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segunda-feira, 30 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P2008: Dando a mão à palmatória (1): A fotografia dos saudosos majores Pereira da Silva, Passos Ramos e Osório (João Tunes / Editores)

Guiné > Chão Manjaco > 1970 > Os três majores (Pereira da Silva, Passos Ramos e Osório) em acção psico, numa lancha a motor. O Alferes, que aparece em primeiro plano, poderá ser o Palmeiro Mosca, também assassinado em 20 de Abril de 1970. Por lapso, num post anterior, os três majores apareceram por outra ordem, errada (1).

Foto: Cortesia de
Afonso M.F. Sousa (2007)

Guiné > Bissau > 1970 > A única fotografia dos três majores que até agora tínhamos publicado (2): da esquerda para a direita, Pereira da Silva (1º), com a sua enorme bigodaça; Passos Ramos (2º) e Magalhães Osório (4º). Há um quarto oficial (o 3º, na fotografia) que presumimos ser o Alf Mil Palmeiro Mosca, também assassinado em 20 de Abril de 1970.

Fonte: Maria da Graça Passos Ramos / Círculo de Leitores. In: ANTUNES, J.F. - A Guerra de África: 1976-1974. Vol. I. Lisboa:
Círculo de Leitores. 1995. p. 373. (com a devida vénia...)

1. Mensagem do João Tunes:

Camaradas editores,

Quando foi editado o Post 2004, fiz um comentário chamando a atenção que a fotografia com os majores mortos no chão manjaco tinha legendas trocadas em que se chama Passos Ramos a Pereira da Silva e vice-versa (1).

Como conheci os majores pessoalmente em Teixeira Pinto (Canchungo), tendo-me tornado amigo de Passos Ramos e Pereira da Silva (3), de quem fiquei admirador e muito me doeu as suas perdas e, sobretudo, a forma cobarde e sádica como foram assassinados, não tenho dúvidas quanto ao erro cometido. O comentário ficou para apreciação dos editores e até ao momento continua não publicado e a gralha na foto mantem-se. O que acho que já não fará a glória do PAIGC como trocar identidades não é a melhor forma de se homenagear alguém.

Não sei porque é que o comentário continua em stand-by e porque continua a troca de nomes entre os dois militares a que, justamente, se quis prestar homenagem. Não faço questão em que o comentário seja editado mas, no mínimo, o respeito para com estes nossos camaradas caídos em combate impõe que os seus nomes não sejam trocados e a gralha seja rapidamente corrigida.

Ainda pensei que os três editores tinham ido de férias em simultâneo mas verificando que continum a publicar posts, um pelo menos deve estar de serviço. A esse, endereço este apelo. Escuto.

Melhores saudações do
João Tunes

2. Comentário de L.G.:

Camarada João: Mal cheguei do Norte, inseri o teu comentário. Por enquanto sou eu que modero os comentários que, em princípio, são sempre publicados, desde que respeitem as nossas regras de convívios e as nossas normas editoriais... Mas é mais uma tarefa que vou ter que delegar.
Isto quer dizer, portanto, que não posso imputar qualquer responsabilidade aos nossos camaradas co-editores que, para além do mais, são tão ou mais voluntários e voluntaristas do que eu e que, como deves imaginar, não estão nem não podem estar permanentemente no computador, com a caixa do correio aberta.
Portanto, o erro de troca de nomes só pode ser imputado a mim. O Afonso mandou-ne a foto mas eu não sei se as legendas são da sua autoria. Fui eu (e mais ninguém) que editei o post (1) e, como tal, eu deveria ter detectado o erro. Até por que conhecia o teu post e a descrição que fazias do Pereira da Silva com a sua enorme bigodaça (3)... Não detectei o erro, lamento, dou a mão à palmatória (que é para isso que ela existe...).
João, obrigado pelo teu oportuno reparo e teu já proverbial olhar clínico, treinado e sempre atento às gralhas, aos erros, aos lapsos, etc., que muitas vezes borram a pintura cá da nossa blogosfera... As minhas desculpas aos familiares, amigos e camaradas dos saudosos majores Pereira da Silva e Passos Ramos.
3. Comentário posterior (31 de Julho) do Afonso M.F. Sousa:
Homens de rija têmpera (se quiserem: "camaradas e amigos"):
Acabo de chegar da Mealhada, onde estive em casa da irmã do José da Cruz Mamede a mostrar-lhe o dossiê sobre a triste ocorrência do 12 de Outubro de 1970, lá para os lados de Mansoa e que, também, não vi ainda publicado no Blogue.
(...) Quanto à fotografia [dos três majores] recebia-na no dia em vos enviei o up-date ao dossiê O Massacre do Chão Manjaco. Enviou-ma, por mail, um simpático militar (Albino Silva) que, à altura desta trágica ocorrência, estava em Jolmete. Não sei se foi legendada por ele, mas o facto é que a recebi assim (...).
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 27 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2004: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (Anexo A): Depoimento de Fur Mil Lino, CCAÇ 2585 (Jolmete, 1970) Guiné 63/74 - P1503: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (6): Fotografia dos três majores (Sousa de Castro)
(3) Vd. post de 11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo) (João Tunes)

(...) Quanto ao Major Osório, sempre de t-shirt branca, pouco falava mas era muito respeitado. Aquilo era gente de acção e quando a não tinham, cediam à espera tensa e ansiosa de mais acção. Em resumo, eram guerreiros em descanso forçado. Além da bravura na guerra, só lhes sobrava bravura para descarregarem o sexo numa ou noutra adolescente a quem deitavam mão e que se limitavam a abrir as pernas e os olhos, num misto de espanto, de medo e de ausência de prazer.

"O Major Pereira da Silva, de enormes bigodes revirados, não parecia um militar. Mal enfiado dentro da farda, o homem era um intelectual. Falava todos os dialectos usados na zona, conhecia de fio a pavio todos os usos e costumes das tribos da Guiné, andava sempre pelas aldeia a completar os seus conhecimentos e a farejar informações úteis. Em colaboração com a Pide, dirigia a rede de informadores e era o negociador com os cisionistas do PAIGC, dispostos a entregarem-se. Era um comunicador excelente e um homem completíssimo em cultura(s) africana(s). Dava gosto ouvi-lo e aprender com ele, tanto mais que tinha, para com os africanos, uma autêntica reverência cultural, particularmente quando se tratava dos manjacos.

"O Major Passos Ramos era o crâneo do comando militar. O pensador de toda a estratégia e o homem que fazia as sínteses do cumprimento da missão para toda a zona. Excelente conversador e homem culto, o Major Passos Ramos irradiava encanto e inteligência. Era um oposicionista manifesto e assumido ao regime e tinha, inclusive, participado na Revolta da Sé. Quando encontrava um miliciano chegado de fresco ou vindo de férias, ele imediatamente rumava a conversa para as actividades oposicionistas e pedia previsões sobre quando o regime iria cair. Spínola estava encantado com o andamento das coisas no chão manjaco.

Tudo ia bem ou parecia andar. E os oficias de Teixeira Pinto eram mesmo a sua nata. Eram militares profissionais de primeira água que faziam a guerra o melhor que sabiam e podiam. A meio da tarde, regressei a Pelundo. Sem problemas.(...)

"Fiz, então, a última viagem de jipe do Pelundo até Teixeira Pinto para apanhar o avião que me levaria, em trânsito, até Bissau. Mas, antes de embarcar no avião, não faltaram os três majores na pista para darem abraços de despedida (e de solidariedade).

"O adeus do major Passos Ramos foi o mais emotivo porque tinha ganho uma especial empatia comigo, alimentada de cumplicidade política e de estima pessoal. Ainda hoje me parece sentir nas costas o toque afectivo das palmas das suas mãos. Foi a última vez que vi Pelundo e Teixeira Pinto. E os três majores.

"Já colocado em Catió, tive notícias dos três majores e meus amigos. Notícias que correram mundo" (...)

João Tunes

terça-feira, 24 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1991: O Simplex, o Kafka e o Batista ou a Estória do Vivo que a Burocracia Quer como Morto (João Tunes)


1. Com a devida vénia, reproduzimos aqui, com algumas pequenas adaptações, o seguinte post do nosso amigo e camarada João Tunes. É mais uma contribuição para que o caso Batista - o nosso morto-vivo do Quirafo, e futuro membro da nossa tertúlia - não morra na praia, e ele volte a recuperar o registo, na sua Caderneta Militar, da verdade e da memória a quem tem direito!... Vamos ajudá-lo a conseguir esta pequena vitória contra a burocracia sem rosto!... É também uma pequena homenagem ao Álvaro Basto e ao Paulo Santiago que se interessaram pelo caso (humano e militar) do António da Silva Batista. Vamos fazer chegar o caso dele até ao Chefe do Estado Maior do Exército, e por aí fora (se for caso disso). Vamos testar o tão badalado o Simplex, a vontade de transparência e de simplificação das relações entre os eleitos e os eleitores, o poder político e os cidadãos ! O Simplex não pode ser apenas Propagandex! E tem de chegar às repartições militares!

O Paulo Santiago, que é um homem generoso,solidário, emotivo e de grandes causas, deixou ointem este comentário no blogue do João Tunes: "João: Se o Batista lesse este teu post, ficaria agradecido, como ele não anda pela Net, agradeço eu, em seu nome. Sinto-me muito revoltado, mais ainda após ler o post do Luís e o teu. Apagarem anos e meses da vida de uma pessoa é uma canalhice, é uma filha da putice. Ainda não sei o que irei fazer, mas,quieto e calado não ficarei. Senti que, para ele, é mais frustante o não mencionarem o seu passado de prisioneiro de guerra que a não atribuição de qualquer pensão" (...). Hoje o Paulo já escreveu ao Coronel Ayala Botto, que foi ajudante de campo de Spínola na Guiné (vd. post anterior a este). Mais ideias, precisam-se! (LG).


Água Lisa (6), blogue de João Tunes > 23 de Julho de 2007 >
SIMPLEX E O VIVO QUE A BUROCRACIA QUER COMO MORTO


Também a guerra tem as suas burocracias. E, como qualquer burocracia, se não domada pelo sentido do humano, tende a tomar galopes soltos mesmo sem sinais humanos sentados na sela. Onde facilmente as vidas se perdem, ou se gastam, como é o caso das guerras, a burocracia da guerra pode cometer o mais caricato erro burocrático: trocar vivos por mortos, ou vice-versa.

Neste blogue [, link para o nosso blogue, Luís Graça & Camaradas da Guiné,] reconstitui-se uma odisseia burocrática que começou na guerra colonial na Guiné e se espraiou no meio da papelada, esmerando-se em caprichos, com que os militares portugueses registam os que, da guerra, saíram vivos e mortos. Mostrando-se difícil que alguém dado como morto e enterrado, afinal estando vivo, recupere a cidadania da sua vitalidade (....).

Resumindo a história do ainda vivo cidadão António da Silva Batista, antigo soldado do Exército Colonial Português:


- Em 17 de Abril de 1972, em Quifaro (Guiné), uma emboscada montada pelo PAIGC provoca um número elevado de vítimas mortais: 11 militares portugueses, cinco milícias africanos e vários civis que eram transportados na coluna militar. O soldado Batista escapa com vida e é aprisionado pelos guerrilheiros do PAIGC, sendo levado por eles para a Guiné-Conacry. Através da Cruz Vermelha, o soldado Batista escreve várias cartas à família que nunca chegam ao seu destino.

- O soldado Batista é dado como morto pela burocracia militar portuguesa, um outro cadáver faz-lhe de corpo seu, é passada competente certidão de óbito, os restos mortais substitutos são entregues à família, que procede ao respectivo funeral, ficando com campa no cemitério da sua terra natal que passa a ser cuidada e transformada em culto de saudade pela família.

- Com o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau, o PAIGC liberta o soldado Batista, entregando-o ao exército português. Em Setembro de 1974, passados 27 meses sobre a data da sua captura pelo PAIGC, volta a casa e à família. Visita a “sua campa” no cemitério (foto na imagem, publicada em 1974 no Jornal de Notícias) onde lê na lápide que lhe era dedicada “Em memória de António da Silva Batista. Falecido em combate na província da Guiné em 17-4-1972" e deposita uma coroa de flores sobre o corpo que lhe fizera as vezes.

- O ex-soldado Batista, cujo único documento de identidade era a sua certidão de óbito, vê-se em palpos de aranha para recuperar a sua condição de cidadão vivo. Se o Exército o dera como morto em combate, com certidão de óbito devidamente emitida, como podia passar a vivo e contado o tempo de ausência como prisioneiro? A burocracia reage como é timbre da burocracia. O ex-soldado Batista é reintegrado no rol dos vivos mas ainda hoje, continuando vivo, não conseguiu que a sua permanência no campo de prisioneiros do PAIGC lhe conste, na sua caderneta, como tendo sido em serviço militar.

A burocracia não permite que um vivo tenha estado vivo enquanto os papéis, os sagrados papéis da burocracia, assinalam que o vivo estava morto. Quando muito terá estado vivo mas, nos papéis, continua morto, ou pelo menos ausente em parte incerta. E se o ex-soldado Batista quisesse documentos conformes, respeitasse o papel da certidão de óbito e, em vez de andar a atrapalhar a burocracia, aceitasse que estava morto. Nem o Simplex resolve tão intrincado desrespeito à santa burocracia?

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1783: Tese de doutoramento de Leopoldo Amado: Guerra colonial 'versus' guerra de libertação (João Tunes)


Guine > Região de Tombali > Guileje > 1970 > "Junto foto do meu arquivo referente a uma das alturas em que estive em Guileje, datada de Maio de 1970. Em primeiro plano, a rede de protecção em arame farpado. Atrás, abrigos e porta de armas. Vêm-se ainda os telhados, da esquerda para a direita, da caserna, do refeitório e do posto de transmissões"

Foto e legenda: © João Tunes (2006). Direitos reservados


Com a devida vénia transcrevo aqui a excelente peça bloguística, produzida pelo nosso camarada João Tunes, e inserida no seu blogue - Água Lisa (6) - , com data de 21 de Maio de 2007. 

O João, que foi Alf Mil Trms, no Pelundo e em Catió (1969/71), é um dos nossos camaradas que mais tem reflectido sobre o contexto político e ideológico em que se desenrolou a guerra colonial (1971/74). 

Às vezes, polémico, crítico, contundente, incómodo, cultivando a frontalidade, o João é sobretudo um cidadão militante e livre, um homem de grande lucidez e generosidade, absolutamente indispensável como maître à penser nesta nossa Tabanca Grande. 

Tenho saudades tuas, João. Visita-nos mais vezes. Ou melhor: não precisas de pedir licença para entrar, que a casa também é tua, pese embora nem sempre te sintas confortável nos espaços fechados, exíguos e às vezes clautrofóbicos, desta caserna da tropa, preferindo desenfiares-te para a bolanha, a savana arbustiva, o rio ou a floresta-galeria... (LG)


Segunda-feira, 21 de Maio de 2007 > GUERRA COLONIAL / GUERRA DE LIBERTAÇÃO
por João Tunes 

(Subtítulos e links da responsabilidade de L.G.)



A guerra colonial ainda resiste como tabu contornado na sociedade portuguesa. A abordagem deste drama, que durou treze anos, marcando, em perdas e danos, muitas dezenas de milhares de portugueses hoje acima dos 55 anos de idade mas que se repercutiu nos seus familiares, deixando assim marcas em várias gerações, não alcança, em termos de ocupação de memória e de evidência histórica, comparado com o espaço memorialista, narrativo e analítico ocupado pelo drama conexo e consequente da descolonização, uma repartição similar. E o filtro do ressentimento gerado pelo drama da descolonização foi e é um formidável gerador de preconceitos que actua como espécie de coveiro de memória relativamente ao drama colonial (antes da guerra e durante esta). Como se, para a maioria dos portugueses, se tivesse descolonizado aquilo que não se colonizou e se resistiu a permitir a separação, persistindo-se assim no mito salazarista difuso do Portugal “do Minho a Timor”, prolongando um ressentimento colectivo por nos terem arrancado, à má fila, bocados que “eram nossos”.

Guerra colonial, guerra do ultramar, guerra de libertação...

Mas os portugueses que falam e escrevem sobre a guerra colonial (alguns preferem chamar-lhe “guerra no ultramar”, o que tem uma marca política evidente, enquanto para os africanos ela é denominada como “guerra de libertação”, o que também significa muito) têm ainda, independentemente do enquadramento político e ideológico sobre ela, uma visão inevitavelmente eurocêntrica. Ou seja, é sempre um olhar sobre este sofrimento (ou gesta, para os “patriotas”) sedimentado da experiência ou da percepção interpretativa do "lado do colono" (no mínimo, do ponto de vista cultural), mesmo quando esse "colono" procura, o mais possível com o que melhor sabe, colocar-se na pele do "colonizado" e adoptar a sua causa.

Mia Couto, um escritor moçambicano de pele branca, exemplificou bem as diferenças quando referiu que enquanto os portugueses falam de "descolonização", os africanos não usam este termo porque para eles o que existiram foram "independências" (ou seja, não foram os europeus que descolonizaram, foram os africanos que conquistaram as independências dos seus países).

[É elucidativo que, quanto ao Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, esse mimetismo maior feito pelo salazarismo relativamente à perfídia do nazismo, depois replicado em vários outros locais de África, haja, entre a literatura do antifascismo militante, uma constância de referência ao período 1936-48, em que lá estiveram internados prisioneiros políticos europeus, quase se silenciando que o mesmo e odioso Campo foi reaberto em 1961, por despacho de Adriano Moreira, esse hoje notável e venerando professor de boas práticas democráticas, onde dezenas de milhar de africanos penaram até 1974. Quase parecendo que, nessa mesma iniquidade, um africano anticolonial sofreu menos que um antifascista europeu, quando o inverso é que foi verdadeiro.]

Um enorme défice de produção documental e de investigação historiográfica, do lado africano

Entretanto, da parte africana, muito mais escassa ainda é a produção de registos memorialistas e trabalhos históricos sobre as guerras de libertação. Por variadas e evidentes razões (altas taxas de analfabetismo e ileteratícia; atribulações políticas; falta de arquivos; fragilidade das estruturas e meios académicos; menor horizonte de vida que levou a que muitos dos que combateram já tenham falecido; maiores preocupações em sobreviver, consolidar a independência e garantir o futuro que lidar e fazer registo do passado).

Neste quadro, se os “antigos colonos” perdem pouco tempo a lembrar e pensar o passado colonial, os “antigos colonizados” ainda menos o fazem, o que beneficia o alargamento (conveniente para uns tantos) do “buraco histórico” que a guerra colonial / guerra de libertação representa na memória dos portugueses e dos africanos que têm como pátrias suas as antigas colónias portuguesas, sobrando, inevitavelmente, o espaço para os mitos e os ressentimentos, maus conselheiros para a saúde cívica dos povos.

Daqui que considere um facto notável, remando contra o silêncio das memórias, o trabalho persistente e competente do historiador guineense Leopoldo Amado (na foto de cima). Que, constituindo uma importantíssima e honrosa excepção, submete, no próximo dia 28, a um júri de doutoramentos da Universidade Clássica de Lisboa, em sessão pública, o seu notável trabalho de investigação sobre a guerra na Guiné (1963-1974) e que culminou num estudo comparado da mesma quanto aos dois lados da contenda (a mais dura no quadro das três guerras coloniais) e em que foi orientado pelo Professor João Medina (*) (**). Demonstrando, em boa tese, que os mitos e os ressentimentos abatem-se pelo saber.

_________

(*) Assim reza a nota informativa da Universidade Clássica de Lisboa:

Doutorando/a: Lic.º Leopoldo Victor Teixeira Amado
Doutoramento: Doutoramento em História - História Contemporânea
Título da Tese: “Guerra Colonial versus Guerra de Libertação (1963-1974): O Caso da Guiné-Bissau”
Data/Hora: 28 de Maio, 10H00
Local: Reitoria - Sala de Doutoramentos, Cidade Universitária, Lisboa


(**) – O meu elogio antecipado ao trabalho académico de Leopoldo Amado fundamenta-se no conhecimento prévio de que beneficiei, mercê da sua amizade que muito me honra, e para o qual, modestamente, dei o meu singelo contributo de mera opinião crítica na fase de elaboração final, valendo-me, como suporte, da memória registada no meu corpo e na minha alma, proveniente de dois registos contraditórios e num paradoxo que me empalou a juventude - o de antigo combatente na Guiné nas fileiras do exército colonial e o de militante activista contra a guerra colonial.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1441: Questões politicamente (in)correctas (20): Sempe camaradas, nunca censores (João Tunes)

Comentário do João Tunes ao post do Carlos Vinhal (1):

Ora nem mais, camarada Carlos Vinhal.

Isto é mais simples que fazer a guerra. Estamos no blogue porque gostamos. A maioria de nós não se conhece. Temos em comum termos estado no mesmo sítio, no mesmo problema, uns ao mesmo tempo e outros em tempos diferentes. Fora isto, que é em si mesmo muito pouco para gerar empatia gregária, o que sobra? Pois, completar os ângulos e as vivências que preenchem a memória de uma fase marcante das nossas juventudes.

E como não sofremos de doença de pensamento único ou do reumático das regras de cartilha de espírito de corpo corporativo, seja ele castrense ou paisano, cada qual não abdica de olhar esta experiência colectiva, pelos caminhos da memória interrogada, segundo suas crenças, opiniões e visões. E, com a distância, sendo todos adultos a puxar para os velhotes que vamos sendo, além de democratas por condição, a diversidade dos olhares que existe em cada um só nos ajeita e enfeita os óculos que queremos usar para a realidade partilhada e esfumada no tempo. Sem estes condimentos, o blogue não seria blogue nem tertúlia, seria apenas uma enfadonha sessão de Ordem Unida para general passar revista.

Sei, desde que lá estive, na Guiné, que não estive na mesma guerra que qualquer outro camarada, os do meu tempo e minha companhia, mais os camaradas de tertúlia que estimo sem conhecer. Eu, como qualquer um, sou uma pessoa, único portanto. E na guerra da Guiné estiveram pessoas e não carneiros. E nenhum general consegue clonar os seus soldados. Vivi-a com outros. Apoei e apoiaram-me. Fiz o que pude e soube tentando não sujar a minha consciência de homem que ainda hoje não me pesa. Assisti ao melhor e ao pior nos homens, meus camaradas e meus inimigos, sabendo que a guerra leva os homens aos extremos de si mesmos e nem todas as lideranças são entregues a mentes limpas. Regressei com marcas da minha guerra, as sofridas na carne e espírito da pessoa que fui e sou, a pessoa que teve de se reconstruir para fazer uma vida familiar e profissional, habitando para sempre com a memória da guerra.

Já o disse, mas repito, que não acredito em memória colectiva. Porque não se pode encadear numa mesma percepção aqueles que fizeram a guerra e gostaram de a fazer com aqueles que a rejeitaram como sofrimento violento, inútil e injusto, os que tiveram boa sorte com os que sofreram de má sorte, os sobrevivos e os caídos, os saudáveis e os estropiados, os que tiveram a experência da morte ao lado ou da morte do inimigo com aqueles a quem o destino poupou da prova maior da guerra (a da morte).

Os que ainda recordam Spínola como Nosso General e os que o detestaram e só lhe dão direito ao trato de Caco Baldé. Cada um terá a sua memória que caldeou na pessoa total e única que é. No fundo, aqui, cruzamos memórias e, dessa forma, enriquecemos a memória de cada um. Leio com atenção e respeito a forma como cada um reconstrói a sua memória e a faz interagir com as dos otros camaradas. Pelas minhas posições expressas, saberão como já li tantas e tamanhas posições e depoimentos que se revelam nas antípodas daquilo que, à distância, penso daquela guerra. Algumas dessas, obrigando-me a ranger os dentes no limite da tolerância desportiva. Mas como não sou pastor de almas, consciências ou pensamentos, não há depoimento vosso, por muito antagónico que seja a perspectiva, que não me enriqueça e emocione na forma como vamos construindo memórias somadas que se vão iluminando.

Mas não perderia nem mais um minuto com o blogue se alguém, aqui, me impusesse (tentasse) uma forma única de olhar a guerra ou a pretensão de formatar-me o pensamento ou limitá-lo no seu direito de expressão. Ou invocasse qualquer princípio castrense ou patriótico ou regra grupal para tentar obrigar-me a gostar do que não gostei e a não usar o direito de o proclamar como entender. Até porque se fui guerreiro, não sou santo e, por isso, só respeito quem me respeita. Democraticamente, é assim. Tanto mais que neste blogue não há postos, nem comendas ao peito, nem feitos para a caderneta, ser-se camarada é que é o posto. O único.

Tiro o chapéu ao camarada Carlos Vinhal pela forma sensata como sintetizou o que pensa e apelou à tolerância plural. Assino por baixo a sua ordem de serviço. Cá continuaremos, sempre camaradas e nunca censores. E reitero o apreço e enorme gratidão pelo trabalho árduo e paciente do Comandante que mais estimei entre os que me calharam em sorte (falo, é claro, do nosso camarada Luís, arvorado em Blogo-Marechal). Se o batalhão do blogue assim o entender, este blogue vai continuar a enriquecer-se, enriquecendo-nos, sem parar. Transformando-se, talvez, na única guerra em que, todos nós, não desejamos tréguas nem cessar fogo. Estes são os meus sinceros votos.

Abraços de respeito e consideração para todos os estimados camaradas.

João Tunes
Ex- Alf Mil Trms,
CCS/ BCAÇ 2884
(Pelundo, 1969/7o; CCS/ B..., Catió, 1970/71)
Blogue: Água Lisa (6)
__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1438: Questões politicamente (in)correctas (18): A derrota (mais política do que militar) afectou mais a tropa especial (Carlos Vinhal)

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1337: O campo de concentração da Ilha das Galinhas (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali > Catió > Mato Farroba > Abril de 1970 > Em primeiro plano, o ex-Alf Mil Transmissões e hoje nosso estimado camarada João Tunes .


Foto: © João Tunes (2005). Direitos reservados.


Mensagem do João Tunes, já enviada a toda a tertúlia.

Sobre os Outros
por João Tunes

Caro Luís e restantes camaradas,


Como era incontornável, o nosso blogue, cada vez mais rico e recheado de facetas mais encadeadas, assenta sobretudo na visão da guerra de um dos lados, o das NT. Não podia ser de outra forma. Mas, julgo eu, sobretudo a esta distância no tempo, não entenderemos o que passámos e lá estivemos a fazer, sem compreender o outro lado, o lado do IN. Só numa compreensão abrangente das duas metades, é que, nós e os guineenses, podemos ter a percepção da epopeia daquele drama comum e que nos ficou a unir.

Infelizmente, da parte do PAIGC, há uma exiguidade de produção histórica e tratamento documental e testemunhal sobre a sua luta. A par do facto terrível de que a grande maioria dos antigos combatentes do PAIGC ou morreu ou para lá caminha proximamente sem deixar lavrados os seus imprescindíveis relatos e testemunhos (é muito curto o horizonte de vida na Guiné).

Esperemos que a saída à luz do dia, e em breve, da tese académica do nosso amigo tertuliano Leopoldo Amado compense uma parte das lacunas que nos atrapalham a visão larga da memória da guerra na Guiné (1).

Entretanto, aproveitando para o divulgar e recomendar, saiu um livro importante da Dalila Cabrita Mateus (*) em que ela apresenta um conjunto de depoimentos recolhidos e verificados junto dos prisioneiros africanos no período da guerra colonial. Julgo até que este livro é de leitura impositiva pois possibilita, coisa rara, que se oiçam vozes do sofrimento daqueles que
combatemos e nos combateram. O que é útil a vários níveis - permite-nos relativizar os nossos sofrimentos enquanto combatentes coloniais; traz à luz do dia uma bestialidade escondida no tratamento da pessoa humana que era o lastro do suporte ao nosso combate e sobrevivência. Sem aquilo, sem aquela PIDE, poucos de nós estaríamos aqui a escrever e a contar.

Uma parcela importante do livro de Dalila Cabrita Mateus é composta de entrevistas com prisioneiros da segunda fase de funcionamento do Campo de Concentração do Tarrafal (Ilha de Santiago - Cabo Verde). Como se sabe, o Campo (também conhecido como Campo da Morte Lenta) funcionou entre 1936 e 1954 para prisioneiros políticos portugueses e o seu encerramento deveu-se ao escândalo internacional devido à demasiada semelhança com os campos nazis.

Após o declarar da guerra em Angola, o então Ministro do Ultramar Adriano Moreira (o mesmíssimo académico hoje celebrado como o grande visionário geoestratégico do desígnio português no mundo), firmou despacho legislativo para que o Campo do Tarrafal fosse reaberto para os prisioneiros capturados nas colónias. Esta medida coincidiu com o fim dos julgamentos, em Tribunal Militar, dos prisioneiros africanos. A partir de então, os prisioneiros passaram a ser dispensados de julgamento e, depois de interrogados e torturados, era-lhes fixada administrativamente (pelos Governadores sob proposta da PIDE) residência por tempo indeterminado num dos campos de concentração existentes em África.

No que respeita à Guiné, os prisioneiros que não eram liquidados pelas NT e pela PIDE, passaram a ir para a ilha das Galinhas (Bijagós-Guiné) (2) ou para o Tarrafal. Neste Campo,
além de alguns caboverdianos, estiveram, até 1974, muitos prisioneiros angolanos mas o grosso do número foram guineenses (várias centenas). E uma norma imposta era a proibição de qualquer contacto entre os prisioneiros das várias nacionalidades. Mas, os prisioneiros guineenses não só perfaziam a maior percentagem como estavam sujeitos a piores condições relativas (3).

Primeiro, ao contrário da maioria dos angolanos, não recebiam ajuda dos seus familiares (em géneros, em dinheiro, em correio). Segundo, cúmulo do sadismo administrativo, a alimentação dos presos fornecida no Campo era diferente pela razão que o orçamento era diferenciado consoante a origem. Uma regra estabelecia que eram os governos das províncias que custeavam a alimentação dos presos e enquanto o Governo Provincial de Angola dotava de 20$00 os
cofres do campo para a alimentação diária de cada prisioneiro angolano, Spínola atribuía apenas 5$00. O que levava a que, na alimentação dada a cada prisioneiro guineense, se gastasse um quarto do custo havido com cada angolano!

Imagine-se o resultado pois não havia suplementos alimentares por falta de apoios familiares. Foram inúmeras as mortes por doença entre os prisioneiros guineenses, nomeadamente por défice vitamínico que conduziu a várias mortes por escorbuto (!). E como não eram permitidos quaisquer contactos entre prisioneiros angolanos e guineenses, obviamente que a solidariedade inter-africana não tinha meios para se verificar.

Naquelas terríveis e ainda pouco conhecidas condições, compreende-se o desânimo e o desespero de grande parte dos prisioneiros guineenses. E como a PIDE nem ali dormia, entende-se também que ela tenha conseguido trabalhar um grupo de combatentes aprisionados no Tarrafal para os levar á traição dos seus e colaborado com a formação do grupo libertado que se reinfiltrou no PAIGC e levou a cabo o assassinato de Amílcar Cabral em 1973 (3).

Depois da PIDE reduzir aqueles homens à miséria humana ainda encontrou matéria-prima para que alguns dos miseráveis se prestassem a reproduzir a miséria.


Abraços para todos os camaradas.

João Tunes

__________

(*) - Memórias do Colonialismo e da Guerra, Dalila Cabrita Mateus, Ed. ASA . Sobre este livro, coloquei post no meu blogue > Água Lisa (6) > 27 de Novembro de 2006 > A África e Nós
Cópia da capa do livro de Dalila Cabrita Mateus > Memórias do Colonialismo e da Guerra. Porto: Edições ASA. 2006. Colecção: Arquivos Históricos. 672 pp. Preço: 24,00 € (com IVA).


Fonte: © Edições ASA (2006) (com a devida vénia...).


(...) "Neste quadro, assume um relevo extraordinário o trabalho da Professora Doutora Dalila Cabrita Mateus, do ISCTE, que tem vindo, desde há vários anos, a debruçar-se sobre a guerra colonial no período 1961-1974 e que culminou numa monumental tese de doutoramento sobre o tema após aturadas investigações nos arquivos e na recolha de testemunhos orais em Portugal e em África. Desta tese, a Editora Terramar já havia publicado a síntese do corpo principal (**) incidindo sobre a acção da PIDE nas colónias africanas.

"A Editora ASA acaba agora de editar (***) um complemento de enorme valor testemunhal e que são os depoimentos orais que a investigadora recolheu, aferiu e cruzou junto de portugueses e africanos que foram protagonistas, nos vários cenários coloniais, do drama do conflito-estertor do colonialismo português, esse banho de sangue com que quisemos selar o fim da presença portuguesa em África, na teimosia de contrariar os ventos da história.

"Significativamente, os depoimentos recolhidos por Dalila Mateus entre 1999 e 2001 e sistematizados neste segundo livro, são quase todos acompanhados de uma nota em que se refere os falecimentos da maior parte dos depoentes antes da edição do livro. O que demonstra que essa recolha, para além dos seus valores próprios e impressivos, foi salva à tira, ou seja, mais uns poucos anos passados e testemunhos únicos e riquíssimos perdiam-se na poeira das leis da vida.

"Para um português, não deixa de ser inovador e perturbador ouvir as vozes das elites dos africanos que nos sofreram em África. Dando-nos uma dimensão mais profunda à nossa vergonha necessária. E obrigando-nos, até, a relativizar o nosso próprio quadro europeu de sofrimento da ditadura e do consequente preço pelo alcance da democracia. E o único consolo que resta, no quadro abrangente do regime ditatorial, é que a brutalidade estremada utilizada no cenário colonial (basta comparar as práticas da PIDE na metrópole e nas colónias, lá mais brutal para os prisioneiros que cá, lá mais apoiada que cá pela população branca) acabou por ser a pá de cal deitada no caixão da ditadura.

"Vem aí o Natal, época de prendas. Para os outros e para nós. As minhas sugestões ficam aqui. Porque não há melhor oferta que a de nos ajudarmos a entender. E essa obra de entendimento (do eu, de nós, dos outros), ideia minha, é mister sobretudo dos poetas e dos historiadores. Sem uns e outros, seremos apenas, por muito bem que cantemos, pássaros à janela (para sair ou entrar)" (...).

__________


(**) –A PIDE/DGS na Guerra Colonial (1961-1974), Dalila Cabrita Mateus, Ed. Terramar. 2004.

(**) – Memórias do Colonialismo e da Guerra, Dalila Cabrita Mateus, Ed. ASA. 2006.


_________


Notas de L.G.:

(1) Há vários posts do Leopoldo Amado no nosso blogue. Vd., por exemplo, posts de:


22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVI: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte


(2) Ilha das Galinhas: fica situada a sudoeste da Ilha de Bolama, separada desta pelo Canal de Bolama. Por lá passaram muitos dirigentes e militantes do PAIGC, incluindo um dos seus fundadores, Rafael Barbsa:

(...) "Ora, para lá do provável ou mesmo real empolamento de Pindjiguiti e da justeza ou não das formas e conceitos, sempre discutíveis, sobre a forma como Pindjiguiti foi etiquetado (contenda laboral, massacre ou carnificina) ou ainda do quantitativo de mortes que se saldou na decorrência do acontecimento enquanto tal, temos para nós que o que se afigura importante é o reconhecimento da importância e o alcance históricos que o mesmo teve, à jusante e à montante da guerra colonial/guerra de libertação, no contexto do processo libertário do povo guineense.

"Aliás, não foi por acaso que depois de Pindjiguiti o PAIGC logrou atingir uma assinalável mobilização que permitiu o desencadeamento da luta armada de libertação. Também, não foi por acaso que no decorrer da guerra colonial/ guerra de libertação, invariavelmente, o PAIGC normalmente assinalava a efeméride com ataques simultâneos a várias localidades, inclusivamente os centros urbanos, sobretudo a partir de 1968.

"Não foi igualmente por acaso que em 1962, os vários partidos e movimentos de libertação que pululavam em Dakar e Conakry (mais contra o PAIGC do que contra o colonialismo português) decidiram criar a 3 de Agosto desse mesmo ano uma frente de luta, a FLING.
"Por fim, não foi também por acaso que Spínola, por ironia do destino, mas com objectivos claramente à vista, procedeu, no âmbito da sua política da Guiné Melhor, a 3 de Agosto de 1969, a uma espectacular libertação de cerca de uma centena de prisioneiros políticos guineenses, dos quais Rafael Barbosa, ex-Presidente do PAIGC, bem como todos os que se encontravam na colónia penal d da Ilha das Galinhas, da Colónia Penal de Tarrafal em Cabo Verde e os que se encontrvam no Forte de Roçadas, em Angola, em pleno deserto de Moçamedes" (...).

(3) Vd. blogue de Leopoldo Amado, Lamparam II > 14 de Maio de 2006 > Simbólica de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau



Fonte: Guiné-Bissau Contributo (blogue de Didinho)


Também José Carlos Schwarz (que não tem qualquer parentesco com o nosso Pepito) esteve desterrado na Ilha das Galinhas.O pioneiro da moderna música da Guiné-Bissau - poeta, músico, compositor e intérprete - nasceu na capital em 6 de Dezembro de 1949. Fez os seus estudos em Bissau e Dacar. Preso político, foi deportado para a Ilha das Galinhas. Após a independência, foi director do Departamento de Arte e Cultura do Comissariado da Juventude e Desportos e encarregado de negócios da Guiné-Bissau em Cuba. Foi, de resto, aqui que encontrou a morte, num dedsastre de aviação, ocorrido a 27 de Maio de 1977 .

sábado, 4 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1245: Efemérides: Quarenta anos sobre Catió (João Tunes)

Photobucket - Video and Image Hosting

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Guiné > Região de Tombali > Catió > Vista aérea de Catió em 1968 (fotos, a preto e branco, de Vitor Condeço) e em 2005 (foto , a cores, de Jorge Rosmaninho).
Fonte: Africanidades (2006) (com a devida vénia...). O Jorge Rosmaninho é membro da nossa tertúlia e mantém connosco uma política, mutuamente vantajosa, de troca de serviços e de roncos...
Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


Quarenta anos sobre Catió
por João Tunes

Quanto é que a distância no tempo e dos lugares pode impressionar a memória? Contento-me com o vago muito. E no remexer da memória, falando do registo em imagens, mais que uma velha fotografia que se desenterra e a que se limpa o pó, tanto é o tamanho do que impressiona ao rever um lugar onde ficou um bocado da pele e olhar-lhe as idas e voltas do tempo e a mudança da afirmação da sua modernidade (ou, por vezes, a sentença da decadência).

Há dias, mirando o blogue do Jorge Rosmaninho (*)(o Africanidades), dei com fotografias de Catió com quase quarenta anos de diferença. As duas mais antigas (de 1968), a preto e branco, tiradas por Vítor Condeço, mostra a Catió que bem conheci dois anos após o tempo do bater das fotos.

Em primeiro plano, a pista de aviação em terra batida e que era a nossa principal ligação ao resto da Guiné e ao mundo. Após a pista, a vila habitada por gente bem hospitaleira. Ao fundo, quase indistinto, o quartel sede de batalhão onde se viveram sufocos de morteirada e alegrias de excelentes convívios e camaradagens, além dos copos, muitos copos, para aguentar a espera do passar o tempo e arribar a hora de zarpar.

A recente, a cores e sob o mesmo ângulo, tirada há um ano, traz o verde especial do sul da Guiné e a mesmíssima (antiga) pista, agora recortada com trilhos e os sinais humanos de ocupação social do espaço.

Pela foto de hoje, imagino a importância que Catió hoje ocupa como capital de distrito. E que fará toda a diferença da Catió sitiada e flagelada, encrustada como testa de ponte e comando na resistência militar colonial a que o sul da Guiné (o famoso reino de Nino) não fosse o desastre absoluto da anunciada derrota na guerra como era seu destino.

E fixo-me naquela hoje transformada pista de aviação, pensando no contraste. Ficando a meia nau entre feliz e triste. Feliz porque antes assim. Triste porque me pergunto porque raio o tempo me levou ali, pousando naquela pista, no tempo que não o certo.

Confesso que é esta mesma perplexidade, este conflito de sentimentos, esta dualidade de querer e não querer, que me mantêm a força da recusa em voltar à Guiné e voltar a pisá-la com os meus passos. Por muita garantia que a voltaria a pisar, como o fiz de 1969 a 1971, com os cuidados devidos a quando se pisa terra de outros. Talvez daqui até 2008, seja tempo suficiente para acumular a energia de desinibição necessária para voltar a Catió em passagem para Guileje para poder mirar a excelente obra do Pepito e seus companheiros (3), rendendo-lhe o preito que eles tanto merecem. Oxalá vença a vontade sobre a desvontade. Oxalá.

Abraços para todos.

João Tunes
(Ex- Alf Mil Trms,
CCS/ BCAÇ 2884, Pelundo, 1969/7o; CCS/ B..., Catió, 1970/71)


(*) Porque diabo o Jorge Neto, num ápice, se crismou de Jorge Rosmaninho? O companheiro casou-se e adoptou o apelido da consorte? E, se por isso foi, como não pagou ronco ao pessoal? (2)

____________

Nota de L.G.:

(1) Vd. Africanidades, blogue de > 29 de Outubro de 2006 > Catió, ontem e hoje

Uma foto aérea tirada há pouco mais de um ano e outras duas enviadas por Vitor Condeço, que por ali passou nos anos 60 e muitos.

Segundo Condeço "pelo que é dado ver, a vila cresceu e ocupou também parte da pista. Será que foi um sinal de progresso? Gostava que sim! Para que compare a diferença 37 anos e meio decorridos, em anexo envio-lhe uma foto dessa mesma pista e uma vista da vila, tiradas por mim em Janeiro de 1968, e digitalizadas dos negativos, passados 38 anos, tem a patine do tempo."

Obrigado.

(2) A explicação vem do própiro, em e-mail de 6 de Outubro de 2006:

(...) Quanto ao nome, duas razões:

(i) o ter migrado para o Beta [, a migraçºao do Africanidades para a versão Beta do Blogger.com], abrindo uma conta no Gmail, que é Jorge.rosmaninho. Aliás, este passará a ser o e-mail de serviço (jorge.rosmaninho@gmail.com). O nome de guerra pode passar a ser este, mas quem quiser chamar pelo outro (ou se isso der mais jeito), não terá problema;

(ii) é mais alentejano! Esta é a minha costela do Sul. Uma questão de identidade mal resolvida, que quero recuperar! (...)

(3) Vd. post de 8 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1158: AD anuncia para 2008 simpósio internacional 'A memória de Guiledje na luta pela independência da Guiné-Bissau'

terça-feira, 31 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1227: Questões politicamente (in)correctas (3): Blogue colectivo, mas não colectivista (João Tunes)

Texto do João Tunes, com data de 23 de Outubro de 2006:

Comandante Luís,

Aqui vão as minhas sugestões de emendas que democraticamente apresento à Mesa:

Blogue colectivo mas não colectivista, porque queremos ser um espaço de memórias partilhadas sem as querermos atropelar com a estulta pretensão de existir uma (unicista) memória colectiva, editado por Luís Graça, que tem como missão permitir aos ex-combatentes, de um lado e de outro da guerra colonial / guerra de libertação na Guiné, ocorrida entre 1963 e 1974, reconstituirem os puzzles das suas memórias. Desde 25 de Abril de 2005, que formamos já a maior tertúlia virtual, em língua portuguesa, sobre a experiência desta guerra. Os seus membros ultrapassaram a casa da centena e, como camaradas que somos, tratamos-nos todos por tu. A palavra de ordem é: Não deixem que sejam os outros a contar a nossa história que é a soma das histórias memorizadas de cada ex-combatente entroncadas nas Histórias dos povos de Portugal e da Guiné-Bissau. Para o bem e/ou para o mal, nós estivemos lá!

Abraço.
João Tunes

terça-feira, 24 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1209: Pensamento do dia (9): O nosso humor de caserna (João Tunes)

"Se nos metemos só pelo sério, desatamos todos a chorar e trazemos as bolanhas para cá. Há que recuperar algum do humor que tanto nos ajudou a sobreviver ... lá".

João Tunes para Pedro Lauret (comunicação dual, com data de ontem, com circulação restrita na nossa caserna virtual).

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1090: Op Mar Verde: O cabo enfermeiro paraquedista que foi no Grupo Sierra, do Capitão Morais e do Tenente Januário (João Tunes)


Guiné > Região de Tombali > Cacine > 1970 > O Alf Mil Transmissões João Tunes . Legenda do fotógrafo: "Em Novembro de 1970, eu estava enfiado num quartel de uma aldeia do sul da Guiné, Catió, metido numa guerra sem vitória possível e ainda menos sentido que o de soprar contra a história" (...) (1)


Foto: © João Tunes (2006) (com a devida vénia, do blogue do João Tunes, Água Lisa (6) > post de 2 de Agosto de 2006 > Foi no stress, não foi ?)


Texto de João Tunes:

Caro Luís, tens razão na correcção que fizeste (1). Obrigado.

Calhou há dias encontrar-me com um velho amigo que participou na Operação Mar Verde (sem lhe darem margem para se negar a isso, pelo que a treta de que só participaram voluntários é mesmo treta) (2).

Ele era cabo enfermeiro paraquedista e foi mandado para os Bijagós, por ordem do seu comando e sem saber ao que ia. Lá metido, não teve forma de se baldar. Integrou a força comandada pelo Capitão Morais (julgo que este, posteriormente, morreu em combate em Moçambique) que tinha como missão destruir os Migs (que lá não estavam...) no Aeroporto de Conacri.

Na fila de assalto ele vinha imediatamente à frente da força africana comandada pelo Tenente Januário que desertou. A certa altura, quando olhou para trás para não perder a ligação, reparou que era o último da fila (os desertores, pelo visto, estavam já pré-combinados e não deram qualquer sinal do desenfianço) e disso deu conta ao Capitão Morais.

Depois, foi o que se sabe: os Migs não estavam lá, começaram a ouvir-se movimentações de viaturas militares do Exército de Conacri e foi dada ordem de retirada para as lanchas. No regresso a Bissau à sua unidade de Páras, foi-lhe dada ordem de absoluto segredo sobre a Operação em que participara. Isto quando lhe faltavam dois meses para ir para a peluda.

Como era dos poucos (se não o único) paraquedistas que participaram no Mar Verde, foi apertado com a curiosidade impaciente dos seus camaradas de unidade. Não resistiu e lá deu umas dicas a um Oficial Pára. Foi topado pelo comando e foi imediatamente enviado para o mato onde passou os últimos tempos da comissão. Na altura, havia que negar perante a comunidade nacional e internacional que Portugal tinha invadido um país estrangeiro e soberano.

Abraço.
João Tunes
___________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)

(...)"22 de Novembro de 1970 e dias seguintes, foram especialmente tensos. A tempestade que carregava a rotina quarteleira era mais pesada que costume. O comando andava de sobrolho mais fechado. Tinha de haver bernarda grossa. Depois amainou. Para se voltar à rotina das morteiradas do Nino. Dia sim e dia não. E o dia 22 de Novembro de 1970 ficou-se como um dia em que até pouco se passou. Ali, em Catió. Porque não longe dali, muito se passara.

"Só mais tarde vim a saber um pouco do que se tinha passado nesse 22 de Novembro de 1970, tornado um dia particularmente tenso na rotina militar de Catió". (...)

(2) Vd. post de 9 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1088: Pensamento do dia (7): Capitão do Exército Português: 'O filho da p... do Tenente traiu-me miseravelmente' (João Tunes)

terça-feira, 19 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1088: Pensamento do dia (7): Capitão do Exército Português: 'O filho da p... do Tenente traiu-me miseravelmente' (João Tunes)


Fonte: Água Lisa (6), blogue do João Tunes > 12 de Setembro de 2006 > Da história da guerra colonial (com a devida vénia...).

Na imagem, uma mensagem enviada por um Capitão do Exército Colonial para o seu Posto de Comando, durante a famosa “Operação Mar Verde” (*), dando conta da deserção de uma companhia de comandos africanos (1).



(*) – Invasão da Guiné-Conacry em Novembro de 1970, arquitectada e comandada por Alpoím Calvão, com o patrocínio de Marcelo Caetano, Spínola e PIDE. A operação destinava-se a liquidar Amílcar Cabral e toda a direcção do PAIGC, assassinar o Presidente Sekou Touré, substituir o governo da Guiné-Conacry por um “governo amigo dos colonialistas portugueses” e libertar os prisioneiros militares portugueses das cadeias do PAIGC. Só o último objectivo foi alcançado.

Nas “baixas do lado português”, contabiliza-se, além de alguns mortos e feridos, a deserção de uma companhia (1) de comandos coloniais-africanos (que seriam, posteriormente, todos liquidados) e a condenação veemente e barulhenta da comunidade internacional que isolou ainda mais o colonialismo português.

Até ao presente momento, o Estado Português ainda não pediu desculpas ou sequer reconheceu a realização desta invasão de um país estrangeiro e soberano. Também sobra como curiosidade misteriosa desta Operação o facto de os milhares de kalashnikov que armaram os invasores terem sido compradas pela PIDE à União Soviética através do comerciante de armas e cavaleiro tauromático Zoio.

A “Operação Mar Verde” está excelentemente descrita e analisada num livro do jornalista António Luís Marinho (de onde copiámos a mensagem na imagem).

João Tunes
__________

Nota de L.G.

(1) Julgo haver aqui um lapso do João: trata-se de um grupo de combate, comandado pelo tenente graduado Januário, e não propriamente de uma companhia inteira. A equipa Sierra era comandada pelo capitão-parquedista Lopes Morais, e tinha como missão a destruição dos Migs russos, estaccionados no aeroporto de Conacri.

Vd. entre outros os seguintes posts:

11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXVII: Antologia (12): Op Mar Verde (Alpoím Galvão)

terça-feira, 12 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1066: Homenagem a Amílcar Cabral, o Inimigo Libertador (João Tunes)

Guiné > Anos 60 > Uma das mais emblemáticas fotos de Amílcar Cabral (1924-1973), fundador e dirigente do PAIGC. Hoje, faria 82 anos se fosse vivo. E se fosse vivo, estaria ainda no poder ? E se sim, como o exerceria ? Sabemos da desastrosa ascensão, da mata ao poder, por parte de outros líderes da guerrilha nacionalista e anti-colonialista, nomeadamente na África dita portuguesa. Ninguém está em condições de responder a esta pergunta, que é uma mera especulação académica.
João Tunes prefere, em vez de mitificá-lo, "prestar-lhe tributo de homenagem como ilustre Inimigo Libertador": sem ele, a sua luta e a sua liderança, à frente do PAIGC, dificilmente teríamos tido o 25 de Abril e a reconquista da liberdade e da democracia (LG).

Foto: Fonte desconhecida


Texto do João Tunes:

NO 82º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DE AMILCAR CABRAL

Caro Luís,
Hoje é dia de importante efeméride que nos respeita. Mando-te para eventual publicação no nosso blogue um texto que hoje editei sobre Amilcar Cabral no blogue Agua Lisa (6)

LEMBRANDO AMILCAR CABRAL, O INIMIGO LIBERTADOR

Se ainda estivesse vivo, Amílcar Cabral celebraria hoje o seu 82º aniversário. É impossível prever, caso não fosse assassinado em 1973, a um passo de tempo da libertação total e absoluta da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, se Cabral hoje ainda estaria vivo e no poder, como exerceria ele a sua época de estadista, se seriam diferentes, melhores ou piores, as vivências dos povos e nações de que ele foi líder incontestado na fase de luta de libertação contra o colonialismo português.

Olhando para o rasto deixado por outros libertadores como Luís Cabral, Nino Vieira, Samora, Chissano, Guebuza, Agostinho Neto e Eduardo dos Santos, os exemplos não são nada animadores quanto a previsões deste tipo. Resta a mera esperança confiante em que a enorme envergadura intelectual e política de Cabral o tornaria distinto, para melhor, dos demais companheiros de luta anti-colonial.

De qualquer forma, tal como Mondlane, o seu martírio e perda durante a luta armada, deu-lhe o manto do mito e eximiu-o da demonstração prática de como conduziria o período pós-independência. Sobretudo, como iria traduzir-se, com ele no poder, o deslindar da sua fantasiosa e misteriosa utopia da unidade Guiné-Cabo Verde (utopia esta que, a par da Pide e do exército colonial, mais umas tantas conexões geoestratégicas talvez simétricas, o levou até às rajadas fatais que o abateram).

Se não se quiser entrar em fantasias panegíricas (1) ou diabolizantes, Cabral só pode ser historicamente julgado pelo que foi e pelo que fez entre a sua juventude e 1973. E, neste campo, Amílcar Cabral avulta como uma das maiores e mais prolixas inteligências políticas de África e do Mundo em todos os tempos. Como homem de cultura, mestre em sínteses de sócio-culturas centrípetas, como político, ideólogo e diplomata, como chefe militar e organizador administrativo, Cabral foi exímio, criativo, exemplar e eficiente.

Em tempo algum, os portugueses (alheando-nos da questão da legitimidade de quem, em cada momento, os representou em governo) se bateram, em guerra, contra um líder inimigo tão talentoso, tão persistente e tão eficaz. Talvez porque coincidiu, além das excepcionais capacidades próprias, que este inimigo de guerra, mais que qualquer outro que nos combateu em qualquer outro tempo e lugar, conhecia como os dedos da sua mão a cultura, o ser e o estar dos portugueses, sobretudo as nossas grandezas e misérias, além, é claro, as nossas sempre abundantes mediocridades.

De tal forma foi tão bem construída a sua praxis que o seu slogan Combatemos o colonialismo português, não os portugueses não foi nem figura de retórica nem esguicho de propaganda. E tanto foi assim que os portugueses, combatendo-o e assassinando-o, em vez de o derrotarem, libertaram-se pela sua luta e pela sua liderança, pois foi muito devido ao PAIGC de Amílcar Cabral que tivemos o 25 de Abril, a democracia e a liberdade.

Recordar hoje Amílcar Cabral, pelo menos no meu caso de português que o combateu na guerra, resume-se a prestar-lhe tributo de homenagem como ilustre Inimigo Libertador.
_________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 19 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P971: Amílcar Cabral e a Cuba de Fidel Castro ou os mortos também se instrumentalizam (João Tunes)
(...) Amílcar Cabral, assassinado em 1973, hoje, só tem contas a ajustar com a história pelo que fez em vida e por aquilo que lutou na forma como lutou. Especialmente perante a memória dos povos da Guiné e de Cabo Verde cujos destinos invocou como causa da sua vida e marcou indelevelmente. Pela sua inegável envergadura, mais a força do impacto do seu martírio, a figura de Amílcar ainda sofre do efeito da névoa do mito. Um mito construído, a meias, entre os que o diabolizam e o santificam. E um mito é sempre uma redução. (...)

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1037: Não cuspir no rancho, mas RDM... nunca mais ! (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali > Cacine > 1970 > O Alf Mil Transmissões João Tunes . Legenda do fotógrafo: "Em Cacine, Sul da Guiné-Bissau, Maio de 1970, a meio da comissão na guerra colonial. Faltavam três meses para a Catarina nascer".
Foto: © João Tunes (2006) (com a devida vénia, do blogue do João Tunes, Água Lisa (6) > post de 2 de Agosto de 2006 > Foi no stress, não foi ?) (1)


Resposta do João Tunes, de 28 de Julho de 2006, ao comentário do Joaquim Mexia Alves, inserido no post anterior (P1036, com data de hoje):

Caro camarada Mexia Alves:

Mas porque raio havíamos de estar de acordo seja no que for? O direito de que não abro mão de discordar daquilo que discordo, implica o dever do total respeito para quem discorda de mim. É assim que me tenho sentido na nossa Tertúlia - dizer livremente o que penso e sinto, desde que com respeito pelos outros e pela verdade percebida, dever a que julgo nunca ter faltado, respeitando com absoluto fair-play e bonomia as opiniões divergentes, diferentes, até opostas, de outros camaradas.

Em nada me belisca a diferença, pois só tenho uma cabeça e não sou dono de qualquer uma outra que assente noutros ombros. Assim tenho feito com posições de outros camaradas sobre a forma como sedimentaram a memória da guerra, muitas vezes nas antípodas da forma como eu as sedimentei.

Não sendo para me gabar, julgo que dei um pouquinho do meu canastro para que houvesse liberdade no nosso país. Seria cuspir no rancho, agora não me reconhecer e não reconhecer a todos o pleno e livre direito de concordarem ou discordarem no quer que seja. Desde que se esteja de boa fé, defendo que tudo se deve permitir e que a única coisa que deve ser proibida é proibir. E ... RDM, nunca mais!

Sobre as questões que colocas (descolonização, fuzilamentos dos guineenses que serviram no exército colonial) percebo e respeito os teus pontos de vista. Não os rebato. Por uma simples razão - para estes peditórios já dei em substância noutras abordagens feitas tempos atrás no blogue. Não vou repisar e muito menos polemizar.

Só uma nota: o meu texto que o blogue transcreve e tu comentas foi escrito e publicado na Net em 2004 (antes do blogue-fora-nada e quando eu curtia solitariamente o meu cacimbo). Disse e está no post de introdução à sua republicação no blogue, que hoje não escreveria da mesma forma (a catarse vai fazendo a cura) mas resolvi conservar a sua redacção inicial só porque, assim, o cacimbo se notava mais. Se calhar, fiz mal, admito. Mas a um camarada nem tudo se perdoa?

Sou um admirador dos teus textos que julgo vieram enriquecer e muito o blogue. Obrigado por isso. Grande abraço para ti. Outros iguais para os restantes camaradas. Manda sempre. Mandem sempre.

João Tunes
_________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1020: Stress pós ou pré-traumático ? (João Tunes)

Guiné 63/74 - P1036: A propósito do aspirante Barros e do 'crime' da descolonização, na evocação do João Tunes (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem do Joaquim Mexia Alves, datada de 28 de Julho de 2006:

Caro Luís Graça:

Li o Post do João Tunes (1) e recordei essa história do aspirante que ainda se contava quando estive na Guiné.

Tinham-me contado no entanto que o Caco tinha, embora chateado, gostado da resposta do Aspirante.

Pelos vistos não foi assim.

O João Tunes fala no fim do seu post daqueles que clamam contra o crime da descolonização, e penso eu que se refere obviamente aos políticos que hoje em dia se querem aproveitar de algo que nem sequer conheceram ou se baldaram a conhecer.

Porque eu sou muito contra o crime da descolonização, não a dita cuja, mas a forma como foi feita, pois segundo relatos que me foram feitos, e aliás alguns confirmados em postes aqui colocados, muitos daqueles, Guineenses, Angolanos, Moçambicanos, que comdateram connosco, alguns até que nos salvaram algumas vezes de morrermos ou ficarmos feridos, acabaram mortos, fuzilados, etc e segundo sei quando ainda não tinham acontecido as Independências.

Devo dizer aliás, que esse é o assunto que mais me incomoda e dói em toda a história da Guerra do Ultramar e que como Português me envergonho do modo como o meu País tratou aqueles que o serviram e aqui estou a pensar também naqueles que aqui no Continente ainda precisam de ajuda, sobretudo talvez psicológica, e não a têm.

Repito, caro Luis Graça, que este é um assunto que ainda me traz lágrimas aos olhos, lembrar-me dos meus camaradas do Pel Caç Nat 52 e da CCaç 15.

Perdoa, porque o assunto não é o melhor para começares as férias, mas senti necessidade de desabafar.

Boas férias, bem merecidas e se passares por estes lados telefona.

Abraço
Joaquim Mexia Alves

2. Comentário de L.G.:

Mexias Alves: Comigo não há tabus, podes sempre falar de tudo... A liberdade de pensamento, de expressão e de opinião é como o oxigénio: sem isso morreríamos asfixiados na nossa caserna.... Bom fim de semana.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!


(...) "Uma vez, o General Spínola visitou um quartel onde estava o Aspirante Barros e quis conhecê-lo. O Barros apareceu mal amanhado e com olhar ausente. Spínola disparou a censura:- Você não tem vergonha de ser o único Aspirante na Guiné?

"O Barros concentrou-se, olhou Spínola de frente e disse mansamente:- Estamos em igualdade, o senhor, que eu saiba, é o único General na Guiné.

"Puseram o Barros numa prisão em Bissau por ter insultado o General" (...).

(...) "Não voltei a ver o Barros. Mas, volta e meio, o Barros entra-me pela memória dentro. E então, a raiva, ai a raiva, a raiva aos que alimentam guerras, faz-me um nó na boca do estômago. Não sei sequer se está vivo, onde está e o que faz o meu antigo camarada e companheiro de quarto. Espero bem que não ande a passear, sem olhar, sem falar, sem ler e a gritar TIREM-ME DAQUI!, ouvindo os palermas saudosistas do Império a clamarem contra o crime da descolonização e caçarem votos aos ex-combatentes. Porque esses merdosos não valem um caracol ao pé do Barros. Desejo sinceramente que o Barros esteja recuperado e a discutir Sócrates e Platão. Algures. Em paz".

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1020: Stress pós ou pré-traumático ? (João Tunes)

Post do João Tunes (um camarada que já não precisa de apresentação):

Caro Luís,

Confesso que já começo a ficar saturado de te elogiar a árdua labuta. Porque se não se deve embirrar com alguém estando sempre a expor os seus defeitos, isso do elogio perpétuo também não é coisa boa. Porque por este andar, tens por aí, tarda nada, numa qualquer parada de um quartel, ainda a salvo da passagem a condomínio privado, uma estátua e peras (e uma pêra nessa estátua, diga-se, esteticamente falando, até não descondizia com a ilustre personagem na reprodução do seu marcial recorte facial).

E, acho eu, a última coisa que um homem deseja, enquanto vivo (depois, é como diz o outro - façam o que quiserem que já não estou cá para me ralar), é virar feito pedra, bronze ou platina que seja. Assim, desculparás se, um dia destes, conseguir lobrigar defeito teu, daqueles de monta ou mesmo sem monta (que nenhum de nós foi de Cavalaria), como são os da condição humana, e to despeje por aqui. Não será por mal nem menor consideração, toma nota desde já. Apenas a amizade sincera de não permitir que entres na galeria dos mitos, o que deve ser aborrecido até dizer chega. Que mais não seja pelas péssimas companhias que obrigatoriamente lá se devem ter por falta de direito a escolha.

Ainda não é desta que te descomponho o porte impoluto de castrense miliciano de gema e, mais uma vez, vai um elogio e um agradecimento. Refiro-me à tua boa inspiração de descobrires e transcreveres a excelente entrevista do nosso camarada Luís Carvalhido ao Jornal de Barcelos. Ela revela um saber de profundidade serena, em que a acutilância e o grito não se perdem. Sobretudo na forma inspirada como nos mostra a essência do conflito entre o que foi o nosso estar, no que vivemos e no tempo restante em que defrontamos a memória, sempre em desarranjo continuado com uma sociedade que tão mal sempre viveu com o seu passado, pronta a cantar o hino com os sucessos e as glórias e metendo para debaixo do tapete as patifarias, sobretudo as mais grossas. Gostei particularmente, se o realce me é permitido, da passagem em que o nosso camarada Luís Carvalhido disse:

Na altura éramos todos meninos de nossa mãe. Não tínhamos sido ensinados a fazer mal, não tínhamos, sequer, sido ensinados a resistir ao mal. Na recruta fomos muitas vezes despersonalizados até ao mais pequeno pormenor. Os oficiais tentavam preparar homens para uma guerra - não sei se da melhor ou da pior maneira - e o que é certo é que o faziam duma forma que agredia sistematicamente o indivíduo. Isto aumentava o tal stress, mas havia outros. Fazíamos a recruta, a especialidade e ficávamos já com outro stress que era ficar à espera dos dez dias fatídicos. Sempre que nos ofereciam dez dias de férias sabíamos que era o caminho para a guerra. E depois perguntávamos: eu vou para a Spinolândia? A Spinolândia era a Guiné, porque estava lá o Spínola, e a Guiné era um Vietname. Era o terror de quem tinha 20 anos

E se apreciei particularmente este trecho do falar lúcido do nosso camarada, isso prende-se a ele colocar os pontos nos ii quanto ao chamado stress pós-traumático dos ex-combatentes, localizando, com rigor, o início do distúrbio. Pela minha experiência pessoal e vivencial colectiva, tudo começava onde ele colocou a génese - a militarização forçada, depois a espera do resultado da roleta da mobilização, na esperança de lhe não calhar a bola mais preta (a Spinolândia), que, afinal, a tantos calhou em desdita. De facto, o stress maior não foi com o desembarque nem com os azares nos caminhos e nas bolanhas (qualquer gajo, como animal de hábitos que é, a tudo se adapta, melhor ou pior). Ali, julgo que só nos agravámos.

Falando por mim. Estava eu na santa vida quarteleira do Regimento de Infantaria 1, na Amadora, perto de casa, com transporte à porta e horário de funcionário público, casadinho de fresco para mais, quando num dia que marcou - no negro - a minha vida, me chamam ao comando, entregam-me uma licença para gozo imediato de férias pré-mobilização e uma outra guia, esta de marcha, para me apresentar, após as férias de nojo, no quartel de Porto Brandão e embarque breve num Batalhão de Caçadores destinado à Guiné.

Pelo que soube então, o Batalhão em que era incorporado já estava a terminar o IAO tendo acontecido que o alferes de transmissões, um qualquer Chico mas daqueles bons e felizes, insatisfeito por tão reduzida prestação guerreira que lhe queriam calhar na lide com rádios, antenas e criptografia, se havia oferecido para os rangers e haviam resolvido fazer-lhe a vontade. Assim, o alferes Chico largou o IAO e foi direito a Lamego cumprir o treino da sua ambição guerreira e, com o rolar da escala, calhou-me substituí-lo.

O repentino da sucessão breve no tempo até embarcar no Niassa representou duas das semanas mais negras da minha vida. Havia o espectro da Guiné e a falta de tempo de adaptação. O mundo pareceu-me que tinha caído à minha volta. Casado há um ano, senti perder sentido tudo aquilo que tinha projectado em partilha com a minha companheira. E senti-me, verdade seja dita, uma rês a caminho do matadouro. Ou um palerma incoerente por ser contra a guerra colonial e ir fazê-la contra Amílcar Cabral, um dos ícones da minha juventude. Apeteceu-me desertar, depois sobrou-me o sentimento de cobardia de não o fazer, por não ter tido a coragem de largar um lar ainda em parto entusiasmado do começo. Foi ainda neste sofrimento fresco, contra a guerra e contra mim próprio, que subi as escadas do Niassa em Maio de 1969. Depois, o contacto com a guerra limitou-se a agravar a nódoa original. Que não foi pouco. Afinal, nós tínhamos mesmo o nosso Vietname.

O famoso stress levou-me a cometer uma loucura que me marcou a vida para sempre. Na visão alucinada da morte que julgava prometida, nesse medo humano de deixar corpo e alma aos vinte e poucos anos de vida, egoisticamente, entendi que não ia deixar o canastro na Guiné, morrendo e matando contra uma minha causa, sem deixar no mundo uma semente que me continuasse a vida, aquela que eu temia perder. E foi assim, emocionalmente, que convenci a minha companheira que engravidasse durante as minhas primeiras férias.

Desse acto egoísta, de desespero vital, nasceu a minha filha Catarina. Não me arrependo da obra saída, ela é uma mulher que me encheu e enche parte importante da minha vida (e estou a dever-lhe um neto que não é coisa pouca), mas não me perdoo, ainda hoje, de, pelo meu egoísmo desesperado, ter colaborado em metê-la no mundo para depois, conhecê-la fugazmente com dois meses, numas segundas férias, e tê-la para educar e amar já com mais de um ano de idade, sendo recebido com a repulsa com que, nessa idade, se recebe um estranho que entra casa dentro. Claro que custou mas ... foi. Quanto à marca do egoísmo meu, essa ficou-me sempre. Até hoje. Talvez porque, felizmente, tenha sido a marca mais perdurável de ter passado pela guerra na Guiné. Ou seja, cada qual com as suas dores.

Perdoem o pessoalismo da partilha. Abraço para ti. Abraços para todos os estimados tertulianos.

João Tunes

quarta-feira, 2 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1018: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (III): E o jipe nunca voou

Terceira parte de um conjunto de três posts do João Tunes (1):


Fonte: Bota Acima, blogue do João Tunes > 6 de Abril de 2004


E O JIPE NUNCA VOOU

As noites dos oficiais em Catió seguiam a rotina própria de quem não tem outra escolha que dar cabo do tempo. Esperando que a comissão chegasse ao fim. Esperando. Não havia trincheiras nem valas e os edifícios eram todos cobertos (apenas) de chapas de zinco. Spínola não permitiu a abertura de valas de abrigo para que a tropa não se degradasse em espírito defensivo. Isto dizia ele. Não havia condições para se sair do quartel e, mesmo que houvesse, não havia para onde ir.

Na época, Catió já estava isolada dentro da zona ocupada pelo PAIGC. O abastecimento era feito apenas de avião. E estes não voavam de noite nem quando as condições meteorológicas eram adversas. Na época das chuvas, então, passavam-se semanas de completo isolamento. A comida era má e repetitiva e a falta de frescos (legumes, tubérculos, fruta) muito frequente. Passavam-se semanas a fio em que, ao almoço e ao jantar, se repetia a ementa de enlatados (comemos chispe com feijão de conserva, dias e dias). Quando a repugnância não permitia ingerir mais chispe com feijão, o recurso era consumir quilos e quilos de ostras e camarões, em que o rio próximo era rico, comprados à população a preços insignificantes. Até se enjoar a ostra e o camarão e se conseguir voltar a atacar a chispalhada enlatada.

Era usual o Nino Vieira mandar morteiradas para flagelar o quartel durante a noite. Com a continuação, a direcção de tiro era eficiente e praticamente todas as granadas acertavam dentro do quartel. Havia que retaliar de imediato com artilharia pesada e tratar das baixas quando as havia. Depois, avisar Bissau e esperar pela madrugada seguinte para que os caças Fiat fizessem estragos nas posições do PAIGC e os helis evacuassem os mais azarados na roleta da guerra.

Naquelas condições, terminado o jantar, não apetecia mesmo nada ir para a cama. Porque o que custava mais era estar-se deitado na cama, olhando o tecto zincado e constatar que aquilo era o mesmo que uma mera folha de papel como obstáculo à entrada de um morteiro. Depois de jantar, todos os oficiais se juntavam no bar e bebia-se, bebia-se, até deixar de se ter medo por não se ter lucidez para se sentir o quer que fosse. Os serões iam decorrendo tristes porque se estava num estado de letargia de espera, sempre à espera. Por volta das onze da noite, era habitual o Major Rodrigues, Segundo Comandante e com uma licenciatura em Farmácia, ir ao quarto buscar um calhamaço de Química Orgânica e organizar comigo (único parceiro com formação em Química) uma interminável sabatina de acerto de equações de reacções químicas. Até as cabeças nos doerem e termos coragem inconsciente de irmos à deita.

Uma certa noite, o Major Pessoa, o Oficial de Operações, lembrou-se de fazer um inquérito e perguntar aos presentes quem era a favor da continuação da guerra contra o PAIGC. Só um alferes miliciano (que, entretanto, metera os papéis para seguir carreira na GNR e que os restantes desprezavam por ser chico) disse que sim, concordava com a presença portuguesa na Guiné. Todos os restantes, oficiais, milicianos e de carreira, entendiam que era um estupidez teimar numa guerra perdida. Na altura, estava longe de saber que o Movimento dos Capitães já germinava em algumas cabeças...

Às vezes, o Comandante, Tenente-Coronel Melo, não se aguentava com os copos e procedia a uma liturgia que se repetiu muitas vezes. Levantava-se a custo e dizia-nos, autoritário:
- Senhores oficiais, façam favor de embarcar no meu jipe.

E lá ia toda aquela dezena de oficiais que havia no quartel, à molhada numa viatura de quatro lugares. O Comandante compunha a boina e conduzia o jipe para a pista de aviação em terra batida. Durante uma dúzia de vezes, o Tenente-Coronel acelerava o jipe pela pista fora, simulando o descolar de um avião.

Aquelas gincanas eram acompanhadas pelos gritos desafinados do oficialato etilizado de Catió, em que dominavam "TIREM-ME DAQUI!", "A GUINÉ É UMA MERDA!", "QUERO IR PRA CASA!", "MORTE AO CABRÃO DO CACO!", para só citar as passíveis de transcrição.

O jipe do Comandante nunca levantou voo. Quando convencido desta evidência, ele parava o jipe e dizia:
- Como esta merda não levanta voo, vamos fazer uma manifestação contra a PIDE.

Era então que ele embalava o jipe até parar frente às instalações da delegação da PIDE em Catió (era fora do quartel e chefiada por um agente europeu que vivia lá com a mulher). Então, normalmente por volta das duas da manhã, o oficialato da Guiné deitava cá para fora toda a força que restava e gritava, em uníssono, "MORTE À PIDE!".

Depois de o protesto se repetir meia dúzia de vezes, era o tempo de regresso, darmos voltas pelo escuro até irmos para a cama e esperar, esperar sempre, confiando que a noite não trouxesse trovoada. E assim se foi fazendo a catarse da espera em Catió.

A maioria de nós regressou. Não no jipe do Tenente-Coronel Melo mas sim de navio ou de avião requisitado à TAP. Andamos por aí com os parafusos mal apertados. Mas houve tantos, tantos, que só esperaram. Sem direito a viagem de volta. E sem terem terminado a catarse. Apenas remetidos ao silêncio absoluto com a vantagem única de não ouvirem os patrioteiros de hoje, saudosistas do império, dizerem que estivemos ali a defender a Pátria.



Abraços amigos e camaradas para todos os estimados tertulianos.

João Tunes


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Nota de L.G.

(1) Vd. posts de:

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!

sexta-feira, 28 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (II): tirem-me daqui!



João Tunes, ontem e hoje: na Guiné, foi Alf Mil trms (primeiro, na CCS do BCAÇ 2884, Pelundo,1969/70; e depois, na CCS de outro Batalhão, Catió, 1970/71). Engenheiro - químico, escreve diariamente, com lucidez, paixão e talento, contra a corrente do(s) tempo(s), no seu blogue Água Lisa (já vão vai na versão 6).


Fonte: Bota Acima, blogue de João Tunes, 7 de Abril de 2004

I - TIREM-ME DAQUI !

Os civis fardados à força que tinham habilitações consideradas suficientes, eram militarizados como soldados cadetes durante seis meses e o seu aproveitamento era coroado com o título (modesto) de Aspirante a Oficial Miliciano.

Esta patente, uma espécie de grau de estagiário em oficialato, durava até chegar a ordem de envio para África. Quando a guia de marcha era recebida, era-se automaticamente promovido a Alferes Miliciano. Todas as regras têm excepções. O Barros foi despachado para a Guiné como Aspirante. Ficou famoso por ser a excepção à regra e porque era meio xoné. Em rigor, perto dos quatro quintos xoné. Licenciado em Filosofia, o Barros era incapaz de se adaptar às regras da vida militar. A instituição castrense bem tentou fazer dele um homem de armas mas o sujeito era relapso à farda, aos procedimentos, à ordem unida e ao espírito guerreiro.

Quando cadete em Mafra, o Barros era sempre o último a chegar à formatura e, quando chegava, os atavios estavam sempre mal amanhados e quantas vezes a Mauser ao ombro vinha com o cano a apontar para o chão... Porque, o que o Barros gostava mesmo era de discutir Sócrates e Platão. A instituição teve de resolver o problema do Barros. Nada fácil. Deve mesmo ter sido caso para reunião de generais reumáticos no Estado Maior General ou coisa parecida. A guerra aquecia e as frentes de combate não paravam de aumentar. Era precisa mais gente, cada vez mais gente, para conter a guerrilha. Começava a haver escassez no recrutamento. A procura de mancebos ultrapassava a oferta. A decisão foi sábia: o Barros ia mesmo para a guerra (mas para a Guiné, porque ele só merecia o pior) mas não era promovido a alferes. Seria Aspirante para sempre. Logo ele, que o que mais aspirava era voltar aos livros e às discussões filosóficas, coisas bem alheias aos trabalhos da guerra.

Na Guiné, andou de quartel em quartel, acumulando punição atrás de punição. O Aspirante Barros não servia, cada vez servia menos, pois a cachimónia cada vez ia trabalhando pior. Como era um perigo nas operações, ia sendo dispensado de sair para o mato, acumulando detenções sobre detenções até o Comandante pedir a Bissau a sua substituição. Então, o Aspirante Barros enchia o saco do fardamento com os seus livros e rumava a outro quartel. Até que a cena se repetia. E repetiu-se muitas vezes.

Uma vez, o General Spínola visitou um quartel onde estava o Aspirante Barros e quis conhecê-lo. O Barros apareceu mal amanhado e com olhar ausente. Spínola disparou a censura:
- Você não tem vergonha de ser o único Aspirante na Guiné?

O Barros concentrou-se, olhou Spínola de frente e disse mansamente:
- Estamos em igualdade, o senhor, que eu saiba, é o único General na Guiné.

Puseram o Barros numa prisão em Bissau por ter insultado o General. O Barros, então, deixou de ler. Podia ler, quem já pouco olhava? O Tenente Coronel Melo, comandante do Batalhão no quartel de Catió, era um oficial com pretensões intelectuais (por onde passava, estudava os costumes étnicos e ia escrevendo livros sobre os usos e costumes das tribos africanas). Era opositor ao regime e não gramava o Spínola, embora fizesse a guerra com todo o profissionalismo. Era também um católico devoto. Em resumo, o Tenente Coronel Melo era um católico progressista, gostava de armas e de paradas, não gramava o fascismo e tinha bom coração. Sabendo da história do Barros, o Tenente Coronel condoeu-se e pediu para o colocarem no seu Batalhão. E o Aspirante Barros lá veio com o seu saco (agora vazio de livros) parar a Catió. E passou a ser meu companheiro de quarto. Companheiro silencioso. O Barros quando chegou a Catió também já tinha deixado de falar.O Barros foi dispensado de serviços e passava os dias deitado na cama. Dispensado de todos os serviços, não. Para lhe dar algum sentido de utilidade militar, o Barros entrava na escala de oficial de dia ao quartel com a missão única de presidir ao içar e ao arriar da bandeira (havia outro oficial que fazia o serviço restante).

O Barros cumpria a sua única tarefa militar segundo um ritual tacitamente assumido por todo o quartel. O sargento de dia perfilava a tropa, dirigia-se à janela do quarto do Barros e berrava enquanto fazia a continência da praxe:
- Meu Aspirante, apresenta-se a guarda de dia.

O Barros, ouvindo o berro do sargento, levantava-se em cuecas, assomava à janela, e naqueles preparos, imitava uma espécie de continência. Então, o sargento de dia mandava içar ou arrear a bandeira portuguesa e o Barros voltava à solidão do seu silêncio.A partir de certa altura, o Barros passou a instalar-se, durante o dia, no bar dos oficiais, bebendo copos atrás de copos. Tinha, como companhia, o Tenente Coronel Melo que preferia escrever os seus livros e fazer os seus despachos ali, no silêncio diurno do bar enquanto o resto dos militares cumpriam as suas rotinas de serviço. O Tenente Coronel escrevia, pensava, escrevia. Barros bebia em silêncio.

De tempos a tempos, o Barros arremessava o copo contra a parede e gritava:
- TIREM-ME DAQUI! 

O Tenente Coronel comentava,  paciente:
- Calma, nosso Aspirante.

E o Barros acalmava até novo arremesso, novo grito e novo apelo à calma por parte do Comandante.

E a cena ia-se repetindo ao longo do dia e dos dias, num ritual assumido pelos dois oficiais e respeitado por toda a tropa sem dar lugar a galhofa. A única consequência negativa destas cenas era a redução assustadora no stock de copos no bar de oficiais. Mas, isso não era problema sem solução: na guerra, para beber é preciso copo?

Era habitual que, a meio da noite, o Nino Vieira se lembrasse de mandar os seus rapazes mandar-nos morteiradas para dentro do quartel. Ao primeiro rebentamento, havia que agarrar a G3, nossa companheira inseparável, e correr para irmos cumprir funções defensivas e contra-ofensivas. Para que o Nino não se ficasse a rir de nós. O Barros não se mexia. Limitava-se a abrir os olhos e fixá-los no tecto. Imóvel. O Aspirante Barros já tinha deixado de aspirar a sobreviver.O Barros esteve duas semanas em Catió, sem castigos que avermelhassem mais a sua caderneta disciplinar.

Um dia, o Tenente Coronel Melo apareceu sorridente. Tinha conseguido (com a ajuda do médico do Batalhão) uma consulta de psiquiatria para o Barros com vista à sua evacuação da Guiné. O Barros não acabou o tempo da sua comissão na guerra da Guiné. Foi libertado para a vida civil como Aspirante a Oficial Miliciano.

Não voltei a ver o Barros. Mas, volta e meio, o Barros entra-me pela memória dentro. E então, a raiva, ai a raiva, a raiva aos que alimentam guerras, faz-me um nó na boca do estômago. Não sei sequer se está vivo, onde está e o que faz o meu antigo camarada e companheiro de quarto. Espero bem que não ande a passear, sem olhar, sem falar, sem ler e a gritar TIREM-ME DAQUI!, ouvindo os palermas saudosistas do Império a clamarem contra o crime da descolonização e caçarem votos aos ex-combatentes. Porque esses merdosos não valem um caracol ao pé do Barros. Desejo sinceramente que o Barros esteja recuperado e a discutir Sócrates e Platão. Algures. Em paz.
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Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!

Guiné > Pelundo > Dezembro de 1969 > João Tunes (no jipe, do lado esquerdo, o caixa-d'óculos), na altura Alferes Miliciano de Transmissões da CCS do BCAÇ 2884, e já apanhado do clima, apesar dos bons ares do chão manjaco... Mas o pior, foi quando o mandaram, com guia de marcha, para o reino do Nino, lá para as bandas de Catió...

Foto: © João Tunes (2005)


Mensagem do João Tunes:

Caro Luís,

Difícil, muito difícil, resistir aos teus desafios (2). Talvez por esse dom de mestria, tão teu e transpirando sinceridade, de nos fazeres psico pela via do companheirismo sedutor. Tão bem o fazes que dou frequentemente cá comigo a pensar que ao Caco lhe faltou perspicácia suficiente para te aproveitar os talentos e substituir, sob tua inspiração, o raio daquela guerra estúpida e inglória por uma imaginária Guiné Melhor que metesse em convívio alegre, culto, amigo e solidário, o Amílcar e os seus rapazes, a nossa malta das tropas-macacas mais das operações especiais, Alpoim e outros heróis e os não tanto, os guineenses e os caboverdianos de um e outro lado e até de lado nenhum, as bajudas lindas até serem mães precoces, mais os cubanos e outros mais, até os que tais.

Teria sido bem melhor, um ronco do tamanho de todas as bolanhas juntas, voltávamos todos excepto os acidentados, porque - como hoje tão bem se demonstra - até fomos e somos todos, os de um e outro lado, não só bons rapazes como amigos até não mais podermos ser. E, assim, o cacimbo seria, apenas, uma simples imagem meteorológica. Não aquilo que foi, um desarranjo mental, mas vital, na medida em que foi um grito de nojo humano em estar na guerra, fazer a guerra, acreditando eu que não há mãe no mundo que ande a parir filhos com o fito de os meter a matar, muito menos para morrerem.

Pedes tu, caro Luís, contributos para estórias de cacimbados. Difícil, digo em resposta à chamada. Por um lado, julgo que cacimbados teremos sido todos nós porque não tomei até hoje nota de algum camarada que por lá tenha perdido a humanidade. Por outro lado, falece-me a capacidade de não me repetir e nisso muito te devo mais ao blogue, na exacta medida saudável de tanto teres ajudado à catarse que nos liberta da memória traumática ligada aos melhores anos das nossas vidas. E, com a catarse, ganhando-se em paz e em distância, perde-se a piada do acicate de mexer e remexer nas feridas. Ou seja, em termos criativos e comunicacionais, há bens que vêm por mal.

Pela minha parte, encontrei cacimbados em tudo quanto era sítio guineense. E havia um que encontrava todos os dias, logo pela manhã, quando me punha a olhar o espelho para praticar as artes do barbear. Mas, como tudo é relativo, os mais cacimbados entre os cacimbados encontrei-os no Sul da Guiné, no chamado reino do Nino (3). Em Catió, em Guileje, em Gadamael-Porto, em Cacine. Piores que estes só mesmo os metidos em Bissau, no Depósito de Adidos, vindos dos pontos quentes e aguardando regresso, a gerirem uma espécie de loucura sincrética entre as feridas na alma e no corpo em mistura com o alívio ansioso de dali saírem vivos, tentando ainda treinarem os gritos, as lágrimas, os abraços, os beijos dos seus no regresso ao seu meio e viver naturais.

Como disse, já se me secou a capacidade de contar mais que o tanto e tão bem contado pelos outros camaradas. E se não acrescento um ponto, para quê somar mais um conto? Mas, para que não digas que me baldei à chamada, envio-te, com a companhia de um abraço amigo, dois textozinhos que publiquei em Abril de 2004, exactamente sobre estórias de cacimbos e de cacimbados (os factos são veros, só os nomes dos personagens foram alterados) e em que o tom de escrita é notoriamente o da pré-catarse (hoje escreveria diferente, mas preferi manter as versões originais porque o cacimbo se nota mais, ou demais) (2)

I - TIREM-ME DAQUI !


II - E O JIPE NUNCA VOOU


Abraços amigos e camaradas para todos os estimados tertulianos.

João Tunes
Blogue > Agua Lisa (6)
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Notas de L.G.:

(1) Resposta a um pedido meu, de 17 de Julho:

Amigos & camaradas:

Há um desafio meu e do Mexias Alves para falarmos do cacimbo da Guiné e dos seus devastadores efeitos... Quem nunca se sentiu cacimbado, que atire a primeira pedra... Estórias sobre o cacimbo, aceitam-se e pagam-se alvíssaras (...)

(2) A publicar, em breve.

(3) Vd. post de 12 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVI: No 'reino do Nino': Catió, Cacine, Gadamael, Guileje (1970)