Mostrar mensagens com a etiqueta Cobumba. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Cobumba. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 22 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15888: (Ex)citações (305): A nossa Força Aérea viveu alguns dias de grande confusão com o aparecimento dos mísseis Strela (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493)

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 21 de Março de 2016:

Amigo Carlos
Faço votos para que te encontres de boa saúde junto dos teus, pois se há coisas boas na vida a saúde é a principal.
A propósito do comentário feito pela camarada Manuel Joaquim ao último poste(*) que enviei, em que me pedia para esclarecer melhor o que se tinha passado para que os nossos feridos naquela tarde estivessem em Cobumba à espera do heli para serem evacuados e ele não apareceu, entendi que talvez fosse melhor enviar mais um poste sobre o assunto para esclarecer melhor o que se passou naquele dia.

Depois do almoço, alguns camaradas nossos que pertenciam a dois pelotões da nossa Companhia e a uma Secção de Armas Pesadas, que estavam instalados junto às primeiras tabancas logo a seguir ao rio Cumbijã, vinham a fazer o trajeto de Unimog 404 para o local onde “moravam” os outros dois grupos da Companhia, o Comando e quase toda a formação, que ficava junto a outras tabancas a poucas centenas de metros.

Já perto do arame que circundava o sítio para onde se deslocavam, junto a umas casas que a nossa Companhia estava a construir para a população, rebentou uma mina anticarro, de que resultaram quatro feridos a precisar de ser evacuados.

O estado em que ficou a viatura que acionou a mina

Feito o pedido de evacuação, como era normal, fomos informados que a mesma ia ter lugar, os feridos foram levados e colocados em macas no local onde os helicópteros costumavam aterrar, isto por volta das duas da tarde. O tempo foi passando e o barulho do heli, que todos esperávamos, não se fez ouvir. Já quase noite, recebemos ordens para levar os feridos para Cufar pelo rio Cumbijã, o que viria a acontecer, viagem que para além do nosso pessoal em três sintex que tínhamos na Companhia, contou com o reforço dos fuzileiros que estavam no Chugué, não muito longe de Cobumba.

Já noite chegou a Cufar um Noratlas para fazer a evacuação. Dos feridos, alguns voltaram à Companhia, mas pelo menos um ficou tão maltratado que não mais voltou, não sei o que o futuro lhe terá reservado… Chamávamos-lhe periquito porque tinha uns meses a menos que nós na Companhia, mas poucos, camarada sempre bem disposto gostava de dizer que era o Trinitá Cowboy Insolente.

Perguntava o Manuel Joaquim qual a razão para que aquilo tenha acontecido, tal situação ficou a dever-se aos dias de grande confusão que a nossa Força Aérea estava a viver, com o aparecimento dos mísseis Strela que até então eram desconhecidos, pelo menos para muitos de nós que em tal nunca tínhamos ouvido falar.

Foram muitos os dias difíceis que vivemos em Cobumba, mas aquele foi o que mais impacto negativo teve. Para além dos feridos e da sua não evacuação, do ponto de vista psicológico foi arrasador, o que nos levava a perguntar, mas onde é que nós chegamos se já não podemos contar com uma evacuação se tal for necessário? …

Durante algum tempo não tivemos abastecimento de frescos por helicóptero como algumas vezes acontecia. Nesse período houve um dia em que uma das refeições foi arroz com marmelada…
Passado aquele tempo de maior confusão, as evacuações voltaram a ser feitas dentro do tempo normal.
Tivemos mais uma situação em que três camaradas nossos foram evacuados, dos quais dois viriam a falecer mas não foi por falta de apoio aéreo.

A guerra na Guiné, com o passar dos anos, sobretudo com a introdução dos Strela, sofreu uma alteração radical, o que leva alguns camaradas que por lá passaram antes de tal acontecer a ter alguma dificuldade em entender como tudo mudou desde o seu tempo. Mas é certo que mudou e muito!

Para além dos terríveis mísseis, quase todo o armamento do IN era melhor que o nosso, possuíam um canhão sem recúo que quando se ouvia a saída, o rebentamento já estava a acontecer. Nós tínhamos dois na Companhia que depois de lançarem algumas granadas ficavam a necessitar de reparação, eles tinham o RPG, nós tínhamos a Bazuca arma completamente ultrapassada, apenas dois exemplos.

Um dos motivos para que as coisas se tornassem tão complicadas naquele sítio, como noutros, foi porque enquanto alguns locais foram abandonados pelas nossas tropas, outros muito difíceis vieram a ser ocupados, aquele calhou-nos a nós. Era um local onde os homens novos durante dias não se viam e, quando estavam, com o aproximar da noite abalavam…

As pessoas mais velhas estavam sempre por ali, algumas delas tinham estado ao serviço do PAIGC como carregadores de material de guerra, recordo-me do Miranda que dizia ter ir de vez em quando ao Xitole levar material.

Havia várias crianças, o filho do chefe da tabanca andava na escola do PAIGC em Pericuto, povoação próxima de nós, não sei qual seria a frequência de alunos.

Os mais velhos, que moravam na tabanca, passavam muitos dos dias próximo de um abrigo existente debaixo de um mangueiro, situação que nos servia de aviso para o que estaria para acontecer. Se algumas vezes nada de anormal ocorria, outras era a confirmação, embora sem escolher horário…

António Eduardo Ferreira.
____________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 16 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15866: Blogoterapia (276): Porque continuamos a falar da guerra que vivemos na então província da Guiné? (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493)

Último poste da série de 29 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15810: (Ex)citações (304): Duas Actas e a mesma evidência: Não foram os soldados a falhar na Guerra da Guiné!... (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703)

quarta-feira, 16 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15866: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (11): Porque continuamos a falar da guerra que vivemos na então província da Guiné?

1. Em mensagem de ontem, dia 7 de Março de 2016, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) enviou-nos esta mensagem e reflexão:

Amigo Carlos
Faço votos para que te encontres de boa saúde junto dos que te são queridos.
Carlos, quero agradecer a mensagem que me enviaste quando do meu último poste, a propósito da minha saúde dizer-te que me sinto bem.
Há já muito tempo que não tenho publicado nada no meu blogue, vou publicar hoje um poste igual ao que te envio, fala da Guiné se quiseres publicar estás à vontade…
Recebe um abraço


MEMÓRIAS QUE ME ACOMPANHAM

11 - Porque continuamos a falar da guerra que vivemos na então província da Guiné?

Quando a minha Companhia esteve em Mansambo, três dos nossos camaradas ficaram cada um sem um pé, vítimas de rebentamento de minas, o que se for dito agora leva alguns a dizer ainda tiveram sorte ficarem só sem um pé, como se alguém com vinte e poucos anos que foi obrigado a deixar tudo e todos e ir para a guerra tivesse sorte em ficar apenas com um pé. Mas já ouvi…

Ou quando dois camaradas nossos em Cobumba morreram vítimas de uma mina levantada pelos nossos homens que viria a rebentar na nossa arrecadação, ou ainda num dos dias mais desmoralizadores que vivemos em todo o tempo de comissão, em Cobumba, quando quatro feridos estiveram várias horas esperando que o héli chegasse para fazer a evacuação para Bissau e o mesmo não chegou… mais tarde, com o tempo de comissão já terminado há muito, outro camarada viria a falecer já na cidade.

Quando alguém tenta explicar por que é que isso aconteceu, são alguns dos próprios que viveram essas situações que acham que isso é perder tempo, dizendo, são coisas que já não interessam. Pois não é esse o meu entendimento. Dar a conhecer o passado, neste caso o que vivemos na guerra, é sempre interessante. Se mais não for, para que aqueles que vierem depois de nós saibam o que nesse tempo aconteceu e porque aconteceu e, se possível contribuírem para que tal não volte a acontecer…

Se esse passado não for dado a conhecer aos mais novos que nasceram no tempo em que não é obrigatório ir à tropa, que aos cinco ou seis anos já usam o telemóvel e alguns até já mexem na Internet, que antes de nascerem os pais já tem um cuidado especial com eles. A resposta deles provavelmente seria, mas que atrasados que eles eram.

 Vítimas de uma emboscada

Não é novidade para ninguém, ou não deveria ser, que é muito importante arrumar o nosso passado, mas isso não implica esquecer. Sabendo de onde vimos, se mais não for, é sempre mais fácil decidir para onde queremos ir…

Tudo tem um tempo para acontecer. Havia um homem que andou cerca de três anos a colocar degraus para subir a um ponto muito alto onde ninguém antes tinha conseguido subir, faltava pouco para atingir o cimo, um dia, a morte chegou e não conseguiu aquilo porque tanto tinha lutado… Outro continuou o trabalho que há anos ele tinha começado, passados poucos dias chegou ao cimo, nesse dia fizeram uma grande festa e o seu nome ficou gravado para que todos soubessem quem foi o primeiro a chegar àquele sítio. Lamentavelmente esqueceram, que aquele só lá chegou porque outro durante muito tempo trabalhou para que isso fosse possível…

Por tudo isso é bom haver quem se preocupe em dar a conhecer o nosso passado, neste caso na guerra, sempre com o rigor possível, para que aqueles que vieram depois de nós possam saber as dificuldades porque passamos, se mais não fosse, só a ausência de familiares e amigos durante muitos meses, alguns, mais de dois anos naquela que devia e podia ter sido a melhor fase da nossa vida…

Viver num clima de guerra só por si era terrível, mas a esmagadora maioria dos que passaram pela Guiné teve que conviver com o sofrimento de camaradas feridos, quer em combate, vítimas de flagelações à distância ou das terríveis minas em que ficaram marcados para sempre. Outros, não resistiram ao sofrimento e mesmo ali a nosso lado acabaram por perder a vida.

Quando se fala nas migrações como está a acontecer nesta altura, faz-me lembrara uma frase que disse a alguns amigos quando cheguei da Guiné: se um dia houver guerra em Portugal só se não puder é que não abalo com a minha família para um país onde exista paz…

Creio, que se o sofrimento que advém da guerra a todos por igual chegasse não haveria na terra homem que em guerra pensasse.

António Eduardo Ferreira
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13653: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (10): Quando a manta passou a servir de colchão

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14300: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XXII: novembro de 1973: crescente africanização da guerra de contraguerrilha no setor L1: são a CCAÇ 12 e a CCAÇ 21, constituídas por militares do recrutamento local, quem se arrisca a ir à sempre temida região do Poindom / Ponta do Inglês


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > c. 1970/72 > Paisagem típica da bacia hidrográfica do rios Geba e Corubal.

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados.


1. Continuação da publicação da História do BART 3873 (que esteve colocado na zona leste, no Setor L1, Bambadinca, 1972/74), a partir de cópia digitalizada da História da Unidade, em formato pdf, gentilmente disponibilizada pelo António Duarte (*)

[António Duarte, ex-fur mil da CART 3493, a Companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e não como voluntário, como por lapso incialmente indicamos); economista, bancário reformado, formador, com larga experiência em Angola; foto atual à esquerda].

O destaque do mês de novembro de 1973 (pp. 74/77) vai para:

(i) fraca atividade do IN no setor L1 (Bambadinca), com flagelações ao Enxalé e ao Xime; intensificação da atividade no sul da província, no subsetor de Cobumba (onde o BART 3873 tinha uma companhia destacada, a CART 3493, que antes guarnecia  Mansambo);

(ii) crescente pressão do PAIGC sobre as populações sob o seu controlo na zona de Madina/Enxalé;

(iii) crescente "africanização da guerra de contraguerrilha" no setor L1: são a CCAÇ 12 (agora unidade de quadrícula do Xime) e a CCAÇ 21 (unidade de intervenção ao serviço do comando do BART 3893), ambaS "constituídas por militares do recrutamento provincial", quem se arrisca a ir à sempre temida região do Poindom / Ponta do Inglês; percebe-se: os "tugas" do BART 3893 estão em fim de comissão;

 (iv) a CCAÇ 21, comandada pelo ten comando graduado Jamanca,  tinha regressado ao setor L1 (Bambadinca), vinda do setor L6 (Pirada); a ela pertencia o nosso saudoso Amadu Bailo Jaló (1940-2015), com o posto de alferes comando graduado;

(v) visita,  a Bambadinca, de jornalistas brasileiros e dinamarqueses.

(vi) reafirmação do "perfeito entendimento" entre civis e militares e entre militares europeus e guineenses;

(vii) atribuição do "13º mês", beneficiando os militares do recrutamento provincial;

(viii) Sexa Governador e Com-chefe, gen Bettencourt Rodrigues visita, pela 1ª vez, Bambadinca, no exercício das suas funções; guarda de honra constituída por uma companhia a três pelotões; 

(ix) preocupações, do comando do BART 3873,  com o crescente entendimento do Senegal com o PAIGC.










__________________

Nota do editor:

Último poste da série > 26 de janeiro de  2015 > Guiné 63/74 - P14189: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XXI: outubro de 1973: Flagelação, pela primeira vez, do reordenamento de Nhabijões, de maioria balanta, com parentes no mato...

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13944: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XVIII: jullho de 1973: (i) mais um ataque, no Rio Geba Estreito, em São Belchior, a seguir ao Mato Cão, à uma embarcação civil, a "Manuel Barbosa"; (ii) colocação, em Bambadinca, da CCAÇ 21, como unidade de intervenção do CAOP2, comandado por Abdulai Jamanca; (iii) pemetração na mítica mata do Fiofioli.


Guiné >  Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > Rio Geba > c. 1968 >  Passagem de um barco civil, a caminho de Bambadinca, através do Rio Geba Estreito.  Fotos Falantes II, álbum do Torcato Mendonca. alf mil art, CART 2339 (Mansambo, 1968/69).

Foto: ©  Torcato Mendonça  (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]




1. Continuação da publicação da História do BART 3873 (que esteve colocado na zona leste, no Setor L1, Bambadinca, 1972/74), a partir e cópia digitalizada da História da Unidade, em formato pdf, gentilmente disponibilizada pelo António Duarte (*)

[António Duarte, ex-fur mil da CART 3493, a Companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e não como voluntário, como por lapso incialmente  indicamos); economista, bancário reformado, formador; foto atual à esquerda].


O destaque do mês de julho de 1973 (pp. 61/63) vai para:

(i)  o ataque, no Rio Geba Estreito, em São Belchior, a seguir ao Mato Cão, à embarcação "Manuel Barbosa" (, ligada a uma comercial de Bissau, se não erro); o barco, civil,conseguiu chegar a Bambadinca com um ferido;

(ii) a colocação, em Bambadinca, da CCAÇ 21, como unidade de intervenção do CAOP2; era inteiramente composta por quadros e praças do recrutamento local, sendo comandada pelo cap cmd graduado Jamanca;

(iii) a CCAÇ 21 entra na zona de Mina / Fiofioli.


Jullho de 1973: (i) mais um ataque, no Rio Geba Estreito, em São Belchior, a seguir ao Mato Cão, à uma embarcação civil, a  "Manuel Barbosa"; (ii) colocação, em Bambadinca, da CCAÇ 21, como unidade de intervenção do CAOP2, comandado por Abdulai Jamanca; e (iii) as NT penetram na mítica mata do Fiofioli

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13653: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (10): Quando a manta passou a servir de colchão

1. Em mensagem do dia 23 de Setembro de 2014, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), enviou-nos mais um Pedaço do seu tempo.


PEDAÇOS DE UM TEMPO

10 - Quando a manta passou a servir de colchão

Quando fomos para Cobumba, foram-nos distribuídos colchões pneumáticos. Eram compostos por cinco partes, mais a almofada, cada uma autónoma no modo de conservar o ar e de serem cheias.

Passadas algumas semanas uma dessas partes do meu colchão esvaziou, por mais que soprasse para a encher, passados poucos minutos voltava a estar vazia.
Durante algum tempo lá fui dormindo mesmo assim, de esguelha, como os sonos eram sempre de tempo reduzido, tínhamos de fazer reforço todas as noites, e de vez enquanto ainda éramos acordados, ainda que estivéssemos sempre à espera… só nunca sabíamos a que horas, mas lá fui aguentando.

Passadas umas semanas mais uma parte deixou também de conservar o ar, então só tive uma solução que foi esvaziar as outras que ainda se mantinham boas e ficar só com a almofada, que se manteve cheia até ao fim da nossa permanência naquele local.

Saída do abrigo, local que servia de sala de refeições, tinha acabado de almoçar, a mesa foi construída pelo meu camarada condutor Cruz.

A partir dessa altura, a maior parte do tempo que lá estivemos, passei a dormir com uma manta dobrada a servir de colchão, nada agradável, a cama tinha sido feita por mim com tábuas que ia aproveitando de caixas que tinham servido para levar bacalhau e outras coisas, embora eu não tivesse grande jeito para carpinteiro, mas a necessidade a isso obrigou.
No início, ainda dormíamos no chão, com o chegar da época das chuvas, em abrigos subterrâneos em que a cobertura era feita de troncos de palmeiras cobertos de terra, a água começou a infiltrar-se fizemos uma cobertura de capim, cada um teve de desenrascar o melhor que pôde.

O tempo passou mas foi uma das muitas situações que não é fácil esquecer. Para quem estava privado de quase tudo que necessitava, naquele buraco de difícil acesso, a falta de colchão era apenas mais uma…

António Eduardo Ferreira
____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13479: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (9): Mesmo lá (tive sorte)

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12667: Em busca de... (236): Pessoal da madeirense CCAÇ 4945/73, mobilizada no BII 19 do Funchal (Bernardino Laureano)

1. Mensagem do nosso camarada Bernardino Laureano, TCor Ref, que integrou a CCS/BCAV 3846, Ingoré, 1971/73, actualmente Presidente da Direcção do Núcleo do Funchal da Liga dos Combatentes, com data de 1 de Fevereiro de 2014:

Meu Caro Amigo e Sr. Luís Graça e claro Amigos Carlos Vinhal e Magalhães Ribeiro
Bom Dia e votos de saúde e de Bom Ano para Todos e Suas Exmas. Famílias.

Sou o Ten Cor Bernardino Laureano que em tempo já trocámos mensagens sobre a n/estadia na Guiné, aquela Guiné que ainda hoje temos bem gravada nos nossos pensamentos, por tudo o que lá passámos e pelas recordações que guardamos, algumas que nos deixam saudades, principalmente das gentes que estiveram sempre a nosso lado.

Integrei o BCav 3846 que esteve na Guiné desde Abril de 1971 e saiamos em Março de 1973. Pertenci à CCS e cumpri a minha Comissão no Ingoré, já que o Sector do Batalhão começava em Varela e se estendia a norte do Rio Cacheu até Barro.

Sou actualmente o Presidente da Direcção do Núcleo do Funchal da Liga dos Combatentes, funções que me ligam a um número muito grande de Camaradas que serviram as FA nos ex-Territórios Ultramarinos. Por outro lado, dadas as minhas funções tento apoiar todos os nossos Amigos que me solicitam ajuda, como é o caso que me leva até junto de vós e que passo a expor desde já:
Preciso de saber se a CCaç 4945/73 e o Comando de Agrupamento 6009, a primeira que esteve na Guiné desde Setembro de 1973 e regressou ao Continente em 9 de Setembro de l974, enquanto que o Cmd Agr 6009 chegou a Moçambique em Dezembro de 1973 e regressou no final de 1974, se costumam reunir em convívios e quais os contactos possíveis.

Em relação à Guiné creio que o meu pedido pode ser mais fácil na medida em que no vosso Blog de 22 de Janeiro de 2012, faz referência a Fernando Gomes Pinto da CCAÇ 4945/73 (Guiné, 1973/74), Alferes Mil Cmdt do 2.º Pelotão.

Esta minha solicitação insere-se no pedido de um ex-combatente de nome Sebastião da Silva de Freitas, pertencente ao 1.º Pelotão que tinha como seu Cmdt o Alferes Mil Valente.

Este Camarada quer reunir-com os seus antigos Companheiros ou no saber notícias deles.

Agradeço antecipadamente qualquer notícia possível e envio para Todos Vós um grande abraço de amizade, estima e consideração
Laureano


2. Comentário do Editor:

Caro TCor Bernardino Laureano, muito obrigado pelo seu contacto.

Em relação ao pedido que nos faz, a não ser publicá-lo aqui, esperando que alguém nos possa dar uma ajuda, nada mais podemos fazer uma vez que não há ninguém na tertúlia que tivesse integrado a CCAÇ 4945/73. Tentei encontrar nos nossos arquivos o endereço do camarada Fernando Gomes Pinto, que em tempo nos contactou, mas também não tive êxito.

Lamentando não podermos ajudar, ficamos contudo à sua disposição.

Receba os nossos cumprimentos
Carlos Vinhal

Sobre a CCAÇ 4945/73

Reprodução da página 429 do 7.º Volume - Fichas das Unidades - Tomo II - Guiné da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12636: Em busca de... (235): Nelson Silva, natural de Oliveira do Hospital, o qual terá pertencido a uma Companhia de Comandos, e que terá desertado (Rui Poeira)... Resposta do nosso colaborador José Martins

sábado, 14 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12447: O que é que a malta lia, nas horas vagas (16): A correspondência que me era enviada, e os autores Ramiro da Fonseca, José Régio, Vergílio Ferreira, etc. (António Eduardo Ferreira)

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 12 de Dezembro de 2013:

Amigo Carlos
Antes de mais votos de boa saúde, para ti e restante pessoal, como dizem os mais sensatos, há coisas que só depois de as perdermos sabemos o seu valor, talvez por isso eu agora a valorize tanto.

Falando de momentos de leitura, pela parte que me toca foram poucos, a não ser a muita correspondência que recebia e, como era importante essa leitura… ainda que não raramente chegasse bastante atrasada.

Algumas vezes, recebia também um jornal ligado à igreja que me era enviado por familiares, chamado a Voz do Domingo, de Leiria.

A certa altura, não sei precisar a data, na nossa companhia todos recebemos alguns livros, creio ter sido oferta do Movimento Nacional Feminino, desses apenas recordo o título de três; o Médico em Casa, do Dr. Ramiro da Fonseca, O Vestido Cor de Fogo, de José Régio e, a Aparição, de Vergílio Ferreira, este que comecei a ler num dia à tarde, apenas fiz uma pausa para o jantar, depois continuei noite fora até chegar ao fim. Ainda hoje continua a ser um dos livros que mais gostei de ler.

Estas leituras aconteceram em Mansambo, pois em Cobumba apesar de ter muito tempo disponível, apenas lia a muita correspondência que sempre recebia, no abrigo não havia luz e, todas as noites fazíamos reforço.

Durante o dia a vontade de ler era pouca, mesmo não estando de serviço a maior parte do tempo era passado no mesmo sítio, junto ao abrigo, de preferência de ouvido à escuta. Na zona todos os dias havia “festa” quando o foguetório começava nos primeiros instantes não sabíamos quem eram os contemplados, talvez também por isso, a disponibilidade mental para a leitura não fosse a melhor.

____________

Notas do editor

Capa do livro Aparição do site da WOOK, com a devida vénia

Último poste da série de 11 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12430: O que é que a malta lia, nas horas vagas (15): Livros oferecidos pelo Movimento Nacional Feminino e os meus livros pessoais, tais como: Seleta Literária, História Universal, Inglês e os Lusíadas (Joaquim Cardoso)

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11796: Os nossos médicos (57): A CART 3493 nunca teve médico - diz António Eduardo Ferreira; resposta ao inquérito por Jorge Picado

1. Ainda a propósito do tema Os nossos médicos, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) mandou-nos esta mensagem com data de 27 de Junho de 2013:

Amigo Carlos Vinhal
Antes de mais recebe um abraço e votos de boa saúde.

Ultimamente, tem-se falado no blogue de médicos que integravam os batalhões. Quantos iam naquele a que eu pertenci, o 3873, não sei, fui uns dias mais tarde, apenas conheci a companhia já em Mansambo, mas a Cart 3493 nunca teve médico, recordo-me, de quando estávamos em Cobumba lá ter ido o médico duas ou três vezes, penso que estava sediado em Bedanda, não tenho a certeza.

Aquilo que ele me disse a única vez que falei com ele, talvez seja exagerado dizer que foi uma consulta, eu estava tão fragilizado que tinha dificuldade em movimentar-me, a alimentação era péssima, e o que ele me disse foi: sei que estás doente mas não te posso mandar para Bissau, e a “consulta” terminou assim.
Eu não lhe tinha pedido para me mandar para Bissau, talvez por descargo de consciência me tenha dito aquilo.

No dia que viemos embora de Cobumba, só tínhamos uma viatura, para complicar mais as coisas, naquela manhã avariou, tudo o que tínhamos para trazer foi transportado às costas, ironia do destino, a pessoa a quem paguei para me levar as minhas coisas ao rio, tinha sido carregador do PAIGC, de nome Miranda.
Eu que até ao rio, cerca de um quilómetro, levei apenas a G3, as cartucheiras e uma mala com cerca de três quilos de peso, quando cheguei ao cais, mesmo sabendo que a LDG estava à nossa espera, ia de rastos.

Antes de terminar este reduzido texto, permitam-me que envie um abraço ao Cherno Baldé, o mundo necessita de homens que digam as verdades, não enviei nenhum comentário, mas li com atenção o trabalho por ele enviado.
Passados tantos anos, continuo achar que a guerra tinha que terminar, nem sequer devia de ter começado, mas a forma como foram abandonados aqueles que estavam connosco, foi cruel, pouco importa agora de quem foi a culpa… mas há coisas que não devemos esquecer.
António Eduardo Ferreira

**********

2. Sobre o mesmo tema recebemos esta mensagem do nosso camarada Jorge Picado (ex-Cap Mil na CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 28 de Junho de 2013 respondendo ao inquérito:

Amigo Carlos
Aproveitando um momento livre de acesso à NET, aqui da Costa Nova do Prado, onde o vento forte persiste em refrescar estes dias que dizem ser de calor (!), envio-te o que sei da "minha" Unidade "mãe", BCaç 2885 sobre os Serviços de saúde, de acordo com a ordem das propostas apresentadas.

Assim:

(i) Quantos médicos seguiram com o vosso batalhão, no barco?
R - Da HU constam 3 Alf Mil Méd que embarcaram com o BCaç.

(ii) Quantos médicos é que o vosso batalhão teve e por quanto tempo?
R - Só me recordo de dois deles, que permaneceram, um até final FEV71 e o outro foi transferido em 20NOV70 para o BCaç 2884, sendo substituído por um dos médicos dessa mesma Unidade que chegou a Mansoa em JAN71.

(iii) Lembram-se dos nomes de alguns? Idades? Especiallidades?
R - Os seus nomes eram: Drs José Maria Gomes Brandão, José Rego Sampaio (o transferido), Adelino Carlos F. G. Correia de quem não tenho qualquer recordação. Admito que pudesse estar em Porto Gole com a CCaç que aí estava colocada, mas isso só pode ser comprovado pelos camaradas que pertenceram à Unidade desde o seu início. O nome do que veio do BCaç 2884 por troca do transferido era António H. Bigotte D. Loureiro. Como eram Alf Mil foram com certeza no início da carreira.

(iv) Precisaram de alguma consulta médica?
R - Fui consultado mais do que uma vez, quer em Mansoa, quer no CAOP 1 em Teixeira Pinto. Em Mansabá não fui ao médico, mas fui ao HM de Bissau na sequência das consultas do Dentista, mas então para tratar da prótese.

(v) Estiveram alguma vez internados na enfermeria do aquartelamento (se é que existia)?
R - Havia Enfermaria no Quartel de Mansoa. Não estive internado na Enfermaria.

(vi) Foram a alguma consulta de especialidade no HM 241?
R - Fui ao HM de Bissau várias vezes, para consulta de Dentista de que acabei com a colocação da minha 1.ª prótese e depois, já no CAOP 1 acabei por baixar a este Hospital em 23NOV71 onde permaneci 3 ou 4 dias, ficando mais 2 em consulta externa, após uma grave intoxicação com sardinhas de conserva.

(vii) Foram evacuados para a metrópole, para o HMP?
R - Não.

(viii) Tiveram alguma problema de saúde que o vosso médico ou o enfermeiro conseguiu resolver sem evacuação?
R - Não.

(ix) O vosso posto sanitário também atendia a população local?
R - As POPs eram atendidas nos Serviços de Saúde em Mansoa pelos Médicos militares e também nas Unidades (e Destacamentos pelos Enfermeiros).

(x) (E se sim, o que é mais que provável:) Há alguma estimativa da população que recorria aos serviços de saúde da tropa?
R - Talvez muitas dezenas, se não mesmo centenas por mês.

Abraços para todos
JPicado

PS - Se o César Dias ou o Nabais quiserem ser mais precisos, agradecia.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11784: Os nossos médicos (56): respostas ao questionário: José Manuel Matos Dinis [,CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71]; José Santos [CCAÇ 3326, Mampatá e Quinhamel, 1971/73]; Rui Santos [4.ª CCAÇ, Bedanda, 1963/65]; Mário Serra de Oliveira [, BA12, Bissalanca, 1967/68]; e João Martins [, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda, Gadamael e Guileje, 1967/69]

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10119: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (3): Crianças de Mansambo, jamais vos esquecerei!

Crianças de Mansambo, ao tempo da CART 2339 (1968/69)
Foto ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados




1. Em mensagem de 2 de Julho de 2012, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), enviou-nos este texto,  lembrando as crianças de Mansambo do seu tempo.



PEDAÇOS DE UM TEMPO

3 - AS CRIANÇAS DE MANSAMBO

Crianças de Mansambo,  que será feito de vós? O Cherifo foi o nosso primeiro faxina, de olhar atento e profundo, por vezes sem nada dizer, ele dizia não. Um dia os condutores chatearam-se com ele, (não sei porquê, eu tinha vindo de férias à Metrópole), foi embora. Veio o António, bonacheirão e descontraído, para ele tudo estava bem, um dia abalou, os outros meninos diziam que tinha ido para o fanado e por essa razão deu lugar ao pequeno e frágil Demba, (era muito novo) pouco esforço podia fazer, foi faxina até à nossa ida para Cobumba.

Uma das coisas que mais gostavam de fazer era jogar futebol, alguns até já falavam no nome do Eusébio e do Cubillas, influências de Benfiquistas e Portistas, o calçado é que não ajudava, mas eram ágeis a correr. Quando o tropa jogava, eles esperavam e jogavam depois. Uns descalços, outros com trinta e oito de pé e botas rotas quarenta e dois.
Também a Califa que foi minha lavadeira, menina e mulher ao mesmo tempo, sem ter sido criança. Outros havia, por não terem sido faxinas dos condutores nunca soube o seu nome.

Que será feito de vós, meninos daquele tempo? Espero que para vocês a mudança tenha trazido um tempo novo, diferente e melhor, o que parece não ter acontecido a alguns dos mais velhos.
Se mais não tiveram, espero que tenham podido esquecer a palavra guerra e conhecer o que para vocês era desconhecido, viver em paz.
Fiquei feliz por saber que passaram a poder tomar banho na fonte sem necessitar de segurança, apanhar bananas sem medo de haver armadilhas. Poderem ir de Mansambo a Candamã ou a Afiã, sem picadores na frente.

Ao pequeno Demba a quem tinha prometido levar uns sapatos quando viesse de férias segunda vez e, que a minha ida para Cobumba não permitiu, ficaria feliz se pudesse saber que também ele passou a usar sapatos novos, como os que levei ao Cherifo e que a ele eu não pude cumprir a promessa.
Ficava magoado e triste quando alguém lhe dirigia palavras menos próprias, pensava sempre no meu filho que ainda não conhecia, também ficaria triste, muito triste, se alguém lhe dirigisse,  a ele, palavras assim! Não era com intenção de magoar, que essas palavras eram proferidas, eu sei, mas, sim, tentando descarregar a revolta que com o passar do tempo se ia acumulando. Só que, em quem não tinha culpa da situação em que nos encontrávamos… as crianças.

Há momentos na vida que nunca conseguimos esquecer, e eu jamais esquecerei aquele em que um grupo de meninos da tabanca veio até ao meu abrigo levar-me uma galinha, retribuindo e agradecendo assim os sapatos novos que eu tinha levado ao Cherifo quando fui de férias. Não pelo valor da galinha mas pela pela felicidade que todos eles deixavam transparecer naquele momento, que era contagiante.

Crianças de Mansambo, jamais vos esquecerei!
António Eduardo Ferreira (*)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Abril de 2006 > Quase 40 anos depois... Meninos de Mansambo... e tugas, agora turistas de saudade, entre eles o  antigo... mansambeiro Saagum. 

Junto à fonte, a tristemente famosa fonte de Mansambo: aqui foi gravemente ferido, em emboscada montada pelos guerrilheiros do PAIGC, em 19 de Setembro de 1968, o Saagum, do 1º pelotão da CART 2339 (Mansambo, 1968/69).

Recorde-se o relato do nosso camarada Carlos Marques dos Santos, sobre os três graves incidentes ocorridos em 1968 neste lugar, enquanto o pessoal construía, de raíz, numa clareira da floresta,  o aquartelamento de Mansambo:

(...) "A 11 de Julho de 1968 o IN reteve um dos nossos elementos, na fonte, e na perseguição, em conjunto com as NT, o Cmdt do Pel Milícias 103 accionou uma mina A/P, tendo sucumbido aos ferimentos. Deste nosso camarada só houve notícias depois do 25 de Abril de 1974. Em 19 de Setembro de 1968, a CART 2339 sofre uma emboscada, vinda da copa das árvores, também na fonte, enquanto procedia ao abastecimento de água, que causou 11 feridos (5 graves) e um morto. Um dos feridos graves viria a falecer no Hospital Militar de Bissau (241) a 25 desse mês. Em 30 de Setembro nova emboscada na fonte ao Pelotão de Milícia e uma mulher da Tabanca". (...)

Na foto acima, de 2006, os tugas, da esquerda para a direita, o José Clímaco Saagum, o António Almeida, o Manuel Costa, o Aguiar e o Casimiro. Legenda de Albano Costa, foto de Hugo Costa (Guifões / Matosinhos).

Foto: © Albano Costa/ Hugo Costa (2006). Todos os direitos reservados

_____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10043: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (2): Gazelas em Mansambo

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9847: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (1): Cobumba, Pessoas, Guerra e Reflexões

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), com data de 28 de Abril de 2012:

Carlos,
Aqui vai um texto (reflexão sobre o meu tempo de Cobumba) que publicarás se entenderes conveniente.

Recebe um abraço, extensivo a todos que tornam possível a manutenção do Blogue, aproveito também para agradecer terem publicado o meu tempo de tropa (O Tempo Que Ninguém Queria), assim como a quantos tiveram a paciência para seguir a publicação.

António Eduardo Ferreira




PEDAÇOS DE UM TEMPO

1 - COBUMBA / PESSOAS / GUERRA / REFLEXÕES

Foi difícil, a vida dos homens da CART 3493 em Cobumba, mas a daquela gente que por lá morava não foi melhor, deixaram de ser bombardeados pelos tugas, passaram a ser por alguns dos seus que integravam as forças do PAIGC (uma mulher da população morreu vitima de uma flagelação.) 

Não deve de ter sido nada fácil de encaixar a mudança, o que eles de facto desejavam era a paz e não a continuação da guerra. (Muito tempo já passou e a esperança de muita daquela gente numa vida melhor, parece continuar a ser uma miragem.)

Havia certos dias em que as poucas pessoas que por lá estavam a maior parte do dia passavam-no junto ao seu abrigo, que seria certamente mais seguro que os nossos dado o sítio onde se localizavam (debaixo de um grande mangueiro) e a forma como eram construídos, apenas com cerca de um metro de largura. Era nossa convicção que eles estavam por ali porque tinham informações que nós não tínhamos… algumas vezes o “arraial” acontecia mesmo e nesses momentos estar perto de um abrigo podia fazer toda a diferença… também havia dias em que passavam lá grande parte do tempo mas nada acontecia, (provavelmente alguma informação que não se concretizava.)

Apesar das poucas conversas que tínhamos com a população, por vezes lá íamos fazendo algumas perguntas a que eles normalmente respondiam (aqueles que nos entendiam), certo dia perguntei ao filho do chefe de tabanca de que é que eles tinham medo quando ainda não estava lá a tropa branca, ele respondeu que era do passarinho grande (o avião), quando o passarinho aparecia se estavam na bolanha e esta tinha água (velhos e novos) deitavam-se, ficando apenas com parte da cabeça de fora, ele dizia, só com um olho fora da água. Era um menino de doze ou treze anos (o Zé) que certos dias saía com uma pequena saca onde dizia levar os livros e que ia para a escola em Pericuto que ficava do lado de lá da bolanha mas onde nós não íamos, porque apesar de ser perto era arriscado… a haver escola ou coisa parecida, teria que ser da responsabilidade do PAIGC…

Um outro com quem falei dizia que tinha sido carregador do PAIGC, transportava material de guerra à cabeça (chamava-se Miranda) o sítio mais longe onde tinha chegado foi ao Xitole, era um homem já de certa idade normalmente não saía lá da tabanca. Já perto do fim da nossa estadia naquele sítio as minas continuavam a causar-nos grandes preocupações, pois eram colocadas mesmo do lado de dentro do arame que nessa altura já circundava todos os abrigos e parte da picada. 

Devido a essa situação foi exigido ao chefe da tabanca que nomeasse alguém, que teria de andar todo o dia no carro ao lado do condutor, era uma forma de pressionar possíveis familiares que estavam do lado do PAIGC para não colocarem as minas, se é que isso poderia ter alguma influência nas ordens dimanadas do Partido. 

Recordo-me do primeiro e não sei se o único que andou comigo foi o filho do chefe, o Zé, entre eles era quem falava melhor português. Também para os condutores era uma situação estranha, andarmos todo o dia com alguém a nosso lado coisa a que não estávamos habituados. Não sei se psicologicamente isso nos terá ajudado.

Não me recordo se foi detectada mais alguma mina depois dessa exigência (nem faço ideia com que vontade) cumprida pelo chefe de tabanca. Também nunca soube se essa ordem foi pensada no Comando da Companhia ou veio de outro sítio, o certo é que aconteceu e chegou ao conhecimento do PAIGC, pois na rádio que transmitia em seu nome através da voz daquela a quem chamávamos a “Maria Turra” esse assunto foi muito falado. A esta distância no tempo dá para entender melhor como era difícil a vida daquela gente, que tinha de parecer estar bem com os dois lados (PAIGC e a Tropa Portuguesa), mas na verdade isso não era possível.

Coisas a que a guerra obriga. Como seria bom acabar com as guerras! E erradicar a palavra de todos os dicionários para que os vindouros não a chegassem a conhecer e assim não pudessem pensar que com ela, resolviam os grandes problemas que afetam a humanidade e deixassem de morrer tantos inocentes, existissem tantos estropiados, tantas viúvas, tantas crianças órfãs e outros para quem o viver perdeu o sentido.

Na guerra todos saem perdedores, uns mais do que outros é certo, mas todos sofrem as terríveis consequências que dela resultam. Pensar assim é uma utopia, eu sei, mas permite-me acreditar naquilo que eu gostava que acontecesse e não tenho dúvidas que o mundo assim seria um mundo melhor.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9683: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (4): De Cobumba para Bissau e regresso à Metrópole

sexta-feira, 23 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9642: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (12): Os infelizes que estão em Cobumba...

1. No seu diário, o António Graça de Abreu (abreviadamente, AGA, nascido em 1947, no Porto, ex-Alf Mil do CAOP1, 1972/74, aqui na foto à esquerda, no rio Manterunga, braço do Cumbijã) dá-nos desta vez notícias dos infelizes que estavam em Cobumba, ali perto de Cufar e de Bedanda, em pleno Cantanhez, e que embrulhavam amiudadas vezes...  


Entre esses infelizes, estava o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba, Bissau, 1972/74), que nos tem surpreendido com as suas crónicas "do tempo que ninguém queria"...

Mais uma vez, e com a devida vénia, reproduzimos - para conhecimento da generalidade dos nossos leitores - mais alguns excertos do Diário da Guiné, 1972/74, da autoria do António Raça de Abreu, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*). 

Os parênteses curvos com reticências são da responsabilidade do editor do poste (LG), não do autor, e significam  cortes no texto... Seleccionámos apenas as entradas do diário e os parágrafos com referências a Cobumba.  (LG)

_______________

Cufar, 25 de Junho de 1973 


Não estou encantado com o lugar que vim encontrar, mas Cufar é melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações. 

(…) A dois quilómetros de Cufar, passa o rio Cumbijã que subi há três dias na LDG. A sul deste rio fica a região do Cantanhez, até há pouco tempo um santuário do PAIGC. Ora em finais de 1972, o general Spínola decidiu ocupar toda esta zona e, talvez pareça estranho, no entanto não foi difícil espalhar as NT pelas regiões do sul, os guerrilheiros têm também as suas debilidades, quase não resistiram à ocupação e foram-se multiplicando os destacamentos com tropa portuguesa junto de pequenas aldeias, cada um deles com pelo menos uma companhia de cerca de 180 homens, Cafine, Cafal, Cadique, Cobumba, Jemberém, Chugué, Caboxanque. 

Os portugueses podem agora afirmar que o sul já não é pertença do PAIGC. Não conheço ainda a maneira como vivem estes quase dois mil homens, mas posso imaginar como tudo tem sido duro. Estão a construir os aquartelamentos, sujeitos a frequentes flagelações, muitos dormem ainda em tendas, em valas, quase sem luz, com dificuldades de abastecimento de água, com alimentação deficiente. 

Uma coisa é certa, os guerrilheiros não só não conseguiram impedir a instalação dos novos aquartelamentos portugueses como tiveram de abandonar as aldeias e de se refugiar nas florestas, junto de pequenos lugarejos escondidos no mato (…) 

(…) Cufar, 29 de Junho de 1973 

Às oito horas voltei a ouvir os pum, catrapum, pum, pum. Era o vizinho de cima, Cobumba, oito quilómetros a norte daqui. Sem consequências. 

Esta flagelação foi mais dura do que a de ontem a Cafal e Cafine, ouviam-se nitidamente as armas ligeiras, o matraquear das metralhadoras, costureirinhas, as rajadas. O sul da Guiné é tudo menos monótono, temos ruído, estrondos e emoção todos os dias. 


(…) Cufar 3 de Julho de 1973 

(…) Hoje comi bifes de gazela, gazelas mortas pela metralhadora pesada de um helicóptero, numa verdadeira caçada a partir do ar. Um homem está sempre a aprender, ignorava que se podia caçar de helicóptero. 

Os hélis vêm cá quase todos os dias, sempre aos pares, o Alouette normal e o helicanhão. Fazem base em Cufar e daqui irradiam para os aquartelamentos de toda a zona, Cadique, Cafine, Cafal, Cacine, Cabedu, Cobumba, Chugué, Caboxanque, Bedanda, as tais povoações que volta e meia “embrulham”. Levam víveres, correio e algum pessoal. 

Os hélis passam por cima das regiões libertadas, mas até hoje nunca foram flagelados. Voam a “rapar”, cinquenta metros acima do solo, a boa velocidade e não dão chances aos mísseis do PAIGC. Um dia podem ter uma surpresa, esperemos que não. O perigo existe sempre, mas os pilotos são responsáveis e corajosos. 

Ontem no voo para Cacine, os dois helicópteros viram uma manada de gazelas, o helicanhão fez fogo e abateu três animais. O outro héli desceu, foi buscar as gazelas e trouxe-as para Cufar. Duas ficaram aqui e uma seguiu para Bissau, para o banquete dos pilotos. Está explicado o requinte de hoje haver bifes de gazela ao almoço.(…) 

(…) Cufar, 5 de Julho de 1973 

À tarde, evacuámos no Nordatlas para o hospital de Bissau um soldado de Cobumba que pisou uma mina e ficou sem uma perna, esfarrapado, retalhado até aos testículos. O médico diz que ele não se salva. 

Veio pelo rio Cumbijã de “sintex” até Cufar e perdeu muito sangue. Fui à pista e todo o seu corpo era ligaduras e sangue. A minha passividade a olhar para o moço, os olhos parados. Não sou o mesmo António que desembarcou na Guiné há um ano atrás. 

(….) Cufar, 6 de Agosto de 1973 

Fui voar de helicóptero. Quase todos os dias temos cá os hélis. O serviço deles é transportar géneros frescos, correio, algum pessoal, estarem disponíveis para qualquer evacuação, assegurarem-nos a logística. Esta manhã pedi uma boleia e, como havia espaço para mim, aí fui eu dar uma grande volta com os pilotos, no Alouette normal tendo sempre ao lado o hélicanhão. Voei até Cacine, Cabedu, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Chugué e Bedanda, quase todos os aquartelamentos nossos vizinhos aqui na região. 

Foram mais de duas horas de viagem, incluindo as estadias não muito demoradas nos diferentes lugares. Perigo? É muito relativo, ainda há dias estiveram cá o Spínola e o Silva Cunha, e foram a Cadique e Cacine, voando sempre por cima do rio e do mar porque é mais seguro. 

(…) Cufar, 1 de Setembro de 1973 

(…) Também sábado ao entardecer, tivemos em Cufar as consequências da guerra. Às quatro e meia da tarde, um Unimog pisou uma mina anti carro em Cobumba. Os seis pobres desgraçados que iam na viatura ficaram feridos, três em estado grave. De Cufar, pedimos a evacuação para Bissau, vinham dois hélis a caminho mas voltaram para trás devido ao mau tempo. Um Nordatlas que seguia de Bafatá para Bissau foi desviado para aqui e chegou já de noite. 

Entretanto, os feridos de Cobumba, a perder muito sangue, vieram para Cufar nos sintex, descendo o rio Cumbijã. A pista de aviação foi iluminada pelo usual processo artesanal, as garrafas de cerveja cheias com petróleo e as mechas acesas distribuídas lateralmente ao longo da pista. Com os feridos seguiu para Bissau o furriel enfermeiro que fez de capelão quando daquela brincadeira no desembarque dos “periquitos” há quinze dias atrás. Os feridos de Cobumba estiveram na sala de operações do hospital de Bissau até às quatro horas da manhã, não morreu nenhum. Tanto esforço, mas salvaram-se as vidas. 

(…) Cufar, 12 de Novembro de 1973 

Na LDG chegou uma companhia de “periquitos”, com um mês de Guiné que vão render os infelizes que estão em Cobumba. Já perceberam para onde vão e estão completamente desmoralizados. Como é possível aguentar as NT a combater na Guiné quando o que todos desejam é a paz e sair daqui? 

No porto pequeno, no rio Manterunga, que chega quase até Cufar e é um braço do rio Cumbijã, temos um pau com duas bandeiras. Em cima, por causa das agruras do clima, já meio trapo, a bandeira portuguesa, em baixo, em melhor estado, uma bandeira branca. O capitão da companhia açoreana disse-me que também vai mandar hastear um par igualzinho de bandeiras lá em baixo, no porto grande, no cais do Cumbijã.(…) 

(…) Cufar, 15 de Novembro de 1973 

Ainda a propósito do ataque de ontem, estivemos a fazer contas das flagelações sobre os aquartelamentos da nossa zona nos últimos oito meses. Catió “embrulhou” seis vezes, o Chugué vinte, Cobumba doze, Caboxanque quatro, Cadique dez, Cafal quinze, Cafine catorze, Bedanda onze e Cufar apenas três. Não nos podemos queixar, somos uns privilegiados, vivemos no buraco mais seguro do sul da Guiné. (…) 

(…) Cufar, 21 de Novembro de 1973 

Guerra todos os dias. Ontem às seis de tarde, hoje às seis da tarde. Ontem foi Cobumba, estávamos a começar a jantar e pum, catrapum, pum, pum. Alguns de nós saltaram das mesas e começaram a correr para as valas.

Cobumba fica aqui mesmo ao lado e como têm lá uma nova companhia de “periquitos”, os guerrilheiros trataram de lhes fazer condigna recepção, com foguetões, morteiros, canhão sem recuo, tudo a disparar numa cadência de fogo impressionante. O pessoal de Cobumba teve sorte, estão lá estacionados quatrocentos homens – a companhia velha e os “periquitos” que os vêm substituir – e não sofreram uma beliscadura. 

(…) Cufar, 1 de Dezembro de 1973 

O grupo de homens do PAIGC que veio outro dia atacar Cufar com os morteiros e os RPGs anda a visitar as capelinhas da zona. Depois de nós, foram duas vezes a Cobumba e uma ao Chugué, com flagelações precisamente iguais à nossa. Também não deu nada, só insegurança e medo. Já sabemos que é um grupo novo de guerrilheiros e que andam a treinar. Ontem foi a vez de Cafal. Não houve feridos, mas acertaram em cheio com uma granada de RPG na secretaria da companhia e deram cabo das instalações. Pior seria se tal tivesse acontecido na secretaria do CAOP 1 em Cufar, com o alferes Abreu lá dentro, ou por perto.

 (…) Cufar, 9 de Dezembro de 1973 

(…) Às cinco menos dez da manhã, fomos acordados pelos pum, catrapum, pum, pum. Era Cobumba, os nossos vizinhos mais próximos. Mais um ataque filho da puta! Estava tudo a dormir e durante meia hora a cadência de fogo era impressionante. Se fosse connosco, lá teria eu de fugir em cuecas para a vala. 

Cobumba levou o tratamento do costume, foguetões, canhão sem recuo, RPGs e morteiros. Também como é habitual, nem uma beliscadura nos duzentos homens que por lá padecem. 

(...) Cufar, 21 de Janeiro de 1974 

Cumpriu-se um ano sobre o assassinato do Amílcar Cabral e o PAIGC comemorou a data. Aqui na zona atacaram os aquartelamentos de Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Bedanda, Chugué, Catió e … Cufar. (…) 

(…) Cufar, 3 de Abril de 1974 

A guerra está feia. Bedanda embrulhou durante todo o dia, um ataque tremendo, doze horas consecutivas de fogo. A festa só acabou à noite com uma espécie de cerco à povoação levado a cabo pelos homens do PAIGC. Em Cufar, tão próximo, além de distinguirmos nitidamente as rajadas de metralhadora de mistura com os rebentamentos dos RPGs, foguetões e canhão, à noite viam-se as balas tracejantes e as explosões no ar. 

Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda. Existe uma estrada que vem da Guiné-Conacry, passa junto a Guileje – abandonada pela tropa portuguesa, – entra pela região do Cantanhez e termina em Bedanda. O IN está a utilizar esse percurso para deslocar camiões carregados com todo o tipo de armamento, em seguida é só despejar sobre os aquartelamentos portugueses mais expostos e fáceis de alcançar, como Chugué, Caboxanque, Cobumba, Bedanda, Cadique e Jemberém. (…)

______________

Nota do editor:

quarta-feira, 21 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9635: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (3): De Mansambo para Cobumba

1. Terceiro capítulo do trabalho do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), intitulado O tempo que ninguém queria:

O TEMPO QUE NINGUÉM QUERIA (3)

DE MANSAMBO PARA COBUMBA

O pior da nossa comissão estava para vir. No fim de Março, a nossa Companhia foi informada que íamos ser transferidos para Cobumba, nome para nós desconhecido, mas logo nos disseram que ficava na zona sul próximo do Cantanhez, e estava tudo dito, uma das piores zonas de guerra na Guiné.

Deixamos Mansambo, e depois de cerca de uma semana em Fá Mandinga e mais três ou quatro dias em Bissau. Era chegado o dia de rumarmos ao Sul na LDG que nos haveria de levar até Cobumba. Iniciamos a viagem ao começo da tarde do dia 7 de Abril de 1973, sábado, acompanhados daquilo que era indispensável para início da nossa instalação no terreno. Ao anoitecer chegamos algures à foz do rio Cumbijã e ali tivemos de ficar o resto da noite. Ao mesmo tempo que a LDG parava, levantou-se uma trovoada violentíssima ao ponto de ficarmos todos assustados com a agitação do mar que até aí tinha sido de calma absoluta, depois dos marinheiros terem descido as âncoras e a trovoada acalmar, passamos uma noite com a normalidade possível.

No dia seguinte fizemos o resto da viagem rio acima acompanhados por um navio patrulha da Armada até Cobumba, sitio onde nunca tinha estado aquartelada tropa portuguesa. Chegamos ao inicio da tarde, estava na região muita tropa especial (Paraquedistas) mantendo segurança ao nosso desembarque. À medida que as quatro viaturas que levávamos (duas Berliet e dois Unimog 404) iam saindo da LDG, eram carregadas e seguiam fazendo uma pequena viagem de cerca de quatrocentos metros onde eram descarregadas.


Localização de Cobumba no itinerário Bedanda/Estrada de Catió

As viaturas tinham sido dias antes levantadas em Bissau por quatro condutores que para esse efeito tinham saído mais cedo da Companhia. Durante a descarga foram esses condutores a manobrar as viaturas (eu não indo a conduzir fui um dos que foram nas primeiras quatro carradas), à medida que descarregavam voltariam ao rio para novo carregamento. 

Sendo eu o condutor que naquele momento estava mais próximo da primeira que descarregou, o Capitão, Comandante da Companhia, disse-me para eu seguir com ela para o cais, tendo eu perguntado ao condutor que fizera o primeiro trajecto se ele queria que eu fosse ao rio, respondendo-me que não, que ia ele. Com toda aquela confusão nem sequer pensávamos em minas, pois a estrada teria sido supostamente bem picada e já tinham passado as quatro viaturas uma vez.

O condutor Cabral, e o Varela das Transmissões eram os únicos ocupantes que seguiam na viatura de regresso ao rio, percorreram cerca de trinta ou quarenta metros e a viatura accionou uma mina, que pelo estrago feito talvez fosse anti-pessoal, mas mesmo assim ficou alguns dias inutilizada, tendo o Cabral e o Varela ficado feridos, voltado logo para Bissau, rumo ao Hospital Militar num helicóptero que passados poucos momentos chegou ao local. 

O Varela não tendo nada de grave no dia seguinte voltou para a Companhia, o Cabral não mais voltou, foi ferido com gravidade numa vista tendo sido enviado para o Hospital Militar Principal de Lisboa.

O desembarque do resto do pessoal e de carga continuou, mas com atenção redobrada dado as coisas começarem a correr mal logo de início, o resto da operação de desembarque decorreu sem sobressaltos de maior. 

Na primeira noite a Companhia ficou toda no mesmo sitio. Na manhã do dia seguinte quase toda a formação:criptos,  radiotelegrafistas, condutores, padeiros, mecânicos, enfermeiros, alguns elementos de transmissões, uma secção de artilharia tendo a seu cargo o morteiro de 107 milímetros, o Comando da Companhia e mais dois pelotões de atiradores, foram instalar-se a cerca de quatrocentos metros. Os outros dois pelotões ficaram no mesmo sitio, assim como uma secção de especialistas de armas pesadas tendo como função ocupar-se de um canhão sem recuo, a precisar de reforma.

A cerca de trezentos metros do pessoal da nossa Companhia estavam mais dois pelotões que estando connosco pertenciam a outra Companhia, ou seja, estávamos distribuídos em três sítios formando um triângulo separados por poucas centenas de metros, um desses três era como que o equivalente à CCS do Batalhão já que aí se situava o Comando da Companhia, e quase toda a formação.

Depois foi instalarmo-nos o melhor possível o que não foi fácil, estávamos habituados a ter luz, abrigos com alguma segurança e menos guerra, ali tudo era diferente, houve que fazer valas apressadamente, montar tendas, fazer um forno para cozer o pão, tendo sempre como companhia a inseparável G3. 

No primeiro mês o PAIGC não nos incomodou… durante esse tempo foram feitos outros trabalhos, mas aquela calma… deixava antever qualquer coisa que nós não sabíamos muito bem o que seria!

Entretanto conforme estava previsto vim a segunda vez de férias à Metrópole; numa zona sem vias de comunicações viárias, isolada com guerra por todos os lados, restava-nos fazer o trajecto pelo rio ou via aérea «mas pelo ar só em casos especiais», e lá fui numa coluna de pequenos barcos de fibra,  os “Sintex”, até ao aquartelamento de Cufar, onde existia uma pista de aviação, creio ser a melhor do sul da Guiné. 

No mesmo dia embarquei num avião Nordatlas até Bissau, foi a aeronave mais barulhenta das sete em que viajei durante o meu tempo de guerra que foram: o DC 6, o Dakota, a avioneta DO 27, o Boeing 727, o Nordatlas, o Helicóptero, e o Boeing 707, que nos trouxe de regresso à metrópole no final da comissão.

Passados dois dias em Bissau, embarquei em Bissalanca rumo a Lisboa onde cheguei ao cair da noite, se da primeira vez que vim de férias o meu pensamento estava quase sempre no dia em que teria de regressar a África, agora a confusão era ainda maior; mesmo junto da minha esposa e do meu filho muitas vezes a minha ausência era quase total, foi um tempo de tal confusão que quase nada me lembro daquilo que por essa altura terá acontecido.

Se da primeira vez conhecia bem o sitio para onde iria voltar; da segunda apenas sabia ir para uma das zonas de maior actividade operacional do IN. Ainda bem que durante as férias não tive qualquer noticia daquilo que por lá se passava, pois se tal tivesse acontecido a partida teria sido ainda mais dolorosa.

Terminadas as férias lá fui uma vez mais rumo a Bissau onde cheguei ao fim da manhã, no mesmo dia tive transporte para Cufar e de novo no barulhento Nordatlas, como os homens por mais que fossem eram sempre poucos naquela zona, à tardinha arranjaram-me boleia para Cobumba, desta vez de helicóptero com uma breve passagem por Bedanda, onde o heli que me levava se manteve no ar enquanto o heli-canhão foi a terra, cheguei a Cobumba ao fim do dia.

Ao chegar, ainda no ar, tive oportunidade de ver que muito havia mudado durante o tempo que eu estivera fora, as muitas árvores que ali existiam tinham sido quase todas derrubadas, muita terra mexida, abrigos subterrâneos que começavam a ser feitos, tudo estava diferente. 

Ao chegar a terra era grande a curiosidade que tinha em saber o que teria por ali acontecido durante a minha ausência, e, não era menor a vontade que os meus camaradas tinham de me pôr ao corrente de tudo que tinha mudado, e que não tinha sido pouco.

E o que tinha acontecido durante a minha ausência, é que, a acalmia dos primeiros dias tinha sido quebrada com enorme violência, quando certo dia pela madrugada o inimigo se infiltrou dentro do triângulo que era formado pela disposição das nossas forças no terreno, onde existiam muitas árvores que lhe serviram de abrigo, e estando eles no meio das nossas tropas e muito perto, a poucos metros, foi necessário ter muito cuidado em particular das nossas armas pesadas para não sermos nós a bombardear as nossas próprias forças, terá durado esse ataque cerca de duas horas junto ao “arame” que nessa altura ainda não havia. 

Mas como em tudo na vida também na guerra havia momentos de sorte, e apesar da violência do ataque, dos nossos apenas um militar que estava na nossa Companhia acidentalmente ficou ligeiramente ferido (pertencia à Engenharia sediada em Bissau e tinha ido acompanhar material), do lado do inimigo segundo informações posteriores, terão tido várias baixas. Isto de estar tanto tempo debaixo de fogo não é coisa que se deseje a ninguém, só quem por lá passou pode fazer ideia do que isso era.

Durante as primeiras semanas foram levantadas várias minas próximo do sitio onde passámos a primeira noite, para sorte nossa estavam uns metros mais ao lado, talvez o sitio onde o inimigo pensasse que íamos acampar, o furriel que levantou essas minas assim como outras que entretanto vieram a ser colocadas, viria a ser uma das baixas da nossa Companhia, vitima dum acidente estúpido como são quase todos os acidentes.

Nessa altura ainda as valas eram de certo modo improvisadas, e abrigos só os destinados às comunicações, era pouca a luz eléctrica que havia, fornecida por um pequeno gerador que quase não iluminava a zona circundante de um dos três sítios em que estávamos sediados. 

Foi a partir desse ataque quase corpo a corpo que tudo se alterou, as árvores que tinham servido de abrigo ao inimigo foram quase todas deitadas abaixo, valas mais organizadas foram feitas, todos passamos a dormir em abrigos que tivemos de ser nós a fazer.

Para que o buraco a abrir tivesse mais segurança tinha de ser pequeno, assim juntaram-se dois ou três e cavavam até que coubessem de pé, depois era coberto com troncos de palmeiras e com cerca de um metro de terra por cima. 

Eu e outro condutor, o meu amigo Cruz, abrimos o nosso abrigo, se não tem sido o incidente do primeiro dia certamente também o Cabral faria parte do nosso grupo de abrigo. Durante a abertura sofri um ataque, não de fogo inimigo mas sim de abelhas, presumo que estivessem na terra entretanto remexida, pois apenas as vi quando começaram a espalhar sobre mim ferrões sem dó nem piedade, a minha primeira reacção foi meter-me debaixo de um chuveiro improvisado que nós tínhamos, três barris em cima de um cajueiro, mas elas não me deixavam, foi então que comecei a correr pelo meio do capim e só assim me vi livre delas.

Mas a tormenta não terminou ai, é que a tenda que servia de enfermaria ficou cheia de abelhas, e o enfermeiro que estava por perto enquanto viu por ali uma abelha não me quis ir tratar, com muita sorte minha não sou alérgico às ferroadas! Quando as abelhas abalaram lá veio o enfermeiro que me retirou cerca de trinta ferrões do rosto, dos quais sete estavam numa orelha, para além das dores que senti que foram muitas, não provocaram qualquer inflamação, mesmo a esta distância no tempo, ainda não esqueci a actuação menos própria do enfermeiro, coisa rara entre camaradas, mas mesmo em situações de guerra há sempre alguém que...

Depois de feito o abrigo era tempo de nos organizarmos, aproveitando alguma madeira que por lá havia fizemos cada um a sua cama onde colocamos o colchão de campanha que tinha sido distribuído a todos os elementos da Companhia, só que, o meu durante o tempo em que dormi no chão rompeu dois dos cinco canos de ar que o compunham, a almofada era independente, como não podia dormir assim, foi necessário vazar os três que ainda tinham ar e ficar só com a almofada. No sitio do colchão estava uma manta dobrada, e assim tive de dormir durante os quase nove meses que lá estivemos, dentro do abrigo tínhamos como companhia a G3,  os cinco carregadores, e mais um cunhete com mil munições.

O trabalho dos condutores era quase nada, tínhamos pouco mais de um quilómetro de picada para percorrer desde as nossas instalações até ao rio, à medida que o tempo ia passando também as viaturas que tínhamos eram cada vez menos, a primeira a ficar inutilizada definitivamente foi uma Berliet. 

A comida era feita para toda a Companhia no mesmo local e depois transportada para o sitio onde estavam os outros elementos. Certo dia seguiam na viatura o condutor e um cozinheiro levar o café, era madrugada, porque estava previsto uma saída das nossas tropas, o que não viria a acontecer, porque uma mina rebentou fazendo ir pelos ares a viatura e os dois ocupantes, e claro o pequeno almoço que eles iam levar.

Mas uma vez mais a sorte esteve connosco, perdeu-se a viatura mas os ocupantes sofreram apenas o susto e já não foi pouco, o condutor foi o mesmo que em Mansambo conduzia a viatura que accionou a primeira mina das várias com que fomos contemplados, onde o furriel Ferreira perdeu um pé, - de seu nome José de Sousa

A viatura que tinha accionado a primeira mina em Cobumba, se da primeira vez foi possível ser recuperada, à segunda já não; ficou completamente destruída, ao accionar mais uma mina dentro do arame junto a casas que andávamos a construir para a população, por essa altura já o PAIGC possuía os mísseis Strela com que tinha abatido várias aeronaves, era a terceira mina a ser accionada em Cobumba e também a que fez mais estragos, para além da perda da viatura houve três feridos graves. 

Como de costume foi pedido uma evacuação urgente via rádio, ficando nós à espera que não demorasse muito tempo, como normalmente acontecia, mas com a introdução dos Strela na guerra tudo se alterou; os nossos camaradas feridos estiveram no local onde supostamente o helicóptero os ia buscar, cerca de três horas! A mina rebentou por volta das duas horas da tarde, já passava das cinco quando de Bissau informaram que a evacuação tinha que ser feita em Cufar, depois de toda aquela espera foi necessário organizar uma coluna via rio Cumbijã com os nossos três barcos, e com o apoio dos fuzileiros que estavam próximo de nós, no Chugué. 

Era já noite quando a evacuação se efectuou, não de helicóptero como era costume, mas sim de outra aeronave que suponho ter sido um Nordatlas.

Era já tarde quando o pessoal e barcos utilizados na evacuação regressaram, se o nosso moral era já muito baixo, a partir dai ficou de rastos, todos pensávamos que um de nós poderia ser a próxima vitima do novo rumo que a guerra tinha tomado, necessitar de ser evacuado e não ser possível em tempo útil.

Das quatro viaturas que tínhamos, duas já estavam inutilizadas, mais ou menos de oito em oito dias estávamos de serviço de condução, o resto dos dias era esperar que o tempo passasse, quase sempre por perto dos abrigos. Todas as noites tínhamos de fazer reforço, o primeiro turno era apenas feito por um militar, os outros eram feitos a dois, a zona era tão má que não podíamos facilitar em nada, como éramos poucos, até os furriéis tinham de fazer reforços, e, contrariamente ao que estavam habituados, ir como nós à cozinha buscar a comida, pois ali tudo era diferente.

A razão que nos levava a estar sempre perto dos abrigos é que as flagelações à distância de quando em vez aconteciam, e a qualquer hora, mas mais grave ainda é que eram muitos os aquartelamentos ou acampamentos na zona, e no inicio dos bombardeamentos não sabíamos a quem se destinavam, só depois de começarem os rebentamentos, e de informações via rádio ficávamos a saber quem eram os destinatários.

Em Cobumba quase todos usávamos chinelos de plástico, quando começava um ataque e tínhamos de fugir para os abrigos, perdíamos logo os chinelos. A correr sem ser a medo nunca os perdíamos. Era mais um passatempo que tínhamos, depois da “festa” acabar havia que procurar onde estariam os chinelos.

Os ataques do IN por vezes tinham também como objectivo desmoralizar as nossas tropas, pois chegavam a disparar duas ou três vezes o RPG, uma ou duas morteiradas e depois paravam. De realçar que a zona onde nos encontrávamos era terra do PAIGC. Algumas vezes nem sequer respondíamos às provocações ou respondíamos na mesma medida.

Certo dia apareceu uma mulher com uma galinha para vender, coisa rara naquelas paragens, pois por ali o povo não estava connosco. Passado este tempo chego a pensar se a galinha não terá sido um pretexto para fazer algum reconhecimento atendendo ao que a seguir se passou.

Alguns de nós condutores compramos a galinha, e claro, fomos logo tratar de a pôr a jeito de ir para a frigideira. Ainda que funcionasse poucas vezes, tínhamos uma máquina a petróleo que o condutor Cruz logo se prontificou para pôr a trabalhar para fritar a galinha. 

Estava a começar a aquecer o azeite, começam a cair algumas morteiradas, há que deixar a galinha e fugir para o abrigo, mas o fogo foi pouco e sem consequências. O Cruz volta ao trabalho, estava a pôr os primeiros pedaços na frigideira volta a haver mais fogo, uma vez mais tudo para os abrigos, o Cruz começava a ficar impaciente, o fogo inimigo voltou a ser pouco, as nossas armas pesadas respondiam de igual forma, esperamos mais algum tempo tudo se calou e nós pensamos que para aquele dia já chegava,mas bem nos enganamos. 

O cozinheiro voltou ao serviço convencido que desta é que era, mal começa a pôr a máquina a trabalhar nova flagelação, desta vez com um míssil à mistura e mais umas poucas morteiradas, e como sempre todos a fugir para os abrigos, daquela vez as nossa artilharia creio que nem respondeu ao fogo do IN. O Cruz bastante aborrecido com a situação decidiu, agora ataquem mais ou não, eu é que não saio daqui enquanto não fritar a galinha! E desta vez pararam mesmo, mas só naquele dia, que a festa haveria de continuar quando eles entendessem.

Por essa altura ainda tínhamos duas viaturas operacionais. Certo dia à tardinha o furriel mecânico, acabado de chegar de férias da Metrópole, foi dar uma voltinha com uma Berliet. Andou cerca de quinhentos metros, estava uma mina na picada que o fez ir pelos ares, mas também desta vez com sorte, a viatura ficou destruída mas ele apanhou apenas um grande susto, o que não foi nada que ele não merecesse. 

Em Mansambo, quando tínhamos muitas viaturas e percorríamos muitos quilómetros, víamos condutores de outras Companhias que debaixo e em volta dos bancos traziam vários sacos com areia, tendo em vista proteger um pouco o possível impacto do rebentamento das minas a que estávamos sempre sujeitos, mais que não fosse do ponto de vista psicológico protegia-nos. Pois o nosso furriel mecânico não autorizava que puséssemos esses sacos!...

A partir dessa altura ficamos apenas com uma viatura operacional, o serviço dos condutores era cada vez menos, em boa verdade também não podíamos ser sujeitos a grandes esforços físicos, pois a alimentação a que estávamos sujeitos não permitia que tal acontecesse. 

À medida que o tempo passava mais difícil se tornava o abastecimento de géneros alimentares. Até parece mentira mas não é, houve um dia em que o almoço foi arroz cozido acompanhado com marmelada, e no local que servia de cantina, não havia nada que pudéssemos comprar.

Não havia bicho que chegasse ao arame que escapasse. Certo dia, um que os nativos diziam ser gato foi atraído à luz durante a noite tendo sido abatido, mais parecia ser um cão na fisionomia, mas pouco importou se era cão ou gato, o destino foi ser assado com batatas no forno dos padeiros. 

De outra vez foram os nativos que mataram uma cobra muito grande para lhe tirarem a pele, mas logo houve alguém que achou por bem não desperdiçar tal manjar, e também a cobra foi parar ao forno. Eu não consegui comer mas lá que o petisco parecia estar bom isso parecia. Outro dia foi a vez de esquilo guisado com batatas, dessa vez também eu quis provar, ainda pus um bocado na boca mas não o consegui comer.

A pouco mais de um mês de abandonarmos Cobumba, num dia em que eu estava de condutor de serviço com a única viatura que tínhamos operacional, os picadores como era costume fizeram a picagem do trajecto que eu depois teria de percorrer onde detectaram uma potente mina anti-carro, que foi levantada pelo Furriel Trindade o homem encarregado de fazer esse trabalho. Ao contrário de outras que foram accionadas no local, essa foi levada para a nossa arrecadação onde estava muito material relacionado com a construção, enxadas, picaretas, pregos e outro material, parte dessa arrecadação servia também de depósito de géneros alimentares, onde se encontravam umas dezenas de sacos de farinha para cozer pão. No que à alimentação diz respeito o pão foi a única coisa sempre boa.

Uma tarde, passados três dias após o levantamento da mina, estavam três militares junto do local onde ela se encontrava. Nunca ninguém soube o que se terá passado, o certo é que ouvimos um estrondo enorme, nos primeiros instantes chegámos a pensar que teria caído por ali algum foguetão, mas não, depressa encontramos a causa, a mina que tinha sido levantada dias antes, tinha explodido e feito desaparecer as instalações, ferindo gravemente os três homens que lá se encontravam, que viriam a ser evacuados para o Hospital Militar em Bissau.

Na manhã do dia seguinte recebemos a noticia que dois tinham falecido, o Furriel Galeano e um soldado do 2.º Pelotão cujo nome já não me recordo, o outro esteve cerca de um mês no hospital, vindo ainda a tempo de regressar à Companhia que passados poucos dias regressava a Bissau. 

Foi terrível o que aconteceu, mas podia ter sido ainda pior, do lado que servia de depósito de géneros, separados apenas por umas chapas, estavam mais quatro homens a jogar as cartas, tiveram a sorte de estar encostados a uma pilha de sacos cheios de farinha, que amorteceu o impacto e só por isso a tragédia não foi maior.

Faltavam poucos dias para sairmos de Cobumba sofremos mais um violento ataque que durou cerca de trinta minutos, que pareceram horas, em que o inimigo utilizou várias armas: o morteiro 82, o canhão sem-recuo, o RPG 7 entre outras, mas uma vez mais a sorte esteve connosco, apesar da precisão do bombardeamento pois caíram várias granadas dentro do aquartelamento, e junto há picada que só por sorte ainda não estávamos a percorrer. 

Apenas tivemos dois feridos ligeiros, vitimas do rebentamento de uma granada de RPG7, eram os apontadores do nosso canhão sem-recuo que ao introduzirem a primeira granada ficaram logo inoperacionais. Houve uma vitima mortal, uma mulher da população.

Nesse dia também eu estava de serviço de condução, já tinha tomado banho, tomava banho normalmente três vezes ao dia , havia pessoal nosso que tinha ido a Cufar, como de costume via rio Cumbijã, e nós tínhamos de os ir levar e buscar ao rio assim como aos barcos. Era fim da tarde, estávamos no cais à espera que eles chegassem, ao mesmo tempo que a aviação bombardeava não muito longe de nós, ainda os Fiat iam a caminho de Bissau, já estávamos a ser bombardeados, o que levou alguns a pensar que seria ainda a nossa aviação a bombardear, mas não, era mesmo Cobumba que estava a ser atacada, o rio naquela altura estava com a maré baixa cerca de três ou quatro metros, muitos de nós tentamos abrir buracos no lodo deixado pelo baixar da maré para nos protegermos, se é que isso ajudava alguma coisa, mas era o que nos restava fazer, mas as granadas mais próximas caíram a cerca de cem metros de nós.

Passados alguns dias chegou a Companhia que nos foi render a Cobumba. Durante o tempo em que estivemos com os “piras”., cerca de dez dias, fomos atacados uma vez, para eles era o baptismo de fogo, mas também desta vez apesar de nos mandarem alguns foguetões à mistura não nos causaram qualquer dano, a não ser algumas pisadelas pois os abrigos onde nos abrigávamos, durante este ataque ficaram com o dobro da lotação.

(Continua)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9623: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (2): De Bissau para Mansambo