Mostrar mensagens com a etiqueta Cassacá. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Cassacá. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16991: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (4): O I Congresso do PAIGC em fevereiro de 1964, em Cassacá, a sul de Cacine, e a importância social da saúde e da instrução literária, analisada na base central do Morés em março de 1964 - Parte I


Guiné > Região de Tombali > Carta de Cacine (1960) > Escala 1/59 mil > Posição relativa de Cassacá, a 15 km a sul de Cacine, região também como conhecida como Quitafine.

 Fonte: Infogravura: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné (2017)


Capa do livro de memórias de Luís Cabral [1931-2009]: Crónica da Libertação.  Lisboa, Edições ‘O Jornal’. Publicações Projornal, 1984. 464 pp. O autor foi uma testemunha privilegiada deste congresso, o 1º e único a que assistiu Amílcar Cabral.  Sobre o local em que se realizou (a 15 km a sul de de Cacine, e não na ilha do Como...), vd. poste de Carlos Silva, de 3/4/2009  (*)



[O nosso colaborador assíduo do blogue, Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494. Xime e Mansambo, 1971/74): tem já mais de 110 referência no nosso blogue; ainda está no ativo, é professor universitário, doutorado em ciências do desporto. Este texto, a publicar em duas partes, foi submetido ao blogue em 4 de janeiro de 2017]


O I CONGRESSO DO PAIGC EM FEVEREIRO DE 1964 NO SUL E A IMPORTÂNCIA SOCIAL DA SAÚDE E DA INSTRUÇÃO LITERÁRIA, ANALISADA NA BASE CENTRAL (MORÉS) EM MARÇO DE 1964 

1. INTRODUÇÃO

Concluído o tradicional ciclo festivo anual, onde as dimensões tempo e espaço são reservadas, maioritariamente, para os núcleos familiar e sociais mais próximos, primeiro o Natal e depois a despedida do ano velho, alargado a outros pares por razões diferentes, retomamos quase sempre as rotinas anteriores, ainda que se reformulem expectativas e se acrescentem outras, em resultado de novos desejos e objectivos, na maioria das vezes influenciados pelo imemorial ditado popular «ano novo, vida nova».

Dito isto, e nesta oportunidade, ainda venho a  tempo de vos desejar  um Melhor Ano de 2017.

Quanto à temática prospectiva das minhas narrativas, que espero e desejo dar continuidade neste espaço plural, elas continuarão a cruzar os territórios de cada um dos lados do combate, relevando as diferentes acções e o sentido de cada uma delas, visando alargar a sua dimensão historiográfica como um contributo para memória futura.

Assim, como causa/efeito para a elaboração do presente trabalho de investigação histórica está o estudo sociodemográfico relacionado com o bigrupo do cmdt Mário Mendes (1943-1972) [apresentado no P16865], a que se adiciona os comentários do meu/nosso camarada Pereira da Costa [P16891], em particular quando se refere à baixa preparação literária dos guerrilheiros, considerada como realidade inquestionável.

Porque cada comentário, independentemente da sua pertinência ou assertividade, nos permite abrir uma ou mais “janelas” de novas abordagens, o presente texto é disso consequência e/ou exemplo concreto.

Uma vez que só a partir de 1966 foram elaboradas pelo organismo de Inspecção e Coordenação do Conselho de Guerra as listas das FARP referentes à constituição dos bigrupos existentes em cada Frente, onde em muitas delas nada consta sobre a variável «formação escolar» de cada individuo, procurámos indagar sobre o que pensavam, naquela época, os principais dirigentes do PAIGC sobre esta problemática.

Para o efeito utilizámos uma vez mais, como fonte de informação privilegiada, a Casa Comum, Fundação Mário Soares, que agradecemos, reforçada com consultas ao vasto espólio do nosso blogue, com especial destaque e a devida vénia aos trabalhos de recensão - «Notas de Leitura» - do camarada Beja Santos.

Neste contexto e como cronologia de partida, recuámos ao ano de 1964, em particular aos fundamentos que levaram à realização do I Congresso do PAIGC, organizado numa área próxima da tabanca de Cassacá, situada a cerca de quinze quilómetros a sul de Cacine (*), e que serão resumidos no ponto seguinte.


2. I CONGRESSO DO PAIGC – CASSACÁ [FRENTE SUL] 
 DE 13 A 17 DE FEVEREIRO DE 1964

O tema sobre a realização do I Congresso do PAIGC, organizado entre 13 e 17 de fevereiro de 1964, por proposta de Luís Cabral (1931-2009), em Cassacá, base situada a quinze quilómetros a sul de Cacine e a trinta da fronteira com a Guiné-Conacri, foi já abordado nos P4122 (Luís Graça) e P4137 (Carlos Silva) (*).

Ainda assim, voltamos a ele com uma dupla intenção.  Por um lado, recuperando o processo histórico mais global, e por outro adicionando-lhe outros elementos particulares incluídos na organização e na vida interna do PAIGC, nomeadamente nas bases criadas no interior do território, como instrumentos de mobilização e motivação para prosseguirem a luta.

É de relevar que os antecedentes do Congresso, a visita de Luís Cabral à zona de Quitafine e tabanca de Cassacá em finais de 1963 [quiçá na perspectiva de “ano novo, vida nova”], as informações recolhidas em todos os contactos estabelecidos com os combatentes e aquelas que lhe chegavam das frentes, levaram a que o irmão [Amílcar Cabral; 1924-1973] aceitasse, como necessária, a realização de uma reunião geral dos quadros responsáveis pelo Partido, no sentido de se poder discutir e aprofundar esta questão, de maneira a tirar dela todas as lições para o futuro, numa altura que estava concluído o primeiro ano da luta armada.

Os fundamentos que estão na base deste projecto de intenções, bem como o desenvolvimento de cada uma das diferentes acções previstas para antes, durante e depois deste I Congresso podem (devem) ser consultadas no livro de memórias de Luís Cabral: “Crónica da Libertação”, (1984), Lisboa, Edições ‘O Jornal’. Publicações Projornal. [Vd. imagem da capa, em cima. ]

Por isso, é da mais elementar justiça referir aqui o importante trabalho de recensão realizado pelo camarada Beja Santos sobre esta obra que, em função do seu valor e extensão, teve de ser dividido em cinco partes: – P7216; P7223; P7232; P7241 e P7259.

Com a devida vénia, aproprio-me, neste contexto histórico, de uma passagem da sua autoria [P7232] onde refere: 

“Em finais de 1963, Luís Cabral faz a primeira visita ao Quitafine, a partir de Sangonhá, depois partiram para a base de Cassacá, onde foi recebido por Manuel Saturnino [da Costa; n-1945-]. Em Cacine estava instalado o primeiro quartel das tropas portuguesas, a que se seguiu Gadamael. Segundo Luís Cabral, as tropas portuguesas estavam confinadas a Cacine. 

As viagens eram morosas e dolorosas, entre a estrada de Boké e a fronteira. Depois vem uma frase enigmática: o Amílcar e o Aristides [Pereira; 1923-2011] foram as únicas pessoas com quem falei sobre os graves problemas que existiam nalgumas zonas do Sul do país. Este facto trazia-nos dados completamente novos sobre a luta, e provou a fragilidade das imensas conquistas obtidas, postas em causa unicamente por falta de informações precisas e controladas sobre a situação real nas diferentes zonas do país. 

A experiência acabava de mostrar que os jovens responsáveis da guerrilha eram capazes de esconder ao Secretário-Geral informações de importância capital, quando elas pudessem pôr em causa outros responsáveis. O que se estava a passar era que um conjunto de chefes de guerrilha exercia um poder despótico sobre as populações, chegando a cometer crimes inanarráveis. Independentemente de serem jovens, é incompreensível como tais crimes sistemáticos eram escondidos dos quadros políticos. Como se verá no Congresso de Cassacá, estes criminosos (cuja relação nunca vai aparecer talhada em qualquer documento) serão sumariamente executados, no termo desta reunião”.


2.1. FOTOGALERIA DO I CONGRESSO DO PAIGC - 1964


Fotos a seguir reproduzidas, com a devida vénia, do portal Casa Comum, desenvolvido em boa hora pela  Fundação Mário Soares , e donde constam, entre dezenas de outros, dois preciosos arquivos, o Arquivo  Amilcar Cabral e o Arquivo Mário Pintio de Andrade, que são duas fontes valiosíssima para o conhecimento da guerra colonial, em particular  na Guiné, e que devem ser devidamente divulgados pelos antigos combatentes de ambos os lados.



Amílcar Cabral veio de base de Boké, na Guiné-Conacri, no barco a motor que se vê ao fundo. Em março de 1973, o PAIGC havia capturado, no porto de Cafine, dois barcos comerciais, o “Mirandela” e o “Arouca”- Depois de rebatizados, passam a servir no transporte de homens e material. O barco que se vê seria um destes dois que foram aprisonados. Passou a ser chamado "Unidade". Sabemos, pela descrição detalhada feita por Luís Cabral (e é a única de que infelizmente dispomos, unilateral, e aparentemente credível),  que a Amílcar e a sua comitiva vieram de Boké, de noite, desembarcando, com a maré alta, na ilha de Canefaque. Seguiram até Cassabetche, a pé, e aqui foram transportados de canoa, com escolta. A viagem até Cassacá foi feita a pé, utilizando  troço da estrada que seguia junto à fronteira...

O congresso realizou-se nas proximidades de Cassacá, num local bem protegido pela floresta. A aldeia de Cassacá, a 15 km a sul de Cacine, a 30 km, a oeste da fronteira com a Guiné-Conacri,  tinha sido destruída pela aviação portuguesa, mas fora reconstruída. O PAIGC considerava já Quitafine como "área libertada". As tropas portuguesas estavam confinadas a Cacine,  mas havia já a norte  um pequeno destacamento em Gadamael Porto. (Recorde-se que estamos  em plena batalha.do Como, Op Tridente.).

Tirando Manuel Saturnino Costa, então com 19 anos, já não deverá haver mais dirigentes e comandantes do PAIGC, vivos, que tenham estado em Cassacá, em fevereiro de 1964. A versão, publicada, de Luís Cabral será, assim,  aquela que "ficará para a História"... 

  [ Fonte: adapt de Luís Cabral [1931-2009]: Crónica da Libertação.  Lisboa, Edições ‘O Jornal’, 1984, pp. 162 e ss.] (*)


Pasta: 05359.000.020
Título: Amílcar Cabral e outros companheiros a caminho do I Congresso do PAIGC
Assunto: Amílcar Cabral e Armando Ramos, entre outros, a bordo de uma canoa, a caminho do I Congresso do PAIGC, em Cassacá.
Autor: Luís Cabral
Inscrições: A caminho de Cassacá 
Data: 1964
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Citação: Luís Cabral (1964), "Amílcar Cabral e outros companheiros a caminho do I Congresso do PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43297 (2017-1-3)


Pasta: 05224.000.047
Título: Amílcar Cabral e grupo de dirigentes do PAIGC a caminho do Congresso de Cassacá
Assunto: Amílcar Cabral, Quecuta Mané, Armando Ramos, entre outros, a caminho do I Congresso do PAIGC, em Cassacá, na Frente Sul.
Data: Quinta, 13 de Fevereiro de 1964 - Segunda, 17 de Fevereiro de 1964

Observações: O Congresso de Cassacá (que decorreu em simultâneo com a Batalha de Como) reuniu os principais dirigentes políticos e militares do PAIGC e delegados vindos de todas as regiões do país. Entre as principais decisões do Congresso figuram a reestruturação do partido no plano político, o reforço da mobilização e organização das massas populares, e a reorganização da luta armada (criação de comandos inter-regionais, do Conselho de Guerra, e das FARP - englobando a guerrilha, as milícias e o exército popular).

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Fotografias

Citação: (1964-1964), "Amílcar Cabral e grupo de dirigentes do PAIGC a caminho do I Congresso de Cassacá", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43071 (2017-1-3)


Pasta: 05360.000.030T
Ttulo: Amílcar Cabral e outros responsáveis do PAIGC no I Congresso do partido em Cassacá, na Frente Sul
Assunto: Amílcar Cabral e outros responsáveis do PAIGC, entre os quais Domingos Ramos, durante o I Congresso do partido em Cassacá, na Frente Sul.
Data: Quinta, 13 de Fevereiro de 1964 - Segunda, 17 de Fevereiro de 1964
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Fotografias

Citação: (1964-1964), "Amílcar Cabral e outros responsáveis do PAIGC no I Congresso do partido em Cassacá, na Frente Sul", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43300 (2017-1-3


Pasta: 07223.002.043
Título: I Congresso do PAIGC em Cassacá
Assunto: I Congresso do PAIGC em Cassacá [região libertada do sul da Guiné-Bissau]. Amílcar Cabral (na mesa), comandantes (sentados em redor da mesa), milicianas (de pé) e população.
Data: Fevereiro de 1964
Fundo: Arquivo Mário Pinto de Andrade
Tipo Documental: Fotografias

Citação: (1964), "I Congresso do PAIGC em Cassacá", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_85095 (2017-1-3)


Pasta: 05224.000.046
Título: Abdulai Barry, Arafam Mané, Amílcar Cabral, Domingos Ramos e Lai Sek no I Congresso do PAIGC, em Cassacá.
Assunto: Abdulai Barry, Arafam Mané, Amílcar Cabral, Domingos Ramos e Lai Sek, durante o I Congresso do PAIGC, em Cassacá, na Frente Sul.
Data: Quinta, 13 de Fevereiro de 1964 – Segunda, 17 de Fevereiro de 1964.

Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: Fotografias.

Citação: (1964-1964), "Abdulai Barry, Arafam Mané, Amílcar Cabral, Domingos Ramos e Lai Sek no I Congresso do PAIGC, em Cassacá", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43444 (2017-1-3)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15779: Notas de leitura (810): “Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
É inegável que Daniel dos Santos se esforçou por nos apresentar uma narrativa biográfica alternativa às dos historiadores guineenses. Sem desmerecer da sua coragem a desmontar os aspetos mitológicos do PAIGC, a sua investigação tem à partida uma declaração de que o cabo-verdiano não é confundível com o guineense. E vezes sem conta irá pôr o acento tónico na unidade Guiné-Cabo Verde que foi a chave para o êxito do PAIGC e do seu descalabro. O autor diz-se guiado pela única preocupação de descrever Cabral como um homem e acabou por atolar o homem na sua obra, com poucos benefícios para ambos. Seja como for, é trabalho de investigação que não se pode descurar.

Um abraço do
Mário


Uma nova investigação sobre Amílcar Cabral (2)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Um outro olhar“, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014, é uma obra que tem que ser levada a sério pelo esforço de investigação, pela procura de uma análise original, por ensaiar uma resposta cabo-verdiana às investigações já feitas por historiadores guineenses.

Daniel dos Santos, não terá sido por acaso, inicia o seu trabalho questionando a índole do povoamento, da civilização peculiar que ali se estabeleceu, com a sua cultura euroafricana, uma colonização que depois transferiu as suas gentes em missões civilizadoras e coloniais na Senegâmbia, em Angola e S. Tomé. Retrata a formação de Cabral em Cabo Verde e define-o como um produto do seu tempo, alguém que aspirava vir a ser engenheiro e poeta. Um Cabral que se torna contestatário em Lisboa, aqui chega exatamente no tempo em que o colonialismo é posto em questão, esse Cabral torna-se um profissional de competências reconhecidas, trabalha na Guiné, depois em Lisboa, a seguir em Angola e novamente em Lisboa, e daqui parte, no final da década de 1950, para um exílio feito à opção de combater o colonialismo. O autor dá-nos o ambiente em que Cabral mergulha nesses anos 1950, na Guiné e em Angola, identifica os movimentos, dá como comprovado que a greve e a tragédia do Pidjiquiti nada teve a ver com o PAIGC, só muito remotamente com o Movimento de Libertação da Guiné.

Enquanto o historiador Julião Soares Sousa se preocupou no seu incontornável trabalho “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário” em procurar interpretar os fenómenos federativos africanos, em voga, na segunda metade da década de 1950, e a que Cabral não foi alheio, Daniel dos Santos disserta sobre o movimento anticolonial e como o contexto internacional exigiu que cada um dos países em luta pela sua libertação dispusesse de um partido. O autor dá também como comprovado que até 1959 não há nem PAI nem uma organização definida, nem estratégia para a conquista do poder, a partir de Conacri as mensagens dirigidas ao governo de Salazar falam em negociações, liberdades, constituição de partidos, sindicatos, etc. Goradas as negociações, o aparelho partidário ganha caracterização e a fórmula da unidade Guiné-Cabo Verde surge exclusivamente da cabeça de Cabral, reconhecendo que precisa de quadros qualificados e que não os tem nos grupos guineenses.

No nosso ponto de vista, Daniel dos Santos comete um erro crasso quando procura dissociar Cabral da história do PAIGC, quando comprovadamente o líder revolucionário em nenhuma circunstância pode ser apartado da sua obra. Já está Cabral assassinado, já o autor questionou a quem interessava a morte do fundador do PAIGC, e tendo sido dadas respostas já formuladas por toda a gente (a saber: “Os dados da investigação permitem concluir, à cautela, que a causa próxima da morte de Amílcar Cabral terá sido o ambiente político que o rodeava, em resultado do dissídio entre guineenses e cabo-verdianos, conjugado com certeza com outros fatores, em particular a ação de Sékou Touré, da PIDE e de António Spínola. Cumpre dizer que tanto as autoridades coloniais como Sékou Touré investiram politicamente na divisão entre guineenses e cabo-verdianos. Tanto podia ser mandado eliminar pelo general Spínola como por Sékou Touré, pela PIDE ou pelos seus próprios camaradas de partido”, e mais adiante refere uma profecia de Amílcar Cabral: “Se um dia eu for assassinado, sê-lo-ei, provavelmente, por um homem do meu povo, do partido e, talvez mesmo, da primeira hora”) e Daniel Santos lança-se na história do PAI até ao PAIGC. Escalpeliza todas as contradições sobre a mitologia de um partido nascido em 1956 do qual não há um documento escrito. O PAIGC tinha que procurar uma data remota para a sua existência já que o MLG datava de 1958, o MLGC de 1959, a UPICV de 1954/1955, e a UDC de 1958. Mesmo na reunião de Setembro de 1959, a que Cabral assistiu, em Bissau, há fortes contradições dos participantes. Julião Soares Sousa também hesita perante certas faltas de provas e opiniões hesitantes dos possíveis participantes da reunião. Para o autor o PAIGC evoluiu de um partido tendencialmente democrático para um partido totalitário em que o seu secretário-geral era a cabeça, a coluna vertebral, o sopro anímico, os braços da execução. Cabral é a estratégia do PAIGC, é ele quem lança a guerrilha de modo a surpreender o Estado-Maior português, e conseguiu: “(…) Desencadeámos a luta armada no centro, no sul e no norte (…) Optámos por uma estratégia a que poderíamos chamar centrífuga: a partir do centro para a periferia. E esse facto provocou uma grande surpresa aos portugueses, que tinha concentrado as suas tropas na fronteira da Guiné e do Senegal”.

Temos depois a caracterização do PAIGC: partido de massas, totalitário, de inspiração animista, guiava-se organicamente pelo centralismo democrático, pela direção coletiva, as suas estruturas repousavam em células, em milícias populares; a filiação ao PAIGC estava estritamente regulamentada: militantes e aderentes. Para Cabral os militantes eram os melhores filhos da nossa terra. E tendo radicalmente separado o homem político da sua construção, Daniel dos Santos diz-nos inesperadamente que Cabral era o corpo e alma do partido, e cita abundantemente Cabral, do género: “Não há nenhum ato, de qualquer dirigente deste Partido, relativo à sua vida, às suas ações, às suas conveniências, que não pode passar pela direção superior do Partido. Só assim é que podemos controlar os camaradas para sabermos o que é que os camaradas estão de facto a fazer”. Do princípio ao fim, Cabral giza uma democracia revolucionária, o partido único onde cabem só os melhores, em que os militantes só se podem casar com autorização do partido. O autor explica o que aconteceu no Congresso de Cassacá, daqui saíram diretivas sobre a orgânica militar e a fiscalização do político sobre o militar. Os quatro anos do governo de Arnaldo Schulz foram marcados exclusivamente pela temática militar, Schulz tinha inicialmente confiado numa vitória, cedo se apercebeu que o inimigo estava moralizado, gradualmente melhor equipado e possuía a iniciativa, a tal ponto que em Março de 1968 o aeroporto de Bissalanca foi atacado. Mas com António de Spínola, Cabral e o PAIGC vão conhecer um embate maior: a guerra psicológica a par de uma mentalidade ofensiva que se julgava perdida por parte dos portugueses.

(Continua)

************

Não gosto de vir da Feira da Ladra de mãos vazias. A sorte favorece os audazes que vasculham pacientemente os caixotes de brochuras, panfletos e publicações que parecem condenadas ao esquecimento. Desta feita, na brochura da Unibanco intitulada Roteiro de uma viagem pelo mundo, de 2008, encontrei a propósito dos Bijagós esta portentosa fotografia. Nem era preciso dizer que se tratava de gente dos Bijagós, são bem visíveis dois dançarinos que levam as suas máscaras a imitar cabeças de vaca, o que aqui resplandece é o festival de cor, é um mundo de gente nova, pacífica, e nós imaginamos que eles confiam que têm um mundo melhor à sua espera.
____________

Nota do editor

Poste anterior de 19 de Fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15766: Notas de leitura (809): “Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13824: Notas de leitura (646): “Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: Uma análise comparativa”, por Luís Moita, CIDAC/ULMEIRO, 1979, e "Aprender português na Guiné-Bissau": Um manual do aluno datado de 1994 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Neste afã de ajuntar o que à Guiné diz respeito, dei com esta edição do CIDAC de 1978 e permito-me chamar à vossa atenção para o papel pioneiro que eles tiveram na cooperação luso-guineense, é documentação que se pode consultar na sua sede, não há para ali revelações bombásticas mas dá para verificar que houve muita generosidade, vários doadores apostaram no progresso guineense. E coube-me a sorte em encontrar um tocante livro de aprendizagem português feito em parceria com a Escola Superior de Educação de Setúbal.
Dá gosto ver como sabemos ajustar a comunicação e ir ao encontro às reais necessidades dos outros.

Um abraço do
Mário


Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: 
Uma análise comparativa

Beja Santos

“Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: Uma análise comparativa”, por Luís Moita, CIDAC/ULMEIRO, 1979, é o balanço feito por um dos fundadores do CIDAC aos congressos dos três principais movimentos de libertação africanos de língua portuguesa, em 1977. Para o leitor mais interessado em conhecer a história do CIDAC, que começou por ser Centro de Informação e Documentação Anticolonial, logo em maio de 1974, e que se tornou posteriormente em Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral, remete-se para o link: www.cidac.pt/files/9013/8434/2125/Solidariedades.pdf, encontra-se neste documento a narrativa de 30 anos atividade laboriosa em termos de cooperação com as ex-colónias, o estudioso poderá encontrar na Biblioteca do CIDAC (Rua Tomás Ribeiro, 3-9 1069-069 Lisboa) o historial da cooperação com a Guiné-Bissau.

Importa registar que Luís Moita escreveu sobre os congressos do PAIGC anteriores a 1977. Referindo-se ao Congresso de Cassacá (13 a 17 de fevereiro de 1964), cita uma frase de Amílcar Cabral em 1969: “O partido já estava doente, após um ano de luta”. O Congresso tomou decisões fundamentais no domínio da organização política e militar, trata-se de matéria que está profundamente documentada. Passado 9 anos, o PAIGC reuniu o seu II Congresso no Boé. Em dezembro de 1972, tinham decorrido as eleições para a Assembleia Nacional Popular e em 20 de janeiro Cabral é assassinado. Neste II Congresso decidiu-se convocar a Assembleia Nacional Popular no decurso desse ano 1973, a fim de cumprir a decisão de proclamar o Estado da Guiné, são os acontecimentos de 24 d setembro de 1973. São portanto Congressos que assinalam etapas fundamentais da luta e onde se tentou a superação de contradições e dificuldades sentidas enquanto movimento independentista.

Luís Moita detém-se uma estrutura social guineense e cabo-verdiana e alude ao relatório do Conselho Superior de Luta do PAIGC onde se diz que o processo histórico da luta de libertação nacional foi desencadeado não por uma classe mas pelo setor revolucionário da pequena burguesia, não havia, tanto na Guiné como em Cabo Verde, um operariado consciente dos seus interesses.

O III Congresso debruçou-se sobre os anos de poder, entre 1974 e 1977. O PAIGC não fala em revolução socialista,  fala em democracia nacional revolucionária e procura não iludir as realidades: o poder político assentava numa base económica frágil, em virtude do baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas nacionais, por isso a tarefa primordial era alargar e fortalecer a base económica do poder político. O III Congresso considerou que a etapa que se vivia era fundamentalmente caraterizada pelas necessidades de consolidação da independência e de mobilização nacional.

Entendia o PAIGC que se tinha estruturado como partido e tinha adotado um programa de frente nacional, era a vanguarda do povo da Guiné e Cabo Verde, praticava uma política de unidade nacional e definia-se como um movimento de libertação no poder. Neste III Congresso aprovaram-se novos estatutos do PAIGC onde se equacionavam as relações entre o partido e as organizações de massas:

  “Processam-se na base do princípio da independência orgânica e autonomia dessas organizações e do princípio da direção e controlo pelo partido”.

E assim chegamos ao conceito de desenvolvimento, apresentado por Aristides Pereira: 

“Só tomando medidas concretas que conduzam à liquidação da exploração pelo homem na nossa terra podemos criar as condições para que seja real o progresso continuo no nosso povo. Isto significa que o desenvolvimento da nossa terra tem de processar-se na base da mobilização das camadas mais desfavorecidas da população, sobretudo dos trabalhadores do campo”

E, mais adiante: 

“Na Guiné, há duas questões fundamentais que estamos a desenvolver: uma, é a criação de condições que conduzam ao estabelecimento do equilíbrio da nossa balança de pagamentos e a outra é a necessidade de reforçar e alargar as medidas tendentes a quebrar o círculo fechado da nossa autossubsistência, em que se encontra 80 % da nossa população”

Segue-se a enumeração de um conjunto de projetos, que, como se sabe, ou foram rotundos fracassos (caso do complexo agro industrial do Cumeré) outros que não encontraram doadores ou financiadores.

A direção do PAIGC eleita no III Congresso tinha a seguinte Comissão Permanente: Aristides Pereira (secretário-geral), Luís Cabral (secretário-geral adjunto), Francisco Mendes, João Bernardo Vieira, Pedro Pires, Umarú Djaló, Constantino Teixeira e Abílio Duarte.

************

Aprender português na Guiné-Bissau: 
Um manual do aluno datado de 1994

Encontrei este manual editado pela Escola Superior de Educação de Setúbal na Feira da Ladra, teve uma tiragem de 900 exemplares, foi escrito por Alcina Ferreira e tem desenhos de Luís Balata e Manuel Júlio, a capa é de Elisa da Costa, uma aluna guineense.

Na apresentação ao aluno diz-se que “Durante este ano, vais aprender a escrever em pequenas frases aquilo que pensas. Vais também aprender a ler melhor, para entender o que os outros te contam por escrito. No fim deste ano serás capaz de ler o jornal, as cartas, as revistas e outros livros”.

É um livro felizmente articulado com as realidades guineenses, oxalá tinha sido útil a muitos meninos, preparando-os para falar mais fluentemente o português. Dá gosto ver materializada a cooperação entre metodólogos portugueses e guineenses, o manual tem conteúdo e a sua sobriedade não afeta o valor das mensagens. Aqui ficam algumas imagens.



____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13806: Notas de leitura (645): “Cidade e Império, Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais”, organizadores Nuno Domingos e Elsa Peralta, Coleção História e Sociedade, Edições 70 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8934: A nossa expedição à Guiné (Tina Kramer) (3): Buba, Tite, Bolama, Guiledje e Cassacá (de 2 a 14 de Maio de 2011)

A nossa expedição à Guiné
Escrito por Tina Kramer

Para a minha tese sobre as memórias da Guerra Colonial/Luta de libertação eu fui para a Guiné no mês de Fevereiro até Junho em 2011

3 - Buba – Tite – Bolama – Guiledje – Cassacá (de 2 a 14 de Maio 2011)

Durante uma terceira viagem fomos ao sul do país e parámos entre outros em Saltinho, Buba, Tite, Bolama, Catió, Guiledje e Cassacá. Para mim o sul foi a região ainda mais quente do que o resto da Guiné. Além disso o mato é muito denso e a maioria das estradas estão numa condição deteriorada. Pelo menos o rio em Buba traz um bocado de vento e frescura à noite.

Depois de dois dias em Buba com visitas na câmara, no aquartelamento e com algumas conversas com antigos combatentes, fomos a Tite. Quando tínhamos chegado lá alguns polícias que estavam a fazer sesta indicaram-nos para Sintchã Lega, uma tabanca pequena perto de Tite, para falar com um combatente que participou no primeiro ataque em Tite. Antes de ir lá visitámos ainda o antigo aquartelemento de Tite, que está abandonado. Dentro nas paredes há pinturas interessantes dos portugueses, mas mal compreensíveis. O antigo combatente em Sintchã Lega contou-nos do Capitão Curto, do primeiro tiro da luta em Tite e da sua desilusão com o desenvolvimento da Guiné depois da independência.

O antigo aquartelamento português em Tite, 5 de Maio de 2011
Foto ©: Tina Kramer

Opiniões sobre futebol no muro do antigo quartel em Tite, 5 de Maio de 2011
Foto ©: Tina Kramer

Pinturas do exército português na parede do antigo quartel em Tite, 5 de Maio de 2011
Foto ©: Tina Kramer

Pinturas do exército português na parede do antigo quartel em Tite, 5 de Maio de 2011
Foto ©: Tina Kramer

No mesmo dia decidimos continuar o trajecto até à ilha Bolama e ficámos a noite lá. No dia seguinte visitámos a cidade e eu estava impressionada com os prédios abandonados e as ruínas, todos resíduos dum passado completamente diferente. Bolama parecia como uma Lisboa miniatura e ainda hoje pergunto-me porque a gente não utiliz ou não restaura estes prédios. Quem reina a ilha são os morcegos que estão activos nas mangueiras mesmo durante o dia. Desfrutámos ainda a praia -infelizmente cheia de lixo – mas a água estava limpa e com as palmeiras parecia um paraíso.

Bolama, 6 de Maio de 2011
Foto ©: Tina Kramer

Bolama, 6 de Maio de 2011
Foto ©: Tina Kramer

Dias depois, com a indicaçao do Carlos Schwartz (Pepito), visitámos Guiledje e o museu impressionante ao pé do antigo aquartelamento. Tem um guarda simpático e inteligente que nos mostrou a exposição e que sabe muito sobre a história da guerra. Espero que o projecto vá continuar e incluir mais a população de Guiledje, porque os antigos combatentes que falaram connosco em Guiledje ainda nunca foram ao museu.

A antiga entrada do aquartelamento de Guiledje, 8 de Maio de 2011
Foto ©: Tina Kramer

O museu ao lado do antigo aquartelemento de Guiledje, 8 de Maio de 2011
Foto ©: Tina Kramer

Mais tarde continuámos para Cassacá, onde aconteceu o primeiro congresso do PAIGC de 13 a 17 de Fevereiro 1964. O sítio no mato era sagrado e reservado para ceremónias tradicionais dos Nalus, mas foi cedido a Amílcar Cabral a pedido dele. Os anciões garantiram que o congresso podia acontecer sem que fosse descoberto pelo exército português. Só depois foi bombardeado pela aviação portuguesa durante oito dias. Hoje é um lugar histórico e ainda sagrado.

Sítio do primeiro congresso do PAIGC em Cassacá, 9 de Maio de 2011
Foto ©: Tina Kramer


Missirá

Várias vezes fomos a Missirá, a tabanca onde o Abdu nasceu e onde o Mário Beja Santos foi estacionado durante a guerra. Visitamos a família do Abdu e o irmão do Abdu mostrou-me a aldeia e os sítios históricos da guerra (o pouso dos helicópteros, antigas emboscadas, o antigo alojamento do Mário). Gostei muito dessa aldeia, da sua tranquilidade e da sua vida muito mais relaxada do que na Europa.

Largo de Missirá, 3 de Março de 2011
Foto ©: Tina Kramer

Meninos de Missirá, 2 de Junho de 2011
Foto ©: Tina Kramer

Esturrar o cadju em Missirá, 2 de Junho de 2011
Foto ©: Tina Kramer

Preparar o cadju em Missirá, 2 de Junho de 2011
Foto ©: Tina Kramer

Até aqui só podia falar um pouco da nossa viagem. Ainda temos que organizar as notas e as impressões na cabeça e analizar os dados.

Mais uma vez quero agradecer ao Mário Beja Santos, ao Abduramame Serifo Sonco, à família dele e a todos os camaradas e às famílias deles em Portugal e na Guiné-Bissau que me ajudaram durante a minha pesquisa.
____________

Nota de CV:

Vd. postes de:

19 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8928: A nossa expedição à Guiné (Tina Kramer) (1): Gabu - Lugadjole (de 28 de Março a 7 de Abril de 2011)

18 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8930: A nossa expedição à Guiné (Tina Kramer) (2): Bula e Cacheu (de 12 a 18 de Abril de 2011)

sábado, 6 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7232: Notas de leitura (166): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,
Às vezes vacilo quanto ao espaço que se deve conceder à “Crónica da Libertação”, de Luís Cabral.
Ela encerra tanta informação, remete para tantos outros relatos, confirma ou traz tanta contestação quanto a certos relatórios militares, que optei por mais alguns episódios, até ao assassinato de Cabral.

Um abraço do
Mário


“Crónica da Libertação” (3), por Luís Cabral

Beja Santos

A luta armada e a consolidação política do PAIGC, entre 1963 e 1964

As dificuldades sentidas pelo PAIGC não se confinavam à adesão das populações, o que se passou em Samba Silate era indício de que por um lado as populações mostravam reticência e por outro a improvisação estava a sair muito cara aos guerrilheiros. 

No caso do Leste, cometeram-se despautérios graves, as populações também se mostravam aterrorizadas com a onda de repressão das autoridades. Cheios de fome, os guerrilheiros comandados por Domingos Ramos e Barry tiveram que se alimentar da fruta amarga do tarrafe: 

“Com sementes de tarrafe adoçadas com cinza, e com coração de palmeiras que também crescem no mato de Fiofioli, os homens do PAIGC puderam não só aguentar-se nos seus postos como ainda conseguiram libertar a maior parte da área em que combatiam, melhorando definitivamente as suas condições de vida e luta”. 

Em jeito de comentário, poderei dizer que estes grupos se deslocaram para Baio e Burontoni, Ponta Luís Dias, daqui vigiavam a população que trabalhava nas bolanhas ricas do Poidom. Entretanto, as populações e guerrilheiros em Mina e Galo Corubal, dentro do Fiofioli, foram ganhando meios de subsistência e pescavam no Corubal. Só muito excepcionalmente é que as tropas portuguesas alcançaram estas bases e acampamentos. 

No Senegal, tudo continuava difícil, o abastecimento para as bases da região Norte tinham que partir da República da Guiné até às zonas libertadas. Os transportadores de material, esfomeados, roubavam comida nos campos senegaleses, eram problemas sem solução à vista.

No Morés, a guerrilha consolidou-se. Em finais de 1963, Luís Cabral faz a primeira visita ao Quitafine, a partir de Sangonhá, depois partiram para a base Cassacá, onde foi recebido por Manuel Saturnino. Em Cacine estava instalado o primeiro quartel das tropas portuguesas, a que se seguiu Gadamael. Segundo Luís Cabral, as tropas portuguesas estavam confinadas a Cacine. As viagens eram morosas e dolorosas, entre a estrada de Boke e a fronteira. Depois vem uma frase enigmática: 

“O Amílcar e o Aristides foram as únicas pessoas com quem falei sobre os graves problemas que existiam nalgumas zonas do Sul do país. Este facto trazia-nos dados completamente novos sobre a luta, e provou a fragilidade das imensas conquistas obtidas, postas em causa unicamente por falta de informações precisas e controladas sobre a situação real nas diferentes zonas do país. A experiência acabava de mostrar que os jovens responsáveis da guerrilha eram capazes de esconder ao Secretário-Geral informações de importância capital, quando elas pudessem pôr em causa outros responsáveis”. 

O que se estava a passar era que um conjunto de chefes de guerrilha exercia um poder despótico sobre as populações, chegando a cometer crimes inenarráveis. Independentemente de serem jovens, é incompreensível como tais crimes sistemáticos eram escondidos dos quadros políticos. Como se verá adiante, no Congresso de Cassacá, em 1964, estes criminosos (cuja relação nunca vai aparecer talhada em qualquer documento) serão sumariamente executados, no termo desta reunião.

A segunda leva de quadros formados em Pequim chegou entretanto. Cabral e a direcção do PAIGC convocam uma reunião de quadros para uma área libertada. Luís Cabral fala desta reunião e do congresso subsequente como o renascimento do PAIGC. Estavam presentes quadros políticos e guerrilheiros: Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Chico Mendes, Rui Djassi, Nino Vieira, Constantino Teixeira, entre outros. 

Tudo começou com a distribuição de fardas, isto enquanto, ali perto, na Ilha do Como, se travava um intenso combate. Amílcar começou por fazer uma longa exposição sobre a luta e a situação das tropas portuguesas. A seguir os principais dirigentes no terreno deram informações. Os pedidos avolumavam-se: faltava comida, roupas, munições, escolas e enfermeiros. Para Luís Cabral, a luta armada precisava de um novo impulso. Cabral respondeu que a luta teria que se intensificar e que para tal iam ser criadas as Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) constituídas por Exército Popular, Guerrilha e Milícia. 

A ajuda militar iria aumentar, em breve os guerrilheiros veriam chegar novas armas, algumas delas muito superiores às usadas pelos portugueses. Rafael Barbosa foi eleito para as funções de Presidente do Comité Central do PAIGC e Amílcar Cabral reconduzido como Secretário-Geral. Nesta fase dos trabalhos a conferência de dirigentes e quadros tinha-se transformado no I Congresso do PAIGC. Habilidosamente, numa altura em que tudo parecia encaminhar-se para o termo dos trabalhos, Amílcar propôs uma retrospectiva para analisar o comportamento de responsáveis e dirigentes. Tinha chegado o momento culminante das acusações: dirigentes bêbedos e que praticavam os castigos arbitrários, as acusações seguiam-se umas às outras, gente seviciada, aterrorizada, inocentes assassinados, até os feiticeiros não escaparam. Luís Cabral observa: 

“Todos esses crimes foram cometidos impunemente durante meses, com o conhecimento de dirigentes e responsáveis do partido que nem ao menos foram capazes de comunicar esses factos ao Secretário-Geral. Os criminosos eram chefes das bases de guerrilha”. 

De acordo com as descrições de Luís Cabral, Watna, chefe da base de Nhai, em Cubisseco, deve ter sido o mais terrível criminoso entre todos. Cabral ia procedendo a interrogatórios, a reunião durava há trinta horas, sem pausa. No final de todos estes interrogatórios, Amílcar denunciou os acusados e pediu a sua prisão. Sabe-se que houve execuções sumárias, Luís Cabral é parcimonioso na descrição destes factos.

Amílcar Cabral de imediato dedicou-se à formação das primeiras unidades do Exército Popular. Nino Vieira comunicara que as tropas portuguesas tinham abandonado a ilha do Como. A descrição de Cabral aparece com transes de glória e bastante falsificada, hoje há inúmera documentação sobre tudo o que ali se passou. Cabral apresenta o Como como uma luta entre David e Golias, guerrilheiros indómitos a travar tropas altamente preparadas, numa atmosfera apocalíptica. Escrever um relato destes em 1982, sabendo que há o contraditório, é uma quase aberração. Paciência, está escrito.

As FARP começam a ser enquadradas, chegaram novos equipamentos, surge o hino do PAIGC, com música de um compositor chinês. Ficamos depois a saber que o casamento de Cabral com Maria Helena chegara ao fim, Maria Helena vivia em Rabat e aderiu à Frente Portuguesa de Libertação Nacional, com Humberto Delgado à frente. 

Na região do Boé ia intensificar-se a luta armada. Na fronteira Norte, em Sambuiá, o PAIGC implantou um santuário. No Senegal as hostilidades do Movimento de Libertação da Guiné ainda eram notórias. No relato de Cabral, o encontro de Amílcar com Senghor abriu as portas do Senegal. A guerra alastrou: em Quínara, no Corubal, em Porto Gole. Foram criados os armazéns do povo. As escolas no mato tornaram-se numa realidade.

(Continua)
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7228: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (3): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (1)

Vd. último poste da série de 4 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7223: Notas de leitura (165): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4137: PAIGC: Congresso de Cassacá, 13-17 Fev 1964: A 15 km, a sul de Cacine: o depoimento de Luís Cabral (Carlos Silva)

PAIGC > Documentos > "Amílcar Cabral e outros companheiros, a bordo de uma canoa, a caminho do I Congresso do PAIGC, Cassacá, 1964. Fotografia de Luís Cabral. [05359.000.020] · Documentos Amílcar Cabral (12/23)" (*).

Foto (e legenda): © Fundação Mário Soares > Dossiers >
Guiledje · Simpósio Internacional · Bissau, Guiné-Bissau · 1 a 7 de Março de 2008 > Fotografias (com a devida vénia...)

Sublinhados a vermelho de Sul para Norte temos: 1 - ilha de Canefaque; ¸ 2 – Cassabetche; 3 – Campeane. O ponto representa Cassacá; 4 – Cameconde; 5 - Cacine .

Sublinhados a vermelho de Sul para Norte temos: 1 – Campeane; 2 – Campo, 3 – Cassacá no rectângulo; 4 - Cabonepo.

Infografia: Carlos Silva (2009).


1. Mensagem do Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Farim e Jumbembem, 1969/71), que esteve recentemente na Guiné-Bissau na qualidade de Presidente da Assembleia Geral da Associação Ajuda Amiga:


Amigos
Luís, Briote e Carlos Vinhal

A propósito do Post 4122 (*), sobre a localização onde foi realizado o 1º Congresso do PAIGC, segue uma transcrição de excertos do Livro de Luís Cabral – Crónica da Libertação (LIsboa: O jornal, 1ª edição 1984(, da qual resulta de forma inequívoca onde foi efectivamente realizado o Congresso, que foi a sul de Cacine em em Cassacá.

Podem, assim, publicar o artigo, enquanto está a passar o mencionado Post 4122, para melhor esclarecimento dos nossos camaradas bloguistas e outros leitores do blogue.
Com um abraço

Carlos Silva



Assunto - Local e realização do “Congresso do PAIGC algures nas proximidades de Cassacá”

A propósito do Post 4122 (**), sobre a realização do 1º Congresso do PAIGC realizado nos dias 13 a 17 de Fevereiro de 1964 no Sul da Guiné e que erradamente vem indicado numa infografia, relativa à Operação Tridente (In: Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso: Os Anos da Guerra Colonial, Volumne 5: 1964 - Três teatros de operações. Lisboa Quidnovi. 2009. 17), como tendo sido realizado num local também chamado Cassacá, na Ilha do Como.

Para melhor elucidação dos camaradas bloguistas e outros leitores, na verdade, o 1º Congresso do PAIGC teve lugar numa mata próxima da tabanca de Cassacá, situada a 15 kms a Sul de Cacine, junto à estrada que segue de Cacine a Campeane, entre Cabonepo (a norte) e Campo (a sul).

Para confirmar que de facto assim foi, não há nada como ir à fonte verdadeira e não errada, para no futuro não suscitar dúvidas, caso o erro acima invocado não seja corrigido de forma inequívoca e, como refere o José Colaço, para os nossos vindouros historiadores ou não, que venham a ter algum interesse em estudar o tema que é designado por “Guerra Colonial”, não sejam confrontados com uma situação errada, pois estou convicto que não foi intenção dos autores, que conheço pessoalmente, fazer passar tal mensagem deliberada e conscientemente, na medida em que deve ter havido um mero lapso.

Deste modo, sobre a realização e local do citado congresso, Luís Cabral, testemunha e protagonista do mesmo, no seu livro Crónica da Libertação, refere:

Antecedentes ao Congresso – Visita de Luís Cabral à zona de Quitáfine e Tabanca de Cassacá.

“… A primeira área visitada por mim foi a zona de Quitáfine que fazia fronteira com a República da Guiné. Foi em fins de 1963….. pág 154

… Depois deste encontro com as populações iniciámos a marcha para a base central desta zona, em Cassacá, que ficava a cerca de 30 kms da fronteira. Foi a minha primeira grande marcha… pág 155

… Em Cassacá, esperava-me o comandante do sector, Manuel Saturnino. Com 19 anos de idade, era um dos mais jovens chefes da guerrilha…. Pág 155

A sede do posto administrativo colonial estava em Cacine, pequeno centro comercial e porto para barcos de cabotagem. Em Cacine fora instalado o primeiro quartel das forças coloniais que, pouco antes da minha visita, e com o desenvolvimento da luta, tinham feito um novo acampamento no pequeno porto de Gadamael, mais ao norte….pág 156

… A base, ligeiramente afastada da tabanca de Cassacá, estava bem protegida por grandes árvores que também lhe asseguravam a frescura e a tranquilidade das florestas guineenses.

Antes da nossa luta, a penetração do homem em muitas florestas era proibida: consideradas sagradas segundo a tradição, e nelas viviam, os irãs ou deuses da floresta… pág 156

… A figura predominante da vida militar na base de Cassacá, era dum antigo cabo do exército colonial, a quem os camaradas chamavam de “Antigamente”… pág 157

… A visita a Quitáfine foi muito proveitosa para mim….

… Foi com certa pena que deixei a base de Cassacá e tomei o caminho de regresso… pág 158

… As informações recolhidas em Quitáfine, enriquecidas pelos combatentes chegados das frentes, levaram o Amilcar à conclusão de que era necessária uma reunião geral dos quadros responsáveis do Partido, para se poder discutir e aprofundar esta grave questão, de maneira a tirar dela todas as lições para o futuro.

Os camaradas aceitaram imediatamente a minha proposta para que a reunião se realizasse numa área libertada da Guiné, para que o seu impacto fosse maior junto das nossas populações…. Pág 161



- Face às informações e proposta de Luís Cabral foi deliberado a realização e local do Congresso - Fevereiro de 1964 deslocação para o local do fórum:

“… Preparámo-nos para a partida. Desta vez a viagem realizou-se numa embarcação a motor que havia pertencido a uma empresa colonial de Bissau e que, depois de desviada por militantes do partido, passou a chamar-se “ Unidade”.

Saímos de Boké, de maneira a chegar ao sector de Quitáfine de noite e podermos, já com a maré alta, desembarcar na ilha de Canefaque…pág 162

Às primeiras horas da noite, chegámos a a Canefaque. O barco acostou mesmo ao lado da pequena base encarregada da vigilância da costa. O chefe da base informou-nos, logo após o desembarque, que os responsáveis do Partido só nos esperavam no dia seguinte. Em presença do Amilcar, que pela primeira vez chegava àquele sector, todos falavam em voz baixa e com ar conspirativo…

Avisámos o chefe da base que queríamos seguir para Cassacá desde que a escolta estivesse pronta. Pág 162

… Estava uma bela noite de Fevereiro. Caminhávamos sem pressas. Envolvia-nos um silêncio tranquilizante, cortado de tempos a tempos pelo grito de um animal de mato. O Amílcar, o Aristides e eu íamos completamente distraídos, procurando andar aos passos cadenciados dos combatentes que nos precediam….pág 163

O porto de embarque para Cassabetche, não estava muito longe da base e, em pouco tempo, chegámos e sentámo-nos para esperar a canoa…pág 163

… Pouco depois vieram avisar-nos de que a canoa encontrava-se na outra banda. Precisamente porque só nos esperavam no dia seguinte….pág 163

… O Amilcar não gostou deste contratempo, que vinha provar uma falta de coordenação nos preparativos dessa importante missão…pág 163…


“ … O Renascimento do PAIGC

Andávamos a passo acelerado, quando, pouco depois, passávamos ao longo da tabanca de Cassabetche, a caminho de Cassacá… pág 164

… O nosso grupo ia aumentando à mediada que nos aproximávamos de Cassacá.. pág 164…

A pequena tabanca de Cassacá, destroçada pela aviação e ressurgida nas gentes que a habitavam, estava em festa! Viam-se pessoas saindo dos cantos da floresta, enquanto outras passavam na estrada e se detinham para ver e saudar o Secretário-Geral do Partido. Caminhávamos em direcção ao local onde ia realizar-se a nossa reunião, deixando a estrada e continuando por um pequeno trilho perfeitamente escondido pelas árvores. Ao aproximar-nos da base, o silêncio era impressionante. Os sons variados saídos habitualmente dos pontos onde se encontravam os homens da guerrilha com elementos do povo, tinham-se apagado completamente como por encanto.

Chegámos à entrada da base….

Depois desta saudação colectiva, o Amilcar, seguido do Aristides e de mim avançou em direcção aos camaradas vindos das várias zonas do país. O abraço do PAIGC, de cada um dos lados do ombro, marcou o reencontro, naquele canto libertado da nossa terra, do Secretário-Geral do Partido, com os jovens a quem confiara a grande responsabilidade de estar à frente das nossas populações, na primeira fase da luta pela independência, Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Chico Mendes e Rui Djassi, eram os principais responsáveis de entre todos esses combatentes. À parte Nino Vieira, que ainda não chegara, Vitorino Costa era o ausente, o único dos quadros superiores da guerrilha que tinha tombado na primeira fase da mobilização e preparação para a luta armada….

Pág 165

… O Amílcar foi reconduzido com grande ovação nas suas funções de Secretário-Geral do Partido.

Encontrávamo-nos no fim do terceiro dia de trabalhos, a 15 de Fevereiro de 1964… pág 174

… Às 6H00 da manhã do dia dezasseis, o Amilcar deu por terminados os trabalhos desta ultima sessão…pág 180

… Convencemo-lo a dar por terminados os inquéritos e a realizarmos a sessão de encerramento do Congresso naquela manhã, para podermos deixar Cassacá. Com efeito, a nossa reunião prolongara-se muito mais do que o previsto. A menos de 15 quilómetros do quartel de Cacine, perto da fronteira, onde o inimigo tinha vários agentes, era imprudente continuarem ali reunidos os principais responsáveis do Partido… pág 185

… À partida, o povo de Cassacá, os combatentes e os elementos da população que os acompanharam, todos gritavam com força e entusiasmo renovado, vivas ao PAIGC e ao seu Secretário-Geral, vivas ao I Congresso do nosso grande Partido…pág 187

In, Cabral, Luís – Crónica da Libertação, O jornal, 1ª edição, 1984.


Vd também: Aristides Pereira, Guiné-Bissau e Cabo Verde – Uma luta, um partido, dois países – Notícias Editorial pág 172 a 176

Do atrás transcrito, resulta claramente que o designado “Congresso de Cassacá” foi realizado nas matas próximas da tabanca de Cassacá a menos de 15 kms a sul de Cacine.


Massamá, 3 de Abril de 2009

Carlos Silva

PS - Para se aperceberem da localização, inserem-se acima dois recortes dos respectivos mapas
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 24 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3354: PAIGC - Docs (1): Comunicado de 27 de Abril de 1964 sobre a vitória na batalha do Como (Amílcar Cabral)

(**) Vd. poste de 1 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4122: PAIGC, 1º Congresso, 13-17 Fev 64: Onde fica(va) Cassacá ? Não na Ilha do Como, mas a sul de Cacine (Luís Graça)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4122: PAIGC, 1º Congresso, 13-17 Fev 64: Onde fica(va) Cassacá ? Não na Ilha do Como, mas a sul de Cacine (Luís Graça)

Excerto de um infografia, relativa à Operação Tridente. Reproduzida com a devida vénia. In: Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso: Os Anos da Guerra Colonial, Volumne 5: 1964 - Três teatros de operações.Lisboa Quidnovi. 2009. 17.


1. Os autores, os nossos estimados Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso, colocam, erradamente, a realização do 1º Congresso do PAIGC, em Cassaca, na Ilha do Como, entre S. Nicolau (a sul) e Cachil (a norte) (Vd. bandeirinha vermelha)...

Esta localização está errada: era impossível, ao jovem PAIGC, por razões materiais - logística, segurança, comunicações, etc. - reunir os seus dirigentes e quadros no coração do Como, em pleno auge da Op Tridente... Seria um suicídio!... Já discutimos este ponto, internamente, através de troca de mails - eu, o José Colaço, o Mário Dias, o Santos Oliveira, o Abreu dos Santos...

Acontece que há várias povoações com este topónimo: além de Cassacá (ou Cassaca) na Ilha do Como (vd. carta da Ilha de Caiar), há outra Cassaca na ilha de Pecixe (vd. carta de Caió, ainda não disponível 'on line')) e uma terceira, pelo menos, a sul de Cacine, entre a margem esquerda do Rio Cacine e a fronteira com a Guiné-Conacri, na picada que vai de Cacine a Campeane, entre Cabonepo (a norte) e Campo (a sul) (vd. carta de Cacine).

Agradeço ao José Colaço ter-me chamado a atenção para este erro que vem reproduzido na infografia acima reproduzida, e que me provocou, pelo menos a mim, uma grande confusão... O Congresso do PAIGC, a realizar-se em Cassaca, na Ilha do Como, entre 13 e 17 de Fevereiro de 1964, só poderia ser pura propaganda, para consumo externo, por parte do PAIGC e do seu líder máximo, Amílcar Cabral...

quinta-feira, 19 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4052: Por que é que, no auge da Op Tridente, não se decapitou o PAIGC em Cassacá, em Fevereiro de 1964 ? (José Colaço)

1. Comentário de José Colaço (*) ao poste de 18 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4047: Resumo das actividades do Pel Mort 912 (OUT63/OUT65) (Fotos) (Santos Oliveira)

Cachil, Como ou Komo, e como eu conheci aquela estância [turística], seu residente entre 23/01/64 e 27/11/64. Onde a ementa nos primeiros 55 dias foi, todos os dias, ração de combate - carne de vaca à jardineira ou feijão branco com chouriço -, para não falar da água que nos primeiros dois dias foi racionada (0,5 litro por dia), as noites mais longas que passei, cerca de 90, a dormir; não a passar sem mosquiteiro, os mosquitos de noite atacavam em força, repelentes não havia, o único meio de protecção que tinha algum efeito era o pano da tenda de campanha, porque cobertores, roupa, aquele ferrão longo e pontiagudo furava tudo até encontrar o pêlo do militar.

As fotos são-me familiares.

Acabo de ver na RTP1 o programa do Joaquim Furtado, A Guerra [, 2ª Série, 11 episódios, às 4ªs feiras]. O congresso do PAIGC realizado em Cassacá, Ilha do Como, 27 de Abril de 1964.

Interrogo-me, depois da Operação Tridente, com tantos meios envolvidos, segundo se consta ter sido a maior operação realizada na guerra do ultramar e com um final feliz para as nossas tropas.

Depois do falhado golpe a Cassacá no início de Abril, nunca mais o comandante chefe general Arnaldo Schultz e o seu ajudante de campo brigadeiro Fernando Louro terem, ao que parece, esquecido completamente toda aquela zona , desde Cassacá, Cauane e Caiar. Chegando ao ponto a partir de certa altura, o comandante da Companhia de Caçadores 557 sediada no subsector do Cachil receber ordens do comando de sector Catió, de BCAÇ 619, para parar com as explorações à mata do Cachil. (***)

Termino, que isto dava era um poste muito extenso e não um comentário.

Um alfa bravo.
Colaço

PS - Uma questão, estes inimigos [mosquitinhos] não terão também culpas no cartório com a sua contribuição na morte de ex-combatentes, embora a longo prazo?
___________

Notas de L.G.:

(*) (*) José Colaço, ex-Sold de Trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65

Vd. postes de:

2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2912: Tabanca Grande (73): José Botelho Colaço, ex-Soldado de Trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2970: Ilha do Como, Cachil, Cassacá, 1964: O pós-Operação Tridente (José Colaço)

9 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3287: Controvérsias (2): Repor a realidade vivida, CCAÇ 557, Cachil, Como, Janeiro-Novembro de 1964 (José Colaço)

19 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3334 O meu baptismo de fogo (14): Cachil, Ilha do Como, meia-noite, 25 ou 26 de Janeiro de 1964 (José Colaço)


(**) (2) SSobre a Op Tridente (ou Batalha do Como), vd. postes de:

28 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2892: A verdade e a ficção (2): Ilha do Como, Op Tridente: Queres vender a tua água ? Dou-te 100, dou-te 200 pesos (Anónimo)

27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2889: A verdade e a ficção (1): Op Tridente, Ilha do Como, Jan / Mar 1964 (Mário Dias)

23 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2874: Um dia na Ilha do Como: Operação Tridente, Fevereiro de 1964 (Valentim Oliveira, CCAV 489/BCAV 490)

15 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)

15 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2352: Ilha do Como: os bravos de um Pelotão de Morteiros, o 912, que nunca existiu... (Santos Oliveira)

23 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2375: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (8): A Batalha do Como (Mário Dias / Santos Oliveira)

17 de Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como

12 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)

1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1907: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (2): A libertação da Ilha do Como (A. Marques Lopes / António Pimentel)

17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias

17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXX: Histórias do Como (Mário Dias)

Vd. ainda os vídeos e documentários da RTP, sobre a Operação mais mediática da guerra da Guiné, no sítio Guerra Colonial (1961-1974) > Multimédia > Operações > Operação
Tridente


(***) Sobre a importância do Congresso de Cassacá, o I Congresso do PAIGC, realizado de 13 a 17 de Fevereiro de 1964, a 15 Km da Ilha do Como, no auge da Batalha do Como (designação usada pelos guerrilheiros) ou da Op Tridente (nome de código dada à operação pelas NT), dv. documentário (em francês), dsiponível em Guerra Colonial (1963-1974) > Multimédia > Vídeos e documentários da RTP > PAIGC - Documentário francês

(...) "O presente documentário trata, de uma forma muito eficaz, toda a estratégia de luta do PAIGC a partir de 1964. Com efeito, tendo como base as declarações de Amílcar Cabral em três blocos, o documentário sublinha e enfatiza com imagens, as grandes linhas de força saídas do Congresso de Cassacá (na proximidade da Ilha de Como e da fronteira com a Guiné-Conacri) realizado em Fevereiro de 1964.

"Este Congresso foi a primeira grande reunião do PAIGC com a presença da quase totalidade dos quadros responsáveis. A grande importância das decisões ali tomadas teve a ver, especialmente, com:

"- a necessidade de definir muito claramente a subordinação da estrutura militar ao poder politico; Amílcar Cabral fez sempre declarações em diferentes ocasiões afirmando explicitamente que o PAIGC era um partido de militantes armados e não de militaristas;

"- a criação de uma nova estrutura militar operacional, os "bigrupos", com uma chefia bicéfala com um comandante militar e um comissário politico; estas unidades eram constituídas por 40 elementos bem armados e em constante movimento, dando assim início a fase da guerra de movimento;

"- a orientação para a organização das zonas libertadas, dotando-as de recursos básicos essenciais, nomeadamente de saúde, educação e justiça, que foi, evidentemente, o projecto mais importante e conseguido para o controlo e apoio das populações" (...).

domingo, 15 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2948: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Manuel dos Santos, 'Manecas', um dos últimos históricos do PAIGC


Vídeo (4' 18''): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Vídeo alojados em: You Tube >Nhabijoes

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > Simpósio Internacional de Guileje (1 a 7 de Março de 2008) > Painel 1 > Guiledje e a Guerra Colonial/Guerra de Libertação > Dia 4 de Março > Moderador: João José Monteiro (Universidade Colinas de Boé) > Excerto da comunicação de Manuel Santos (guineense, ex-comandante militar do PAIGC) (*): "Amílcar Cabral e a componente militar do PAIGC: achegas para a compreensão dos meandros estratégicos e tácticos da guerra de libertação nacional".

Sinopse: Neste microfilme, Manuel dos Santos começa por referir a difíceis condições em que arrancou a luta pela independência, liderada por Amílcar Cabral e o PAIGC: um país de 600 mil habitantes, com um território plano, sem montanhas, recortadado por inúmeros cursos de água, sem vias de comunicação terrestre, com uma multiplicidade de etnias, com uma população 99% analfabeta, sem consciência nacionalista, não permitia predizer o sucesso que a luta de guerrilha rapidamente alcançou a partir de 1963... Mais, diz taxativamente que "nenhuma guerra revolucionária foi iniciada em condições tão difíceis"...

Evoca a seguir o início da preparação da luta, com a instalação em Conacri do secretariado do PAIGC, em 1960, e o envio para a China, para formação política e militar, de uma primeira leva de jovens quadros dirigentes (entre eles, o 'Nino' Vieira). A luta armada começa no início de 1963, conduzind0 rapidamente à libertação de 15% do território (segundo a própria imprensa portuguesa, de 1964 - creio que o autor cita o jornal República, que não era propriamente um orgão de comunicaçãop social afecto ao regime de Salazar, pelo contrário estava ligado a alguns fracções da oposição).

Depois da mobilização dos indispensáveis recursos humanos, técnicos e fianceiros (o dinheiro, as armas e as munições vieram de fora; os homens foram recrutados, em condições difíceis, no interior...), o PAIGC é confrontado com os primeiros sucessos no campo militar, no sul e a na zona leste, ultrapassando as expectativas e as próprias estruturas organizativas do PAIGC, cujos dirigentes se viram desautorizados, nalguns casos e em certas zopnas, por pequenos senhores da guerra, transformados em déspotas, actuando por sua conta e risco, e que foram autores de abusos e até de "crimes abomináveis" contra a população sob o seu controlo...

O PAIGC vê-se assim obrigado a organizar o seu primeiro Congresso, em Fevereiro de 1964, em Cassacá, no sul, na região de Tombali. É aqui se definem as estruturas político-militares e a administração civil, subordinando-se os militares aos políticos. É também nesta altura que se criam as FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo). Os abusos e crimes são severamente julgados e punidos. Manuel dos Santos não o diz, mas terá havido julgamentos revolucionários e fuzilamentos em Cassacá...

_____________

Nota de L.G.:

(*) Nota biográfica: Manuel dos Santos (Manecas), nasceu em 1942 em Cabo Verde. Recebeu formação militar em Cuba e na URSS. Foi o primeiro a aprender a manobrar os poderosos mísseis Strella, a arma que tantos problemas trouxe às NT. Um dos primeiros disparos ocorreu em 25 de Março de 1973 e resultou no abate do Fiat G91. A partir dessa data, a guerra nunca mais foi a mesma. A aviação deixou de bombardear a guerrilha com tanta regularidade e as evacuações passaram a ser mais difíceis. Depois da Independência foi ministro da Informação, dos Transportes e do Equipamento Social.

Fonte: Guiné, Ir e voltar - Tantas vidas, blogue de Virgínio Briote > 03/02/08 > PAIGC: Alguns dos protagonistas conhecidos > Manuel dos Santos

Vd. também poste de 14 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2939: No 25 de Abril eu estava em... (1): Guidage (João Dias da Silva, CCAÇ 4150, 1973/74)

(...) "1 de Julho de 1974 – Encontro na zona da bolanha de Nenecó (junto da fronteira com o Senegal, a norte de Bigene) entre PAIGC e COP3.
"EM 011000JUL74, CMDT CE 199/E/70 QUECUTA MANÉ E SEUS COMISSÁRIOS POLÍTICOS DUKE DJASSY E MANUEL DOS SANTOS (MANECAS) ACOMPANHADOS DE ELEMENTOS ARMADOS DO PAIGC ENCONTRARAM-SE COM O CMDT, OFICIAIS E SARGENTOS DO COP3, NA REG. DA BOLANHA DE NENECÓ, ONDE FORAM DEFINIDOS NOS SEGUINTES TERMOS A SUA LINHA DE CONDUTA": (...)

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2892: A verdade e a ficção (2): Ilha do Como, Op Tridente: Queres vender a tua água ? Dou-te 100, dou-te 200 pesos (Anónimo)


Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > 1964 > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) . Croquis executado pelo Mário Dias.

"A designada Ilha do Como é, na realidade, constituída por 3 ilhas: Caiar, Como e Catunco mas que formam na prática um todo, já que a separação entre elas é feita por canais relativamente estreitos e apenas na maré-cheia essa separação é notória. Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963. As tabancas existentes são relativamente pequenas e muito dispersas. Possui numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima Sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.

"Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha), a Cachil. A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou por outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

"Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperioso a recuperação do Como. Foi então planeada pelo Com-Chefe a Operação Tridente na qual foram envolvidos numerosos efectivos, divididos em 4 Agrupamentos (...), num total de cerca de 1200/1300 homens".

Fonte: Mário Dias >
Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias) (15 de Dezembro de 2005)


Guiné > Regiãod e Tombali > Ilha do Como > 1964 > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) > LDM desembarcando as NT.

Fotos: © Mário Dias (2005). Direitos reservados


1. Queres vender a tua água ? Dou-te 1000$00, 2000$00... Alguém que esteve na Ilha do Como, pelo menos logo nos primeiros dias da Op Tridente, mais exactamente em 23 de Janeiro de 1964, deixou escrita esta frase, num comentário a um poste já antigo, publicado na 1ª série do nosso blogue (1).

Não sabemos quem é o autor, por que não deixou nem o nome nem o endereço de correio electrónico. Vamos considerá-lo como um combatente anónimo. Era, pela descrição que nos faz do seu 1º e 2º dia no Como, um soldado de transmissões, da CCAÇ 557, comandada pelo Cap Ares Colaço. A referência que faz à escalada do preço da água não deixa de ser altamente premonitória e simbólica: já o Mário Dias nos tinha aqui descrito, com detalhe e dramatismo, o suplício que foi, durante a Op Tridente, a falta de água potável...Recorde-se que estávamos em plena época seca, e que grande parte da Ilha do Como é salinizada... Recorde-se igualmente que na época 100 ou 200 pesos era já uma quantia muito razoável, era o equivalente ao valor pago pela alimentação de cada militar durante 4 ou 8 dias (24$50 por dia!)...

É um testemunho singelo, escrito num português esforçado (que teve de levar, naturalmente alguns retoques), de um homem que deve andar hoje pelos seus 66/67 anos. Até pela sua vontade em participar no nosso blogue e comunicar a sua experiência pessoal, ele merece maior visibilidade, além do nosso aplauso. Pode ser que, com ísso, ele queira dar a cara e prosseguir o seu depoimento. E sobretudo pode (e deve) abrir o caminho a outros depoimentos, de outros camaradas que participaram na mais longa (e mais dura) operação militar realizada no CTIG.

Recorde-se, por outro lado, que a Batalha do Como (sic) foi transformada num mito pela propaganda do PAIGC , falando-se em 650 baixas, entre a tropa portuguesa, cujos efectivos totais eram calculados em 3 mil homens, dos quais dois mil seriam tropas de elite, transferidas de Angola (sic) (Cabral, A. - A batalha do Como e o congresso de Cassaca. In: Obras escolhidas de Amílcar Cabral: Unidade e Luta II: A prática revolucionária. ed. lit. Mário de Andrade. Lisboa: Seara Nova, 1978. Volume II, pp. 41-44)


2. Depoimento de um combatente anónimo: Ilha do Como, Operação Tridente

No dia 23/01/1964 duas LDM, apoiadas por uma pequena corveta da marinha, desembarcaram na Ilha do Como, mata do Cachil, a Companhia de Caçadores 557. O comandante era o capitão Ares e não Aires. Desembarcou também o 7º Destacamento de Fuzileiros, do tenente Ribeiro Pacheco.

O 1º obstáculo foi a maré vazia, o lodo… Os primeiros 3 fuzileiros conseguiram alcançar a terra mas os seguintes ficaram atolados no lodo até ao tronco. Tiveram que ser puxados com uma corda para Botes de Borracha. A seguir, esses 3 fuzileiros em terra, com a ajuda de facas de mato, cortaram uns troncos e rama de tarrafo e lá se conseguiu fazer todo o desembarque. A sorte foi não sermos atacados naquela situação, mas isso veio logo a seguir.

Todos em terra, antes de nos embrenharmos na mata, ouvimos as seguintes palavras, vindas de um pequeno vaso de guerra através de um megafone:
-Camaradas, colegas e amigos, para a frente é que é o caminho, não perdoar!

Cerca de 150 metros, mais ou menos, à frente, uma ponte que era um autêntico baloiço. Um a um todos passaram mas aí, a uns 300 metros, apareceu uma bifurcação de dois caminhos e em cima de uma árvore um posto de sentinela mas sem ninguém. Aí nova pausa devido ao inimigo ter ateado lume ao capim. Este trajecto foi sempre apoiado por um avião TC e na maior parte do percurso por dois.

Houve durante o percurso alguns tiros vindos da mata mas isolados e também nos dava a ideia de serem um pouco distantes. Com estes contratempos todos a noite aproximava-se e o apoio aéreo terminava. Lá conseguimos chegar à zona onde o capim tinha ardido com a grande mata do Cachil à vista. Aí a uns 400 metros, mais ou menos, toca toda a malta a cavar abrigos, com a excepção do tenente Pacheco com a sua metralhadora MG 42 e o capitão Ares com a G3, e que nos iam dizendo:
- Trabalhem, trabalhem, que estão aqui 2 homens que vos guardam.

Na manhã seguinte, 24/01/1964, cerca de 80 homens, entre fuzileiros e malta da CCAÇ 557, fizeram batida à pequena mata do Cachil: nada a registar em termos de guerra. Mas havia um grande problema: ÁGUA?!... E então trata de cavar um buraco e aí com 1,5 a 2 metros a água apareceu. Opção correcta: filtrar e desinfectar. Mas, ao bebê-la, parecia autêntico petróleo, não lavava, não tirava o sabão, ficava tudo gordurento.

Passado isto, eram 12 horas,já se notava em alguns militares princípios de esgotamento devido à sede e ao calor que era intenso, mas eis que cerca das 15 horas chega o helicóptero com o precioso liquido. Fez-se a distribuição, calhou meio-litro a cada um tudo, igual para todos. Nesse dia á agua subiu a um preço inacreditável. Pergunta:
- Queres vender a tua água ? Dou-te 1000$00, 2000$00.

Ninguém vendeu, terminada a distribuição, todos os camaradas foram descansar excepto os que estavam de serviço à segurança e eu e o meu colega, que o nosso trabalho era transmitir nova mensagem a pedir mais água munições e rações de combate.

Quando acabei de transmitir a mensagem HILARIANTE MAS AGORA, diz-me o capitão Ares Colaço:
-Deita-me aqui uns pingos de petróleo nas costas, que sempre refresca.

Mal acabei de tirar o primeiro saquinho, surge da pequena mata do Cachil uma rajada de tiros a espicaçar a zona onde nós estávamos. Bem, foi tal a pressa a rastejar até ao abrigo que o capitão nem dos óculos se lembrou. Metidos nos abrigos aguentámos o tiroteio que terminou quase de noite. (...)

_______

Nota dos editores:

(1) Vd. post de 17 de Novembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como

Fonte: Extractos de Diário do Alentejo, de 23 de Abril de 2004 > Crónica do Soldado 328, por Alberto Franco.(Já não disponível na Net, na data de hoje, no antigo sítio do Diário do Alentejo). Reprodução com a devida vénia.


(...) O alentejano Joaquim Ganhão foi um dos milhares de portugueses que lutaram em África, nos anos da Guerra Colonial. Nas dificuldades e sustos que viveu em terras da Guiné – participou na célebre Operação Tridente, em 1964 – certamente muitos outros ex-militares se reconhecem. Quando passam 30 anos sobre o 25 de Abril, é oportuno recordar a longa guerra, unanimemente considerada uma das principais causas da revolução.

(...) Tridente da morte

Mas a emboscada no Oio-Morés foi uma brincadeira, comparada com o que veio a seguir. O Batalhão de Cavalaria 490, e com ele Joaquim Ganhão, foi um dos participantes na operação Tridente, uma das mais aparatosas ofensivas portuguesas na Guerra Colonial. Denominada Tridente porque envolvia a marinha, o exército e a força aérea, a operação visava ocupar as ilhas do Como, Caiar e Catunco, no Sul da Guiné, onde os combatentes do PAIGC dispunham de importantes bases. Ali se movimentava o astuto comandante Nino Vieira, formado nas técnicas da guerrilha pela Academia Militar de Pequim, que teria no Como cerca de 300 homens, incluindo militares da Guiné-Conacri. Um dos objectivos da missão consistia em conquistar o apoio da população das ilhas, que os guerrilheiros controlavam:
- Em todas as tabancas (aldeias tradicionais) do Como, se viam retratos de Amílcar Cabral-, observa Joaquim Ganhão.

A operação Tridente iniciou-se em 15 de Janeiro de 1964. O 1º cabo Ganhão só soube o que o esperava quando se viu a bordo de uma lancha LDM, dos fuzileiros. Através das bolanhas, ladeadas por uma vegetação densa e asfixiante, o tarrafo, a Companhia 489, comandada pelo capitão Pato Anselmo, avançou até à ilha de Catunco. Ganhão permaneceu ali mais de dois meses, "entrincheirado num buraco, juntamente com dois companheiros, agarrados às G3, com as balas do inimigo a passarem-nos rente". Quem disparava?
- Nenhum de nós sabia. Os tiros vinham da mata, onde os guerrilheiros estavam bem escondidos -. Por isso, sair do buraco só em último caso:
- Tínhamos o exemplo de um companheiro que se levantou para beber uma pinga de água e foi atingido por um tiro no queixo.

Quando se iniciou a segunda fase da operação, foi necessário deixar os abrigos e patrulhar as ilhas:
- Saíamos aos ziguezagues, em grupos de três. Depois deitávamo-nos ao chão e saíam outros três. E isto sempre aos tiros. Foi numa destas acções que Joaquim Ganhão perdeu o seu amigo Henrique Pinto, o primeiro militar de Moura a tombar na guerra:
- O Henrique, que pertencia à Companhia 487, seguia numa patrulha, formada em leque. Ele, que estava numa das pontas, avançou demais e foi capturado, às três da tarde do dia 24 de Janeiro -. Ganhão e outros tinham ido buscar mantimentos à base logística da operação, instalada numa praia. Aí viu chegar um helicóptero com o cadáver de Henrique, resgatado pelos fuzileiros. O choque foi terrível. Quarenta anos passados, ainda hoje a voz de Ganhão se embarga quando fala do caso:
- Podia ter sido eu. Tive sorte, não calhou.

Os aviões F-86 e T-6 flagelavam as matas do Como com napalm, as granadas explodiam a toda a hora, mas os resultados práticos da operação tardavam em ver-se. A única evidência era o sofrimento dos militares portugueses:
- Bebia-se qualquer água e a alimentação resumia-se a rações de combate-, conta o 1º cabo Ganhão - Comemos carne fresca uma única vez, quando os fuzileiros abateram algumas vacas. Não admira que durante a operação Tridente 193 militares tenham sido retirados do teatro de guerra, por motivo de doença.
Setenta e um dias depois, a missão é considerada finda. As estatísticas apontavam 76 guerrilheiros mortos, 15 feridos e nove detidos. Do lado português contaram-se nove mortes e ferimentos em 47 soldados. Foram disparadas 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia e 550 granadas de morteiro. Os militares aliviaram a tensão consumindo 15 500 garrafas de cerveja e fumando 10 100 maços de tabaco. Números que não maquilham o insucesso da operação. A última palavra pertenceu à guerrilha, que continuou a servir-se do Como, só abandonando a região quando os seus interesses se transferiram para outros locais. (...)