Mostrar mensagens com a etiqueta Ilha de S. Miguel. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ilha de S. Miguel. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20806: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 
Reencontrar uma fotografia que tem mais de cinquenta anos, associada ao pré-anúncio de que a Guiné está à espreita e me vai receber de braços abertos, suscitou um conjunto de recordações em torno de perto de meio ano que vivi em S. Miguel, e que teve uma importância excecional na minha vida. 
Como os mais jovens não acreditam que aquele mundo existiu, tal qual aqui se recorda, permito-me trazer à vossa presença este cadinho de recordações. De associação com essa vida militar, novinho em folha, abria-se um capítulo de amizades inquebrantáveis e de uma adoração por aquela terra que seguramente irá até ao final dos meus tempos. Dessas amizades aqui farei um bosquejo, gente afetuosíssima que me preparou moralmente para a experiência guineense. Vão partindo, como ainda recentemente partiu uma distintíssima figura micaelense, Cremilde Tapia, senhora dadivosa, voluntária da generosidade e da dedicação à causa dos mais necessitados. Todo este rasurado lhe será dedicado, pelo bem que me fez e aos meus familiares, incluindo minha mãe, que se despediu de mim nessas duas partidas, para Ponta Delgada e para a Guiné, com o mesmo apelo: "Peço a Deus que tu regresses são e salvo"

Um abraço do 
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)

Mário Beja Santos

“Olha, pai, andei a remexer nas gavetas do meu quarto, encontrei esta tua fotografia, tenho a impressão que tu tinhas ido para a tropa, tens um ar resignado mas não pareces triste. Como foi?”.

Peguei na imagem, há quem diga que não nos conseguimos rever naquilo que éramos, há mais de cinquenta anos atrás, mas não houve hesitação no reconhecimento, aquela boina que eu compunha como se fosse uma boina basca, a boa disposição de ter aprendido como dava jeito ter o corpo moldado para a guerra no horizonte, sem remissão. Expliquei à Joana que acabara de ser promovido a Aspirante Oficial Miliciano, com classificação baixíssima, tudo devido a uma incompetência medular para mexer no armamento, não que me custasse limpar a Mauser ou a G3, aprendi as limpezas domésticas muito novo, não era essa a dificuldade, ao montar qualquer arma sobravam-me sempre peças. Atingira o objetivo maior, certificar-me que o corpo estava apto para as grandes fadigas, como se comprovou no exame rigoroso de mais de dois anos na Guiné, a calcar laterite por tudo quanto era sítio. Promovido a Aspirante e lançado a caminho de Ponta Delgada, com colocação no Batalhão Independente de Infantaria n.º 18, Arrifes.

E a seguir, outras fotografias se encadearam. A minha mãe entendeu que devia convidar dois grandes amigos meus, no jantar de despedida, em 6 de outubro de 1967. Veio a Helena Vidal, minha professora de inglês e alemão, foi ela que me levou ao British Institute ver aqueles espantosos ciclos de cinema dos anos 1950 e 1960, com Sir Laurence Olivier e Alec Guinness à cabeça; e o Eduardo Canto e Castro, amizade firmada a partir do primeiro ano no Colégio Moderno. Para meu infortúnio, estes amigos diletos já desapareceram. Na outra fotografia, já estou no cais, a seguir embarco no Carvalho Araújo. A Amélia Lança e a Margarida Silveira, duas amigas de peito, talvez convencidas que eu partia para a Polinésia e sem regresso, acenaram até ao barco desaparecer no horizonte. A minha mãe não foi, temia comover-se. Despedimo-nos à porta de casa. E retive o que ela me disse, e que irá repetir quando a beijei pela última vez no cais da Rocha do Conde de Óbidos: “Peço a Deus que tu regresses são e salvo”. Terá pedido insistentemente, a roda da fortuna acobertou-nos.




Estou absolutamente convicto que um jovem açoriano tem a maior das dificuldades em acreditar no que eu já escrevi sobre Ponta Delgada e a vida em S. Miguel. Toda a zona da baía à volta do porto, a ida pela Calheta até à Lagoa, são paisagens de algum modo irreconhecíveis. Chegámos à noite, despedi-me do José Medeiros Ferreira, que partiu para a Fajã de Baixo, e um amigo do meu cunhado, Dragomir Knapic, levou-me até aos Arrifes, dormi no quartel, no dia seguinte começou a pesquisa de quarto, fiquei a viver num quarto alugado na Rua de Lisboa, n.º 31, muito perto do Coliseu Micaelense e da Cervejaria Melo Abreu, apanhava o Largo 2 de Março e antes de chegar às portas da cidade virava à direita para o Café Nacional, mesmo em frente da Câmara Municipal, fiz contrato de comensal, jantava ali todos os dias, sem exceção. Quando regresso a Ponta Delgada, e tem sido com muita regularidade, procura permanências e as grandes mudanças. Não sei se há outro ponto do país que beneficiou tanto com o regime democrático. Os recrutas que tive adoravam a tropa, por razões elementares: nunca tinham comido pequeno-almoço, almoço e jantar, carne e peixe todos os dias; muitos não sabiam o que era o chuveiro, o champô, o fazer diariamente a barba. Jovens dóceis e conviventes, não sei se jamais voltarei a encontrar gente que fala com tanta sinceridade, sem esconder como vive lá na terra, como trabalha, os sonhos que tem, alguns passam por viajar até ao Canadá ou Massachusetts ou San Diego, quando vierem da guerra, ali não há ilusões que o nosso destino é África.



A minha filha traz-me uma bandejinha em prata, está lá gravado “Lembrança do 5.º Pelotão” por trás vem o nome da ourivesaria em Ponta Delgada. Esta imagem já a publiquei no blogue, não ilude a boa disposição reinante. Eu estou a ajaezar o Botas, era um moço, pasme-se, que nunca tinha vindo até Ponta Delgada, quando no fim da recruta, com autorização superior, meti esta malta toda numa camioneta e viemos ver ao cinema Lord Jim, de Richard Brooks, com Peter O’Toole, James Mason e Curd Jürgens, o Botas estava siderado, tinha lágrima no olho, quis voltar. Não sei se voltou, sei que estávamos todos a crescer e a mudar, foi uma alegria esta experiência de duas recrutas, se já trazia o corpinho preparado para as grandes andanças aqui se revelou o que se guardava como enigma: a capacidade de liderança, uma forma de autoridade natural, sempre a dar o exemplo, dispensando a gritaria e o palavreado brutal. Liderar é um dom que se burila, com a vantagem de se poder dispensar, quando se pretende passar para o anonimato, viver sem chefiar.


A disposição do quartel terá que surpreender muita gente, se não lhe conhecer os antecedentes. Na presunção de que os Açores podiam vir a ser invadidos, na II Guerra Mundial, criou-se aqui um quartel-hospital, se se reparar bem organizaram-se enfermarias que, quando chegou ao tempo da guerra de África, rapidamente se adaptaram a casernas. Naquele longínquo dia de outubro de 1967, quando acordei com os toques do corneteiro, saindo de uma cama com as mantas todas molhadas, e vim à porta, não eram estas as nuvens, era a bruma, que desapareceu a meio da manhã, e todo o esplendor daquela terra fértil, verdejante, pejada de vacas, encheu o meu olhar. À volta, estradas em paralelepípedos basálticos, por aí se farão marchas e corridas, passando por sítios belíssimos, como S. Vicente Ferreira, ainda no concelho de Ponta Delgada, e Fenais da Ajuda, já no concelho de Ribeira Grande.


Os jovens micaelenses duvidarão desta história, de pungente miséria. Os Arrifes, acima de Ponta Delgada, eram uma freguesia muito populosa, casais com muitos filhos, vivendo em condições da máxima indigência. Apanhávamos um transporte no Largo 2 de Março, perto do Palácio da Conceição, e vínhamos por aí acima, até aos Arrifes, a vida militar começava pelas 8:30 da manhã. O período de almoço era curto, de modo a concluir-se o dia de faina pelas cinco da tarde, voltava-se a tomar transporte de regresso a Ponta Delgada, não dava para conhecer o que era a vida do povoado. Mas havia as funções de oficial de dia, e então, inopinadamente, surgiu a realidade das grandes carências. Findo o jantar, surpreendeu-me um conjunto de crianças junto à porta de armas, traziam umas latas na mão. Perguntei na cozinha o que era aquilo: vinham à espera de sobras, sopa, restos de batatas e de pão. Dirigi-me ao responsável, mandei abrir uma lata de atum e tirar peças de fruta da dispensa. O homem olhou-me boquiaberto, como é que o meu aspirante vai descalçar a bota com o vagomestre. Não te preocupes, hei de encontrar uma justificação. Que se conseguiu, havia felizmente no dia seguinte instrução noturna, justificou-se como comida suplementar. Iremos ver mais imagens destas crianças, virão regularmente pedir-me para eu ser oficial de dia, queriam jantar reforçado. Ninguém suspeita nos dias de hoje a miséria que havia na região.


Também este postal já apareceu no blogue, enviei-o à minha mãe, para lhe mostrar a vida dos Arrifes, aqueles moinhos que porventura foram trazidos por bretões ou flamengos. Fiz amizades para toda a vida. Com as inevitáveis perdas. O Capelão dos Arrifes era o Padre Agostinho do Couto Tavares, quis saber como é que eu passava os fins de semana, achou que havia para ali isolamento a mais, e tudo fez para me apresentar a uma família que, como veremos, teve um papel relevantíssimo naquele meu tempo micaelense.


Monsenhor Agostinho do Couto Tavares, o guardião do Senhor Santo Cristo

(Continua)
____________

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17339: Os nossos seres, saberes e lazeres (211): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (1) (Mário Beja Santos)




1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 10 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Aqui vivi de Outubro de 1967 a Março de 1968, e prontamente me enfeiticei pelas hidrângeas, a bagacina, a marginal de Ponta Delgada.
No regresso da Guiné, aqui se fez escala e presenciei um dos episódios mais emocionantes que me foi dado viver: o porto pejado de mulheres de preto que esperavam filhos, maridos ou irmãos, uma cantata que a todos pôs a chorar.
Por aqui cirando de vez em quando, razões profissionais não faltaram, cresceram amizades e não escondo o frenesim em regressar a estas paisagens de verde, aos cones vulcânicos, passear na Lagoa das Furnas, avistar a Lagoa do Fogo, são cenários que se entremeiam no meu coração.
Aqui fica uma viagem de saudade, o princípio da festa do cinquentenário.

Um abraço do
Mário


São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (1)

Beja Santos

Cheguei a Ponta Delgada a bordo do "Carvalho Araújo", que me levou seis meses depois de regresso a Lisboa, o mesmo "Carvalho Araújo" que me trouxe de Bissau em Agosto de 1970. Anoitecera, todos os outros aspirantes a oficial miliciano tinham destino certo, eram da terra. Desembarquei e um amigo do meu cunhado, Eugénio Sales da Câmara, estava à minha espera e levou-me para os Arrifes, dormi no quarto do oficial de dia, com uma bruma que chegava aos cobertores. Ao primeiro toque do corneteiro, levantei-me, preparei-me e procurei desesperadamente comer. É nisto que olho para os montes circundantes, oiço o badalo das vacas, o seu mugido intermitente, um céu plúmbeo por onde esvoaçam nuvens dá a paleta de tons esverdeados que se tornarão inesquecíveis, pela vida fora. Assim começou o meu feitiço açoriano, estávamos em Outubro de 1967. Decidi comemorar com pompa e circunstância, mesmo antes de tempo, precisava desesperadamente de ver as azálias, os metrosíderos, as criptomérias, pisar a bagacina, respirar o enxofre das caldeiras.
Primeiro dia, degustação da terra, aceitei a sugestão do meu amigo Mário Reis, partimos de Ponta Delgada para o porto da Lagoa, almoço com boca negra grelhado, batata cozida e legumes, repasto delicioso, não tivesse dele partido a sugestão atirava-me à albacora ou aos filetes de abrótea. E começava o nosso passeio pela costa Sul, Livramento, São Roque, Relva, Feteiras, Candelária, Ginetes, aproveita-se o céu limpo para ver o miradouro do Escalvado, paragem no alto da Ferraria, as imagens desfolham-se.



Quem não sabe é como quem não vê, na primeira imagem temos uma caldeira seca, não sei se foi há milhões de anos quando por aqui rebentaram vulcões, uns ficaram adormecidos, expelem fumarolas, desfazem-se em lamas sulfúreas, outros secaram. É este o caso, não mete medo e dá pasto. Temos depois o farol da Ferraria, olha-se lá para baixo, para a imensidão do oceano que se atira em cachão sobre as rodas aqui as ondas são bravíssimas, volto a câmara para o outro lado, lá ao fundo estão os Mosteiros, para lá caminharemos, os seus ilhéus atraem turistas e poetas.




O Duque de Viseu, Administrador da Ordem de Cristo, conhecido por Infante D. Henrique, que andou à espadeirada em Ceuta, sonhava em chegar a outras terras para lá do mar, montou um projeto que envolvia expedições oceânicas. Quando aqui se chegou, um outro seu irmão, de nome D. Pedro, o das sete partidas, pediu-lhe para que o nome da ilha fosse S. Miguel, seu patrono. E assim nasceu a fama desta ilha de lagoas, de ventos ciclónicos, onde se pescou baleia, onde combateram liberais contra miguelistas, onde se planta chá e há estufas de ananases e onde quem parte vive em saudade, basta pensar em Natália Correia que se despediu deste mundo com os seus prodigiosos Sonetos Românticos, daqui se partiu e parte muito para Califórnias e Canadás, é a terra do visionário Antero de Quental, de Hintze Ribeiro, do derradeiro poeta do Orpheu, Armando Cortes Rodrigues, e ficamos por aqui. Estamos nos Mosteiros, o maior porto da costa Norte está em Rabo de Peixe, vou evitar palavras, acredito piamente que as imagens falem por si. João de Melo, que nasceu não muito longe daqui, na Achadinha, chama a S. Miguel uma doce melancolia: Aquilo que se avista lá de cima é como um tombadilho gigantesco, todo verde e quase plano (…) A palavra melancolia vê-se também no próprio espanto que em nós estranha e não explica o verde-azul-amarelo da terramar, corpo lânguido e feminino da paisagem, trecho da costa norte fendido ao meio pela Ponta do Cintrão, baixa, e até maneirinha, à esquerda; alta e muito recortada para as bandas de Porto Formoso. Os tons esmeralda da pradaria e das matas de incenso e criptoméria parecem a um tempo colidir e complementar-se entre si; ao longe e em baixo, a brancura das casas – que se perfilam ao longo das ruazitas desertas, tortuosas, com as suas barrinhas de basalto em volta das portas e janelas – resplandece-se acima dos verdes múltiplos da terra como numa marcação a giz dessa cor.




Continuou a jornada para os lados da Bretanha, Remédios, Santa Bárbara e perto das Capelas chegou o negrume da noite, regresso a Ponta Delgada. Mário Reis vai levar-me na manhã seguinte até ao Vale das Furnas, um lugar mágico, asseguro-vos. E assim foi, com as novas estradas vai-se rapidamente a outros pontos da costa Norte, caso do miradouro de Santa Iria, ali perto deu-se a batalha da Ladeira Velha, lê-se a lápide explicativa que é omissa na crueldade com se trataram os vencidos, atirando-os para o abismo. E assim se chega a um local por onde, há perto de 50 anos, passei de revés, o Hotel Terra Nostra, tem um jardim magnífico e um polo de atração irrecusável, a piscina onde a temperatura ronda os 40 graus. Pode ser que a ilha tenha muita melancolia, mas eu tenho a alma em júbilo.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17314: Os nossos seres, saberes e lazeres (210): Tavira fenícia, árabe, portuguesa; a cidade e a água (3) (Mário Beja Santos)

domingo, 22 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15392: Facebook...ando (38): III Encontro de Combatentes da Guerra do Ultramar (1961-1975), promovido pela Junta de Freguesia de Arrifes (concelho de Ponta Delgada, S. Miguel, Açores) (Carlos Cordeiro)

III ENCONTRO DE COMBATENTES DA GUERRA DO ULTRAMAR (1961-1975)

Promovido pela Junta de Freguesia de Arrifes 
(Concelho de Ponta Delgada, S. Miguel, Açores)

No Sábado, 21/11/2015, a Junta de Freguesia de Arrifes, presidida pelo jovem Eusébio Massa, com a colaboração do Comando da Zona Militar dos Açores, promoveu o III Encontro de Combatentes da Guerra do Ultramar (1961-1975) naturais dos Arrifes ou lá residentes.

Trata-se de um encontro que se realiza de dois em dois anos e que este ano contou com mais de cem participantes, incluindo combatentes e respectivas famílias.

Pelas 18 horas, os participantes assistiram à Missa na Igreja de S. José de Ponta Delgada, seguindo depois para o Forte de S. Brás. Ali, o Coronel (Ref) José Manuel Salgado Martins (Antigo Combatente, com comissões em Angola e na Guiné), destacou algumas peças em exposição numa das salas do Museu Militar dos Açores.

Após a homenagem aos Mortos em Campanha, e já na sala de jantar, proferiram breves alocuções o Cor. Salgado Martins, os Presidentes das Delegações da Liga dos Combatentes e da ADFA e o Comandante da Zona Militar dos Açores, Major-General José Manuel Cardoso Loureiro.

Durante o jantar, numa ampla sala do Forte de S. Brás, houve boa música ao vivo.

Deixo as considerações e comentários que a iniciativa merece aos camaradas d'Armas dos "ACA".







____________

Nota dos editores

Último poste da série de 23 de dezembro de 2014 Guiné 63/74 - P14073: Facebook...ando (37): Cartão de Boas Festas (Maria Alice Carneiro)

domingo, 14 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3621: Em busca de... (57): Ex-combatentes do BCaç 2928 (Bula...1970/72) (António Matos)

BCaç 2928/CCaç 2790

À procura de Camaradas

Mensagem do António Matos, com data de 14 de Dezembro de 2008

Gostaria imenso de usufruir do sistema de procura de camaradas a quem perdi o rasto desde 1972 !!!
Como se faz isto ?

Os dados são:

Batalhão de Caçadores 2928
Companhia 2790
Capitão Sucena
Pelotão do alferes Matos e dos furrieis Tavares e Guedes Vaz
Ida para a Guiné em 1970
Regresso em 1972
Soldados açoreanos provavelmente imigrados no Canadá ou, eventualmente, já regressados a S.Miguel.

António Matos

__________

Nota de vb:

Último poste da série de 13 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3617: Em busca de... (55): Ex-combatentes da CCAÇ 594 (Guiné, 1963/65) (Júlio Pinto/Artur da Costa Rodrigues)

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3465: O meu enquadramento sócio-político-financeiro, religioso e académico na Guerra do Ultramar (II). António Matos.

No BII 18, a formar a CCaç 2790

BII 18, Ponta Delgada, S. Miguel, Açores. Os então asp of mil Marques Pinto e António Matos (1).
Ano de 1970. Verão. É-me dado um bilhete de avião na TAP para os Açores. Foi o meu baptismo de voo. Destino: Ponta Delgada – Arrifes – BII 18. Missão: formação da Companhia Independente 2790 Paralelamente, outros camaradas iam aparecendo e aquela permanência de 3 meses tornou-se extremamente agradável. Juntámo-nos alguns alferes (recordo o Urze Pires, o Marques Pinto e eu) e alugámos uma casa no centro da cidade.
Os dias eram passados em instrução mas sobejava-nos tempo para uma vida civil prazenteira. A vida social era intensa e o assédio das moças gaiteiras na expectativa de "pescarem" um continental era medonho! Valeu-me ser já um homem comprometido e cumpridor das promessas deixadas em Lisboa.... Com o primeiro vencimento comprei um ainda hoje belíssimo relógio Ómega Seamaster! Custou 3.500$00!!!! (menos de 20 €). O meu gosto pela actividade física recebia eco da parte dos soldados que se prontificavam a longos crosses desde os Arrifes até à cidade e volta. Com a Mauser às costas!
Mas nem tudo foram favas contadas! A minha grande dificuldade foi a que constatei de imediato ao tentar perceber aquela gente. As viagens de GMC no fim do dia de instrução para a cidade eram um verdadeiro suplício de tradução! Aos poucos fomos limando essa "questão de pormenor" e no final já era um verdadeiro açoriano...
Desenfianço antes do embarque
Chega o mês anterior à partida. Sem dizer água vai, meti-me na SATA até Stª Maria (na altura a TAP ainda não voava para Ponta Delgada) e daí apanhei o TAP vindo de Boston para Lisboa. Ia "desenfiado"! Sei que criei muita perplexidade ao tenente-coronel Mexia Leitão (comandante do BII 18) com esta "deserção" e a dúvida sobre uma não-comparência ao embarque esteve-lhe na ideia. Dois dias antes do levantar ferro do Carvalho Araújo, apareci em Ponta Delgada e nessa noite fui ao cinema ao Teatro Micaelense. Pontuava no 1º balcão a fina-flor açoriana e o Tenente-Coronel também lá estava. Foi notório o alívio que transpareceu na sua cara e lembro-me do abraço afectuoso que me dispensou. No fundo percebi o seu sentimento de camaradagem em não ter participado de mim na expectativa de que eu voltaria. Por acaso voltei. Por acaso, pois houve tentativas de aliciamento para fazer as malas e dar o salto. Foi numa altura em que estavam vários tenentes nas companhias vindos como antigos oficiais da GNR. Na C.Caç 2790 tínhamos o tenente Lucas e na 2789, o tenente Freitas. O primeiro cedo abalou para a Suécia. O segundo não conseguiu arregimentar pessoal para o acompanhar na acção. Recordo uma noite que passámos no cais de embarque de Ponta Delgada a congeminar a fuga para as Flores e daí "pedir boleia" à Força Aérea Francesa que, julgo, teria por lá uma sucursal... Não foi patriotismo nenhum! Foi mera incompatibilidade com a minha estrutura de vida que não me deu forças para tal. Tive, isso sim, o desejo de ter a experiência vivida de ter estado numa guerra e sobreviver. Hoje, e uma vez que consegui superar essa dificuldade, continuo a agradecer a oportunidade que tive e faço dela muitos paralelismos para a minha vida do dia-a-dia, regra geral com bons resultados.
Chegou, enfim, o embarque Como alferes miliciano e no ultramar, se a memória me não atraiçoa, auferia de um salário de 5.500$00 (27,5 € - hoje não compro uma camisa!).
Na medida em que não pagávamos as balas nem os estragos que provocávamos no capim e pouco havia onde gastar dinheiro, era-nos permitida uma poupança na Metrópole que se alimentava, mensalmente, de uma transferência de parte daquele valor. Tabaco, whisky, pequenos rádios que se adquiriam nas idas a Bissau, uma ou outra máquina fotográfica, um jantarzinho melhorado e outros pequenos nadas (...) seriam as desculpas para "derreter" os escudos remanescentes. Era, pois, uma vida sem problemas de créditos mal parados e não me apercebi nunca de situações delicadas motivadas por falta de dinheiro.
Sistematicamente eu dispensava (em carácter rotativo) uns quantos soldados de alinharem em operações numa tentativa de criar um ambiente menos tenso e de, as deslocações a Bissau que a maioria aproveitava para fazer, servirem para "aliviar a tensão" acumulada. As diferenciações académicas não eram demasiado críticas uma vez que o pelotão era constituído por homens de grau de conhecimentos semelhantes e os debates culturais não tinham, pura e simplesmente, lugar. Na caserna, a revista Corin Tellado era disputada a murro entre os soldados e havia mesmo um capitão que se perfilava na tentativa de conseguir o empréstimo do último número...
uma missão impossível
A iliteracia absoluta era propriedade de um soldado do meu pelotão que, numa determinada época, e após ter percebido que atribuir a missão de escrita e posterior leitura dos aerogramas para a namorada a outro magala era motivo de grande chacota na caserna, me promoveu a seu confidente. Esse soldado, a seu pedido e com a anuência do furriel Benigno Abreu, passou a ter aulas que lhe permitiriam desenhar as letras e ler. Veio mais tarde a perceber-se que sofria duma espécie de dislexia curiosa: conseguia conhecer as letras, conseguia juntá-las e constituir as sílabas, mas não conseguia juntar as sílabas para a formação final da palavra.
Ficou conhecida a seguinte peripécia: (Estava-se no estudo da letra "P". O livro de instrução primária mostrava a figura dum pato) O Abreu perguntava: oh Zebedeu (nome fictício), que letra é esta?
Zebedeu – É um "p", meu furriel! Abreu – Boa! E esta? Zebedeu – É um "a", meu furriel! Abreu – Então um "p" e um "a", como se lê? Zebedeu – Um "p" e um "a" lê-se pa, meu furriel! Abreu – Fantástico! E esta outra letra, como se chama? Zebedeu – É um "t", meu furriel! Abreu – E esta? Zebedeu – É um "o", meu furriel! Abreu – Muito bem, e como se lê um "t" e um "o"? Zebedeu – Um "t" e um "o" lê-se to, meu furriel! Abreu – Mas o "o" no fim da palavra lê-se.... Zebedeu – Lê-se "u". Abreu – Muito bem, Zebedeu, então já sabemos que um "p" e um "a" se lê pa; já sabemos que um "t" e um "o" se lê tu; então como se lê tudo? Zebedeu – "bufa", meu furriel! Escusado será dizer que a espontaneidade da gargalhada geral soou a uma só voz e ficámos na convicção de que o "Zebedeu" estava a gozar connosco. Não era, de facto, a situação, e só mais tarde vim a saber da existência dessa anomalia chamada de incapacidade de juntura silábica ou intervocabular. Já na vida civil, num jantar de confraternização, consegui localizar o "Zebedeu" e recordámos esta e outras situações e compreendi a grandeza humana que nos permite ser realmente AMIGOS. A minha companhia em geral e o meu pelotão em particular, era constituído maioritariamente por homens açorianos. Só os oficiais, os sargentos e os cabos especialistas é que eram metropolitanos (mais tarde os reforços de rendição individual também eram da Metrópole). O cariz religioso era, portanto, elevado. O capelão do batalhão, Padre Antero, irmão marista, homem calmo, sabedor, culto, simpático e amigo, cuidou das suas almas e confidenciou-os tendo angariado a generosidade daqueles corações. Esteve presente nos momentos difíceis e era um refúgio espiritual que particularmente tenho pena de não ter explorado. Muitos anos mais tarde, também o localizei e pedi-lhe que viesse celebrar a missa de bodas de ouro do casamento dos meus Pais, o que concordou e dirigiu palavras agradabilíssimas ao cruzar recordações do tempo da Guiné... Os meus Pais gostaram imenso e os restantes participantes na cerimónia/festa congratularam-se em conhecê-lo também. Fim deste capítulo
António
__________

Notas:

1. António Matos, ex-Alf Mil da CCaç 2790, Bula 1970/72

2. Artigo anterior em

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1523: Todos portugueses, mas uns mais do que outros? Expressões micaelenses (Vitor Junqueira)


Capa do famoso Livro da Terceira Classe, Ed. Domingos Barreira, 4ª Ed., 1958. Era o mais ideológico dos manuais escolares do nosso tempo. E, entre muitos esterótipos sociais que veiculava (rural/urbano, pobre/rico, homem/mulher, criança/adulto, etc.), fazia-se eco dos traços de carácter que distinguiam os portugueses (nomeadamente continentais), em função da região do seu berço: o minhoto, o duriense, o transmontano, o beirão, o alentejano, o algarvio... Cada um tinha a sua idiossincrasia, a sua raça, os seus atributos físicos e anímicos... Nunca vi, em contrapartida formar-se uma companhia só com alfacinhas, ou estremenhos, ou até só com tripeiros.... O Exército ainda vivia do preconceito de que o melhor soldado ainda é o que vive no campo, passa mal, está habituado à dureza do trabalho e aceita, com resignação, a sorte que Deus lhe deu... (LG)

Foto: Luís Graça ( 2007). Direitos reservados.


Comentário de L.G.:


Pelo teatro de operações da Guiné, de Angola e de Moçambique passaram unidades - nomeadamente companhias, independentes ou integradas em batalhões – que eram mais homogéneas, do ponto de vista da sua composição sociogeográfica, do que outras. Refiro-me, por exemplo, às companhias açorianas, madeirenses, alentejanas, transmontanas…Para não falar já das companhias africanas. E, no caso da Guiné, as companhias de fulas, manjacos, etc. A minha CCAÇ 12 era etnicamente homogénea, sendo constituída só por fulas da Zona Leste, região de Bafatá, regulados de Badora e Cossé (2)...

Embora Portugal seja, de há muito, um país sem etnicidades, sem problemas étnicos, linguísticos ou religiosos, subsistem alguns regionalismos que, de tempos a tempos, o poder político se lembra de aproveitar, acicatar ou pôr ao seu serviço... Lembro-me muito bem de ler, no nosso livrinho da terceira classe - o mais ideológico dos manuais escolares do tempo de Salazar - que Portugal era um só, mas havia portugueses mais alegres, trabalhadores e hospitaleiros do que outros (por exemplo, os minhotos em relação aos alentejanos), ou mais rijos, destemidos e corajosos (por exemplo, os transmontanos em relação aos algarvios)...

As autoridades miliares, durante a guerra colonial, utilizaram, intencionalmente ou não, o estereótipo regionalista para formar unidades baseadas no mesmo chão (uma expressão que aprendi na Guiné). Homens e bichos pertencem todos ao mesmo terroir, para utilizar uma expressão francesa que se aplica à vitivinicultura... É bom que, quando vão para a guerra, os laços de sangue e de vizinhança venham ao de cima... A verdade é que na época - anos sessenta e princípios de setenta - ainda era fraca a mobilidade dos portugueses. Quantos lisboetas conheciam o Porto, ou o Alto Minho, ou os Açores ? E quantos transmontanos já tinham viajado pelo sul ? Por conveniência, por economia, por ideologia ou outra razão qualquer, a verdade é que todos nós conhecemos unidades - nomeadamente companhais - de base regional ou regionalista... E gabavam-se as qualidades guerreiras dessas companhias (de transmontanos, de alentejanos, de madeirenses, de açorianos...), maioritariamente compostas por mancebos de extracto rural...

Vim isto a (des)propósito deste mimo que o Vitor Junqueira nos mandou, já algumas semanas e que ficou na calha, à espera de melhores dias, ou seja, de oportunidade editorial... Recorde-se que o Vitor foi alferes miliciano de um dessas companhias de bravos açorianos. Ele já aqui fez, de resto, o elogio a essa grande família que era a sua CCAÇ 2753 (1).

Um mimo do Vitor Junqueira: "Meninos toca a praticar", diz ele.


Expressões micaelenses ,
por Vitor Junqueira



Corisco mal amanhado = Safado; traquinas
Gama = Pastilha elástica (do inglês Bubble Gum)
Brassad = Companheiro; amigo
Pelo'ê = Ai de ti!
Atoleimado = Tolo
Blica = Pénis
Naião = Homossexual
Pau-de-filete = Poste de luz
Poderios = Muito
Pega drêt = Desaparece
Requim (Requinho) = bonito; engraçado
Binsuade (Abençoado) = Querido
Vá larê = Vai dar uma curva
Fogue t'abrase = Fogo te abrase (injúria)
Vent'incanade (Vento encanado) = Corrente de ar
Mamã s'abence = Pedido de benção
Fema; Gueixa; Bezuga = Rapariga bonita
Pana = Alguidar
Fonte = Torneira
Papo-seco = Carcaça
Tai'asne = Tal asno
Gadanhos = Dedos
Apoquentação = Inquietação
Abouiar = Atirar
Rebendita = Vingança
'Tás muito mal enganado = Enganas-te redondamente
Foge diante = Sai da frente
'Tás vesgueta = Estás cego
Gueixos - Vacas
Tás co olho!? = Para onde estás a olhar!?
Canica = Relva (vem de Canicão)
Enlameirados = Enlameados; caminhos com lama
Péugos/peúgas = Meias
Meias = Collants
Rabixel = Rabo
Aganta = Aguenta
Dondué = De onde é
Amanda = Manda
Clâme = cuspo
Mêm de veras = A sério
Estás bem amanhado = Estás lixado
Asno = Burro
Vais apanhar nas ventas = Vais levar na cara
Ilhó = olho do cu
Carro de praça = Táxi
Arressaca (deturpação de Ressaca) = Briga
O chouffer da frágonete = Chauffeur da Furgoneta
Fominha negra = Muita fome
Têstos = cacos
Olhos arregalados = Olhos em bico
Penca = Nariz
Macaquinhos = Desenhos animados
Cramalheira = Queixo
Petxeno = Pequeno; Rapazola
Nisca de gente = Rapazinho
Queijada = Pastel
Fogareiro/Fogão = Mulher feia
Grande padeira = Grande rabo
Moreão = Pénis
Chouffér = Motorista; Taxista
Paranhos = teias de aranha
Gadelhas = Cabelos
Que peste = Que pivete
Alvarozes = Jardineiras
Falsa = Sotão

Expressões de influência Americana

Suéra/Suéla - Sweat-shirt
Snicas - Snickers = Sapatilhas
Gama - Bubble Gum = Pastilha elástica
Frejoeira - Refrigerator = Frigorifico
Estôa - Store = Loja
Offas - Office = Escritórios
Microeives - Microwaves = Micro-ondas
Clauseta - Clauset = Roupeiro
Raíuei - High-way = Auto-estrada
Candilhes - Candies = Rebuçados
Chortes - Shorts = Calções
Uínda = Window = Janela
Friza = Freezer = Congelador
Sinó = Snow = Neve
Socas = Socks = Peúgos
Côrtes = Court = Tribunal
Sóda = Soda = Sumo
Base = Bus = Autocarro
Tréla = Trailer = Atrelado
Rár atéck = Heart Attack = Ataque cardíaco
Pana = Pan = Alguidar
Slipas = Sleepers = Chinelos
Viciár = VCR = Video
Colégio = College = Universidade
Graduar = to graduate = formar
Vacam Maclina = Vaccum Cleaner = Aspirador
Oranmelons = Watermellons = Melancias)
Traques = Trucks = Camiões
Gárbixa = Garbage = Lixo
Turquí = Turquey = Perú

______

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1403: A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida (Vitor Junqueira)

(2) 21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)