensão natural de Cacheu e de grande importância para o comércio local. Foi-lhe confiada a missão de construir a fortaleza, faltaram-lhe materiais, pessoal e encontrou séria oposição de Paulo Barradas da Silva, encarregado da cobrança do dinheiro destinado às fortificações. Não deu tréguas a perseguir os estrangeiros que se entregavam ao resgate de escravos. Sufocou com firmeza qualquer sintoma de insurreição interna. 

Como observa Maria Luísa Esteves, “foi decisiva a sua ação no conflito provocado pelo choque de interesses que o opôs aos ricos e poderosos comerciantes negreiros de Cacheu e à própria população local, grandemente prejudicada com o corte das relações prejudiciais com a Espanha. Gamboa procurou, igualmente, canalizar o resgate de escravos para o Brasil, sabendo como este Estado, depois da tomada de Luanda pelos holandeses, carecia de braços para os engenhos de açúcar. Assim, tentou desviar os negreiros para este comércio com a intenção de disputar à cobiça dos espanhóis o caudal dos escravos da Guiné. Vai ser uma luta tenaz não só contra o comércio negreiro espanhol, mas ainda contra os holandeses, ingleses e franceses interessados neste lucrativo tráfico”.

Uma aldeia perto de Cacheu, gravura proveniente do livro África Ocidental, Notícias e Considerações, por Francisco Travassos Valdez, Lisboa, 1864
Um panorama da Fortaleza de Cacheu
Interior da Fortaleza de Cacheu, vêem-se os restos das estátuas apeadas depois da Independência
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22725: Historiografia da presença portuguesa em África (290): Entre os primeiros contributos para o conhecimento da Guiné: André Alvares de Almada e André de Faro (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22685: Historiografia da presença portuguesa em África (288): A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (3): "A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné", por Maria Luísa Esteves; edição conjunta do Instituto de Investigação Científica Tropical e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Lisboa, 1988 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Janeiro de 2021:

Queridos amigos,
Não será despiciendo de novo referir a demonstrada insensibilidade dos negociadores que aprovaram o conteúdo da chamada Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, provocaram a prazo uma tensão interétnica que parece não ter fim à vista, nos tempos de hoje. É bem curioso, lendo a evolução das diferentes missões verificar a grande hostilidade das populações locais que guerrearam as diferentes equipas, houve que encontrar contingentes militares para as proteger, mas não faltaram emboscadas, intimidações e incêndio de povoações. Mesmo depois de 1905 houve que afinar certos aspetos da delimitação das fronteiras, pode-se dizer que só em 1931 acabaram os problemas. A obra de Maria Luísa Esteves é incontornável pelo estudo das fontes, pela documentação carreada e pela franqueza da linguagem: acabara formalmente a Senegâmbia, Portugal ficava reduzido a uma possessão colonial, os franceses tinham imposto limitações e quebraram a quimera de que ainda éramos influentes nessa mítica Senegâmbia. Mas ambos pagaram caro ao separar comunidades, de que o Casamansa é a que continua a dar mais que falar.

Um abraço do
Mário



A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Prossegue a saga em torno das sucessivas etapas em que missões luso-francesas procuraram ao longo dos anos delimitar as fronteiras também numa ótica de defender interesses comerciais e limitar os estragos introduzidos em comunidades que tinham seculares formas de coesão que as linhas de fronteira romperam. Na missão que permaneceu na Guiné de 1904 a 1905, ao tempo do Governador Sobral Martins estiveram Oliveira Muzanty e José Proença Fortes, respetivamente Chefe e Adjunto da Comissão de Delimitação. A situação na Guiné era muito instável, havia guerra no Oio que envolveu operações militares. As duas missões concordaram que os pilares utilizados na balizagem seriam feitos em tijolo e cimento, era extremamente difícil encontrar a pedra apropriada. A construção ficaria a cargo da missão francesa e os encargos seriam suportados pelas duas partes, trabalhou-se entre os marcos n.º 112 a 155, os pilares numerados de 113 até 132 puderam ser construídos em pedra e os restantes em tijolo e cimento. As duas missões estiveram permanentemente protegidas por 30 soldados. É nesta circunstância que a missão francesa sugeriu que a linha a adotar desde o marco 155 até ao Cabo Roxo fosse alterada, propunha-se modificar a cláusula, sugeria-se a Ponta Varela como ponto final da delimitação sobre o Oceano Atlântico.

Muzanty recusa-se a admitir esta alteração à letra do acordo e não aceita a afirmação de que os franceses ocuparam alguma vez a região entre o Cabo Roxo e Ponta Varela. Vendo a intransigência do delegado português que ameaçava interromper os trabalhos, a missão francesa aceitou a marcação da linha mas ressalvando futuras reivindicações. Definiram-se as linhas de atuação futura, Muzanty tinha pedido a formação de um posto militar em Cassolol, o que veio a acontecer, mas a hostilidade das populações à volta era enorme. Houve que proceder a operações com auxiliares armados para intimar as autoridades gentílicas a deixar trabalhar as missões, houve escaramuças, travaram-se combates, incendiaram-se povoações. Foi neste clima de permanente intranquilidade que se concluiu a tarefa da missão. Muzanty irá escrever no seu relatório não ser “pequeno o resultado obtido pela coluna mista, pois quebrando o grande prestígio do chefe Fodé Cabá, que se exercia numa área grande, em território nosso e francês, garantindo-se a ocupação da região por pequenos postos, o que me parece de inadiável urgência, sem necessidade de novos e pesados sacrifícios de vidas e dinheiro”. Fizera-se a delimitação entre o marco nº 155 e o Cabo Roxo. As cartas, portuguesa e francesa, desenhadas pelas duas missões, foram consideradas exatas.

Procede-se igualmente à troca de territórios, depois aprovou-se a fronteira norte. Estamos chegados às considerações finais, a autora recorda que foi extremamente hábil a forma como os franceses de apoderaram do Casamansa, explorando os escassos recursos de Portugal e a ingenuidade do seu governo. O plano gizado pela França englobava também o Rio Nuno. Mas não se pode atribuir só aos franceses a estagnação da vida económica da região, pesou também a abolição da escravatura, como a autora observa:
“Portugal, ao ajudar os Fulas-Pretos a sair da escravidão, concitou contra si o ódio dos que os dominavam, os Fulas-Forros. As lutas tribais que se seguiram prejudicaram enormemente a agricultura e desviaram o comércio do sertão das rotas tradicionais, fazendo-o afluir às feitorias francesas. Buba e o Rio Grande perderam a sua grandeza comercial e o Rio Nuno viu chegar às suas margens, cada vez em maior quantidade, os mercadores indígenas atraídos pela qualidade e baixo preço das fazendas. Estas lutas internas vão provocar a fuga de populações que se refugiaram em locais mais propícios, dando origem a novo xadrez étnico acompanhado da natural rutura das formações políticas e sociais”.

E, mais adiante:
“As fronteiras políticas saídas da Convenção reduziram as possibilidades de comércio da Guiné Portuguesa, porque a limitaram quase a uma faixa litoral sem permitir a penetração do interior, o protetorado do Futa Jalom deu à França uma posição invejável para o seu projeto do domínio interior (…) Com a posse dos rios Casamansa e Nuno e dominando a região do Futa Jalom, os franceses absorveram toda a vida comercial, atraindo a si, mercê de uma hábil política, os negociantes indígenas, desviando-os dos mercados portugueses (…) Não foi menos funesto o seu significado social, porque as duas Guinés, a Francesa e a Portuguesa, foram criadas sem ter em conta, muitas vezes, não só os limites naturais como as realidades étnicas, sociais e económicas existentes. Só mais tarde, quando já não era possível emendar os erros cometidos, se verificou que os povos com história e cultura comuns foram separados e entregues a países diferentes sem respeito pelo seu passado. Não era para admirar que assim tivesse acontecido quando as negociações se fizeram longe dos locais a delimitar por pessoas mal informadas sobre a história dos povos e sem conhecimento suficientes de geografia e utilizando cartas topográficas pouco rigorosas. Apenas se procurara satisfazer os interesses dos países colonizadores e destes o mais forte teve sempre a última palavra”.

Vamos terminar esta digressão sobre a delimitação das fronteiras referindo uma comunicação feita ao tempo da Convenção Luso-Francesa pelo Capitão Francisco António Marques Geraldes, veio a ser publicada no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, VII série, N.º 8, 1887.

(continua)

Guiné Portuguesa e possessões francesas vizinhas, carta editada em Lille, em 1890
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22664: Historiografia da presença portuguesa em África (287): A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (2): "A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné", por Maria Luísa Esteves; edição conjunta do Instituto de Investigação Científica Tropical e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Lisboa, 1988 (Mário Beja Santos)