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quarta-feira, 2 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Abril de 1968 > Foto 215 > "A comida que devia ser abundante e variada, começava a ser pouco tragável, à míngua de víveres fundamentais a uma alimentação equilibrada".


Foto 207 > "Removidas as terras, havia que arranjar uma cobertura, para que pelo menos, houvesse alguma sensação de menor perigo. Numa primeira fase, com os troncos de árvores".

Foto 208 > "O buraco estava escavado, mas era necessário muito engenho e força, para colocar os toros"

Foto 209 > "Havia uma luta contra o tempo, para se deixar de descansar ao ar livre, onde a segurança era nula"

Foto 210 > "E por cima dos toros, em geral um tapume metálico do aproveitamento dos bidões e a terra vegetal devidamente calcada".

Foto 211 > "E estes abrigos-toupeira, davam guarida a uma vintena de homens, que descansavam em contacto com a terra húmida"


Foto 212 > "E no princípio, alguns pareciam esconder-se entre as árvores da mata, que esperavam a sua vez do abate".


Foto 213 > "As nossas vidas, fora das canseiras dos trabalhos, desenrolavam-se à volta destes abrigos, já que eram aí que estavam as nossas coisas e também a arma. Mesmo lá, uns sentados, outros de pé, tentavam comer algo".

Foto 214 > "Era também aqui, que desfrutávamos de algum merecido descanso".


Foto 216 > "O abrigo tinha uma entrada lateral. E o soldado Sá Pereira, parece em posição de sentinela, atento e vigilante".


Foto 217 > "O Comandante da Companhia pernoitava junto a este morteiro 81. O seu guarda-costas, Albino Melo, está atento. O fio ligava-se ao posto-rádio, ali bem perto".


Fotos e legendas: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.

IV Parte da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1).


Parte IV - Instalação e início da construção do aquartelamento de Gandembel (continuação) > Ilustração fotográfica (vd. acima): Incluí o período de tempo entre 8 de Abril de 1968 - partida de Guileje para Gandembel e início da construção do aquartelamento de Gandembel - e a chegada da energia eléctrica, a 9 de Maio de 1968. A epopeia dos homens-toupeiras.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá


9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo


12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel

"Na região de Forreá e nas imediações do rio Balana, uma grande coluna provinda de Guileje havia de parar, desfazer-se das suas cargas, para desde logo se dar início aos trabalhos de construção do aquartelamento de Gandembel"...

Foto 206 > "Tanto trabalho por realizar, com pás, picaretas e outros artefactos manuais, criando calos nas mãos, que por vezes sangravam" (IR)


"Urgia arranjar uns abrigos (tocas escavadas), que nos garantisse alguma segurança, mesmo diminuta, durante o período da construção das casernas-abrigo"... Foto 205 > "A parte das escavações, em que os utensílios manuais, por vezes eram arrojados para o chão, para serem substituídos pelas armas" (IR)...


"Outras infra-estruturas, as mais essenciais e vitais, surgiram no imediato, tais como o posto-rádio e a cozinha; estes, foram sendo melhorados no delongar do tempo"...

Foto 204 > "A cozinha, quedou-se naquele local. Teve que levar um telhado em chapa, para a abrigar das inclemências das chuvas. Mas a qualidade dos alimentos postos à sua mercê foi, em grandes períodos, manifestamente má" (IR)...


Foto 203 > "O posto-rádio tornou-se uma infra-estrutura bem consolidada; desde cedo, constatou-se que a vida em Gandembel seria impossível, sem um funcional centro de transmissões" )(IR)...

Foto 202 > "Uma das primeiras prioridades, consistiu na limpeza de duas pequenas áreas, de molde a colocar uma tenda para servir de posto de enfermagem e também onde o helicóptero pudesse aterrar" (IR)...


Foto 201 > "De um lado, um monte de baga-baga à espera de uma picareta para o destruir, e tantas árvores para derrubar numa imensa zona para limpar" (IR)


Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Instalação e início da construção do aquartelameto de Gandembel.

Fotos e legendas: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.


III Parte da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1). Texto enviado em 11 de Fevereiro de 2007.

Meu caro Luís

Após ter exercido o meu direito cívico, estive o resto da tarde, à volta desta narrativa. E também contribuiu para contactar com alguns, saber-lhes das suas vidas e saúde. Infelizmente, tive a notícia que o coração arredou mais um do nosso seio. E estas notícias custam!
Seguem mais 2 capítulos, de 4 sobre Gandembel/Ponte Balana.

Até breve. Um cordial abraço do Idálio Reis.


Parte III - Instalação e início da construção do aquartelamento de Gandembel
por Idálio Reis (Subtítulos do editor do blogue)



Resumo: Em Gandembel, vinga a insensatez, a obrigarem-nos a penar um inextinguível tempo de arrastados sacrifícios. Do período mediado entre o início da construção do aquartelamento e a chegada da energia eléctrica, a 9 de Maio.(Ganembel/Balana, Parte Ia/IV)



O dia 8 de Abril de 1968 alvoreceu para um conjunto de homens inquietamente sós, desunidos de um futuro confiante, porque, por mais que se procurasse predizer, não lhes era possível reconhecer se se podia atingir. Um imenso manto de silêncio ali estava especado, com secretas sombras negras a envolver-nos.

Restava-nos apenas um singelo e frágil elo de ligação, com o presente a reclamar esperança, ainda que tão ténue e falível.

No chão do PAIGC....
Tudo estava pronto para se tomar rumo por uma estrada, onde as NT já lá não passavam há um ror de meses (desde quando?), por força do maior poder bélico que o PAIGC mantinha na zona.
A coluna partiu, e foi fácil atingir o cruzamento de Guileje. Aqui, virou-se à esquerda, e entrou-se numa estrada como tantas outras, em terra batida, a romper adentro de uma densa floresta.

A vegetação arbustiva já tinha começado a assenhorear-se do seu assento, e muitas árvores estavam tombadas, a dificultar o andamento da longa coluna. De quando em vez, encostadas sobre as bermas, jazendo no local de abandono, apareciam torcidos os destroços de viaturas carcomidos pela voragem do tempo.

Desde esse cruzamento, tão cruel para a Companhia ainda há dias, o avanço processou-se vagarosamente, com muitas paragens de permeio. E desde cedo, o Sol começou a lançar os seus inclementes raios, que nos começava a entorpecer os movimentos e a ressecar as gargantas, onde a preciosidade da pouca água que ia minguando no cantil, era de uma premente tentação a preservar para saciar uma outra secura, a sorver aquando da desidratação que proviesse do arfar do cansaço.

Apesar desta agonia, ao entardecer, sem grandes incidentes a registar, a coluna chegava junto ao corredor de Guileje, nas imediações do rio Bundo Boro, onde bivacou numa nesga de terreno que apresentava uma clareira mais rala, e onde o grande número de viaturas se dispôs em formato circular, cada uma guardada por pequenos grupos de militares.
Abatia-se sobre todos nós uma tensa e suspeita inquietação, e uma extenuante fadiga que se tinha apoderado facilmente, impelia-nos ao descanso. Se alguma ração se abriu, foi a boca sedenta a buscar algum líquido, embora na coluna viesse uma grande cisterna com água, a mesma que trouxéramos de Cacine; todavia, vinha fortemente defendida para ninguém ousar fazer abuso, e por isso até houve o cuidado de a colocar numa defendida posição de salvaguarda.
E parece que os homens do PAIGC deixaram assentar com toda a quietude este grande efectivo humano, serenamente, para amainar da canseira da jornada.


As boas-vindas do IN...

Fez-se então noite, e tudo se preparou para o próximo dia, encontrando cada um a melhor forma de fruir algum possível repouso, não descurando os que haviam de manter a indispensável vigília.

Amargamente, esta doce sensação de paz e tranquilidade, teve uma duração pouco mais que efémera. Num relance, um imenso tiroteio desencadeia-se, como resultado dos disparos de metralhadoras ligeiras até às fortes detonações das granadas de morteiros e de rockets, com uma repetição de acções quase consecutivamente.

Como tudo era escuro como breu, os estampidos dos projécteis indicavam-nos para nossa satisfação, que não atingiam o seu destino. Contudo, já na visibilidade da alvorada, os seus impactos cada vez mais se aproximavam, o que nos atemorizou ao ponto de muitos de nós ter que rastejar sob as viaturas à procura de um eventual refúgio mais seguro. Cruciantes momentos de arrepiar!

Felizmente que não houve agravos para o pessoal ou para o material. Os homens que guardavam a cisterna também se vieram a assustar, perderam o seu controlo, o que serviu para muitos, em sofreguidão, preferirem encher os cantis, enquanto os silvos estalavam na periferia...

Tudo me leva a crer que foi este imenso tiroteio que determinou a que a coluna se refizesse e avançasse mais cerca de meia dúzia de quilómetros para norte, em busca de uma linha de água que nos viesse a proporcionar o fornecimento desse elemento tão vital, e que, dado o adiantado da época seca, se tornava um bem bastante escasso.


O início de Gandembel/Ponte Balana

E por via disso, na superior linha de festo do rio Balana, nos viemos a quedar nessa manhã, para de imediato dar início à odisseia que representou a construção de um posto militar fixo, que se viria a chamar Gandembel e mais tarde a uma anexa afastada apenas de poucas centenas de metros, de nome Ponte Balana.

Sob a vigilância directa de uma tropa já bastante mais experimentada — a CART 1689 —, que já reconhecera o local antecipadamente, e que teve uma acção extraordinária durante a permanência que teve connosco até à sua retirada a 15 de Maio, e que é de elementar justiça salientar o papel relevante que sempre demonstrou, começámos a arranjar as nossas guaridas colectivas, autênticos abrigos-toupeira, que nos ofertassem uma maior segurança pessoal durante o tempo de construção dos abrigos definitivos.

Mas antes do mais, houve que proceder à limpeza arbórea da zona, onde a única ferramenta mecânica — a moto-serra —, nos propiciou uma ajuda preciosa. Não foi assim, mestre-soldado Horácio Almeida?, tu que desde criança, tens tido uma vida mancomunada com a floresta.

Tratou-se de uma tarefa bastante penosa, de uma luta travada sem tréguas contra o tempo que se esvaía, porquanto muito repentinamente tomámos plena consciência que potestades infernais tinham desabado sobre as nossas cabeças. Para tentar impedir ou minorar o absurdo das desgraças, mesmo dos desalentos, prestes a acontecerem a todo e qualquer momento, havia que arranjar forças em suficiência, sacadas aos recônditos de cada um de nós, dispostas a sobrepujar tais contrariedades.

Cada grupo de combate teve que arranjar num espaço de tempo de pouco mais de uma semana, e distanciados a cerca de uma dezena de metros, 2 buracos rectangulares escavados a uma profundidade da ordem do 1,5 metros, que depois foram cobertos por troncos de árvores justapostos, atapetados por chapas de latão aplainadas dos bidões, com um recoberto final de terra. Havia uma única entrada, que servia também de posto de sentinela.

9 de Maio: inauguração da luz eléctrica

A vivência nestes abrigos durou cerca de um mês, precisamente até 9 de Maio, que corresponde à inauguração da luz eléctrica, e que pelo simbolismo da data representa um forte «ronco», e que desejo que seja de marca maior, para lhe dar a primazia para o primeiro excerto a focar sobre Gandembel/Ponte Balana.

Este acontecimento correspondia à maior façanha atingida até então, pois se outrora as noites eram guiadas pela audição e cheiros, propiciava-se desde agora a ter luminosidade externa, que correspondia à visão alcançar para além das trevas. Aclaravam-se alguns dos negrumes, que impiedosamente se vinham abatendo sobre Gandembel.

Sentíamo-nos mais defendidos, uma vez que as noites sem luz eram aterradoras, em que o ecoar do mínimo ruído correspondia quase sempre a um constante tiroteio, e as noites sobre noites eram passadas em constante sobressalto, ante o sibilo das G3 em acção, a que se juntavam os estouros das flagelações inimigas que iam recrudescendo.

E o sossego dos corpos, tão fundamental, ia-se passivamente desestruturando. E tornava-se tão crucial manter elevado e coeso o moral desta tropa sempre briosa e intrépida. E era fundamental enfrentar as adversas agruras, com muita coragem, sem nos deixarmos abater.
A qualidade de vida que se nos deparou nestes abrigos, é de uma extrema precariedade, dada a crueldade das situações em presença, violentas e severas, desde o calor que se fazia sentir pelo efeito estufa resultante de um espaço quase nulo, os colchões de borracha que ao fim de poucos dias acabaram todos furados, os cheiros fétidos de corpos sujos de pó e bafientos do meio envolvente.

A Gandembel das morteiradas...
Havia também o reconhecimento que o grau de segurança minimamente necessário, era muito pouco fiável, em especial para as largas centenas de morteiradas que rebentavam sobre aquela zona. Felizmente que nenhuma granada explodiu sobre o coberto de qualquer destes abrigos.
Mas a situação mais angustiante para nós, era a audição das saídas das granadas de morteiros sem antevermos onde viriam a cair e deflagrar; parece que o record, como me afirmou há pouco tempo o Carlos Alentejano, foi de 32 (trinta e duas). Mais de uma trintena de granadas de grande potência, a curvar nos ares, para tombarem aqui ou além (onde?).

Durante o movimento imprevisível destes projécteis, ficávamos naqueles breves instantes, suspensos de uma qualquer intercessão, num silêncio persistentemente surdo, de ansiedade e expectativa. Eram momentos de um pavor incontrolável, em que se tremia de susto.

Foram empolgantes desafios de vida, estes consecutivos dias de escravatura, que se prolongariam principalmente até ao aquartelamento declarar algum estatuto de forma definitiva, e que impuseram um gigantesco esforço braçal quase constante, pois houve que proceder à execução das seguintes tarefas prioritárias:

— abertura de latrinas, e sua preservação com os mínimos requisitos de alguma salubridade;
— limpeza de uma área que possibilitasse uma descida rápida de um helicóptero, essa máquina voadora tão fundamental nas emergências;
— construção de abrigos de consistência bastante sólida, para a implantação do posto rádio e do comandante da Companhia;
— criação de um posto de primeiros socorros;
— arranjo de uma cozinha e de um forno para cozer pão;
— construção de abrigos consolidados, para servirem de paiol ou de defesa para localização dos obuses e de metralhadoras;
— arranjo dos abrigos definitivos, de execução mais demorada, a obrigar a um conjunto consecutivo de trabalhos específicos;
— limpeza de um vasto perímetro circundante ao arame farpado, a fim de poder manter um grau de visibilidade de algum alcance;
— ida à água que o Balana poderia fornecer; enquanto o período das chuvas não chegou, buscava-se ao longo do leito e que era uma tarefa a requerer sempre o maior cuidado, pois desde logo se começou a notar a utilização de minas e armadilhas.

(Continua > Ib/IV)

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Nota de L.G.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo

Guiné > Região de Tombali > Março de 1968 > CCAÇ 2317 (1968/69) > Após o Treino Operacional (1), a Companhia segue rumo ao Sul da Província. Poucos dias em Guileje, para então nos coagirem a ir para as cercanias do "corredor da morte", a fim de se construir de raiz, um posto militar fixo, em Gandembel e Ponte Balana A primeira etapa foi por via fluvial e até Cacine, a bordo de uma LDG.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 2317 (1968/69) > Durante a permanência em Guileje, foi-se recolhendo algum material para a construção de Gandembel/Ponte Balana. É o caso do aproveitamento de palmeiras, de cujos espiques se extraíam os cibes Na foto, um aspecto do abate das palmeiras.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 2317 (1968/69) > Na fase de carregamento dos cibes.

Foto: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.

II Parte da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1). Texto enviado em 5 de Fevereiro de 2007. Subtítulos do editor do blogue.

Meu caro Luís:

Porque já estás na posse das fotos, e das suas legendas, ficam ao teu critério para emoldurar os textos. Envio-te um novo capítulo, que se refere à nossa passagem por Guileje. Pode ser que para a semana, comece os capítulos sobre Gandembel.

Até lá, um afectivo abraço do Idálio Reis.


Assunto: Em Guileje, a guerra não se fez esperar, e dolosamente começou a insinuar as suas facetas mais pérfidas, com as ocultas ciladas montadas na vastidão dos nossos olhares e a espreitarem o horror a todo o instante.


Caros companheiros Luís e demais Tertulianos.

A 19 de Março [de 1968], arribávamos a Cacine, após uma viagem feita de noite, com uma paralisação forçada da LDG nas águas do Geba, devido ao acentuado efeito cíclico e oscilante das marés.


De Cacine a Guileje

Mal despontou o dia seguinte, já com os nossos haveres arrumados na véspera, foi determinado que cada grupo de combate tomasse as suas posições nas viaturas postadas à nossa espera. Não havia que perder tempo, pois que a distância a percorrer era relativamente longa, e ter-se-ia que partir do princípio que a picada estaria livre dos riscos próprios que as colunas de reabastecimento em geral induzem, tanto mais que tinha sido sujeita a uma vigilância nocturna das NT.

Esta ligação de Cacine a Guileje, com um traçado quase paralelo e muito próximo da fronteira da Guiné-Conacri, poderia ser perspectivada em dois troços, com um ponto intermédio junto a Ganturé, nas imediações do entroncamento para Gadamael-Porto.

O primeiro deles, o mais longo, muito raramente era utilizado, visto que a grande generalidade dos reabastecimentos eram transportados rio Cacine acima, por lanchas de desembarque de menor capacidade, até a esse aquartelamento. Apesar de tudo, a tropa periquita foi convenientemente alertada para os perigos que supitamente poderiam ocorrer, a provirem da mata densa em que se embrenhava a picada (em pleno maciço florestal de Cantanhez, de uma encantadora beleza paisagística).

E assim, nessa única vez que utilizámos este troço, tudo decorreu na maior das normalidades. Em contraste, no que se refere ao tramo final, já a coluna perdeu francamente o seu ritmo, pois que a precaução a tomar obrigava a um apuro mais atento, onde a floresta perdia alguma densidade, e a agressiva presença local do PAIGC impunha a um outro procedimento de maior cautela.

Recomendava-se pois que o seu trajecto se fizesse de forma apeada. Com o avançar do dia, o tórrido calor tornava-se sufocante, e o cansaço ia-se apoderando, com as fardas novas a empaparem-se de suores que se vertiam em contínuo gotejo, apesar de a falta de água não ser sentida, pois que uma cisterna-atrelado nos acompanhava (para que efeito?).


Em Guileje, com a CART 1613, do capitão Corvacho e do sargento Neto


Já vencida quase toda a distância, havia um outro entroncamento — o cruzamento de Guileje —, que nos fazia rodar à esquerda e andados um pouco mais de 3 quilómetros, uma grande coluna de viaturas, entrava ao princípio da tarde adentro do arame farpado do aquartelamento, sede de uma CART já com algum tempo de comissão, comandada pelo Capitão Eurico Corvacho (2).

Guileje oferecia sofríveis condições de alojamento, o bastante para os lassos corpos serenarem e para se saciar a fome acompanhada de uma bebida afrescada no frigorífico, para logo a fadiga da jornada rogar descanso.

No outro dia, o Comandante da [nossa] Companhia transmitia secamente aos seus 4 alferes, as suas directrizes:

(i) Que a permanência por Guileje seria de poucos dias, o suficiente para dar azo a trazer de Gadamael algumas infraestruturas e materiais de construção, a fim de serem transportados para um local próximo do corredor de Guileje, onde se iria fazer um quartel de raiz.

(ii) Que tal implantação, correspondia a uma resolução que se revestia de enorme transcendência no xadrez da estratégia militar da Província, tanto mais que assentava no objectivo de impedir o inimigo de utilizar uma das suas mais importantes fontes de reabastecimento com proveniência da Guiné-Conacri.

(iii) Que estava em planeamento uma grande operação militar, para onde e durante algum tempo, iriam ser canalizados grandes contingentes de tropa, tendentes à obtenção de um sucesso rápido, para nos libertar para os trabalhos de carácter imediato.

(iv) Que durante a curta estadia de Guileje, far-se-iam colunas de reabastecimento a Gadamael com uma grande frequência, com os grupos em rotação, quer em integração, ou em missão de segurança, a que se juntavam a CART 1613 e a CCAÇ 2316.

(v) Que dada a existência de haver logo à saída para o Mejo, de grandes quantidades de palmeiras que formavam óptimos cibes, se tornava importante fazer o seu máximo aproveitamento.

O contexto desta reunião era o de emitir uma ordem, e inscientes das tramóias que nos iam urdindo, estávamos prontos para o seu cumprimento. E assim, durante esta breve temporada, a Companhia viu-se envolvida numa grande azáfama.


Manter aberto corredor de Guileje


Por suposto, era de fácil dedução, para o forte núcleo guerrilheiro do PAIGC, que esta movimentação desusada das NT não lhe era a mais conveniente, dado que num intervalo de apenas 3 dias, uma outra Companhia do Batalhão — a CCAÇ 2316 —, se veio a sedear no aquartelamento do Mejo. Hoje, torna-se fácil reconhecer que, desde logo, houve um recrudescimento imediato do seu poderio bélico na zona, já quase sob o seu controlo territorial, e que, ante a situação que ora se lhe deparava, obviamente não convir-lhe-ia de todo menosprezá-la.

O raio de acção das NT já era restrito, procurando a todo o transe garantir os acessos a Gadamael-Porto, Guileje e Mejo. As ligações de Guileje para Aldeia Formosa já estavam interditas, assim como do Mejo para Bedanda (desde quando?), o que claramente denunciava uma situação de grande isolação e fragilidade para as tropas aqui acantonadas.

No decorrer desta permanência por Guileje, as colunas a Gadamael-Porto eram realizadas correntemente. Para além da estrada ser bastante perigosa, que obrigava à sua picagem na ida, e que amiúde era atravessada por traiçoeiras abatises, havia que fazer o carregamento das viaturas, na base de materiais em geral pesados e colocados à custa de um esforçado trabalho braçal, e de modo a que o regresso se fizesse com a maior rapidez possível. Não cabiam espaços para tempos perdidos.

Quanto à protecção na volta da coluna, 1 ou 2 grupos de combate saíam apeados do aquartelamento, a fim de montarem emboscadas nas imediações do cruzamento de Guileje até à passagem da coluna.

Um encontro fatal, o nosso baptismo de fogo


No fatídico dia 28 [de Março de 1968], coube ao meu grupo ir manter protecção a uma dessas colunas. Ao princípio da tarde, após uma manhã no corte de algumas palmeiras, deslocámo-nos até ao cruzamento, onde após dispor os meus homens emboscados ao longo do traçado da curva, vim a tomar lugar junto à secção da bazuca.

Ainda que não fosse audível o ruído dos motores, alguns dos homens que formavam o U aberto da curva, foram alertados pelo bulício de gente a andar, o que os fez pressupor que seriam alguns militares que vinham em missão de avanço relativamente à coluna.

A visão da estrada era plena. Contudo, começou-se a notar que havia alguém a entrar na mata, mas eram homens de tez não negra que apareciam à cabeça da fila. Já estes se encontravam a uma distância de pouco mais de uma dezena de metros dos homens em posição mais avançada, postados ao vértice da curva e onde se encontrava a secção da metralhadora, quando a visão de alguns autóctones e a diferenciação cromática da vestimenta, veio a comprovar que se estava ante um grupo inimigo. Numa aproximação frontal, só quase a secção da metralhadora é testemunha deste facto.

De uma forma brutal, desencadeia-se um fogo muito intenso, que durará um interminável período, não mais de 10 minutos, mas que se finda de forma repentina. O tiroteio como que seca abruptamente, dando a parecer, que num ápice todas as munições se tinham esgotado.

Passada uma curta fracção de tempo, noto as figuras de alguns soldados a recuarem de forma aflitiva e desordenada, a denotarem fortes reacções de embaraço, agitando-se convulsivamente. E, num relance, um número infindo de vespas (abelhas bravias) iam-se espalhando, zunindo ao nosso encontro, ferrando impiedosamente alguns de nós.

O IN tinha debandado, dado que se confrontou com uma improvisada situação que não esperava de todo, de os lugares onde desejavam posicionar-se, já estarem ocupados. A utilização destes insectos, transportados em cunhetes de granadas de rockets, causava em qualquer contingente, um franco risco de uma integral debilidade bélica, pelo que para eventuais fugas, era uma arma de arremesso de enorme impacto. É que em geral determinava ao desconserto, pois que malevolamente rompia todos os comportamentos que um combatente em frente de guerra deverá sempre demonstrar, como: presença, personalidade, compenetração, frieza, segurança, audácia, solidariedade, etc.

Sofreram-se vivências de autêntico terror, medonhas, pois parece que inopinadamente surgia um desencontro sem controlo, e da intensidade que este baptismo de fogo envolveu e da perda da ordem provocada, cheguei a pensar que o nosso fim estava iminente. Inesquecíveis momentos de pavor e amargura.

Mas as armas inimigas pareciam ter-se calado em definitivo, e o grupo ordeiramente foi-se reorganizando, pela conduta dos comandos de secção.

O apontador da metralhadora veio dizer-me que o seu municiador tinha sido fortemente baleado, e estava morto. Eu próprio, também testemunhara o horror da morte do municiador da bazuca, no seu derradeiro suspiro; este, para se esquivar dos impactes de uma rajada de metralhadora, ter-se-á acolhido para o lado do apontador no preciso momento em que disparou. Fatal, com a parte anterior do tórax transformado em cinza.
Os outros, alguns deles com várias picadas, estavam todos bem. E seria necessário sair dali, o mais rapidamente possível.

Contudo, o municiador da metralhadora jazia alguns metros à frente, e o seu corpo já não estava visível. Era necessário proceder à sua recuperação, apesar de se antever que devia estar sob um manto de vespas.

Os heróis têm medo, mas há homens que em determinadas circunstâncias perdem a noção de todo o risco, e afrontam qualquer situação de ameaça sem nada temerem. A consciência do perigo é vivida no teatro da guerra, de forma diferente em cada um de nós, na imprecisão das reacções. Para o verdadeiro amigo, são infinitos os limites da tolerância, dado que um conjunto de emoções se nublam, sume-se a racionalidade e num sopro silente, uma irreal inconsciência freme, e nenhum escolho deixa de ser enfrentado.


A acção heróica do 1º cabo Carmo, de alcunha o Lamego

Com o casaco do camuflado a cobrir a cabeça, há um que sem dizer palavra dirige-se ao local onde o companheiro jazia, levanta-o sobre o ombro esquerdo e junta-se ao grupo que abandona o local. E, antes da coluna de reabastecimentos entrar, um grupo de combate da tropa periquita assome a Guileje em desespero, silenciadas as palavras, com os olhos marejados de lágrimas de pranto e de dor a libertarem-se em fios copiosos sobre o rosto abaixo, com 2 camaradas mortos.

Acabávamos de perder os primeiros dois elementos de um dilatado rol: o Domingos Costa, da freguesia de Olival em Vila Nova de Gaia e o Manuel Meireles Ferreira, de Pópulo, em Alijó.

Deste dramático embate, como testemunha de maior responsabilidade, desejaria salientar os seguintes aspectos:

(i) A aproximação frontal de poucos metros, como resultado de à frente do IN virem 3 ou 4 militares não indígenas, porventura de origem cubana, ludibria os homens que estavam emboscados, que tiveram de travar uma luta frente a frente, quase de corpo a corpo.

Se se pode reconhecer alguma inexperiência, ao não se discernir na aproximação o tipo de combatente, seja pelo cromatismo das fardas, seja pelo armamento empunhado, o que poderia ter acontecido? Da combinação de tantas situações, há uma que não me suscita grandes dúvidas: que o efectivo do grupo do PAIGC seria numeroso, e dada a forma precipitada como se retirou, o resultado da renhida refrega provocou-lhe também pesadas baixas.

Um comunicado veiculado pelo PAIGC, contudo, não deixa transparecer este último aspecto, porquanto refere: «No dia 28 de Março [de 1968], um contingente colonialista que tentava fazer um reconhecimento na estrada Ganturé-Guileje, é violentamente atacado pelas NF. Pondo-se em debandada, o IN abandonou no terreno 8 cadáveres e uma importante quantidade de munições».

(ii) Havia um determinado tipo de armamento que equipava cada grupo de combate, inteiramente desajustado para situações ofensivas, como o caso do famigerado lança granadas foguete 8,9. A deslocação das NT, que se fazia mormente em zonas florestadas, poucas hipóteses ofertava na utilização desta arma, pouco ou nada maleável, com granadas de grande peso e a requerer alguma perícia no carregamento, e com um insatisfatório grau de eficácia.

O abandono da maldita bazuca 8,9 em acções ofensivas

A morte do municiador blevou a que a abandonasse em definitivo, guardando-a somente para situações de ordem defensiva. Em sua substituição, foi-me entregue um lança granadas de muito menor porte (julgo que o calibre era de 3,7, que a gíria intitulava de lança-rockets), arma bastante ligeira, e em que uma série de granadas podiam ser levadas numa bolsa-carregadora transportada sobre o dorso. E também fazia uso do dilagrama, que talvez tivesse sido a melhor invenção que tivesse ocorrido em Portugal, em termos de armamento militar, ainda que obrigasse a uma redobrada atenção no seu manuseamento, o que me fazia escolher 1 ou 2 soldados destinados unicamente para esta arma.

(iii) O homem que procedeu à façanha de ir buscar o companheiro morto, jamais o revi: O cabo Carmo. Era conhecido pela sua alcunha — o Lamego. Retenho dele, numa estatura meã, um ser simples, rude, duro, em permanente busca de afectos, donde emanava uma amizade sã e leal, que comprazia equitativamente por cada companheiro. E apesar de todas as contrariedades, denotava ser um homem feliz, e das peripécias de um itinerário em frente de guerra quase constante, parecia esquecer por inteiro as que mais nos ensombravam.

Um certo dia, já a mais de meio tempo de Gandembel, saiu legislação com efeitos de retroactividade, que determinava que uma família com um filho morto em combate, nenhum outro seria mobilizado, ou seja, o nosso Lamego, com um irmão falecido em Angola, poderia regressar ao Continente, pois a sua comissão, por força da lei, considerava-se terminada.

O que foram fazer a este homem! Talvez o pior, pois que de modo algum queria regressar. Neste momento, está à minha frente, em choro convulsivo, rogando-me para não o deixar ir embora. Hoje, recordo com uma enternecida emoção, o que foi a sua sentida despedida da Companhia, mas muito principalmente do seu Grupo, com que ele costumava brincar, por tudo e por nada, talvez porque em criança não tivesse tido tempo nem gente bastantes para o fazer. Um serrano beirão de gema, como poucos, e quanta falta nos fizeste, sabes?

Este primeiro infortúnio, que nos roubou 2 companheiros, foi um choque de uma carga emotiva extremamente pesada, transparecendo nos mais fracos e sensíveis, o alquebro das situações transidas, mas que a brutalidade da guerra recomendava a que fossem superadas por um persuasivo e sereno efeito moderador.

O dia seguinte era só amanhã, e tinha de revelar em pleno a sua presença. E assim correspondemos a esse apelo, fazendo tombar mais uma série de palmeiras. E os vivos continuaram a teimar nesta odisseia, ao livre arbítrio do destino.

A continuação pelo Tombali ainda continuou por mais alguns dias, onde recordo ao cerrar de uma noite, um ataque ao aquartelamento com alguma intensidade. Pareceu-me contudo, que o sistema defensivo de Guileje era eficaz, pronto na resposta e os abrigos ofereciam bastante segurança.

E o dia 8 de Abril [de 1968] chegava. Iniciava-se uma grande (incandescente!) operação militar de nome Bola de Fogo (3), que nos havia de conduzir algures à região do Forreá, mais especificamente a um fatídico sítio, que se veio a apelidar de Gandembel/Ponte Balana.


E até mais logo.

Um cordial abraço do Idálio Reis.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá

(2) CART 1613 (Guileje, 1967/68). Vd. memórias do nosso camarada Zé Neto > post de 25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

(3) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá

T/T Quanza > Navio misto, de 2 hélices, construído em 1929 na Alemanha e abatido em 1968. Tinha 133 metros de comprimento e cerca de 6500 toneladas de arqueação bruta. Com 149 tripulantes, possuía alojamentos para 108 em primeira classe, 120 em segunda, 90 em terceira e 214 em terceira suplementar, no total de 532 passageiros. Armador: Companhia Nacional de Navegação, Lisboa. O Isdálio Reis e os seus camaradas da CCAÇ 2317 devem ter sido dos últimos passageiros a viajar no velho Quanza.


Foto: © Navios Mercantes Portugueses , página de Carlos Russo Belo (2006) (com a devida vénia...) . O autor foi oficial da marinha mercante.



Início da publicação da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1):


Fotos e legendas: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.
Parte I - A CCAÇ 2317 chega a Bissau, a 24 de Janeiro de 1968 (2). IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional em Olossato e Mansabá.



BCAÇ 2835 > CCAÇ 2317 (1968/70) > Emblema da Companhia


O Idálio Reis, de ontem (1967)


O Idálio Reis de hoje (2006)



"A 17 de Janeiro de 1968, o velho Quanza partia para nos levar a terras de África. Só uma singela recordação dessa data, onde se destaca este trio composto pelo alferes Francisco Trindade e os furriéis Carlos Valério e António Nabais" (IR).





"A Companhia era maioritariamente constituída por gente da periferia do grande Porto, como o caso destes 3 vizinhos: os soldados Sá Pereira, Manuel Carvalho e Ângelo Marques" (IR)



"A 24 de Janeirode 1968, a CCAÇ 2317 recebia as boas vindas, na parada do aquartelamento de Brá". (IR)
Assunto: Uma aclimatação de 2 meses, o quanto bastou para enveredar por um sinuoso rumo, a uma fatídica zona do Sul da Província. Aí, num local estranho da região do Forreá e apenas no efémero prazo de 11 meses, houve lugar às facetas mais pérfidas da guerra, em que do mito e do mistério sobrou só o nome: Gandembel/Ponte Balana.


Caros Luís e demais companheiros tertulianos:

O alvor do dia 24 de Janeiro de 1968, já com o velho Quanza fundeado, começava suavemente a despontar. O Sol, no longínquo do horizonte, parecia emergir brandamente das águas mansas do Golfo, a dardejar os seus primeiros raios de luz avermelhando a aurora, fogosamente. Parecia prenunciar que o dia que então se aclarava, iria manter-se estranhamente acalorado.

Era um clima substancialmente diferente do que há uma semana havíamos deixado na longínqua Lisboa, que ainda vivia estarrecida de um pluvioso Inverno que a fustigava com inundações incontroladas, e que puseram a descoberto todas as misérias dos bairros de lata, onde causaram tanto desespero e dor, pelas perdas inteiras de escassos espólios e de muitos dos seus moradores.


Bissau à vista

E a madrugada desse dia, desde logo fez concitar nos seus tripulantes, a tomarem comportamentos estranhos, tornando-os inquietos, nervosos, a provocar-lhes um sôfrego alvoroço. É que a amurada do navio, proporcionava a um fácil alcance da visão, distinguir com bastante nitidez, um casario denso: era Bissau. E, enquanto o Sol descoberto, descrevia a sua trajectória zenital, mais ele resplandecia na sua rutilância.

Pairava uma atmosfera quente e abafada, que logo começaram a inquietar os nossos corpos, a ressudarem uma humidade adensada e pegajosa, que repassava os novos camuflados dos recém-combatentes. É que, aos mobilizados da guerra colonial, foi-lhes infundido para fazerem gala na sua verdadeira farda de apresentação. E todo o BCAÇ 2835, com o seu crachá ao peito, pontificado por uma divisa a preceito −«Nas armas, singulares»−, aí estava na Província da Guiné, em missão de soberania, na salvaguarda de uma Pátria una e indivisível. E a organização política e administrativa da Nação que então preponderava, fazia acrescentar que também era inalienável e imprescritível.

Sufocados por uma esquisita temperatura e uma pesada vestimenta, era pisada terra firme, e mais uma imensidade de soldados periquitos arribavam a uma terra estranha, para ficarem à mercê de um impreciso e incerto destino. E o Quanza, serenamente parado nas imediações do célebre cais de Pidjiguiti, ia sendo esventrado dos haveres encomendados, com a saída dos individualizados parcos espólios, metidos a esmo nuns sacos esverdeados que a roupa os avolumava.

O bulício envolvente era essencialmente de cariz militar, em que uma distendida caravana de camiões pesados se perfilava, a fim de nos transportar para algures, nos arrabaldes da cidade. E logo que nos arrumámos nas viaturas, seguimos por uma larga estrada que já percorria a sua periferia, onde se divisavam inúmeras casas térreas de bairros degradados, com bastante população negra e em que prevaleciam muitas crianças quase desnudadas, até se entrar num espaçoso aquartelamento com diversos pavilhões prefabricados: era o denominado quartel de Brá.

E na sua parada imensa, nos perfilámos já sob uma inclemente temperatura, para receber as boas vindas de um grupo de oficiais superiores do estado-maior de Arnaldo Schultz, bem protegidos sob um espaçoso guarda-sol. Findo tal cerimonial de unida ordem, qual testemunho de coesão e disciplina, foram então alojados os 168 militares da Companhia.

E a partir daqui, com os homens postos em sossego, teve início a sua efectiva integração no contingente bélico-militar da Província. Começava a traçar-se o seu destino colectivo, que alguns mandantes lhe haviam de reservar e impor nesta arredia e inclemente terra africana. O aparato militar que nos envolvia, parecia ser urdido segundo uma orientação preconcebida de há muito, de tal modo a que não nos se deparassem tempo suficiente para que tomássemos alguma consciência do que este novo embate da vida nos poderia provocar.

De uma regulamentar descrição sumária da situação a viver nos próximos tempos, fomos instruídos para tomar uma conduta ordeira e domesticada, a manter no absoluto durante alguns dias, sem contactos externos, procurando que a tropa conseguisse absorver de maneira célere e no isolamento, a primeira das grandes provações, resultante da ampla diferenciação climática encontrada. Aqui se estampava, muito certamente, o início de um julgamento de inocentes sem justa causa. Que não se aspirasse a grandes ilusões!

Três semanas em Brá e os primeiros ecos da guerra

Durante um período de cerca de 3 semanas, fomo-nos quedando por Brá, onde mesmo assim, era possível manter fúteis contactos com muitos militares em situação de transição. Alguns, com a comissão já avançada, faziam chegar aos nossos ouvidos, relatos da sua guerra e que se travavam pelos cantos da Província, que nos fechava em silente mutismo, absortos pela crueza das suas narrativas, que não deixavam de causar uma indefinida perplexidade quanto à sua perceptibilidade. Os factos descritos pareciam ser complexos enigmas, de difícil decifração, mas o rescaldo do eco das palavras era de todo assimilado, para uma cismada busca do seu real significado.

Durante este lapso de tempo, houve uma visita do Presidente da República Américo Tomás . Tal serviu para a Companhia receber o seu armamento ligeiro, e ficar incumbida de montar segurança a essa dignitária personalidade, a exercer ao longo da estrada de Bissalanca. Contudo, o que a tropa denominava de treino operacional, desenrolou-se nos aquartelamentos de Mansabá e de Olossato, desenvolvido aproximadamente durante um mês.


Treino operacional em Mansabá e Olossato

A situação militar naquela região não era muito conflituosa, apesar dos Oio e Morés já terem fama naqueles tempos, e cujos nomes eram temidos naqueles locais. Contudo, nas saídas ocasionais de acompanhamento, não houve nada a justificar qualquer nota de maior destaque, a não ser um ligeiro ataque ao denso povoamento de Mansabá.

Recordo que no Olossato, a Companhia aí sedeada era comandada pelo então Capitão Azeredo [hoje, o general reformado Azeredo e Leme, com uma folha de serviços exemplar, que o alcandora no galarim dos grandes oficiais do Exército], e que mais tarde após a evacuação de Gandembel, vim encontrar em Aldeia Formosa, já com a patente de major, como comandante de um Comando Operacional − os célebres COPs que Spínola tinha feito criar para as zonas mais nevrálgicas.

Nesse aquartelamento do Olossato, dada a sua localização em território de configuração apaulada, com algumas bolanhas na sua proximidade, viemos encontrar a seguir às inclemências do intenso calor e humidade, o confronto com o segundo dos mais acirrados inimigos −os mosquitos−, afrontando as delicadas ‘peles de pêssego’ dos periquitos e que nos causticavam sem dó nem piedade. Reconheço contudo, que este flagelo serviu para depressa se criar uma maior imunidade contra os malefícios desta outra praga, embora o paludismo acabasse por nos colher a todos, e quanto era doloroso, por vezes, debelar esta maleita de febres intermitentes.

Quanto a Mansabá, era um local amplo e frondoso, muito maior do que viríamos a encontrar em Nova Lamego, e as condições de habitabilidade do seu aquartelamento, foram as que melhor fruí durante toda a comissão. Mas foram apenas alguns dias!

Mas sobre toda esta zona, tive há relativo pouco tempo, a grata oportunidade de ler um livro de uma narrativa que se plasma nas díspares vivências que se deparam a cada militar no seu quotidiano, guiadas por ditames que só o labirinto da guerra consegue impor e não quer escamotear, escrito por um antigo camarada que viveu por estas bandas, e que recomendo vivamente; trata-se de Os Heróis e o Medo, de Magalhães Pinto, publicado pela Âncora Editora. Quanto seria importante ter connosco este companheiro para nos contar também as suas estórias!

Porém, ao fim destes 2 meses, o treino operacional findava. A tropa da Companhia parecia estar, em definitivo, inteiramente apta para enfrentar qualquer situação de guerra, fosse onde fosse. Tantos enganos! Para o atestar, não houve qualquer rebuço em nos meterem numa LDG, rio Geba abaixo, rumo ao Sul da Província.

Quem tramou a companhia ?

Em Cacine apeámos, e a 20 de Março [de 1968] chegávamos a Guileje, e ninguém pressagiava a sinistra e fatídica odisseia que doravante estava reservada à CCaç 2317. Ao mandar construir um destacamento fixo, em zona onde o PAIGC detinha um quase inteiro domínio territorial, o estado-maior do comando militar da Província cismou numa táctica militar imprudente, reveladora de uma grosseira insânia, destituída de qualquer preconceito, tanto mais que assentava no propósito de minimizar o poderio militar do adversário.

Quem ousou pensar nesta decisão? Parece que, para os toldados mentores desta ultrajante aventura, o valor da conveniência estava exactamente a par do valor da vida humana, tentando de qualquer modo, atingir-se um putativo fim, sem minimamente se olharem aos meios. Não o haviam conseguido até então, e compelia-se uma Companhia sem qualquer experiência, a desempenhar um papel de protagonismo em permanente risco de vida, o de desamparados peões de briga, quais meros joguetes de uma estratégia insolente, e que vai precisar de uma ajuda constante, para não vir a ser dizimada.

Eu que vivi esses tempos tão sofridos, sem hiatos, ao tentar procurar entender esta resolução, não a descortino. E julgo que se cometeu uma ignóbil e hedionda manobra estratégica, que se viria a revelar desastrosa para todas as tropas que estiveram envolvidas nessa infinda operação. Ainda que esta eventual operação de acantonamento obrigasse o PAIGC a alterar a sua conduta militar de forma acentuada, este nunca deu mostras de soçobrar. Ao contrário, quase sempre demonstrou apresentar uma organização à altura das circunstâncias que as NT lhe tentavam mover. Apesar de reconhecer que tiveram que reforçar o seu poderio militar, bem atestado na forma como veio a agir, o abandono de Gandembel só pode apresentar uma leitura consequente: mais uma vez, as NT soçobraram naquela zona.

E se o desaire não é de todo gorado, tal deve-se ao preponderante papel desenvolvido pelas tropas paraquedistas, que se cruzaram connosco nesta aventura, pela forma extremamente meritória como o souberam assumir. Foram as verdadeiras tropas de elite, que num momento particularmente conturbado para nós, apearam em Gandembel, e coube-lhes a ousadia de conseguirem suster quase radicalmente as acções do PAIGC. Mas, no deve e haver, ficaram a perdurar para sempre, os resultados de uma sentença muito pesada. E estes, sem margem para quaisquer dúvidas, vieram a redundar num rotundo e plangente fracasso, pela quantidade de mortos e estropiados, dos feridos graves, e dos evacuados com maleitas várias, estas doenças que nos vêm chagando no nosso quotidiano.

Já alguém apontou no nosso blogue, o número de 52 mortos e muitos feridos graves. Torna-se-nos muito difícil atestar este valor, caro Zé Neto, mas do que me foi dado a observar e conhecer, considero que as tropas que estiveram mais ou menos envolvidas com a odisseia de Gandembel, entre mortos e evacuados para Lisboa (feridos e doentes), atingem seguramente a centena de homens, como terei oportunidade de ir focando.

Os custos materiais não contam para mim, mas mesmo aqui, quantas razões de queixa a lamentar, onde à falta de tantos meios, até a fome chegou a pairar, não por falta de comida, mas porque houve um longo tempo que se tornou difícil de tragar por manifesta má qualidade.

Oxalá que não seja por este conjunto de razões, que os factos bélicos que atravessaram as vivências de Gandembel/Ponte Balana, estejam praticamente omissos nos arquivos histórico-militares, e que acabarão fatalmente por se apagarem, pelo inexorável determinismo da lei da vida. E por isso, sinto-me profundamente chocado com este procedimento, que em nada enobrece a Instituição Militar. Assim, trair-me-ia, se deixasse perder o passado, de uma parte fundamental das vidas destes deserdados filhos de um deus menor.

Em seu nome, dos que tiveram a desdita de me acompanharem neste longo pesadelo, que se prolongou principalmente entre os meados de Março de 1968 a Maio de 1969, e mormente dos que vimos afastaram-se precoce e compulsivamente do nosso seio, procurarei dar sinal dos amargos momentos vividos, que o denegrido baú das minhas memórias, ainda não arrumou de todo, apesar das poeiras de 4 décadas.Será pois um conjunto de narrativas imperfeitas, mas que poderá vir a ser colmatada por outrens, e os foras-nada ficarão então mais consolados.
Mas, até breve!

Um abraço do Idálio Reis.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1449: Para breve, a história da CCAÇ 2317, que esteve em Gandembel e Ponte Balana (Idálio Reis)

(2) Vd. posts anteriores do Idálio Reis:

19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)

18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69)

12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P866: De Cansissé e a Fonte dos Fulas ao Baixo Mondego ou como o mundo é pequeno (Idálio Reis)

12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P867: Que madrasta Pátria é esta ! (ou o meu comentário à carta do Padre Mário de Oliveira (Idálio Reis)

13 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P874: O que é feito dos nossos relatórios de operações ? (Idálio Reis / Nuno Rubim)

12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P953: Cansissé, terra de encantos mil (Parte I) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)

12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P954: Cansissé, terra de mil encantos (Parte II) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P988: O soldado paraquedista Lourenço, natural de Cantanhede, morto e enterrado em Guidaje (Maio de 1973) (Idálio Reis)

2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1016: Cansissé, terra de mil encantos (Parte III) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)

19 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1382: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (7): No longínquo ano de 1968 em Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis)