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terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12500: Conto de Natal (17): O Natal em Brunhoso, Mogadouro

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 22 de Dezembro de 2013:


O Natal em Brunhoso

No dia 24, dia de Consoada, segundo as leis da Santa Madre Igreja, que a terra acatava era dia de jejum e abstinência.

Por ser o tempo da apanha da azeitona, levantávamo-nos bem cedo, logo ao alvorecer e andávamos 3 ou 4 quilómetros até às arribas do Sabor onde se situavam os olivais, plantados em socalcos como as vinhas do Douro.

Dias frios, desagradáveis por vezes, pela humidade, pelo nevoeiro com as oliveiras cobertas de sinceno. Aguentávamos, que remédio, a colheita da azeitona tinha que ser feita fizesse calor ou frio.
Não havia almoço ou merenda, era dia de jejum e abstinência.


Olival no Douro - Foto Olhares, com a devida vénia

Nesse dia o regresso à aldeia era uma hora antes que o habitual. O jantar da consoada era cedo, logo depois do sol-posto. Normalmente constava de batatas cozidas, tronchos de couve e polvo. A sobremesa era pouco variada, rabanadas, bolas fritas de trigo e laranjas se houvesse.
Pela meia-noite, nalguns anos, havia a missa do galo com muitos cânticos de Natal a que todos assistíamos, pois éramos todos muito religiosos e tementes a Deus, ou aos pais, para nos atrevermos a faltar.

Antes disso os rapazes da terra já tinham acendido uma enorme fogueira, a fogueira do galo, no adro da igreja com toros que tinham pedido ou roubado aos lavradores. No fim da missa homens e rapazes íamos aquecermo-nos para junto da fogueira e beber um copo de vinho que os rapazes tinham levado em cântaro ou garrafão e que serviam em 3 ou 4 copos que iam circulando de mão em mão e boca em boca.

Quando mais novo, a minha mãe algum tempo depois de nos deitarmos percorria os quartos dos filhos e filhas pé-ante-pé, disfarçada de Menino Jesus. O menino Jesus era simpático mas pobre, umas meias, um chocolate pequeno eram estas ou algo parecido as prendas que deixava no sapato.

O Pai Natal, esse milionário americano, esse velho de barbas brancas, de aspecto bondoso mas provavelmente acionista da coca-cola ou agente da CIA não se aventurava por estradas de montanha, com curvas, neve ou gelo.

Em minha casa éramos felizes, prendas não conhecíamos melhores, o polvo e as rabanadas eram únicos, autênticos manjares de consoada, a festa na igreja ou no adro era grande, cabia nela a aldeia inteira.
Mesmo em criança nunca fui muito religioso, aqueles terços obrigatórios dos longos serões de inverno de Avés-Marias e Santas-Marias tão repetitivos, devem ter contribuído para isso. Porém da missa de Natal até gostava com cânticos próprios e mais alegres e com a própria cerimónia do beijo ao Deus Menino.


Felgar - Fogueira do Galo

Foto do espólio fotográfico do Dr. Santos Júnior em Farrapos de Memória, com a devida vénia

Gostava também muito da fogueira do galo, c'os diabos camaradas eu sou um filho daquela terra.

Um grande abraço a todos e um Bom Ano
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12496: Conto de Natal (16): Oh nosso Cabo, o que é o Natal? (Juvenal Amado)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12496: Conto de Natal (16): Oh nosso Cabo, o que é o Natal? (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 7 de Novembro de 2013:

Carlos, Luís,Magalhães, Briote e restante Tabanca Grande
Venho por este meio desejar um bom Natal e um Ano Novo Próspero a todos os camaradas e suas famílias.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


Oh nosso cabo, o que é o Natal?

Em Galomaro crianças da população faziam os possíveis e impossíveis para entrar no quartel, poderem trabalhar na padaria ou no refeitório, pois tinham assim acesso às sobras do rancho que aproveitavam e levavam para as famílias.
Só uma pequeníssima minoria era bafejada pela sorte do livre de trânsito que a isso dava direito.
Mas os que entravam, faziam a troco de algo talvez, distribuição pelos irmãos e primos, que do lado do campo de futebol e da pista a horas combinadas se acercavam do arame farpado com latas ferrugentas de conserva de fruta. A distribuição era feita de forma que os nossos oficiais superiores não vissem. O assunto não era nada de cuidado, mas estava-lhes no sangue incomodarem-se com essas ninharias.

Os djubis e as bajudas, quando espantados por alguém, assemelhavam-se a bandos de pardais que fogem assustados e regressavam rapidamente ao mesmo sitio, para receberem mais umas migalhas. Costuma-se dizer que Deus dá a roupa conforme o frio e assim, para eles o pão era uma guloseima à falta de bolos e outras.
Penso que se passava o mesmo por toda a Guiné onde houvesse destacamentos.

Raramente encontramos quem não reaja favoravelmente ao pão, sendo este um poderoso e celebrado alimento até pelas conexões religiosas que no seu acto de repartir e comer encerram. A minha mãe, quando deixava cair ao chão um pedaço de pão que assim ficava impróprio para o consumo, dava-lhe um beijo, dizendo “Deus te acrescente,” como quem pedia perdão pelo sacrilégio. Sempre me lembro das minhas avós dizerem o mesmo e a minha mulher, acabou por transmitir esse hábito à minha filha. Habituado que fui a reverenciá-lo, reagia sempre mal quando a malta no refeitório lhe tirava o miolo, fazia uma bola e arremessava uns aos outros.

O pão é como o Natal nunca é igual para todos.

Quando eu era criança de escola, vi meninos frequentemente levarem para a escola da Vestiaria um pouco de broa de milho e um bocadinho de pão alvo, que lhes servia de conduto.
Esses dificilmente tinham Natal de alguma espécie.

Lá para o meio da comissão fartíssimo que estava da ração de combate, era frequente trocar quase tudo o que a dita trazia por laranjas e mangas, com miúdos que à passagem pelas aldeias que de nós se acercavam. Houve casos de grande burburinho por parte dos homens grandes, pois viam assim as suas árvores de frutos assaltadas e nós a sugarmos avidamente as laranjas, e eles a verem passar o patacão por um canudo.

Não foi uma nem duas vezes que nos tivemos de impor, quando eles pretendiam sovar os meninos e meninas que se aproximavam de nós com intuito de receberem doce, pão e latas de cavala. A porrada era uma espécie de tratamento profilático, mesmo antes de roubarem alguma coisa para trocar connosco.

Mas voltemos aos meninos do quartel.
Quando chegava o Natal ficavam admirados com os parcos festejos mas mesmo assim festejos.
Se pudessem sonhar o que era o Natal nas nossas aldeias e cidades, ficariam abismados.

O rancho melhorado com frescos largados de paraquedas pelos Noratlas, eram alguns bolos e encomendas que chegavam de casa via SPM, enfim notava-se uma euforia e todos os serviços de linha como patrulhas, reforços e colunas eram encarados com redobrada má vontade. Nessa época do ano sentíamos mais a distância, lembrávamos sem descanso o que era a nossa casa com a família reunida, os presentes e os brinquedos para os mais novos.

Quem não se lembrou quando lá estava, dos fritos de abóbora e rabanadas acompanhados com café forte pela manhã. O meu pai dizia: “agora de manhã é que estão mesmo boas”!!

Esse foi um tempo doloroso que se combateu com muito álcool e com muita irreverência com que nos queríamos mostrar fortes e assim de certa forma escondíamos a saudade.
Passei lá três Natais, o que senti só foi suportável pois se encarava aquele como sendo o último e que o próximo já estaria em casa.

Presépio do Santuário de Fátimada de autoria do escultor José Aurélio, filho de Alcobaça


- O que é o Natal nosso cabo?

Não consegui responder à pergunta porque dificilmente conseguiria transmitir o sentido, porque o Natal não tem explicação, sente-se e transmite-se como quem respira.
São gerações que nos antecederam e passaram o testemunho, são sentimentos debaixo da nossa pele, são os cheiros mas acima de tudo é o calor que se transmite pela História comum passada de avós para filhos e netos, memória que se perde no nosso passado.

Como que eu podia explicar ao menino, que esperava o resto da bianda e pão ao arame farpado, o que era o Natal, se 500 anos de convivência não tinham sido suficiente para lhes transmitir a magia?

Feliz Natal para todos os camaradas e famílias.
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12480: Conto de Natal (15): O Menino Jesus era negro (Armor Pires Mota)

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12480: Conto de Natal (15): O Menino Jesus era negro (Armor Pires Mota)

CONTO DE NATAL - 15

O MENINO JESUS ERA NEGRO

(Do livro de Armor Pires Mota "Cabo Donato, Pastor de Raparigas",  Estante Editora, Dezembro de 1991)

O alferes Casinhas Filipe passava a mão pela testa.
Sacudia-a e caía suor na parada.

Afinal, os gajos sempre tinham vindo. O Menino Jesus é que não. Dirigiu-se para junto da caserna e ainda viu um vulto, o vulto do garoto, o Braima, junto do presépio. De olhos espantados. As luzes piscavam e contrapiscavam, vibrando em cores lindas e cintilantes. Nossas senhoras de pau-preto, gazelas de pau-sangue, elefantes, terços de madeira, diversas figuras, parecia quase uma feira. Tudo, menos o Menino Jesus.
Avançou. Queria saber tudo, como correra a guerra em cada um dos sectores de defesa - os abrigos cobertos, o ninho da Breda, o mais visado, o abrigo dos morteiros, a caserna. Queria saber ainda se, no fim da refrega, violenta, por sinal, iam à saúde de todos uma ou duas garrafas de aguardente ou de Vinho do Porto. O resto, as contas da guerra, ficariam para o outro dia, ao romper da alvorada. Assim foi. As garrafas começaram a andar de mão em mão, de boca em boca, num passe alegre e redondo. Afinal, não tinha morrido ninguém. Que bom! Apenas um ferido ligeiro que o enfermeiro já tratara. Apesar de todo o nutrido fogo do IN, tinha corrido bem.
- Então, à nossa!
- À nossa!
- E à saúde dos gajos, que pode não ser muito boa - gracejou o soldado Montes, acrescentando, inchado ainda de certa empáfia: - às vezes, ainda vêm a léguas, estão a sair de Candjambare, e a mim já me cheira a pólvora…
Bebeu mais uma golada e disse:
- Hoje, é dia de Natal, tudo se lhes perdoa, e mesmo que não tenham levado mortos ou feridos, não importa. É dia de Natal. A paz seja com todos nós. E com eles também.
Fez uma pausa perante o olhar incrédulo dos restantes camaradas, mas não demorou a questioná-los:
- Então, por que não? Também são filhos de Alá.
A mata enrolava-se num silêncio profundo e gordo. Pesado de medos. De vez em quando, ouviam-se apenas os guinchos de alguns macacos, talvez acordados pelos guerrilheiros no regresso à base. O alferes mandara recolher à caserna, um velho celeiro, todos os soldados, à excepção, é evidente, das sentinelas.
Eram duas da manhã, quando se esvaziou a primeira garrafa.
Casinhas Filipe sentiu uma vontade enorme de ir bater à suposta porta da palhota de Fíli (porta não havia, não) para indagar se tudo correra bem, se não houvera problemas, apalpar-lhe a mama firme, mais uma vez, mas recuou na intenção e balbuciou para dentro: porra, mulher é mulher, guerra é guerra. Mais do que isso, queria conversa. Adiante.
Voltou a passar pelo abrigo da Breda, que ainda escaldava. Serviu ao António Mestre a outra garrafa e disse-lhe que, daí a pouco, podia ferrar o galho, à vontade, que as sentinelas estariam de olhos bem abertos, até ao couce, acrescentava, eles não viriam mais. Pelo menos, nessa noite. Tinham de tratar dos seus mortos e feridos. Se é que os houvera.
De cabeça um pouco baixa, movida por pensamentos desencontrados (que teria comprado a mulher para o filho, que guloseimas, com quem estaria a consoar?), decidiu ir mesmo repousar, estender-se na cama, que apetecia como a esteira da Fíli, depois daquelas quase duas horas de escaldante e apertada luta. Ia passar pelo presépio e desligar a gambiarra que foi, de certeza, um alvo na mira das armas do IN. Todavia, não houvera estragos importantes, embora se alinhassem nas paredes alguns buracos que, de tão repetidos, já nem estranhavam.

A um canto da messe, uma saleta de quatro por quatro metros e uma única janela, por onde se ia ao mundo, estreito, perigoso, estava um arremedo de presépio. Arrancado à selva ou à fantasia de quem o idealizou e construíra - a mulher do sargento Fortunato, o radiotelegrafista, o António Mestre, o Montes, quase todos.
Era o presépio possível. Enorme. Desordenado. Uma cabana de folhas de palma, em ogiva, onde, por isso, cabia sentado um homem. Tão grande o nosso presépio como o nosso desejo de Natal. Outro Natal. Pedaços de algodão, simulando flocos de neve sob o cheiro a forno de um dia que se prolongava um pouco, noite dentro. O algodão fora extorquido ao stock do médico. Era coisa que não faltava, porque os feridos e os mortos também não. Luzinhas tremeluzentes, intermitentes, de todas as cores. Uma velha gambiarra, que o gerador lá ia aguentando como podia. Contra todas as regras de segurança, mas são pormenores que fazem parte da estória. No fundo, macio capim maduro, onde já pastavam, silenciosos, mas senhores do seu território, animais de toda a espécie — leões, gazelas, vacas, elefantes e zebras, tudo em boa harmonia. Depois, ainda todas as estatuetas de pau-sangue ou pau-negro que os soldados haviam comprado aos djilas, havia tempos, em Farim. Tudo o que os baús dos soldados guardavam ali era despejado. Até as saudades. Naturalmente com o desejo de um Bom Natal.
No presépio, tudo, menos o Menino Jesus de quem ninguém se lembrou. Deveria ter vindo de avioneta nos sacos do correio, mas o correio não chegara. Casinhas Filipe bem fizera questão que o mandassem. Os coronéis em Bissau andavam com outras preocupações. A guerra não era tanto deles. Se calhar naquela noite, não lhes faltara camarão, santola, coisa que abundava na capital da província, ar condicionado. E muito menos o uísque. As dores de toda uma guerra era com os soldados, os milicianos e algumas patentes do quadro.
Casinhas Filipe aproximou-se. Lento o passo. Amachucada a alma. De repente, estacou. Parecia inacreditável. Estava deitado na cabana, feito de folhas de palmeira e de capim, inteirinho, o Braima, exactamente o garoto, que a companhia havia recolhido, tiritando de medo, no mato para os lados de Sare Tenem.
Achou-lhe graça. Estaria carregado de sono ou era de sonho que estava cheio? Ainda esteve para gritar: “Braima, fuge, fuge”.
Depois, estendeu mesmo os braços para levantá-lo de encontro à farda suja de terra. Não foi isso que fez. Pensou levá-lo assim sem o acordar do sono ou do sonho à cama do radiotelegrafista que, àquelas horas, já tinha mandado às favas o alfa, rómio, ómega, dormindo a sono pesado. Correu para a caserna. O primeiro soldado que encontrou, de espertina ainda, foi o Montes.
- Já temos Menino Jesus no presépio! - Disse.
- Como? - Questionou o Montes, incrédulo e brincalhão. - Não me diga que foram os gajos que o trouxeram.
- Anda, não digas asneiras, vem ver... - Avançou dois passos mais: - Venham ver o nosso Menino Jesus. Depressa, que pode acordar e fugir. Venham, venham!

Daí a pouco, à excepção do pessoal de serviço, estava meia caserna a “adorar” o Menino Jesus, quero dizer, o menino negro. O capitão que era avesso a essas coisas - dizia-se “ateu, graças a Deus” e por vezes, revoltado, parecia pedir contas a Deus pelos mortos e feridos, pela guerra que engordava - foi um dos que não se ergueu. Mas também não levantou qualquer problema.
Os soldados começaram a entoar cânticos das suas longes terras, Alentejo, Beiras, alusivas ao acto:

“Ó meu Menino Jesus,
boquinha de primavera,
dai-me esmola de paz,
por que se arma tanta guerra?”

Ao primeiro acorde, o garoto acordou, agarrando, com ambas as mãos, uma camioneta de plástico; depois, uma pistola. Estremunhado, esfregava um olho ou esticava um braço. Casinhas Filipe contou então a todos como ele se havia comportado na trincheira. Depois levantou-o contra o peito cabeludo em demasia. Deu-lhe um beijo. Fez-lhe uma carícia na carapinha. Lembrou-se do filho, da mulher. Em face daquela alegria estupenda que explodia no rosto de todos, ergueu a voz timbrada e fez uma pequena prelecção. Acabou por dizer que o deixassem ser poeta naquela noite, longe da mulher e do filho. Como castigo, teve que recitar algumas quadras de Natal. As violas cantaram, sempre em jeito de murmúrio, o seu ímpeto de estrelas novas. Depois:
- Não temos Menino Jesus de barro. Não importa. Temos melhor, de carne e osso.
Um silêncio litúrgico mordeu o rosto de todos. Depois, exclamou:
- Quem havia de ser, o Braima!
O garoto lambuzava-se já com chocolates. Casinhas Filipe, voltando-se para ele, deu-lhe uma ordem:
- Vá, deita-te no goss goss no capim, de mãos postas - e fez o gesto: - assim, assim!
O garoto deitou-se, espantado. À espera de nem sabia o quê.
- E, agora, quem vai fazer de Nossa Senhora? - perguntou o alferes, qual mestre de cerimónia.
Olharam uns para os outros, olhar dúbio. Ali só havia a esposa do sargento Fortunato. Se não fosse ela, só uma das raparigas da aldeia recolhida à sombra da tropa.
- Fili, a Fíli, meu alferes, pode ser a Fíli… - disse eu para caçoar do alferes. Ele andava de corpo perdido nos jardins nus da bonita negrinha, nos jardins dos seu cabelo crespo, na flor ardente da sua boca grossa, sensual.
- Não, essa, não - tornou Casinhas Filipe, que, de quando em vez, ia para a esteira com a rapariga. Todavia, não deixoude sugerir:
- Por que não a senhora do nosso primeiro? - Pela primeira vez, pareceu-lhe haver acordo ente todos, o que levou a concluir: - É mãe, sabe disso.
Ficou assente em cinco segundos que a senhora Benilde Rodrigues ia fazer de Nossa Senhora. Benilde Rodrigues dirigiu-se, com essa missão, para a cabana, com um sorriso largo que acabou por espraiar-se em todo o rosto, de maçãs redondas. Na cabana estava o Braima muito compenetrado do seu papel. Pegou-lhe e içou-o, com algum alegre esforço, para o regaço, depois de muito devotamente se acocorar. Mas o quadro de Natal ainda estava incompleto.
- E quem faz de S. José? - continuou o alferes.
- S. José… pode ser ali o Montes. Tem barbas compridas... - adiantou António Mestre.
- Não, credo, eu não. Eu não sou a pessoa mais indicada para esse ofício. Na aldeia, quando ajudava à missa, comia ao padre, à socapa, as hóstias quase todas. Sou um grande pecador. Como vê, nosso alferes. Também fazia as minhas patifarias e esta não era a menor.
- Casinhas Filipe, Casinhas Filipe… - ouviu-se.
Voltou a escusar-se. Mas, correndo a língua pelos nomes de quantos estavam à volta do presépio, e cada um queixando-se dos seus pecados de criança ou de rapazolas e mais recentemente pelo mato, incêndios, mortes, feridos, nas sobretudo da falta de jeito de cada um para esta tão ternurenta cerimónia, acharam uma solução:
- O nosso sargento Fortunato. Como a esposa já faz de Nossa Senhora e ele é marido, fica tudo em família. Não lhes parece? As contas, erradas ou certas, dos gastos da paparoca eram de outro foro.
Pareceu-lhes. Foram-no levantar à cama. Resmungou. Quando chegou ao presépio, fincou um joelho no chão e o outro perfilou-o, à laia de caçador furtivo, enquanto a mulher lhe pedia que se chegasse mais um pouco para ver o Menino Jesus.

A mal engendrada sagrada família já estava toda, por assim dizer, e toda em seu lugar. Porém, faltavam algumas figuras e foi nessa altura que eu, chegado ali nem há dois meses para substituir outro alferes, que fora para os Comandos, meti palavra para lembrar-lhes isso mesmo. O presépio continuava incompleto. Faltavam os pastores.
A resposta não se fez esperar. O ladino Montes foi à cerca do negro por um chibato, terçando-o ao pescoço, ao mesmo tempo que o Gaimão, outro valente soldado, sobraçava duas galinhas, uma de cada lado. Casinhas Filipe sorriu, mas não deixou de avisar que, no fim, queria que o chibato e as galinhas regressassem ao sítio. Vi que não gostaram dessa ordem. Pudera! Montes e Gaimão, dois alentejanos de fibra, arranjaram lugar no presépio, à desbanda, mas o chibato é que, não gostando lá muito, balia ou cabeceava o corpo do Menino Jesus, que o ia acariciando e chamando pelo seu nome.
O Manjaco João, muito educado, que usava óculos escuros e alguns amuletos e sempre teimara em vir para Lisboa com a tropa, fez de rei Baltazar. Pele a condizer com a do outro. Outros haviam de fazer de outras personagens – tocadores de flauta e bailarinos, que sapatearam o fandango e lavradores retouçando, àquela hora, alguns casqueiros. Ou restos deles.
António Mestre acomodou-se à cena como um taberneiro, com um garrafão de cinco litros ao ombro, mas muito mais tempo pendurado da boca de cada qual.
Feito assim o presépio de carne e osso, com mulher tagarelando e homens sorrindo sua malícia, as violas começaram a repenicar, em tom baixo, seu concerto. Eram um grito à paz. Acreditava-se mesmo que naquela noite não voltariam.
Foi aí que Casinhas Filipe, qual velho Semeão, ordenou:
- Agora, com muita ordem, e cada um representando o que lhe vai na alma, vai em fila indiana dar um beijo ao Menino Jesus, cumprimentar S. José e dar parabéns a Nossa Senhora. - Soltou um suspiro fundo: - Este é o nosso Natal.
Depois, era ver, um a um, fazendo tudo aquilo: uns cumprindo sua fé, outros brincando com o acto em si. Havia também os que não se ficavam pelos parabéns a Nossa Senhora, antes a beijavam, com gulodice. Era de meia-idade e bem feminina em seus atributos. Outros gritavam alegria, despejando ou amaciando nervos, bebendo garrafas de Vinho do Porto, que corriam de mão em mão.
Era uma alegria que só visto. Grande, só ternura, única em tempo de guerra, esquecendo feridas, mortes, sangue, nervos, pragas, medos, o dia seguinte, os dias que aí vinham, certamente sangrados de dor e cicatrizes.
- Então, à saúde de todos nós! - lançou um.
- À saúde também das nossas mães e namoradas! - gritava outro.
- E pelo nosso Menino Jesus não vai nada, nada? - questionava um terceiro, já não sei quem.
- Então, à saúde do Menino Jesus! - acrescentou, muito convicto, Casinhas Filipe.
- E pela Nossa Senhora não vai nada, nada? - gritava um quarto.
- Pois, à saúde também da Senhora! - concluía António Mestre.
- Uma golada aqui para o meu querido Menino Jesus! - continuava o Montes, que esquecia que os garotos não bebiam vinho de Lisboa, só de palma.
- Vão ao meu quarto buscar chocolate para o Menino Jesus… - sorria, de vontade, pela primeira vez, o sargento Fortunato.
- Olhe lá, nosso primeiro, isso não lhe fará mal? - E, voltando-se para o adjunto: - quem tem para aí rebuçados, bolos secos, qualquer coisa doce? - Era António Mestre. E todos olharam para o médico da companhia que já se erguia.
- A sua mãe se encarregará disso. Para alguma coisa é a mãe. E de guloseimas é com ela, não é, S. José? - lançou, em tom de brincadeira, Casinhas Filipe.
- Viva o Menino Jesus! - voltaram a dizer quase todos.
- E a companhia de Jumbembem… - acrescentou Montes.
O médico, que tinha um sorriso recatado, franco, e era o retrato da bondade em pessoa, já reaparecia, sobraçando algumas caixas a transbordar de guloseimas que a mãe, volta e meia, lhe enviava pelo MNF e ali, dentro do arame farpado, faziam a delícia dos oficiais e furriéis. Mas também dos soldados, crianças e jovens da aldeia. Era um coração que batia amor, compreensão.
Foi assim que, naquela noite, a milhares de quilómetros de nossas casas, não faltaram pinhões, passas, frutas cristalizadas, bolos de toda a espécie, que os soldados também saborearam. Muito devagar, a prolongar aquele tempo doce. O médico despejara tudo quanto tinha. Com um sorriso quase paternal e festivamente largo.

Esquecido da sua tabanca longe, o menino estava num sino, até que Benilde Rodrigues, que fazia luxuosamente de Nossa Senhora, de camisa de dormir cor de rosa sob um roupão azul, o levou para o seu quarto, deitando-o no meio, entre um que lhe fazia festas na carapinha e outro que lhe gabava a sorte.
A festa em honra do Menino Jesus era coisa de nunca mais iria esquecer. Num recanto da guerra em África. E podem crer que não esqueceu até hoje.
A festa acabou tarde, não sem um resmungo do capitão. Eram mais que horas, disse. Oxalá que o comando não saiba desta paródia!
Nessa noite, todos adormeceram ao som da viola do Magalhães e da voz coimbrã de Pedro Mendes que embalaram a alegria e a paz nas mãos, num voo de fraternidade.
Casinhas Filipe, esse, enterneceu-se ao cravar o olhar doente de infinito na paz armada do quarto - a arma atrás da porta, capacete enfiado no carregador, cartucheiras e cantil no chão e, rente à janela, onde batia a lua sanguinolenta, a farda, granadas nos bolsos - e, assim, deixou rebentar duas lágrimas que pôs a lamber os dedos.
Por mim, que tinha feito de verdadeiro publicano, por pecados que não vêm aqui ao caso, atrás de todos e fazendo um rosto triste, mas de impenitente no aconchego de ninhos proibidos, embora o mais novato naquela guerra, depois de tudo aquilo, com algo de magia, dirigi-me à caserna e arremessei-me para cima da cama incómoda. Como um soldado de chumbo.

Armor Pires Mota
Ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65
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Nota do editor:

17 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12464: Conto de Natal (14): Recordações de 1964, de um Alentejo longe de África, onde os jovens de então matavam e morriam (Felismina Costa)

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12464: Conto de Natal (14): Recordações de 1964, de um Alentejo longe de África, onde os jovens de então matavam e morriam (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa Grã-Tabanqueira e Amiga Felismina Costa com algumas recordações do Natal de 1964:


Paisagem no Alentejo (foto: Digitalsignal / wikimedia), com a devida vénia


É Natal!

Sob um céu de chumbo, tão baixo, que parecia tocar a minha cabeça, o dia manteve-se igual do princípio ao fim. Nasceu e morreu igual a si mesmo, único, pois que não recordo outro assim…
Gelado!
Ninguém na rua podia estar parado!
Na lareira grande, onde cabíamos todos, ardia o madeiro de Natal!

Encostada às brasas, a panela de ferro, mantinha quente a água, qual esquentador do passado. Uma cafeteira de barro, onde a mãe fazia o café, passava lá os anos. De manhã, o seu cheiro aquecia e confortava, e o leite de cabra, directamente da produtora, promovia os nossos pequenos-almoços, que tinham à mistura, os sorrisos e as belas palavras dos nossos pais. Às vezes, um cheiro a migas ou a fatias de ovos, vinha ao nosso encontro e preparavam-nos para mais um dia de trabalho duro, mas gostoso. O vento livre, assobiava por entre as árvores e o canavial.

O frio, só se sentia lá fora. Ali, reinava o calor humano, a compreensão, o amor e o carinho. Na ampla e bela cozinha, uma janela, que se abria a nascente, enchia-a de luz. Às vezes, debruçava-me nela para olhar o sabugueiro que permanecia ali ao lado e o topo da cerca, que partilhava o muro já velho e em derrocada em vários pontos, com a cerca do ”Ti Zé das Corgas Fundas”, partilhávamos igualmente as ameixeiras, que ignorando divisões infiltraram as suas raízes por debaixo do muro, oferecendo aos dois proprietários os seus frutos temporãos.

A poente, uma fila de oliveiras fazia o traçado da quinta, antecedendo a figueira que se situava já perto do tanque, onde um cardo leiteiro, morria e renascia, todos os anos.

Sentado sobre o tanque, vejo com frequência, uma personagem que marcou os dias da minha juventude, na sua voz característica, no seu perfil incomparável, na sua convicção, no seu querer. O poço, donde tirava a água com um caldeirão, estava ali ao lado, deixando apenas uma entrada para a quinta, entre os dois.

Aonde vais coração?
Isso, já foi há muito tempo! Meio século atrás! Mas, não sei como estão tão presentes esses dias!

Era 1964!
25 de Dezembro de 1964!
Esse dia de Natal gelado e cinzento, cor de chumbo, aliava-se ao espírito dos portugueses da época!

Lá longe, os jovens de então, matavam e morriam, e ali, chorava-se a saudade, o medo da perda, o desespero de nada se saber ao certo, pois as notícias nunca eram do dia, e, as que chegavam mais rápidas, ninguém as queria.

Felismina Mealha
Em cada dia deste espaço de tempo.
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12452: Conto de Natal (13): Um Menino Jesus antecipado na família Brian (Tony Borié)

domingo, 15 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12452: Conto de Natal (13): Um Menino Jesus antecipado na família Brian (Tony Borié)

1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66, com data de 14 de Dezembro de 2013:

Olá Carlos.
Olha, isto é a noticia do nascimento meu neto, que estou a repartir com os meus amigos sinceros.

Um abraço,
Tony Borie.



Houve risos de felicidade, abraços, é um rapaz, “it’s a Boy”, o pai abraçava a mãe, a avó benzeu-se, o avô chorou, o telefone trabalhou de diversas e para diversas zonas, longe, mais perto. Dá cá o menino, não toques no menino, deixa ver o menino, oh, é tão lindo, é parecido com o pai, o avô, a avó, a mãe, a tia, o tio, não façam barulho, deixem o menino dormir, enfim, todas aquelas expressões normais que contêm alegria, surpresa e emoção próprias de um nascimento!


”it’s a Boy”, nasceu às 2 horas e 29 minutos da tarde, com 8 lbs. e 2 oz., e com 21 inches de comprimento!

Foi numa Sexta-feira, dia 13, no ano de 2013. Somando o total dos números da hora de nascimento, que é, 2+2+9, dá o total de 13. Somando os números do peso mais a medida de comprimento, que é, 8+2+2+1, dá o total de 13.

…Querem melhor coincidência?

Os felizes papás, Brain e Sandy, quando ainda esperavam o Anthony

O avô com o neto

Pronto a notícia está dada, “it’s a Boy”, mais uma pessoa nasceu, e vai juntar- se aos milhares de milhões já existentes neste mundo, que alguns dizem que “é de Cristo”

Oxalá possa sobreviver, seja educado com segurança e em paz, para ser útil a todos, tornando este mundo mais agradável, e que daqui a muitos anos os seus descendentes se possam orgulhar do pai que tiveram.

Tony Borie, 2,29 horas da tarde, de uma Sexta-feira 13 de um Dezembro com neve do ano de 2013.

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2. Comentário do editor

Recebi esta mensagem do camarada Tony Borié, que a título privado me dava a notícia do nascimento do seu, para já, último neto. Achei que o modo e o tempo da notícia era propícia à sua publicação pelo que lhe pedi autorização para o poste que aqui fica.

Em nome da tertúlia aqui fica um abraço de felicitações ao Tony, extensível a todos os elementos da família do pequerrucho Anthony. Especialmente aos papás, desejamos as maiores felicidades para levarem a bom porto a missão de criar e educar o seu filhote.

Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10845: Conto de Natal (12): O meu Natal de 1966 em Mansabá (Manuel Joaquim)

sábado, 22 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10845: Conto de Natal (12): O meu Natal de 1966 em Mansabá (Manuel Joaquim)

1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 17 de Dezembro de 2012, descrevendo o seu Natal de 1966 em Mansabá:


O meu Natal de 1966 

Em 1966 passei o Natal em Mansabá, em ambiente muito diferente do do Natal de 1965 em Bissorã*, quer militar quer civilmente. Bissorã era uma vila e Mansabá uma aldeia. E quanto à vida militar, esta era agora muito mais dura e espartana no dia a dia passado na povoação, já que na actividade operacional poucas diferenças haveria quanto ao perigo e aos esforços desenvolvidos.

Então vamos lá à “reportagem” do meu Natal em Mansabá, usando o que ainda retenho na memória e algumas fotos:

Para mim a festa natalícia começou com um pequeno lanche tendo por base um bolo-rei que a minha querida e sempre prestável namorada tinha enviado de Lisboa. “O bolinho serviu para mais umas libações, para reavivar o ambiente, para identificar melhor o dia. Fomos 14 a manducá-lo. Parece-me que até houve uma fotografia. Se ela aparecer enviar-ta-ei.”- assim lhe respondi agradecendo a bela gentileza. A foto, se existiu, nunca me apareceu.

Não sei de outras festas de Natal no aquartelamento, devem ter existido, por isso vou só relatar a minha, passada na messe de sargentos. As “festividades” começaram ao jantar. Depois de bem “regados e comidos” seguiu-se a devida confraternização sempre acompanhada de líquidos mais ou menos alcoólicos, mais que menos (vd. foto 1). Num dos topos da sala montou-se um palco, alinhando várias mesas de refeição, onde se foram sucedendo as mais variadas atuações. Diversos “artistas” se exibiram, cantando ou dançando. Que grande exibição de dança flamenca fizemos, eu e mais dois ou três, com par “feminino” e tudo.

Foto 1

Acabada a sessão de canto e dança passou-se para a Tabanca Bar, para a “sossega”. Aqui, com o andar do tempo, as “camisas” de palha das garrafas que iam sendo esvaziadas viraram chapéus. Começou por mim essa utilização (foto 2) e não tardou ver- me a ser seguido no gesto, como se vê (foto 3):

Fotos 2 e 3

A cena começou então a ser “sacudida” com entradas inesperadas e improvisos declamatórios que chegaram a confundir os intérpretes, como se vê na foto abaixo onde três personagens parecem confusos no caminho a seguir (foto 4).

Foto 4

E o “happening” dos chapéus de palha terminou com a dita a arder em homenagem ao deus Baco (foto 5):

Foto 5

Com esta nossa atitude percebemos logo que Baco, o nosso adorado deus da “pinga”, tinha ficado tão satisfeito com a homenagem que nos incentivou a completarmos a liturgia com um refrescante banho de cerveja. Não nos fizemos rogados, como se pode ver na figura central da imagem (foto 6). Que linda figura a minha!

Foto 6

Acabada a homenagem baquiana, molhados e cansados, e alguns já bem toldados pelo “espírito” do deus romano, seguiram-se uns tempos de acalmia que foram curtos. Alguém se lembrou que, afinal, era dia de Natal e que nos estávamos alarvemente a desviar do espírito da comemoração, a do nascimento de Jesus.

Sentiu-se pairar sobre nós a voz da razão(?), ouvi a minha voz crítica interior a concordar com os possíveis ofendidos e, milagre!, inesperadamente alguém leva para a rua umas caixas de madeira e propõe fazermos uma fogueira de Natal. Dito … e mãos à obra!

As fotografias nºs 7-8-9-10 “iluminam“ o desenrolar do acontecimento:

Fotos 7; 8; 9 e 10

Definiu-se o guião a executar e que era o de, à volta da fogueira, se cantarem canções de Natal. Assim aconteceu e muitas gargantas, mais ou menos afinadas, algumas em voz gritada, soltaram com emoção as melodias que tinham aprendido na sua infância. Muitos de nós terão recordado outras fogueiras similares das suas terras longínquas e as canções que as acompanham!

-“Feliz Natal, feliz Natal … “

-“Alegrem-se os céus e a terra / cantemos com alegria / já nasceu o Deus Menino / filho da Virgem Maria” …

- “Arre burriquito / vamos a Belém / ver o Deus menino que a Senhora tem … “

 -“Adeste fideles …”

e algumas outras canções ecoaram pela tabanca, vindas das gargantas de soldados desterrados num lugar de guerra quando comemoravam o nascimento de alguém que veio ao mundo pregar a paz e a fraternidade.

Como que se sentia “presente” o espírito desses lugares longínquos que, naquela altura, também poderiam estar cantando canções de Natal à volta de uma fogueira. Uma sensação de comunhão cerimonial que a distância que nos separava não impedia. Senti-me comovido.

Findos estes improvisados momentos de convívio festivo dispersámo-nos, continuando alguns pela noite dentro extravasando os seus sentimentos com atitudes mais ou menos descontroladas, algumas incompreensíveis à primeira vista. Eu, cansado e moído emocionalmente, ainda procurei mais uma cerveja e dirigi-me à sala de refeições para me sentar e descansar um pouco. A sala não tinha ninguém naquela altura e dei por mim a olhar um quadro de “presépio” fixado na parede nua. Feliz Natal, dizia a composição. Senti-me a gostar de ser fotografado junto dela. Encontrei o “fotógrafo de serviço” que ainda andava por ali (infelizmente esqueci quem era). Montado o cenário, apostei que seria capaz de me equilibrar nele. E venci a aposta, como se vê por esta foto (Foto 11) que ficou para, felizmente, me fazer recordar a noite de Natal mais emotiva da minha vida.

Foto 11

É tempo de dizer que naquela altura eu não era crente, nem hoje o sou. Mas respeito a religião seguida pelos outros e todas as religiões me interessam como área de estudo. Gosto de frequentar templos e de assistir a cerimónias religiosas, gosto de estudar a teologia e a filosofia das religiões, “adoro” música e todas as artes com incidência religiosa.

Talvez assim se compreenda o teor da notícia que deste acontecimento dei à minha namorada. Dois dias depois, ainda na ressaca física e psíquica do que me tinha acontecido na noite de Natal, as emoções que então senti estavam a diluir-se; talvez porque não assentassem em fé religiosa mas na força do espírito amigo, solidário e comunitário daquele grupo de camaradas, força que então se manifestou a propósito de uma data de cariz religioso. Ou então a visão global do acontecido naqueles dois dias tenha feito arrefecer as referidas emoções e, por isso mesmo, me tenha trazido alguma desilusão:


“A noite de Natal cá se passou. Uma barulheira infernal, bebedeiras a torto e a direito, noite em branco, choros, convulsões, maluqueiras, gritos histéricos, socos, cabeças partidas, mesas, copos, cadeiras a quem aconteceu o mesmo.
Bem, isto não foi Natal. Foi Carnaval e do bom. Alegria falsa, no entanto. Se na noite de 24 para 25 ainda alinhei na coisa, ontem já não o consegui fazer. Era de mais. A alma estava tão triste!... E continua".

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Notas finais sobre as imagens das fotos:
- Os militares das imagens pertenciam, na sua quase totalidade, ao BCaç 1857 (CCS, CCaç 1419, CCaç 1421).
- Apesar de reconhecer a maioria dos fotografados, optei por não os identificar, seja porque receio trocar os nomes de alguns seja porque de outros nem sequer tenho ideia do seu nome.
- Por fim chamo a atenção para a figura de um soldado que prestava serviço no bar. Aparece nas fotos nºs 6 (2º à esquerda), 8 (primeiro plano, à direita), 9 (1º à esquerda), 10 (à entrada da porta). Sem expressão, sem um sorriso, parece totalmente alheio ao que se passa, apesar de ser patente a sua curiosidade pelo que está a ver! Impressionante.

Para todos os meus camaradas da Guiné e restantes leitores deste blogue, umas Festas Felizes
Manuel Joaquim
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10839: Conto de Natal (9): O meu Natal de 1965 em Bissorã (Manuel Joaquim)

Vd. último poste da série de 22 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10842: Conto de Natal (11): O Neurónio do Natal (Jorge Cabral)

Guiné 63/74 - P10842: Conto de Natal (11): O Neurónio do Natal (Jorge Cabral)

1. Mensagem do nosso camarada, sempre Alfero, Jorge Cabral, com data de 20 de Dezembro de 2012, contendo um pequeno grande conto de Natal.

Caros Amigos!
Com um Grande Abraço de Natal!


O Neurónio do Natal 

Um neurónio no coração?

Espantados os médicos, discutiam.

Podia lá ser...

E o ancião esperava. Não lhe doía nada, até sorria.

O estranho caso foi estudado por todo o mundo.

E o nome do paciente divulgado - Jorge Cabral.

Mas o mistério continuava... Até que um rapazola, ajudante de enfermeiro, exclamou:

"É um neurónio da época! Se calhar o sacana do velho ainda tem Natal!"

J.Cabral
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10840: Conto de Natal (10): O Natal de uma criança (José Câmara)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10840: Conto de Natal (10): O Natal de uma criança (José Câmara)

1. Mensagem de Natal do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 21 de Dezembro de 2012:


O Natal de uma criança

É Natal! As recordações sucedem-se em catapulta. Lembramos os familiares, os amigos, os que partiram e os que estão longe. Revemos situações mais ou menos alegres e outas mais ou menos tristes. O nascimento do Menino nas matas e bolanhas de África ainda nos fazem chegar as lágrimas aos olhos.

Aqui, no blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, onde nos vamos encontrando, dia após dia, fomos formando uma grande família. O sangue que lhe corre nas veias tem muitos cromossomas, mas apenas um nome: Guiné!

Tal como em todas as famílias normais e razoáveis deste mundo, esta nossa família também tem os seus contratempos, as suas questões, as suas desavenças. Mas também sentimos que, quando necessário é, somos capazes de contemporizar. Esta é a grande força do blogue, a grande força das famílias que se prezam.

Nos últimos dias, perante um abalo que fez remexer muitas paixões, no que senti ter tido alguma culpa, vi imensas boas vontades à volta do poilão. Por isso, sinto que hoje temos a capacidade para sermos mais fortes que antes. Mesmo que, para tanto, tenhamos que aprender a sermos meninos uma vez mais na vida.

Na minha família, as nossas netas, como crianças que são, foram educadas a partilhar postais da sua escolha entre si. Eram elas que tinham que os produzir. Daí não admirar ter ficado sensibilizado com algumas das suas escolhas, que eram religiosamente dependuradas na árvore de Natal.

Uma das minhas cinco netas, a Isabella, então com sete anos, dependurou na árvore de Natal um postal feito e escrito por ela, endereçado às primas, também minhas netas. Por que com as crianças estamos sempre a aprender, guardei aquele postal que senti ser o que melhor espelha a dávida do Natal: a partilha de Paz e Amor!

Se me permitem, deixem-me partilhar convosco, o postal de Natal mais bonito que eu, avô babado, algum dia vi dependurado numa árvore de Natal.


Natal de 2010 visto pelo coração de uma criança de 7 anos: partilha, paz, amor.
O Natal não é um dia qualquer, é o da celebração da vida, da amizade, da elegância, da cortesia, da boa vontade. O Natal é tudo aquilo que de bom nós queremos para os nossos semelhantes. Que a mensagem da minha neta entre nos vossos corações e vos traga um sorriso de criança.

Hoje, quando me virem na janela dos vossos computadores, podereis ter a certeza que estou ali celebrando convosco e os vossos familiares um Feliz e Santo Natal.
José Câmara
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10839: Conto de Natal (9): O meu Natal de 1965 (Manuel Joaquim)

Guiné 63/74 - P10839: Conto de Natal (9): O meu Natal de 1965 em Bissorã (Manuel Joaquim)

1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 17 de Dezembro de 2012:

Meus caros camaradas Luís, Carlos e Eduardo:
Aqui vai para publicação no blogue, se o entenderem, um texto sobre o meu Natal de 1965.

Para os três grandes, um grande abraço do
Manuel Joaquim



O meu Natal de 1965

O Natal surgiu dois meses depois da minha chegada a Bissorã, terra que eu sentia muito acolhedora mas … não esquecia que muitos dos seus habitantes poderiam estar ligados por laços familiares e/ou afectivos ao IN e alguns deles seriam mesmo guerrilheiros.

A propósito, usei um aerograma especial para enviar as Boas-Festas à minha namorada:


“Minha querida, a minha muita vontade de te fazer companhia nesta quadra de promessas e esperanças não é, infelizmente, suficiente para transportar o meu corpo até junto de ti. (…) desejo afirmar-te que a esperança (…) me não abandona. 1966 ultrapassá-lo-ei (…) . Não tenho tido muito tempo para te escrever. As nossas actividades redobram nesta altura para evitar que haja qualquer coisa que nos perturbe mais profundamente (…)”.

Não tenho grande memória deste Natal, melhor dizendo, dele só retenho duas imagens. Uma é a de ver um pequeno grupo de crianças com uma pequena caixa de uns 25cm de altura, tendo dentro dela um rudimentar presépio com a figurinha do menino iluminada pela fraca luz de uma pequena vela ou, talvez, de um qualquer pavio embebido em óleo. As crianças, vi-as ao princípio da noite, “assediavam” o pessoal militar que encontravam nas ruas da vila e recitavam pequenas frases a propósito do Menino Jesus, entrecortadas por “parte um peso, parte um peso!” enquanto elevavam a caixa para se ver melhor o seu conteúdo. Pertenceriam, creio, à pequena minoria cristã da vila da qual não me tinha dado conta até então.

A outra imagem é muito diferente, refere-se à “socialite” local, digamos assim para facilitar.

Na noite de Natal o decano dos comerciantes libaneses sr. Michel, acho que era este o seu nome, preparou uma recepção na sua casa, para a qual convidou os comandantes das companhias alocadas em Bissorã, CArt 643 e CCaç1419, seus oficiais e 1.ºs sargentos e sendo o restante pessoal militar representado por um furriel e por um praça de cada uma das companhias. Posso estar enganado mas é a ideia que tenho.

Da CCaç 1419 fui eu o furriel escolhido. Não sei se “de motu próprio” ou cumprindo decisão superior, o 1º sarg. da Companhia fez-me o convite que eu aceitei, algo contrariado, após alguma insistência.

Para a ocasião vesti o meu fato “de ir à missa” comprado na então famosa casa de moda da baixa lisboeta, a Casa Africana, uns dias antes de embarcar. “Ótimo para usar em África”, disse-me o vendedor em resposta à minha inicial informação de que estava prestes a embarcar para a Guiné e precisava de um fato para levar.

Fig. 1: Exemplos de publicidade da Casa Africana, empresa extinta nos finais do século passado. ( Imgs retiradas da Internet)

E lá fui de fatinho azul-ténue, muito leve, com risquinhas verticais pretas e muito finas. A confraternização correu bem. Houve “comes e bebes” e muita conversa, geral e particular, entre os convidados e o dono da casa. Recordo bem a qualidade do uísque, uma maravilha, do resto tenho noção vaga duma conversa do anfitrião discorrendo sobre as suas relações com personagens conhecidas na política e na sociedade empresarial, tanto na Guiné como em Portugal (no Continente, como então se dizia). Não sei que idade teria o sr. Michel mas para mim era um homem já idoso, um senhor culto, bem viajado, bom conversador e de óptimo trato. Penso que teria sido, antes da guerra, um grande comerciante. Em 1965 a sua actividade comercial já estava muito reduzida.

Havia música mas não havia “garotas”! A animação não foi muita mas deve ter havido alguma já que o evento durou umas boas horas. O certo é que não me lembro dela. Talvez por causa do meu estado de espírito naquela altura como se pode adivinhar pela breve referência que fiz ao assunto num aerograma enviado à namorada:


“Há por aqui umas famílias de emigrantes libaneses que nos proporcionaram umas festazinhas agradáveis na quadra que passou há pouco. Mas o sofrimento cá anda roendo a alma. E para muitos de nós a bebedeira foi a fuga. O whisky aqui é barato. Assim a bebedeira fica barata também.”

Uma nota final:
Interessante o lembrar-me ainda hoje da qualidade do uísque do sr. Michel e não me lembrar de muitas outras coisas mais importantes. Pensando bem, compreendo. Pois para quem andava afogando mágoas, eu por exemplo, curtindo alegrias e lavando o estômago com VAT69, J. Walker red label e outros deste género, encontrar e saborear o uísque do velho libanês foi um momento inolvidável. Aquilo não era uísque, aquilo é que era whisky!

Para todo o pessoal deste grande blogue, muito Boas-Festas!
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10838: Conto de Natal (8): Oportunidade para mudar de vida (Joaquim Mexia Alves)

Guiné 63/74 - P10838: Conto de Natal (8): Oportunidade para mudar de vida (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Esp/Ranger da CART 3492/BART 3873, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73), com data de 18 de Dezembro de 2012:

Meus camarigos Luís, Carlos, Eduardo e Virginio e todos os camarigos da Tabanca Grande
Os meus votos de um Santo e Feliz Natal e os desejos de um Novo Ano bem melhor do que este que está a acabar.

A vós deixo este "presente" de Natal: o meu Conto de Natal de 2012

Um abraço sempre camarigo do
Joaquim Mexia Alves


CONTO DE NATAL 2012*

Oportunidade para mudar de vida

A tarde chegava rapidamente ao fim. Era Inverno, e por isso mesmo, muito cedo o Sol baixava por entre as árvores. Estava cansada, muito cansada!
Tinha passado todo o dia à beira da estrada, à espera, numa vida em que se tinha embrenhado e a envergonhava, mas da qual não arranjava forças para sair. E diziam que a prostituição era uma vida fácil! Pior ainda, pois tinha que à noite ir para aquele bar, fazer de conta que estava bem-disposta e gostava daquela vida! Reconhecia que o enorme cansaço que sentia era muito mais psíquico, do que físico.

Há tempos que a ideia de sair daquela vida, era um constante pensamento, que em todos os momentos lhe tirava o descanso e o pouco bem-estar que ainda pudesse sentir. Lembrava-se bem do namoro com aquele rapaz, que parecia ter tudo o necessário para acabar num feliz casamento. Depois engravidou, e começaram as complicações. Ele apresentou-lhe aquele “amigo” e quando deu por si estava num bar a beber taças de suposto “champagne”, com homens que não conhecia. Daí até ao sexo pago foi um instante! Vá lá, tinha resistido ao aborto, e aquela filha que estava em casa, era agora a sua única razão de viver.

Ao princípio tudo pareceu fácil, e até se convenceu que não fazia mal nenhum a ninguém, nem a ela própria. Já que tinha aquele corpo, aproveitava-o para ganhar dinheiro e depois … Depois haveria de sair daquela vida. Tantas promessas daquele patife! Era preciso agora ganhar dinheiro, dizia ele, e depois quando tivessem um “pé-de-meia”, partiriam para outras paragens onde não os conhecessem, e haviam de viver felizes.

Mas não era possível fazer nenhuma poupança, porque ele tirava-lhe tudo o que trazia para casa, para gastar com os amigos. E quando o que trazia deixou de chegar para tudo o que ele queria, começou a obriga-la a ir para a estrada, onde ainda se sentia mais aviltada e destruída. Há já há algum tempo que sentia vergonha de si própria e agora que os anos iam passando preocupava-se muito mais com o futuro da sua filha, e com o facto de um dia ela poder saber o que era a sua vida.

Veio-lhe à memória a casa dos seus pais. Não era gente com dinheiro, mas era gente de amor e lembrava-se bem do carinho com que a tratavam, (era filha única), e dos exaustivos conselhos do seu pai acerca daquele namorado que, dizia ele, não prestava para nada. Mas a juventude que julga tudo saber, tinha-a levado a sair de casa para seguir o seu grande amor! Grande amor??? Se pudesse agora ver-se livre dele, seria o melhor presente de Natal que alguém lhe podia dar, porque, lembrou-se, era dia 24 de Dezembro, véspera de Natal, a noite dos presentes em casa dos seus pais.

Uma tristeza profunda estremeceu-a! Não, não iria passar mais esta noite de Natal naquele bar, vivendo aquela vida! Tomou uma decisão e disse para si mesma: Vou passar por casa à hora que ele não está, (deixo um recado com uma desculpa qualquer), pego na menina, e vou passar a noite de Natal a casa dos meus pais, pois tenho a certeza de que me hão-de receber.

Tomada a decisão, pareceu-lhe sentir um alívio imenso no cansaço que a assolava. Chegou a casa, tomou um banho rápido, desejando que mais do que o corpo, lhe fosse lavada a “alma” para se poder encontrar com os seus pais. Escreveu uma qualquer desculpa num papel, pegou na filha e saiu rapidamente para a casa da sua infância, que ficava numa terra muito próxima.

Passado pouco tempo já batia à porta da casa onde tinha crescido e brincado com tanta felicidade. A porta abriu-se, e, ao espanto inicial, sucederam-se quatro braços que a apertavam e esmagavam de amor! Já na sala começou a ensaiar um discurso de desculpas, de justificação, mas os seus pais disseram-lhe com carinho para se calar, sentar no sofá, pôr os pés em cima da mesa pequena e descansar, porque se tinham apercebido do seu enorme cansaço.

Pegaram na neta e foram para o quarto ao lado. Ela sentiu-se num casulo de amor! Um calor inexplicável fazia-se sentir no seu coração e ela fechou os olhos desejando que aquele momento nunca mais acabasse. Sem saber como, viu-se de repente no meio da praça da sua terra e muita gente à sua volta, gesticulando e gritando. Percebeu que a insultavam, lhe chamavam prostituta e que a queriam expulsar da sua terra. Cheia de medo e vergonha, as lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo.

Viu então um homem que se destacou do meio de toda aquela gente, e com uma voz cheia de força, mas de carinho também, disse: Aquele que de vocês que nunca errou ou cometeu nenhum mal, pegue no braço dela e leve-a até aos limites aqui da terra. E ao dizer isto, aquele homem olhava-os nos olhos, firmemente.

Lentamente deixaram de se ouvir gritos, todos aqueles homens e mulheres baixaram as cabeças e começaram a sair da praça, em silêncio. Então o homem aproximou-se dela, enxugou-lhe as lágrimas com os seus dedos e disse-lhe: Pelos vistos ninguém te expulsou! Também eu não te expulso, antes te abraço! Vai à tua vida, mas muda-a enquanto podes! 

Pareceu-lhe que o homem lhe pegava no braço, mas quando acordou percebeu que era o seu pai que delicadamente lhe dizia: Anda, vem comer, a ceia de Natal está na mesa!

Lembrou-se da catequese em criança e da passagem bíblica em que queriam apedrejar a mulher adúltera, e percebeu que num sonho Deus lhe tinha “falado”, e dado uma nova oportunidade para a sua vida. Tinha finalmente a força de que necessitava para pôr fim àquela vida! Soube naquele momento que tudo tinha mudado e que não voltaria a fazer da sua vida a desgraça que até então vivia. E alegrou-se, por ela, pela sua filha, pelos seus pais.

Feliz aproximou-se da mesa e a sua mãe disse-lhe: Como estavas a dormir, foi a tua filha que colocou o Menino Jesus no presépio.

Olhou para os seus pais com todo o carinho de que era capaz, pegou na sua filha ao colo e disse: O Menino Jesus já não está no presépio. Está no meu coração!

Marinha Grande 10 de Dezembro de 2012

Com este Conto de Natal, desejo a todas as amigas e todos os amigos que lêem este blogue um Santo Natal, na paz e no amor de Deus em suas famílias.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste publicado no Blogue Que é a Verdade? do nosso camarada Joaquim Mexia Alves

Vd. último poste da série de 21 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10836: Conto de Natal (7): Um Natal ainda mais triste (Domingos Gonçalves)

Guiné 63/74 - P10836: Conto de Natal (7): Um Natal ainda mais triste (Domingos Gonçalves)

1. Mensagem de Natal do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), com data de 13 de Dezembro de 2012:

Em primeiro lugar, ao aproximar-se mais uma quadra festiva, para todos nós muito importante, venho por este meio desejar, ao camarada Luís Graça, um Feliz Natal, e um ano de 2013 repleto, só, de coisas boas, que aprecie, em especial muita saúde. E, claro, que a crise de que tanto se fala e escreve, o não atormente.
Este meu sincero desejo é extensivo a todos os camaradas que, à sombra da árvore enorme, que se ergue no centro da Tabanca Grande, vão contando as suas velhas histórias.

Aproveito para disponibilizar um apontamento respeitante ao Natal de 1967, que, se interessar, pode ser publicado.

Quanto ao vaticínio sobre a morte do Blog, não acredito na voz dos profetas. Nos tempos que correm, as profecias não fazem sentido. Tudo quanto é humano, terá um fim. Mas também é certo que os humanos criam muitas coisas que, mesmo quando vivem para além da barreira dos cem anos, deixam ficar do lado de cá. O Blog, pode muito bem ser uma dessas coisas.

Domingos Gonçalves


Natal

Às quatro horas e meia da manhã acordei ao som de rebentamentos de granadas.
Levantei-me imediatamente, pensando que se tratava de um ataque a Guidage. Felizmente era fora do nosso sector.

Às sete horas levantei-me novamente. O pessoal da companhia acabava de sair para picar a estrada de Sansancototo e do Caur, para facilitar a passagem de um grupo de tropas que vinha de Farim.
Às 9 horas, dois grupos de combate saíram para Udasse, onde foram montar uma emboscada.
Na realidade não foram para o sítio que constava da ordem de operações, mas para outro bastante mais próximo, após acordo prévio com o capitão.

Antes do almoço atravessei o Cacheu, num bote de borracha, com alguns homens, e fui armadilhar os terrenos da margem Sul do rio. De tarde fui montar armadilhas em todos os locais que o inimigo pudesse utilizar para se aproximar de Binta. Deixei tudo minado. Durante a ceia de Natal não podíamos correr o risco de sermos atacados pelos gajos.

A ceia de Natal correu sem qualquer espécie de entusiasmo. Materialmente falando até não faltou nada de importante, mas neste ambiente, o Natal tinha sempre de ser frio e triste. Era o último que passávamos na Guiné.
No fim da ceia, o capitão meteu-se nos copos e tomou uma valente bebedeira.

Dia 25 
Levantei-me cedo. Durante a noite consegui ter um sono repousante, sem pesadelos ou sobressaltos. Mesmo não sonhando com presépios, e música de anjos, tive uma noite tranquila. Mas, sem que me tivesse apercebido, durante a noite passou-se algo de anormal.

Pela manhã verifiquei, com surpresa, que o capitão estava cheio escoriações, e caminhava com dificuldade, com o auxílio de uma bengala. Alguns furriéis apresentavam, também, ferimentos, aparentemente ligeiros, e tinham aparência misteriosa. Comecei a pensar: Será que o meu sono foi tão profundo, que nem me deixou ouvir um ataque dos turras, concretizado durante a noite de Natal?

Fiquei na dúvida. Eu que tenho um sono leve, que acordo sempre ao menor ruído, como é que não escutei nada? Será que, durante a noite, as granadas choveram sobre Binta, sem que de nada me tenha apercebido? Na vida tudo pode acontecer, mas essa possibilidade não se me afigurava plausível.

Mas, não. Afinal, os turras não tinham atacado Binta, durante a noite. A história daqueles ferimentos, daquelas escoriações, e de todo aquele mistério, tinha outros contornos.

Já de madrugada, depois de ter andado na companhia do deus Baco, que de santo não tem nada, e é mesmo alheio à ideia de Natal, durante algumas horas, o capitão lembrou-se de que lhe assistia o dever sagrado de passar uma ronda para verificar se as sentinelas estavam vigilantes, e nos seus lugares. Como as sentinelas estavam na periferia da tabanca, a distância a percorrer era considerável, pelo que a ronda só podia ter lugar, se fosse feita de Jeep. Vai daí, a cair de bêbado, o nosso homem subiu para a viatura, desencaminhou um grupo de furriéis para lhe fazer companhia e deu início ao trabalho, a que se propusera.

Mais uma vez ficou provado que o vinho traz as pessoas para o seu verdadeiro lugar. Ele que, por norma, não se preocupava com este tipo de tarefas, sob o efeito do vinho acordou para o cumprimento do dever, a que nenhum chefe deve fugir. Mas, o vinho que lhe lembrou as obrigações, foi o mesmo que lhe tirou o tino, e a visão. O homem, altas horas da noite, enfiou o Jeep num grande buraco, com todos os passageiros que transportava. E só a muita sorte impediu que a noite de Natal se transformasse em mais um grande pesadelo, para todos nós.

A irresponsabilidade não teve limites. Um anjo do Natal – o anjo da guarda -, pairava nos céus de Binta, durante aquelas horas que não foram de grande azar.

Ainda bem que tudo assim aconteceu, e o desastre apenas provocou ligeiros danos pessoais.
Certo é, porém, que se o inimigo nos tivesse atacado durante a noite, as coisas poderiam ser bastante piores.

Felizmente que a irresponsabilidade nem sempre traz com ela consequências trágicas. É que, se tivesse havido um ataque, 50% dos homens da companhia, devido à bebedeira, não estavam em condições de utilizar as armas.

E tudo isto tornou o Natal ainda mais triste.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10832: Conto de Natal (6): Natal na Guiné, As Capelinhas e os Quincons (António Estácio)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10832: Conto de Natal (6): Natal na Guiné, As Capelinhas e os Quincons (António Estácio)



1. Mensagem de Natal do nosso amigo tertuliano António Estácio, natural da Guiné-Bissau, com data de 18 de Dezembro de 2012:

Caras Amigas e Amigos.
Num fraterno laço de muita amizade, a todos saúdo e endosso os melhores votos de Boas Festas, cantando a beleza dos tempos distantes da Guiné.

António J. Estácio



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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10830: Conto de Natal (5): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (4) (Armor Pires Mota)

Guiné 63/74 - P10830: Conto de Natal (5): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (4) (Armor Pires Mota)

1. Quarto e último capítulo do conto de Natal "Papagiao Verde Versus Estrela do Norte", um original do nosso camarada Armor Pires Mota (ex-Alf Mil Cav da CCAV 488/BCAV 490, Guiné, 1963/65):



CONTO DE NATAL

PAPAGAIO VERDE 
Versus ESTRELA DO NORTE 


A dois combatentes lucidamente
apaixonados pela Guiné-Bissau,
Drs. Mário Beja Santos e Carlos Silva

A velha aldeia de Lala…

Quando as flores secaram e acabou o stock, o Azambuja nunca mais enviou folhas de manjerico e a noiva perguntava constantemente por elas, segundo me confidenciava, e se ele… já tinha mudado de sítio. Ou se já a tinha trocado por uma negra. Nunca me descosi. Depressa, o jardim foi a antítese da paz e da harmonia, uma trincheira.


4.º Episódio

Quando acabámos de fazer o Papagaio Verde, que íamos dizendo, entre goladas de vinho do Porto, bem saboreadas, e alguns sorrisos breves, que era para o Menino Jesus, mas era, na verdade, para o menino negro, caminhava para a meia noite e nem uma voz longínqua, pelos quintos do inferno, ou leve restolhada acordavam a solidão que pasmava pelas profundezas da mata além.

Mas nasceria, simbolicamente, Deus naquela noite como na aldeia, no presépio, um pouquinho em nós? Mistério de Deus. Uma coisa todos sabíamos: é que nem o capelão viera. Fora para Guidage, sempre muito assediada pelo IN, dissera o radiotelegrafista. Disse e todos ficaram tristes como qualquer poeta de sonhos de menino. Àquela hora, ao rés-do-chão do Senegal, talvez até tivesse dado já a beijar a imagem, que levara em mala de mão, entre paramentos e estampas. Nós, só ao outro dia. Se o Menino Jesus não se deixasse apanhar pelos guerrilheiros cujo número crescia, brincava eu…

A mulher do capitão, sentada em cadeira com breve espaldar de madeira, soprava-se, agitando um leque, de jornal feito. Ou era um leque de palha? Olhe, já não me lembro bem! Para o efeito literário tanto faz. O ar fazia forno e, via-se, vadiava os olhos por longe, em terra nenhuma. Como nós. Imensas vezes.

– Ser mãe de soldado ou mulher de capitão, hoje, não é fácil. É princípio de lágrimas. A desgraça pode bater-lhes à porta pelas cinco da tarde, como diz o poeta – desabafou, voz corrida, a professora.
– Tens medo de quê, Mónica? – Era o capitão a questioná-la.
– Nem sei bem, mas cheira a coisa estranha, ruim.

Mónica, muito pensativa, como se, antes de dizê-las, penteasse as palavras, os pensamentos:
– Aqui não se pode falar em medos, pois não?
– Olha, hoje é noite de Natal. Querida, não se fala mais nisso… que dói. E, ponto final!

E muito menos se falaria no caso do Pônas.

Para a missa erguemos um arco triunfal de palmas, arrancadas às jovens palmeiras da beira do rio, ao lado da mesa da messe, onde a gente comia bifes de vaca velha, de anos e anos. Por vezes, regados com um carrascão de se lhe tirar o chapéu. Até dava para escrever nas paredes palavras obscenas, que alguns se lembraram de disfarçar para o padre capelão não se escandalizar, e muito menos o Menino. Em face disso, ainda chegámos a pensar em pedir ao almany permissão para a missa ser celebrada na mesquita, que o pelotão do alferes Cunha Matos decidira erguer, com a aprovação de negros e brancos, no centro da aldeia. Distinguia-se do comum das casas. Mas era seguramente um longínquo arremedo da bela mesquita de Bafatá que pousava no meio da povoação. Fora construída sobre o comprido e tinha porta voltada para Meca. Como se fosse a ábside. Tinha também, a anteceder o edifício, se é que posso dizer assim, um alpendre amplo, também coberto de chapa de zinco. Contornava o arremedo do templo ainda outro alpendre, este mais estreito. Isto, depois de construída uma tabanca de raiz, com os mesmos materiais: adobes feitos de terra negra, misturada com algum capim e calcada pelos negros. Com uma diferença: era coberta a chapa de zinco. Uma e outra coisa tiveram eco nas aldeias em volta, embora distantes. O chão, que era atapetado de esteiras, velhas e novas, onde os negros rezavam, curvando-se muito até tocar o chão na direcção de Meca, todos os dias, era varrido pelas meninas (hoje, mulheres feitas, foram as primeiras a reconhecerem-me, logo a seguir ao Abdul) com toscas vassouras, feitas de folhas de jovens palmeiras. Eram também elas que, entre uma algaraviada de vozes e uma nuvem cariciosa de sorrisos frescos, limpavam o terreiro em frente de suas casas e também da caserna e da messe (que nome pomposo, não é!) dos oficiais e sargentos.

Levava-se para lá, para a mesquita, o arco de palmeiras, a mesa do bar para servir de mesa de altar, e pronto, dizia eu. Acabámos por não ir, já não sei por que motivos ou ponderosas razões. De guerra talvez.

Quanto à nova tabanca de Algures, daí a pouco, Papagaio Verde, era importante dar uma casa a cada uma das famílias, recolhidas à nossa sombra. Era raro tal acontecer, mas a verdade é que aconteceu.

Para o bom relacionamento entre nativos e a tropa, foram definidas algumas regras de sã convivência: muito respeito para com todos, sobretudo em relação às raparigas, suprema tentação dos soldados, e para com os idosos. O respeito era muito lindo, dizia o capitão, e o mais recomendável é que nada de relações sexuais. Brincar, sim, mas… À maior parte, sabe como era, custou a cumprir tais recomendações. Quem ultrapassou todas as marcas foi o António Pônas, castiço alentejano, que estava agregado à cozinha. Viram-no sair, mais do que uma vez, da arrecadação dos abastecimentos, com a mulher mais velha da população, mulher garandi, boca desdentada, que passava muitas tardes fumando seu longo cachimbo de cana e de paz. Vida mansa! Quase sempre com um ou mais cães à volta das canelas, lambendo o sol ou a sombra, mordendo a sarna do tempo velho.

De um modo geral, de mãos escanifradas, fumava de olhos fechados, ou melhor, com um ar adormecido ou enigmático, e lançava o fumo, se o vento estava de feição, para o lado do sul, de onde retinha a primeira memória, o sul. Outras vezes, para o ar, acima de sua cabeça. Ficava pasmada, de quase nenhum lugar, pairava num mundo longe, quem sabe, voava, aos poucos, enrolada nas espirais de fumo. Tinha uma idade indefinida e um número incontável de rugas. Um rio de solidão, que lhe nascia nos olhos pequenos e curvava no peito seco, atravessava-lhe, sem dúvida, o corpo todo e desaguava na sua sombra monótona e estilizada. Era quase nada. Uma ilhota sem barcos nem cais.

Quando falava, coisa rara, era um fio de voz resignada que ia resistindo à ameaça de um esquecimento que parecia aproximar-se, sempre mais para o fim das tardes cansativas de tanto calor.

Isto acontecia (ou melhor aconteceu, uma vez) quando a companhia saiu para o mato. Ao certo, nunca se soube como as coisas se passaram. Dizia-se que, a pretexto de ir buscar alguns pães e leite, sobretudo café, de antecipada combinação, a mulher se enfiava na arrecadação. A mulher adorava café sobre todas as coisas. Ainda fez parte de grupos de alguns guinéus que embarcaram, noutros tempos, para suar as estopinhas e os nervos nas roças de S. Tomé. Era então uma rapariga. Sobrou-lhe o vício, também a penúria. Embora evitasse queixar-se.

Por recato, não desço a pormenores que soube mais tarde. Por inverosímeis, não confirmo. Mas houve espanto e escândalo de todos, negros e brancos, quando se rompeu o propalado desaforo. Ele sempre negou tudo, a pés juntos, com um riso breve e malandro. Quase sempre dúbio. Ainda hoje, falar-lhe nisso, nos nossos encontros do 490, é moer-lhe o miolo. Mas não se livrou de severa punição. O acto foi considerado uma afronta ao chefe da aldeia de Algures e também ao capitão Varela. Foi o único momento (dias) em que subiu a tensão entre a tropa e a população. Embora para a mulher fazer sexo por ali fosse a coisa mais natural do mundo. Tão natural que os homens grandes, como bem sabe, é dos livros, quando, anos antes, recebiam homem branco, de algum estatuto, lhe ofereciam a mais nova e bela mulher do seu harém para uma noite. Era um gesto de amizade e hospitalidade. Nunca teve essa cortesia, esse sinal de paz e amizade? Se não teve, olhe, esqueça, que eu faço o mesmo.

 – Cheiras a catinga! – diziam, trocistas, os soldados, na cara deslavada do Pônas, que ia negando e também rindo.

Claro, o capitão que não admitia desobediências às ordens, aplicou-lhe um castigo exemplar. Mesmo sem levantar auto, que dava trabalho e chatices. Evitava os papéis. O Pônas começava a sair para o mato, para as emboscadas, mesmo nocturnas, para as operações. Para o pior. Mas o 314 houve-se de tal modo que depressa foram esquecidos os casos e lembrados os feitos, dignos de louvor. Mostrava que os tinha. Não quis mesmo voltar à cozinha. Ficou a substitui-lo o Benjamim, rapaz de Vouzela, que andava esgotado e a ameaçar loucura. Ao subir para os unimogues chorava que nem uma virgem; ao sair para as emboscadas, o raio da mesma cantilena.

Ganhámos todos com a troca. Já ninguém prescindia do Pônas.

Quando se soube que a esposa do capitão ia passar ali o Natal, todos prometeram não levar à conversa este caso, chocante para uma senhora, que até era professora universitária, embora ainda muito jovem e belíssima. Sob todos os ângulos. Docemente angulosa era toda ela, como todos concluíam, nus, retorcendo-se em pensamentos e actos lascivos, no calor da caserna, mas, evidentemente, só o capitão lhe tirava as medidas no quarto maior da casa de habitação, onde funcionava também o emissor-receptor, que, nesses abrasados e cansados dias, alfa, ómega, rómio, teve de mudar para a caserna. Contra o despeito e a raiva do telegrafista, alfa, ómega, rómio… Ora merda!

À meia-noite, a todos apeteceu a cama e, como não havia Menino Jesus nem Nossa Senhora, tão pouco S. José, figuras que não eram lá muito da família dos soldados alentejanos, todos se despediram de Mónica Azevedo, com um beijo de um bom Natal, e do capitão Varela Pinto com um aperto de mão ou um abraço, conforme maior ou menor proximidade.

Por mim, fiquei-me para ali a conjecturar coisas. Se calhar, nada. Mas uma coisa que pensei foi que poderia suspender o papagaio dos dois seguros ramos de palmeira que ladeavam o altar, para, no outro dia, nele deitar o Menino, que pesava bem menos do que o nosso olhar, carregado de insónias e sinistras imagens de guerra, destruição, mortos e feridos, e que viria de avioneta com o capelão. E ainda cogitei uma outra: desenhar as figuras da Senhora e do Menino sobre o corpo dos aerogramas. Tinha algum jeito para desenhar. Desde miúdo. Tanto assim que a minha professora disse que dava engenheiro. Dei advogado. Busquei um marcador, para ali esquecido, e desenhei aquelas sempre simpáticas figuras. Só que a mão fugiu-me, Deus me perdoe. Agora, imagine para quem e para onde… para o perfil da belíssima Fatumata e para o intumescido umbigo do garoto. Para mim, naquele momento e naquela terra, ficava tudo mais a condizer com a paisagem humana. Ficou bonito, todos disseram, a começar por Mónica.

E assim foi, depois que o padre capelão deu a imagem a beijar, até que, na tarde do dia de Natal, entreguei o papagaio ao garoto, que o deixou voar, voar, voar… por cima do aquartelamento. Ou sobre o rio. Em boa hora o fiz. Já verá por quê.

À medida que o capelão, voz bem timbrada e gestos convincentes, foi dando o Menino a beijar, depois da missa, começou a entregar a cada um dos presentes, poucos, uma estampa, ilustrada pelas figuras do presépio, Nossa Senhora, São José, o Menino. Até aqui, nada de especial. E todos os presentes gostaram. Especial era a legenda que aditara, além das palavras, já banais, já gastas, se calhar mesmo hipócritas e hipotecadas à rotina, Boas Festas, Feliz Natal. Em letra geométrica, bom recorte, acrescentou: “esta família ama a paz”. Para quem soubesse ler, o que aquela mensagem queria dizer é que aquela família de Nazaré não queria a guerra. E nós, bem lá no fundo das nossas consciências, também não. A Mónica e o capitão, que resmungou, souberam ler muito bem. O Bretão, nem se fala. Era açoriano. De todos nós era o oficial mais politizado. Os comandos em Bissau não gostaram e o padre José Azevedo, voz bem timbrada e gestos convincentes, pagou caro por essa ousada dedicatória de Natal. Foi recambiado. Não posso garantir que a Pide, que tudo sabia ler e tresler, não o tenha incomodado. Consta que sim.

Como ia dizendo, já lhe contei que o papagaio começou a voar em boa hora, e com razão. Enquanto o Papagaio Verde voou, preso das mãos do menino negro, o Abdul, agora feliz avô, ou do telhado da mesquita, que também foi demolida, e foram, no mínimo, duas semanas, entre nuvens e sol, entre azul, brisas e pássaros, e ainda lá mais em cima, entre as pegadas de Deus na brisa e, cá em baixo, os venenos da terra, ronceira e pesada, às vezes permissiva aos feiticeiros que chamavam os espíritos para nos tramarem nestas remotas terras - vá lá saber-se por quê, nem mo pergunte - nesse período, nunca mais fomos atacados, nem houve emboscadas pelos caminhos abrasadores e perigosos do Oio. Mas, depois dessa paz podre, pagámos bem caro o estranho sossego.

Por quê?

Bela pergunta. Olhe, não sei. Para mim, que, por vezes, nem acredito muito na grande proximidade de Deus com os homens, muito menos em milagres ao desbarato, ainda hoje desconfio que houve por ali, naquelas três semanas, a mão do Menino.

Não acredita?
Olhe, que há coisas, meu tenente-coronel!

Foi, então, a partir daí, que a aldeia começou a mudar de nome, aos poucos, sobretudo nas conversas entre militares, Papagaio, Papagaio Verde, que tinha tudo: casas de adobe, rectangulares ou quadradas, assistência médica diária, personalizada, até uma mesquita para as orações a Alá, Nosso Senhor, o respeito da tropa. E, olhe, foram exactamente estas imagens de Natal a primeira coisa que logo me veio à folha azul ou sombreada da lembrança, quando ontem cheguei a Alguresm, suava a alma… a Fatumata, a Usita, o Papagaio Verde, o Abdul, o João, o Bassiro, o Gibril, até a belíssima Mónica e o friso simpático das raparigas negras, que, naquele remoto Natal, vestimos com blusas novas, muito garridas, ainda a mesquita, porta voltada para Meca, a tabanca por nós construída com adobes, com ruas e nomes portugueses, a aldeia que tinha realmente tudo.

As raparigas, que bem acabo de reconhecer mulheres, mais ou menos com a minha idade, de seios flácidos, caídos e chupados pelos filhos, estavam, (como me lembro…), naquele inesquecível Natal, um doce e mitigador encanto e pareciam voar nos panos e blusas novas, soltos os bandós. O seu esplendor de olhos e seios está, agora, esmorecido. Não admira: já se passaram umas boas três décadas.

Papagaio Verde (ou fosse Algures) é que, então, ainda não tinha um céu limpo de nuvens sobre um país novo. E tão pouco voava nas asas do sonho das acácias vermelhas… como, agora, também ainda não voa, ainda que brinque nas brisas de um céu mais límpido, tocado pelo rumor da paz, a “Estrela do Norte”.

(FIM)

Armor Pires Mota
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Glossário:
alfero – alferes
morança – casa
tabanca – aldeia
almany – padre muçulmano, líder espiritual
Puto – Portugal
bajuda – rapariga
jagudis – abutres
mama firme – seio rijo e direito
cabaço – hímen (virgindade = catota)
irã – ser sobrenatural que vive na floresta
corpo di bó? – como vai de saúde?
mim cá sibi – eu não sei
partir ou falar mantenhas – apresentar cumprimentos e considerações
passadas – histórias
mulher garandi – mulher considerada importante pela idade
guardas de corpo – mezinhos contra os males
chuvas – anos
Alah, uquibaro – Alá seja louvado!
malilas (dialecto balanta) – braceletes (pulseiras) feitas de fibras vegetais
trabalho cansado – trabalho que exige bastante esforço
peso – um peso correspondia a um escudo: trata-se de uma reminiscência da denominação espanhola nos séc. XVII/XVIII, quando ampliou a sua administração à antiga Guiné, onde mandava os seus barcos negreiros arrancar braços para a agricultura na América espanhola, segundo Alexandre Barbosa, em “Guinéus”.
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Notas de CV:

Vd. postes anteriores do conto Papagaio Verde versus Estrela Polar de:

17 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10812: Conto de Natal (1): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (1) (Armor Pires Mota)

18 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10817: Conto de Natal (2): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (2) (Armor Pires Mota)
e
19 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10824: Conto de Natal (3): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (3) (Armor Pires Mota)

Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10828: Conto de Natal (4): Era uma vez tantos soldados na guerra (Armando Pires)