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domingo, 21 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19705: A galeria dos meus heróis (28): Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"... (Luís Graça)

A Galeria dos Meus Heróis > Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"


por Luís Graça 




1. A guerra. Essa coisa tão primordial que é a guerra. Que estaria inscrita no teu ADN, a acreditar nos sociobiólogos para quem o  comportamento humano seria geneticamente determinado.

A guerra é a continuação da evolução por outros meios, dirão os entomólogos, especialistas em insetos sociais,  para quem a morte de um ou de um milhão de formigas ou de seres humanos, é-lhes totalmente indiferente. Desde que triunfe o ADN, um projecto de ADN musculado,uma "raça" nova e superior...

Para ti, a guerra é a aprendizagem da morte. Aos vinte e dois anos. É a inocência que se perde para sempre, ao ver morrer pela primeira vez um homem. Como o teu camarada, Alfa Baldé, que morreu a teu lado. A guerra... é o impossível luto. É a descoberta do mal absoluto.

Fight or flight. Luta ou foge. Não precisaste de fugir nem de lutar. Recusaste o egoísmo genético. Recusaste a lógica absurda de matar ou morrer. Recusaste o cinismo. Recusaste a G3 em posição automática. Recusaste a fria e calculista resignação com que se juntavam e amortalhavam os cadáveres seguintes. E se contavam nas paredes da caserna os dias que faltavam para a peluda.

Cinquenta anos depois, meio século, dois terços da esperança média de vida de um homem do hemisfério norte, vens dizer as palavras que ninguém disse ao Alfa Baldé, no  grotesco enterro que lhe fizeram em Sinchã qualquer-coisa, a sua terra natal.

2. Descansa em paz, Alfa Baldé, meu herói, soldado do 2º pelotão da minha companhia, de tropa-macaca, a minha companhia, os meus camaradas, o meu bando de primatas sociais, territoriais, predadores, filhos das mais desvairadas gentes.

Fazíamos parte da nova força africana, de Herr Spínola, o prussiano, como eu gostava de chamar-lhe, ao nosso Comandante-Chefe. Lembras-te ainda do "Caco Baldé" e da sua voz de ventríloquo ? Tinha o teu apelido, e usava um monóculo, ridículo...

Não, não tens que te lembrar, não ligues a esta minha provocação, são outros contos, outras estórias, outras lendas e narrativas, outros ajustes de contas com as nossas doridas memórias.

Descansa em paz, Alfa Baldé, debaixo do poilão secular, na tua tabanca, no chão fula, belíssimo poilão de uma triste tabanca fula, cercada de arame farpado, trincheiras e valas de abrigo, por causa do Mamadu Indjai, o Terrível, que jurou pôr o teu "chão" a ferro e fogo.


Julgo que eras do regulado de Badora. Ou seria Cossé, lá para os lados de Galomaro? Desculpa-me ter esquecido o nome da tua tabanca. E a cara dos teus filhos. E o rosto das tuas mulheres, agora órfãos e viúvas, sozinhos neste mundo. Ou talvez não: ficaram a cargo do teu mano mais novo, seguindo os usos e costumes do teu povo.


Apercebi-me que os teus campos estavam tristes e inférteis. Já não davam o milho painço nem o fundo, nem a mancarra, nem a noz de cola, nem o arroz de sequeiro. Os homens partiram para guerra. E os mais velhos eram milícias, na tua tabanca organizada em autodefesa. A guerra era agora a principal ocupação de todos. Compravam o arroz ao Rendeiro com o "patacão" da guerra. Nem os "djubis" guardavam já os campos de mancarra, das investidas dos macacos-cães. De Mauser em punho, que a milícia agora usava a G3.

Alguns dos jovens guerreiros, como tu, voltavam agora numa caixão de pinho. Restavam os macabros "jagudis" poisados no alto da morança dos mortos, cheirando a morte, pressagiando a desgraça.

Setembro de 1969. Operação Pato Marreco. Ou era a Ganso Pimpão ? Ou a Pavão Real ? Que importa, agora, o nome de código da operação!... Morreste em linha. Aprumado como o teu poilão. No assalto a um aquartelamento temporário do IN ("barraca", diziam eles), próximo do Poindom / Ponta do Inglês, o "matadouro" do Xime.

IN ? Que estranho termo ou expressão… Uso-o por força do hábito, por comodidade, por lassidão, por economia de análise. IN, abreviatura de inimigo. Para ti, era o "turra". Para muitos de nós, "tugas", era o "turra".

Curioso, nunca soube a tua idade, mas eras dos mais velhinhos, dos que não tinham idade bem definida. Não tinhas bilhete de identidade de cidadão português. Eras um fula preto, um fula forro, não creio que fosses futa-fula. Mas eu levei-te a enterrar na tua aldeia, mais os nossos camaradas do 2º pelotão, fomos dizer-te o último adeus. Com honras militares, tiros de salva, e a bandeira verde-rubra dos "tugas" por cima do teu caixão. De pinho. Do verde pinho de Portugal. Talvez do pinhal de Leiria, que ardeu no verão passado.

Nem isto te deixaram fazer à maneira dos teus. Afinal, eras um soldado, regular, do exército português. Colonialista, dizia a "Maria Turra", na rádio lá de Conacri... Cumprias o teu serviço militar obrigatório, como qualquer cidadão português. Eras do recrutamento local. 


Todos os exércitos têm normas, regulamentos, protocolos... O teu enterro fez-se segundo a NEP não sei quantas... Mas tenho uma dúvida: não chegaram a chumbar o teu caixão, não houve de esperar pelo "coveiro" de Bissau, fomos no "gosse gosse", a caminho da tua aldeia, em dois ou três Unimog, com medo que o teu cadáver começasse a cheirar mal. E o "pavão real" do teu "alfero", ia à frente, de peito feito ao vento, pela estrada fora... Na brincadeira, chamávamos-lhe também o "Pimpão"... E ele até nem desgostava do epíteto...Fez um discurso patriótico, que ninguém terá entendido, crianças, mulheres e velhos da tua aldeia: "Honra e Glória ao bravo soldado Alfa Baldé, que deu a vida pela Pátria!"...

Portugal ? Ainda te lembras ? Os senhores que vieram do Norte e do lado mar ? Não, não vieram pelo deserto. Esses, foram outros, árabes, bérberes, tuaregues, mandingas do reino do Mali, abrindo as rotas subsarianas do ouro e da escravatura. Depois é que vieram os "tugas" e os outros europeus... Os teus antepassados foram escravizados, muitos foram parar ao Novo Mundo, aos engenhos de açúcar e às plantações de algodão. Outros, quiçá, trabalharam nos arrozais do rio Sado. Ou eram escravos domésticos em Lisboa.

Não, não tens que saber de geografia. Nem de história. Nem de geopolítica. Nem de antropologia. No sítio onde tu agoras moras, debaixo do teu poilão, já não te servem para nada os conhecimentos de geografia, história, geopolítica ou antropologia. Só espero que algum senhor da guerra, do teu país, não venha um dia destes autorizar o abate do teu poilão, a troco de um punhado de iuanes, o patacão chinês.  Sabes, dizem que estão a dar cabo das florestas da tua terra, da tua África. O deserto do Saara já espreita às portas do "chão" felupe, mais a Norte. Os "madeireiros" não têm pátria nem ideologia.

Bolas!, mas eu, mesmo ao fim destes anos todos, eu deveria recordar-me do nome da tua aldeia, no "chão" fula. Passámos lá uma semana ou duas, com a nossa secção, um mês antes de morreres. Já não te lembras ? Creio que a tua tabanca, pelas notas,amarelecidas,  do meu diário, ficava no limite do regulado de Badora, a sul, já a confinar com o regulado do Corubal.

O teu nome, esse não esqueci, Alfa Baldé, apontador de dilagrama, o melhor da companhia. Esqueci foi o lugar onde nasceste, talvez Sinchã ou Saré qualquer-coisa, mas não faz mal.

Passei lá uns belos dias, contigo e a nossa secção. Felizmente que o Mamadu Indjai não nos importunou nessa altura, mas andou a pôr o regulado do Corubal a ferro e fogo, como ele jurou, cumpriu e fez cumprir. Mamadu Indjai, um senhor da guerra do PAIGC, que acabará também miseravelmente fuzilado nas matas do Boé, depois de atentar contra a vida do seu chefe, o "pai da Pátria"... Mas era um "cabra" valente, "herói da luta de libertação"...É assim, querido Alfa, todas as revoluções devoram os seus filhos: Cabral, Indjai, Mané, 'Nino'... Ontem, como hoje. Na tua terra ou na minha.

Lembro-me que o chefe da tua tabanca deu-me uma morança e arranjou-me uma espécie de "impedida", que tu me apresentaste como sendo tua "irmãzinha". Vinha-me acender o lume à ao fim da tarde. (À noite apagágavmos todas as fogueiras, por causa dos "snippers" do Mamadu Indjai. Estava em vigor o "black out" total. Até o cigarro era proibido.)


Não falava uma única palavra de português, a minha "impedida". Não cheguei a perceber qual o seu papel naquele filme. Creio que era uma das quatro mulheres do chefe das milícias. Já devia ter sido mãe, já não tinha a "mama firme" das bajudas. Mas foi amorosa e gentil comigo. Tratei-a sempre, delicadamente, como uma "irmãzinha", tua, e minha. Nunca esquecerei a massagem que me fez à coluna, com mezinhas tradicionais, depois de uma estúpida queda que eu dei na cambança de um riacho que corria ali perto, quando fomos os dois à caça, tu e eu.

Pude também, na ocasião, aperceber-me como eras um exímio caçador, e um terrível "snipper"... Das lebres às galinhas do mato, dos javalis às gazelas, não falhavas um tiro, emboscado na orla da bolanha, ao lusco-fusco. Eu, que sempre detestei a caça, acompanhei-te pelo menos uma vez, ao fim da tarde.

Mas o que agora queria dizer-te, e é isso que importa, é que chorei por ti, confesso que chorei por ti, que morreste a meu lado,e que levavas um prisioneiro, teu irmão, pela mão. E tu que nem sequer eras meu irmão, nem grande nem pequeno. Eras apenas meu camarada de armas. Nem tinhas a mesma cor de pele. Nem a mesma religião. Nem a mesma língua. Nem talvez a mesma pátria. Nem o mesmo continente. Não comias carne de porco. Nem bebias "água de Lisboa". Eras apenas um guinéu, soldado de 2ª classe, exímio caçador e o melhor apontador de dilagrama da companhia. E o primeiro a morrer em combate, "vítima de fogo amigo", que estranha ironia!

Ganhavas 600 pesos de pré, o equivalente a um saco de arroz por mês para alimentar a tua família, mais 24$50 por dia, por seres desarranchado. 

Não eras homem de grandes falas, e o teu léxico em português era bem escasso para a gente poder manter um diálogo aprofundado sobre a tua vida e a do teu povo. Eu fazia muitas perguntas, às quais nem sempre sabias responder.

Para mim, eras apenas um homem, da subespécie Homo Sapiens Sapiens. A única que chegou até aos nossos dias. E que, convém recordá-lo, nasceu na Mãe África. Somos todos descendentes de africanos que acabaram por colonizar e povoar o planeta.

Tu foste o primeiro homem, género Homo, espécie Homo Sapiens,  subespécie Homo Sapiens Sapiens, que eu vi morrer a meu lado. Nunca mais chorei por ninguém, por mais nenhum morto, acredita. Chorei por ti, Alfa Baldé. Chorei de raiva, de impotência e de dor.

Nascemos meninos, tu e eu, mas fizeram-nos soldados. Azar o meu e o teu, por termos nascido no sítio errado, no tempo errado.
Imagino-te "djubi", à volta da fogueira, na morança do marabu ou do "cherno" da tua tabanca, decorando o Corão. Uma das cenas mais lindas que eu trouxe da tua tabanca, e que eu guardo na minha memória, os "djubis" à volta da fogueira, ao fim da tarde, soletrando as letras das tabuínhas em árabe. 

E tu, seguramente, nunca me viste "menino de coro", a cantar, de sobrepeliz branca, nas cerimónias da Semana Santa na igreja matriz  da minha terra, "reconquistada aos mouros", em 1147, que eram tão seguidores de Alá como tu e os teus.

Lembro-me de ainda teres querido aprender as letras dos "tugas", o alfabeto latino, para poderes ser soldado arvorado e um dia chegares a 1º cabo como o Suleimane Baldé, fula-fula, ou o Vitor, que era mancanha de Bissau, o Lopes, que era cabo-verdiano da ilha da Brava. Mas a nossa atividade operacional era intensa e muito pouco tempo sobrava para poderes frequentar a escola, o posto escolar militar, do furriel Veloso. Além disso, tinhas uma família, duas mulheres, dois filhos... Chegavas cansado e esfomeado à tua morança, fora do quartel onde estávamos sediados.

3. E de repente, o capim. O capim alto. O sangue. O capim pisado e empapado de sangue. Pobre Alfa, morto por um dilagrama dos nossos. Alguém branqueou a tua morte no relatório da operação. Alguém salvou a honra da companhia. Alguém safou o teu/meu comandante de uma porrada do Spínola. Um dilagrama rebentou no ar, na tua cara, nas nossas caras. Um dilagrama dos nossos. O teu dilagrama, empunhado pelo nosso "alfero"... 


Não, não sei o que lhe deu, ao "alfero", para à última hora ter decidido tirar-te o dilagrama e ter-te confiado o prisioneiro, que estava à guarda do Mamadu Camará.

Não posso julgá-lo, era um meu superior hierárquico, meu e teu, nosso comandante de pelotão. Mas só sei que vai morrer na cama, ele (e o nosso capitão...), sem qualquer remorso na consciência "por te ter morto", e ter provocado vários feridos graves, quando estávamos em linha no assalto a uma "barraca" dos "turras"... 

"Homicídio involuntário" ? Não, "acidente com arma de fogo", é mais indolor... Muito provavelmente vai morrer em paz e contar aos netos que foi um "herói de guerra"...

"Acidente com arma de fogo" (segundo o relatório elaborado pelo capitão...) no auge da batalha, quando avançávamos em linha, no assalto ao acampamento do IN, levando tu pela corda o teu turra, o teu guia, o teu prisioneiro, que te fora confiado à última hora. Porque o teu posto era o de soldado apontador de dilagrama. E eras o melhor da companhia. O que se passou na cabeça do "alfero" que empunhou indevidamente o teu dilagrama e largou-o no ar quando, inadvertidamente,  saltou a cavilha de segurança ?... Podia ter-nos morto a todos!...

Ainda mais jovem do que tu, o teu "turra" era um jovem mandinga, que apanháramos a norte do Enxalé, tão crente como tu, tão observador dos preceitos corânicos como tu, meu querido "nharro". (Desculpa tratar-te assim, sei que o termo tem hoje uma conotação racista, mas era coloquial entre nós, "tuga" e "nharro" eram usados sem sentido de ofensa...)

Rebentou, de imediato, a fuzilaria quando o dilagrama explodiu nas nossas caras. A nossa secção já não pôde avançar mais. Tu tiveste morte quase instantânea, ainda balbuciaste umas palavras em fula, que eu mal consegui ouvir e muito menos fixar. Quando chegou o 1º cabo auxiliar de enfermagem, para te estancar o sangue e pôr o soro nas veias, já era tarde demais... Um estilhaço varara-te o coração. O "turra" mandinga, esse, ainda sobreviveu e foi depois evacuado de helicóptero com mais alguns feridos nossos...

E agora, Alfa Baldé, que foste poupado à humilhação da "derrota" e não viste o teu país sentar-se de pleno direito à mesa do mundo... Que farias tu com esta independência e com esta bandeira, a da Guiné-Bissau, contra a qual lutaste sem querer, sem saber, sem poder ?

Onde estarão os teus filhos, e as tuas mulheres ? E os teus netos ? E os homens grandes da tua tabanca de Badora ? E os líderes do teu povo que te obrigaram a combater ao lado dos "tugas" ?

Herr Spínola, o homem grande de Bissau, esse já morreu há uns largos anos atrás, ainda no século passado. Há vinte e tal anos.

Não lês os jornais, não chegaste a aprender o alfabeto latino e a juntar as letrinhas e a poder ler o livro da 3ª classe, com a torre de Belém ao fundo: "Esta é a minha pátria amada"…

Pois é, o homem grande de Bissau morreu, não de morte matada, como a tua, ou a do Amílcar Cabral ou a do 'Nino' Vieira, mas de acordo com a lei natural das coisas, com 86 anos. Soubeste, com certeza, da morte do Cabral e do 'Nino'. Ou talvez não.

Quanto ao teu régulo, sei que foi miseravelmente fuzilado na parada de Bambadinca, o poderoso régulo de Badora, tenente de milícias, Mamadu Bonco Sanhá, que havia trocado o cavalo branco da gesta heróica do Futa Djalon, por uma prosaica motorizada japonesa de 50 centímetros cúbicos... 

Não sei se foi oferta do Schulz ou do Spínola (que chegou à tua terra em meados de 1968). Pois o Mamadu Bonco Sanhá, dizia-se, era dono de centenas de cabeças de gado e de um harém, mas era mentira, de cinquenta mulheres, uma em cada aldeia de Badora… Fantasias dos "tugas" que pouco ou nada sabiam da história e da cultura do teu povo.

Também se dizia, mas era mentira, que o puto Demba era filho dele,o Demba e mais outros "djubis" da nossa companhia. O Demba já morreu, também, o puto Demba, não sei se sabias. Era de Taibatá e andou fugido pelo Senegal e por todo o Norte de África até chegar a Portugal. Acabou por morrer cá, na minha terra, no hospital, o terminal da morte.

Hoje os heróis do passado sucumbem sob o peso das cruzes de guerra. Ou pedem esmola nas ruas de Bissau, tal como os teus filhos e netos. Ou morrem de desespero e insolação às portas do templo da deusa Europa, em Ceuta, em Melilha, em Lampedusa...

Que voltas o mundo deu, meu soldado, desde esse dia já distante em que a tecnologia da guerra ou a lotaria do ADN ou a insensatez de um oficial "tuga" te ceifou a vida.

Porquê tu, meu herói, três meses depois de jurares bandeira, em Bissau, na presença do general Spínola, e te comprometeres, por tua honra, a defender uma pátria que, afinal,  não era a tua, até à última gota do teu sangue ?

E do "turra" mandinga não tenho notícias, se é isso que queres saber, mas a princípio duvidava que ele tivesse podido sobreviver, aos graves ferimentos do teu dilagrama, mal manejado pelo "alfero", comandante do nosso pelotão. Mas parece que sim, safou-se pelo menos daquela vez: alguém o viu no hospital, em Bissau, ainda no 4º trimestre de 1969. Foi tratado no hospital como um dos nossos, e o Spínola deve ter mandado libertá-lo, depois de jurar arrependimento e prometer nunca mais pegar numa Kalash ou num RPG 2.

Afinal, a avaliar pela idade dele, mais novo do que tu, devia ter sido arrebanhado pelo Mamadu Indjai, o Terrível.

E agora deixa-me dizer-te, amigo,à laia de despedida: não sei se um dia ainda terei forças para voltar à tua terra, ao teu chão. Já estou a ficar velho demais para poder viajar para esses sítios de África. Mas se porventura o fizer, gostaria de perguntar pela tua aldeia, e de procurar-te e de ter tempo para conversar contigo, só tu e eu, debaixo do teu poilão. Nunca mais lá voltei, à Guiné, à tua terra.  Ando a ver se ainda arranjo uns restos de coragem e de dignidade. Tenho uma dívida para contigo.
 
© Luís Graça (2019).

Última vetrsão: 12/6/2023

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19683: A galeria dos meus heróis (27): Éramos todos bons rapazes!...(Luís Graça)

quinta-feira, 1 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18369: Manuscritos(s) (Luís Graça) (139): Um triste tuga entre três tristes fulas... Elegia para as vítimas da "justum bellum" do comandante Mamadu Indjai

Um triste tuga entre três tristes fulas

Elegia para as vítimas da "justum bellum" de Mamadu Indjai (*)
 

por Luís Graça
 

E de repente
tudo te é estranho,
o muro que corta, rente,
a brisa da manhã,
a fonte onde ainda ontem
os
djubis tomavam banho,
o portentoso poilão aonde ias rezar,
à tua maneira, ao teu irã,
ponta onde colhias a manga, a papaia, o abacaxi,
o macaco-cão que chora e que ri…

De repente
não sabes donde vens,
não sabes o que és,
aqui de camuflado e de G-3,
dois cantis de água,
oito cartucheiras e quatro granadas à cintura,
nem a verdadeira razão para matar e morrer,
não sabes o que fazes neste lugar,
muito longe da tua terra,
abaixo do Trópico de Câncer,
a 11 graus e tal de latitude norte.

Mal reconheces, pobre periquito,
os sinais da guerra,
o combate em noite de luar,
o cavalo de frisa esventrado,
os pássaros de morte,
os jagudis no alto da árvore descarnada,
a terra revolta, ensanguentada,
o arame farpado,  aqui e acolá cortado,
o colmo das moranças,  carbonizado,
o medo que não se vê mas se pressente,
num olhar de relance, breve,
sobre a tabanca que quiseram riscar do mapa,
as cápsulas de 12.7 da metralhadora pesada Degtyarev,
um par de chinelos,
os caracteres chineses dos invólucros, amarelos,
das granadas de RPG…

Um triste cão, famélico, vadio e louco, ladra
ao cacimbo fumegante
e o seu latido lancinante
ecoa pela bolanha fora.
A seu lado, a única velha,
que não se foi embora,
com a sua máscara impassível
de séculos de dor,
de seu nome, Satu.

Mais tarde, saberás tu,
saberão de cor,
os jovens pioneiros,  os blufos, do PAIGC,
que por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível,
hoje valoroso, amanhã insidioso,
combatente da liberdade da pátria,
hoje herói,  amanhã traidor,
que nunca conhecerá a glória nem a honra
do Forte da Amura,
transformado em Panteão Nacional.

Diz-me tu, Satu, mãe e pitonisa,
onde estão as mulheres da tua tabanca,
com os balaios à cabeça
e os seus filhotes às costas ?
Onde estão as tuas gentis bajudas, de mama firme,
cujo sorriso climatizava os nossos pesadelos ?
Onde estão o régulo e os suas valentes milícias ?
Para que lado corre o Rio Corubal
e donde vêm aqueles sons, ambivalentes, de bombolon?

Diz-me tu, homem grande,
onde fica o Futa Djalon ?
E de que ponto cardeal
sopram os ventos da história, afinal ?

Dis-me, mauro,  onde fica Meca ?

E a quem e para onde é que eu hei-de rezar ?
E, no seu conciliábulo, meu irmão,
os nossos deuses, o meu e o teu,
o que sobre nós
, cinicamente, decidirão ?

Diz-me onde está o velho cego,  mandinga,
a quem demos boleia, até Mansambo,
que tocava kora
e nos contava a história
de velhos e altivos senhores do Mali e do Gabu,
agora servos no seu chão ?

Passei na madrugada
de um final de mês de julho de 1969,
pela tua tabanca, abandonada,
do triste regulado do Corubal,
de que já não guardo o nome,  na memória:
Sinchã qualquer coisa,
Sinchã-a-ferro-e-fogo,
Afiá ou Candamã...
Que importa, de resto, minha irmã,
o topónimo para a história?!...

Venho apenas em teu socorro, meu irmãozinho,
quando as cinzas ainda estão quentes
no forno da tua morança,
da morança que fora também minha…

Raiva, sim, meu camarada,
Abibo Jau, meu bom gigante,
que serás mais tarde fuzilado em Madina Colhido
com o teu comandante Jamanca,
como eu te compreendo!…
Mas vingança, para quê ?

Do teu justum bellum ao justum bellum do teu inimigo,
de guerra em guerra se chega ao nada!

A um espelho partido me estou vendo,
e a mim mesmo me pergunto  quem sou eu,
um triste tuga entre três tristes fulas, ai!,
para te dar lições de história ?!

Saberei apenas,  muito anos depois,
que, julgado e condenado em Conacri,
fuzilaram o Mamadu Indjai, no Boé,
que diziam ser região libertada da Guiné…

O mesmo Mamadu Indjai,
fero e bravo comandante,

que fazia a sua justum bellum,
que os tugas de Mansambo irão ferir gravemente
em emboscada no decurso da operação Nada Consta,
o mesmo Mamadu Indjai,
que, três anos e meio depois, chefe das secretas,

será um dos carrascos de Amílcar Cabral.

Versão 12 (**), 
Alfragide, 1 de março de 2018 (***)
____________

Notas do editor:

(*) Muitos dos nossos camaradas nunca viram o rosto do IN, nem vivo nem morto... Durante a minha comissão, na CCAÇ 12 (1969/71), fizemos diversos prisioneiros, entre guerrilheiros e população civil... Mas o Mamadu Indjai, o Bobo Keita ou Mário Mendes, nunca lhes pus a vista em cima...  Destes três, Mamadu Indjai foi fuzilado pelos seus antigos camaradas, Bobo Keita morreu de morte natural, em Lisboa, e Mário Mendes foi abatido pela minha antiga CCAÇ 12...

O nosso blogue tem feito luz sobre estes homens que nos combateram... Temos vindo a juntar as peças do puzzle... E sabemos hoje um pouco mais sobre quem foram estes homens que lutaram por um ideal,  uma causa que consideravam justa ("justum bellum"), mas também espalharam a morte, o terror, a miséria e a dor no setor L1 ou setor 2 (para o PAIGC)... As populações civis foram as vítimas da violência, de parte a parte...

Durante anos Amílcar Cabral (e o seu partido, o PAIGC) foi glorificado e levado ao céu dos mitos... , foi para o  olimpo dos deuses e dos heróis... Hoje voltamos à terra, e a realidade é muito mais "mesquinha", ou seja, "humana"...

A PIDE/DGS (e seguramente outras polícias secretas, desde a do Sekou Touré, às francesa, russa, sueca e outras) tinham os seus "olhos e ouvidos" no próprio seio do PAIGC...  Não sei se Mamadu Indjai foi agente da PIDE/DGS, e se vendeu por 30 dinheiros como Judas, tal como sugere o historiador e nosso grã-tabanqueiro Leopoldo Amado... Seja como for, mais de meio século depois, temos dificuldade em perceber  como é que um homem inteligente e experiente como Amílcar Cabral (, mas também egocêntrico, vaidoso e ingénuo, como outro líderes revolucionários) se "deixou cair na armadilha" que o levou à morte: ao que parece, toda a gente sabia, menos ele, da traição que se estava a preparar debaixo da sua janela...

O que leva um "herói da liberdade da Pátria", como Mamadu Indjai, a tornar-se um "vilão" e um miserável "traidor"? Bom, isso é outra história... Infelizmente, a história está cheia de vilões e traidores...

Temos 21 referências no blogue sobre este homem... que pôs o lado meridional do chão fula a ferro e fogo nos  primeiros meses da época das chuvas de 1969.

(**) Vd. poste de 4 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16444: Manuscrito(s) (Luís Graça) (95): Por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível

(***)  Vd. poste de 14 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18316: Manuscrito(s) (Luís Graça) (138): a vida são dois dias e o carnaval são três

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18357: Efemérides (269): 30 de julho de 1969, quando o famigerado comandante Mamadu Indjai (, um dos carrascos de Amílcar Cabral), quis pôr Candamã, a última das duas tabancas do regulado do Corubal, a ferro e fogo... Recordando um raro e precioso vídeo sobre uma tabanca fula em autodefesa, da autoria de Henrique Cardoso, ex-alf mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), que vive hoje na Senhora da Hora, Matosinhos


Vídeo (13' 55'') > You Tube / Luís Graça... Há um trecho sobre Candamã, a chegada do pelotão do alf mil Henrique Cardoso (na vésepra do ataque...) e o reforço do sistema de autodefesa da tabanca, a vida na  aldeia depois do ataque, o quotidiano da tropa e da população, as chuvas de agosto... (de 1' 11' a 7' 09''). (Ligar o som, o vídeo tem um fundo musical)


1. A CART 2339, Os Viriatos, foi uma subunidade que esteve na zona leste da Guiné, região de Bafatá, setor L1 (Bambadinca), ao tempo do BCAÇ 2852 (1968/70) e da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (1969/71), subunidade de intervenção ao serviço daquele batalhão.

Os Viriatos, unidade de quadrícula, construíram de raiz o aquartelamento de Mansambo, entre Bambadinca e o Xitole. E participaram em grandes operações como a Lança Afiada (Março de 1969). 

Esta sequência de cenas (a história da CART 2339, e em especial do pelotão do Henrique Cardoso) foi originalmente filmada em 8mm. O filme foi depois convertido para o formato digital. O vídeo é do ex-alf mil Henrique J. F. Cardoso  (que era o 2º comandante da CART 2339):  vive hoje em Custóias, Matosinhos, e gostaríamos muito que se juntasse à nossa Tabanca Grande. Reforço aqui o convite que já lhe fiz em 2012.

Uma cópia do vídeo foi gentilmente cedida pelo seu camarada Torcato Mendonça para divulgação no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Mais uma vez, fica aqui o nosso reconhecimento ao autor (e ao seu camarada e nosso colaborador permanente Torcato Mendonça).

Trata-se de um documento, raro e precioso, sobre o quotidiano de uma unidade de quadrícula no TO da Guiné. O vídeo está dividido em duas partes (*), com a duração de cerca de 50 minutos, abarcando toda a comissão da CART 2339 no CTIG. O nosso leitor tem aqui a Parte I (35´33'').

Na Parte II (13' 44'') interessa-nos sobretudo destacar  a  estadia do pelotão do Henrique Cardoso em Candamã, em uljho e agosto de 1969, resumida em cerca de 6 minutos.

Diz-me agora o Henrique Cardoso que as NT esgotaram as munições na resposta ao ataque de 30/7/1969,  a sorte foi o clarear do dia e a retirada da força atacantes com os seus mortos e feridos. No vídeo, mostram-se alguns sinais do ataque (incluindo cápsulas de munições espalhadas pelo chão e algumas granadas por utilizar). É na sequência deste  ataque que é feita a reparação do arame farpado, que já existia. Como s rádios não funcionaram, não foi possível pedir o apoio da artilharia de Mansambo (obus 10.5). O Henrique Cardoso lembra-se ainda de lá estar vários a comer conversas de cavala, que era os únicos mantimentos que possuíam.


 2. O nosso camarada Luís Branquinho Crespo, presidente da ONGD Resgatar Sorrisos, quer erguer   uma escola em Candamã (**).

Este topónimo obrigou-me logo a relembrar factos passados, há quase 50 anos, no TO da Guiné, que ainda estão bem presentes na minha memória, associados às primeiras idas para o mato e ao contacto com a brutalidade da guerra, logo nos primeiros dias da minha chegada a Bambadinca, em julho de 1969.

Candamã, tabanca fula em autodefesa do regulado do Corubal, é atacada durante mais de duas horas até ao amanhecer do 30 de julho desse ano. Esse brutal ataque (o PAIGC utilizou dois bigrupos, reforçados, e armamento pesado) surgiu na sequência do recrudescimento da actividade IN no tradicional triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, após a Op Lança Afiada (8 a 18 de março de 1969).

Não resisto a "repescar" o vídeo,  já aqui publicado, do Henrique Cardoso (*), que, segundo informação que ele me transmitiu ao telefone, tinha acabado de chegar de véspera, a Candamã. Um dos objetivos do pelotão era, para além do reforço do sistema de autodefesa, construir mais uns abrigos para a população.

Constato, pela história do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), que já em dezembro de 1968, Candamã, no subsetor de Mansambo, tinha um pelotão destacado, pertencente à CCAÇ 2401, pelo menos até março de 1969 (***).

A partir de junho, a CART 2339 destaca um pelotão para Candamã (duas secções) e Afiá (uma secção). O vídeo do Henrique do Cardoso não é de junho, como eu pensava,mas sim de julho e agosto..

A partir de 18 de julho, a minha CCAÇ 2590/CCAÇ 12, entra em cena, como subunidade de intervenção no subsetor L1 (e outros), tendo logo o seu batismo de fogo em 24 desse mês (em Madina Xaquili)... Foi um mês alucinante, o de julho de 1969, para as NT e as populações sobre a nossa proteção no setor L1,

Recordo-me de ter chegada a Candamã, nessa madrugada de 30 de julho de 1969, vindo de Afiá (op Guita), quando as  armas dos defensores da tabanca ainda fumegavam... (****).

A tabanca em audodefesa de Candamã (, já no limite leste da ZA da unidade de quadrícula de Mansambo, entre Mansambo e Galomaro,)  tinha acabado de conhecer o inferno: às 3h40, um numeroso grupo IN (80 a 100 elementos) ataca a tabanca, até de madrugada, durante 2 horas e 20 minutos, utilizando 2 Canhões s/r, Mort 82, 3 Mort 60, LGFog, Metralhadora Pesada, Pistolas-Metralhadoras e Granadas de Mão Defensivas.

O ataque  causou 5 feridos às NT (dos quais 1 grave) e 2 mortos, 3 feridos graves e vários ligeiros à população civil, além da destruição de moranças e outros bens da população. O arame farpado foi cortado em vários pontos.

Valeu o comportamento heróico da população da tabanca e dos homens de Mansambo  (o 1º Gr Comb da CART 2339, comandado pelo alf mil Henrique Cardoso) - menos de um pelotão (já que uma secção estava na vizinha Afiá)!... Homens, que eu conheci e abracei, nessa mesma madrugada, quando a aldeia ainda fumegava, na sequência de incêndio de várias moranças.

Saberíamos mais tarde que: (i) as forças do PAIGC eram comandadas pelo tristemente célebre  Mamadu Indjai (*****); e (ii) tiveram 2 mortos e 6 feridos (relatório apreendido na Op Nada Consta).




Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CART 2339 (1968/69) > Reconstrução de moranças, presumivelmente em Candamã, depois do ataque de 30/7/1969. Fotogramas de "slides", do Henrique Cardoso, retiradas, com a devida cortesia,  do seu vídeo, disponível aqui, no You Tube / Henrique Cardoso.

Fotos: © Henrique Cardoso (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
_______________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


6 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10124: Vídeos da guerra (9): Vida e obra dos Viriatos - CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69) (Parte I) (Henrique Cardoso)

(**) Vd. poste de  24 de fevereiro de  2018 > Guiné 61/74 - P18351: Ser solidário (210): A ONGD Resgatar Sorrisos apresenta-se à Tabanca Grande e agradece desde já quaisquer apoios para poder construir a escola de Candamã (, no antigo subsetor de Masambo) (Luís Granquinho Crespo)

(***) Vd.  poste de  22 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13431: Memória dos lugares (271): Candamã, 19-9-69... Subsetor de Mansambo, setor L1 (Bambadinca): por lá passaram a CART 2339, a CCAÇ 2404, a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, etc.

(****) Último poste da série > 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18248: Efemérides (268): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte II

(*****) Vd. poste de 4 de setembro de 2016 >  Guiné 63/74 - P16444: Manuscrito(s) (Luís Graça) (95): Por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível

(...) Saberei apenas,
muito anos depois,
que, julgado e condenado em Conacri,
fuzilaram o Mamadu Indjai,
no Boé,
que diziam ser região libertada da Guiné…

O mesmo Mamadu Indjai,
acrescente-se,
fero e bravo comandante,
que ferimos gravemente
no decurso da operação Nada Consta,
o mesmo Mamadu Indjai,
que, três anos e meio depois,
chefe das "secretas",
será o Judas de Amílcar Cabral. (...)


Vd. também poste de 7 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6686: A minha CCAÇ 12 (5): Baptismo de fogo em farda nº 3, em Madina Xaquili, e os primeiros feridos graves: Sori Jau, Braima Bá, Uri Baldé... (Julho de 1969) (Luís Graça)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17055: Notas de leitura (930): “O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (1959-1974)”, por José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2015:

Queridos amigos,
O mestre José Augusto Pereira legou-nos uma investigação que deve ser tida em conta, a todos recomendo a sua leitura. Se em determinadas matérias mostrou aplicação e tratou com rigor uma boa parte da bibliografia, compulsou nos arquivos da PIDE aqueles relatórios onde se registavam dissensões, quebras de confiança na política seguida pelo secretário-geral, e até a tentativa de criação de partidos em que não houvesse misturas entre guineenses e cabo-verdianos. Recorde-se que quando Amílcar Cabral chegou à região em 1960 foi logo confrontado pela contestação dos guineenses se juntarem a cabo-verdianos na luta e num qualquer ideal federativo. Os melhores investigadores de Cabral alegam que a ideia de unidade era muito corrente nessa época, o que é inteiramente verdade, mas Cabral ao longo dos anos foi assistindo ao desmantelamento dessas uniões, do Egito ao Mali. E ele não podia ignorar a questão estrutural de que os cabo-verdianos não eram bem-amados na Guiné, eram encarados como o braço longo do colonialismo. É assim que se percebe que ainda há muita investigação a fazer e muitos mitos a desmontar.

Um abraço do
Mário


O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (3)

Beja Santos

“O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (1959-1974)”, por José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015, é seguramente uma investigação rigorosa, com aturada consulta da bibliografia mais pertinente, não hesito em considerar esta investigação como apropriada para o conhecimento de uma realidade tantas vezes omitida – o PAIGC da luta da Guiné e o PAIGC clandestino e impaciente por passar à subversão, o que jamais sucedeu.

Acompanhou-se o desenrolar do trabalho de José Augusto Pereira: o confronto entre duas realidades socioeconómicas e culturais diferenciadas e com pontos de aproximação; a história do PAIGC na luta armada guineense e as sucessivas hesitações entre agitação política e a promessa de desembarque em Cabo Verde. É esta faceta da crise que é sucessivamente silenciada, acrescendo que muitos cabo-verdianos de modo algum se identificavam com o lema “unidade e luta”.

A impaciência dos militantes cabo-verdianos está bem documentada. Jorge Querido, o responsável máximo pela atividade do PAIGC em Cabo Verde escreve para Conacri pedindo orientações e armamento, a resposta demorava. Os clandestinos em Lisboa também vociferavam, Amílcar Cabral procurava apaziguar. Osvaldo Lopes da Silva que, entre 1970 e 1972, recebera formação em marinha de guerra no Mar Negro, URSS, quando chegou a Conacri pediu a Cabral a perspetiva da luta do povo cabo-verdiano para a independência, os cabo-verdianos queriam ser tratados como uma entidade, e não como um apêndice da luta da Guiné. Esta reivindicação não era original, Abílio Duarte em Abril de 1970, defendeu que o problema de Cabo Verde devia ser tratado por toda a direção do partido, Amílcar Cabral opôs-se, recusou atitudes chauvinistas, era inaceitável só pensar em Cabo Verde. Morto Cabral, no decurso do II Congresso do PAIGC, foi criada a Comissão Nacional de Cabo Verde, presidida por Pedro Pires. Doravante, este organismo procurará assegurar a condução dos contactos com os militantes clandestinos em Cabo Verde, a organização de militantes em Portugal e cativar os emigrantes cabo-verdianos residentes na Europa e nos Estados Unidos da América.

Além de impacientes com o impasse cabo-verdiano, estes militantes sentiram que havia sintomas de crise na Guiné, grassava o cansaço e a desmotivação, os próprios relatórios da PIDE/DGS referem atos de indisciplina entre combatentes da etnia Balanta na zona do Boé, em finais de 1967 e dificuldades em recrutar combatentes na zona Norte. Esses mesmos relatórios da PIDE referem críticas de guineenses acerca do alegado tratamento privilegiado que Amílcar Cabral dispensava aos cabo-verdianos, distribuindo-lhes cargos de direção. Refere o autor que o arquivo da PIDE é fundamental para estas informações que dão conta das variadas tensões entre dois povos. José Augusto Pereira considera, no entanto, que esta leitura se revela desajustada quando sinaliza o percurso dos fundadores e dirigentes do topo do partido, a partir de 1973 passam a predominar quadros oriundos da Guiné que ficarão em maioria e os militantes cabo-verdianos em minoria. Mas até ao assassinato de Cabral o topo da linha dirigente era constituído exclusivamente por cabo-verdianos. Os órgãos dirigentes reuniram pouco e mal nos anos de 1971 e 1972, Cabral ausentava-se imensas vezes, daí não ter acompanhado de perto da degradação da situação interna do PAIGC. Esta questão é profundamente incómoda, mas investigadores como Peter Karibe Mendy não iludiram o ressentimento prevalecente na sociedade guineense e que tinha como alvo os funcionários oriundos das ilhas, rotula-os como “instrumentos da brutal dominação portuguesa”.

A grande ironia desta contestação do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde não invalidou que os quadros cabo-verdianos tivessem um papel determinante na condução da luta, mas a desconfiança foi sempre recíproca, houve dissensões no PAIGC manifestamente a partir de 1967. Recorde-se que Honório Sanches Vaz tentou criar o Partido Democrático Orgânico da Guiné, Cabral determinou a sua execução e a dos seus seguidores. José Augusto Pereira repertoria outras tentativas de dissidência, são constantes nos relatórios da PIDE. Por exemplo, Mamadu Injai, que ao tempo do assassinato de Cabral era o responsável pela segurança do secretário-geral, tinha estado ligado à Junta Militar dos Patriotas da Guiné-Bissau, foi destituído e Cabral procurou recuperá-lo. Trata-se de um capítulo importantíssimo desta obra que justifica uma leitura muito cuidadosa para acabar com a mitologia de que alguns rancorosos encabeçaram a conjura que liquidou Cabral. Em testemunhos subsequentes à rutura de 1980, quadros com grandes responsabilidades como Osvaldo Lopes da Silva, Herculano Vieira, Corsino Tolentino e Silvino da Luz referiram a difícil convivência entre militantes guineenses e cabo-verdianos.

Nas conclusões da obra, o autor volta a chamar à atenção para o significado das contradições da divisa “unidade e luta”, um programa da ação política com que guineenses e cabo-verdianos se conformaram durante a fase da luta, mas mantendo prudentes distâncias. Mas igualmente os militantes cabo-verdianos em Cabo Verde manifestavam o seu descontentamento perante as formas de condução da luta e registaram os atos de contestação dos guineenses e como eles igualmente hostilizavam os cabo-verdianos. Aristides Pereira, eleito secretário-geral em 1973, toma medidas cautelosas, atrai para a direção do partido Nino Vieira e Chico Té ou Francisco Mendes, isto a par da criação da Comissão Nacional de Cabo Verde.

Muita água correu debaixo das pontes entre 1974 e 1980, é a fórmula de revisão constitucional que constitui a última gota que apressará a desunião. Uma desunião que encerrava em si própria contradições e paradoxos já que os governos de Luís Cabral eram compostos essencialmente por guineenses que não contestavam a sua condução dos negócios políticos, Luís Cabral tornar-se-á no bode expiatório de todos os desmandos praticados nesse período em que tentou o planeamento económico e a criação de empresas que cedo caminharam para o desastre.

Quando terminamos a leitura deste livro tão interessante, confirmamos que esse lema da “unidade e luta” é uma das razões do grande sucesso da luta do PAIGC e o fator essencial para uma dissidência dos dois povos, não se prevendo no horizonte uma quebra de desconfiança a dois.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17046: Notas de leitura (929): “O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (1959-1974)”, por José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16662: (De)Caras (51): Domingos Ramos, desertor do exército português e herói nacional da Guiné-Bissau: entre o mito e a realidade: as últimas palavras que ele nunca poderia ter dito, nem muito menos escrito, antes de morrer, em 10/11/1966, no ataque a Madina do Boé (Jorge Araújo)





Guiné > PAIGC > Manual escolar, O Nosso Livro - 2ª Classe, editado em 1970 (Upsala, Suécia). Lição nº 23, pp. 74/75: Um grande patriota...  b

Exemplar cedido pelo Paulo Santiago, Águeda (ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72).

Fotos: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados.~




Guiné > Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894 (Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68) – imagem do aquartelamento 

[foto do nosso camarada Manuel Coelho, ex-fur mil trms, da CART 1589, P8548, com a devida vénia].




Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes),
Portimão, Grupo Lusófona.




GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE A MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ - A VERDADE DOS FACTOS: ENTRE O REAL E A FICÇÃO -



1. – INTRODUÇÃO

Creio não estar muito longe da verdade se afirmar que a maioria dos camaradas, ex-combatentes, independentemente da época em que isso aconteceu, está a acompanhar com atenção e interesse a divulgação de algumas das principais experiências vividas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, cujas missões aconteceram nos anos de 1966 a 1969. (*)

Trata-se, com efeito, de um importante contributo histórico (digo eu!), cujo valor que eventualmente possamos atribuir à informação transmitida em cada questão, mesmo que seja relativo, permitir-nos-á reflectir sobre o “outro lado do combate”, para melhor compreendermos cada uma das nossas diferentes missões.

Na operacionalização desta possibilidade, abrem-se novos caminhos de análise individual e colectiva que, quando cruzadas com outros saberes e experiências pessoais adquiridas em cada contexto, ajudar-nos-ão a estar mais próximo da “verdade dos factos”, ainda que se aceite que “entre o real e a ficção” se tenha de superar uma “pista de obstáculos”, com várias “paliçadas” sempre em crescendo, passe a imagem de âmbito militar.

Os principais temas em destaque têm sido as dificuldades em sobreviver naquele tempo e naquele ambiente de guerra-de-guerrilha, aonde o conceito de improviso sobrepunha-se ao de logística, pois esta não existia, fazendo das pernas o principal meio de “transporte”, com caminhadas longas e diárias, onde o consumo de arroz (hidratos de carbono), a caça e a pesca (proteínas magras), garantiam a subsistência possível à maioria de cada uma das comunidades, e que serviam para suavizar a fome.


Tabanca do Xime . Foto de Jorge Araújo (1972)


No contexto estritamente militar, os diferentes relatos confirmaram que a maioria dos feridos em combate (algumas centenas, se somarmos os números indicados pelos três médicos) eram tratados em enfermarias de campanha construídas de colmo, algumas da sua iniciativa e responsabilidade, aonde se realizavam grande parte das cirurgias e amputações, quase sempre durante a noite, seguindo para Boké, o hospital de rectaguarda do PAIGC situado a cerca de trinta quilómetros da fronteira Leste com a Guiné-Bissau, as situações mais problemáticos, de que um exemplo concreto, já aqui dissecado, foi o caso do cmdt Mamadu Indjai em agosto de 1969 [P16506 + P16562].

Devido ao muito trabalho a que estavam sujeitos, às enormes dificuldades logísticas e ao número de ocorrências contabilizadas no contexto das suas missões, e das tensões a elas associadas, os médicos consideraram, como uma forte probabilidade, não ser possível dai saírem sãos e salvos, ainda que sentissem grande apoio, respeito e solidariedade.

Para além do acima exposto, eram também operacionais [armados] da guerrilha, integrados maioritariamente em bigrupos, sendo informados dos dias dos ataques onde estavam os portugueses (aquartelamentos, destacamentos, colunas de abastecimento, tabancas, …) quase sempre com armas pesadas.

Ficavam geralmente na rectaguarda a um quilómetro de distância, aonde montavam o posto sanitário com o equipamento de primeiros-socorros, para ser usado em caso de necessidade de prestação de cuidados de saúde, contando em situações pontuais com apoio de uma unidade de enfermagem.

Partindo da crença de que este assunto, tal como muitos outros, mereceria o seu aprofundamento por via dos muitos comentários recebidos, que agrademos, reforçada pela sugestão avançada pelo camarada Luís Graça ao referenciar novos elementos documentais relacionados com a figura de Domingos Ramos e a sua morte, eis mais um pequeno contributo de reforço ao referido no meu poste anterior [P16613] (**).



2. – A MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ

Neste ponto, para enquadrarmos o tema da morte do cmdt da Frente Leste Domingos Ramos, ocorrida a 10 de novembro de 1966, em Madina do Boé, iremos recuperar algumas das passagens já abordadas anteriormente pelo dr. Virgílio Camacho Duverger, com destaque para a questão 11 (“Participou em acções de guerra?”), mesclando-as com outros elementos históricos, uns mais fiáveis que outros, mas todos eles a merecerem a nossa reflexão.

Como foi referido anteriormente, o dr. Virgílio Camacho Duverger chega a Conacri em junho de 1966, integrado num contingente de cerca de três dezenas de elementos, entre os quais oito médicos, em que um deles é o nosso conhecido dr. Domingo Diaz Delgado.

É colocado no Hospital de Boké, aonde permaneceu dois meses, sendo depois transferido para a Frente Leste [agosto de 1966] para uma base existente no interior da República da Guiné, na região do Boé, com o objectivo de construir uma enfermaria de campanha que pudesse servir de apoio aos combatentes aí colocados sob a direcção do Cmdt Domingos Ramos, cuja principal missão militar era atacar o quartel de Madina do Boé [até à exaustão, visando a expulsão das NT, o que veio a acontecer dois anos e meio depois, em fevereiro de 1969].

Neste aquartelamento, naquele tempo, estava instalada a CCAÇ 1416 comandada pelo Cap Mil Jorge Monteiro, aí permanecendo entre maio de 1966 e abril de 1967, sendo nesta última data rendida pela CCAÇ 1790, comandada pelo Cap Inf José Aparício. [Vd. foto acima]

 Ao terceiro mês de estar naquela região [novembro], é-lhe pedido que realize um reconhecimento ao referido quartel, considerada por si como a missão mais importante em que participou, tendo por companhia o dr. Milton Echevarria, médico do seu grupo na Frente, e o apoio de guias/guerrilheiros destacados para aquela acção, caminhada que, disse, demorou perto de cinco horas, uma vez que a base estava a cerca de três quilómetros dali.

Em 10 de novembro de 1966, uma quarta-feira, a operação concretizava-se. Antes do ataque, na companhia de um enfermeiro cubano anestesista que havia chegado para reforçar o grupo de saúde, criou um posto sanitário avançado em território da Guiné-Bissau, perto da zona do combate, de modo a facilitar a assistência médica e a prestar os primeiros socorros aos combatentes que ficassem feridos, pois não era fácil chegar ao hospital de Boké.

Conta que a primeira morteirada lançada pelos portugueses [da CCAÇ 1416] cai, por casualidade, no local aonde estava o posto de observação no qual se encontrava o comandante da Frente, o guineense Domingos Ramos. Os estilhaços da granada atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta que não deu tempo para o levar até ao hospital para o poder operar. Durante a evacuação, a caminho do hospital [não indica qual: se a enfermaria que ajudou a criar em território da Guiné-Conacri, se o hospital de Boké], Domingos Ramos faleceu.

Este episódio é descrito pelo assessor militar cubano Ulises Estrada [1934-2014], pois encontrava-se a seu lado, nos seguintes termos:

(...) "Eu encontrava-me ao lado de Domingos [Ramos], em que metade do seu corpo cobria o meu para proteger-me, coisa que não pude evitar, e abrimos fogo com um canhão B-10 colocado numa pequena elevação situada a cerca de seiscentos metros do quartel. Os portugueses [CCAÇ 1416] tinham montado postos de vigia na zona e responderam com disparos certeiros de morteiro, embora nós continuássemos a disparar com o canhão sem recuo, metralhadoras e espingardas.

"Pouco tempo depois de iniciado o combate, senti que corria pelo lado direito das minhas costas um líquido quente e pensei que estava ferido por uma das morteiradas que caíam ao nosso redor. Era Domingos [Ramos], sangrava abundantemente. Peguei no seu corpo com a ajuda de outro companheiro e o conduzimos ao posto médico, situado a cem metros da zona do combate. O médico cubano [Virgílio Duverger] informou-me que havia falecido.

"Não podíamos deixar o cadáver do dirigente guineense nas mãos dos portugueses. Pegámos no seu corpo e num camião nos deslocámos pelos campos de arroz até à fronteira com Conacri. Chegámos a Boké, aonde se encontrava o posto de comando fronteiriço, e entregámos o seu cadáver ao companheiro Aristides Pereira [1923-2011], para que pudesse fazer o funeral e render-lhe as honras que merecia este combatente, que foi um dos primeiros grandes chefes do PAIGC a morrer em combate”. (...)


[Excerto traduzido por JA, do castelhano: «Recordando Amílcar Cabral, líder anticolonialista da Guiné-Bissau», em: http;//45-rpm.net/sitio-antiguo/palante/cabral.htm].



Canhão s/ r 82 mm e alma lisa,, B-10, de origem soviética...  Uma arma versátil e temível...  Sess
ao de terino possivemente na base de Boké.

Fotograma do filme "Madina Boe" (Cuba, 1968, 38'), do realizador José Massip (1926-2014), obtidas a partir da função "print screening" do teclado do PC e da visualização de um resumo, em vídeo (28' 22'') , disponibilizado no You Tube, na conta "José Massip Isalgué". O documentário foi carregado no You Tube no dia da morte do cineasta (ocorrida em Havana, em 9/2/2014). O documentário chama-se "Amílcar Cabral" (e pode ser aqui visualizado)



De notar que Domingos Ramos viria a morrer dois anos depois da cerimónia de juramento de fidelidade dos guerrilheiros do PAIGC, ocorrida em 16 de novembro de 1964, nos arredores do Gabu, com a presença de Amílcar Cabral. Este acto de juramento de fidelidade, com que encerrou os trabalhos da constituição das primeiras unidades do Exército Popular, e da qual fez parte, tinha como lema “força, luz e guia do nosso povo, na Guiné e em Cabo Verde”.

À frente das FARP estavam importantes dirigentes do partido, tais como Domingos Ramos, Chico Mendes, Luís Correia, Lúcio Lopes e Honório Fonseca. Foram criadas novas frentes de batalha: no Gabu (local do juramento); no Boé (Madina, Beli, Cheche); a Leste, e em São Domingos (no Norte). [in: Luís Cabral, «Crónica da Libertação», 1.ª edição, Julho de 1984, edições «O Jornal», Publicações Projornal, Lda, Lisboa, p 230].



Mapa da região do Boé, com a localização do quartel de Madina, assinalando-se a direcção do hospital de Boké.

3. – AMÍLCAR CABRAL E A MORTE DE DOMINGOS RAMOS:

- DO REAL À FICÇÃO

Poucos dias após a morte de Domingos Ramos, Amílcar Cabral [1924-1973], na qualidade de secretário-geral do PAIGC elabora um documento de cinco páginas A4, dactilografado, a que chamou de «MENSAGEM» dirigida a «Todos os responsáveis e militantes do nosso Partido» e a “Todos os combatentes das nossas Forças Armadas”, de que se reproduz o título:




Trata-se de um documento político e ideológico fazendo apelo, no essencial, ao reforço da luta armada em todas as frentes, utilizando a figura de Domingos Ramos como meio de acção psicológica tendente à prossecução da libertação nacional.

Eis as duas primeiras páginas  [, de cinco]:






Quanto ao sucedido, lamenta [naturalmente] mais uma perda na luta armada de libertação nacional, referindo-se  “à morte do nosso grande camarada Domingos Ramos (João Cá), membro do Bureau Político do nosso Partido, companheiro exemplar e querido de todos os camaradas, militantes de vanguarda da nossa luta de libertação” (p3).

Acrescenta que “o camarada Domingos Ramos tombou no seu posto heroicamente, durante um ataque feito a uma caserna inimiga em 10 de novembro [1966], no qual causámos mais de trinta mortos e várias dezenas de feridos às tropas colonialistas” (p3).

A propósito desta afirmação, que é ficção, eis, no quadro abaixo, o número de baixas das NT verificado no período entre 1 de setembro e 8 de novembro de 1966 em todo o território do CTIG, não constando nos registos consultados qualquer morto ou ferido durante o ataque supra.




De notar, ainda, que até à data deste ataque, que não teve consequências, a CCAÇ 1416/BCAÇ 1856 registava quatro baixas, a 1.ª, em 22 de novembro de 1965, do Alf Mil Adelino da Costa Duarte, do 3.º Gr Comb [P12320 – homenagem de Manuel Luís Lomba], e as restantes, curiosamente oito meses despois, em 22 de junho de 1966, a saber: o Sold. Augusto Reis Ferreira, de Montargil (Ponte de Sôr); o Sold. Carlos Manuel Santos Martins, da Cova da Piedade (Almada) e o 1.º Cabo Rogério Lopes, de Chão de Couce (Ansião).

A referência a estas três baixas tinha já sido lembrada por José Mota Tavares, ex-Alf Mil Capelão da CCS/BCAÇ 1856 [P16049] no qual acrescenta “tenho imensas histórias de (…) Madina do Boé (8 ou 10 vezes debaixo de fogo, três mortos, duas fugas durante a missa para o abrigo…)”].

Sobre o martírio de Madina do Boé, pode-se ver um pouco da história da CCAÇ 1790 em:

https://www.youtube.com/watch?v=7vKuLzJVgU0 (1.ª parte)

https://www.youtube.com/watch?v=wn7Oeba1b_g (2.ª parte)


Recuperando a mensagem de Amílcar Cabral, este refere que, quanto à situação de Domingos Ramos, ela era muito grave e que já não teria salvação. Daí “o camarada Domingos Ramos dirigiu palavras de encorajamento aos seus companheiros de direcção do Partido, a todos os combatentes da nossa luta, dando assim mais uma grande prova de amor ao nosso povo, de dedicação sem limites ao nosso grande Partido e de certeza da vitória final da nossa luta” (p3).

Eis as duas páginas seguintes do documento atrás citado (3 e 4):






Prossegue com uma deliberação:

“tendo em conta os grandes serviços que o camarada Domingos Ramos prestou ao seu povo, à construção da nossa Pátria e ao desenvolvimento da nossa luta como militante e dirigente do nosso Partido, guardamos eternamente a memória do nosso camarada Domingos Ramos como a de um Herói Nacional. Por isso, a data de nascimento do nosso camarada Domingos Ramos será considerada uma data nacional, a sua fotografia será afixada em todos os lugares de trabalho do nosso Partido e construiremos um monumento à memória do camarada Domingos Ramos logo que a nossa terra seja independente” (p4).

Termina dizendo: “penso que as melhores palavras com que devo acabar esta mensagem são as que o camarada Domingos Ramos escreveu para mim, nos últimos momentos da sua vida (p. 5):


Fonte: Fundação Amílcar Cabral > Casa Comum > Arquivo Amílçcar Cabral (Com a devida vénia...)


Citação:
(1966), "Mensagem aos responsáveis e militantes do PAIGC e aos combatentes das Forças Armadas por ocasião da morte de Domingos Ramos", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_42298 (2016-10-31)

Pasta: 04602.044
Título: Mensagem aos responsáveis e militantes do PAIGC e aos combatentes das Forças Armadas por ocasião da morte de Domingos Ramos
Assunto: Mensagem dirigida aos responsáveis e militantes do PAIGC e aos combatentes das Forças Armadas, assinada por Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, por ocasião da morte do dirigente Domingos Ramos.
Data: Fevereiro de 1966 [Novembro de 1966]
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral - Iva Cabral



Estas palavas escritas, supostamente por Domingos Ramos, são mais uma ficção só possível no contexto da guerra. De facto, todos os testemunhos dos que dele estiveram mais próximo e o socorreram, caso do Ulises Estrada e do médico Virgílio Duverger, nada referem.

Qualquer um de nós que viveu um cenário semelhante [e eu sou um deles, mais do que uma vez] não aceita, como verdade, o que acima é descrito, por muitas e diferentes razões. Desde logo, do ponto de vista cognitivo, o ferido com a gravidade referenciada cai redondo no chão e a consciência vai-se [foi-se]. Mas, esquecendo este pormenor muito importante, vamos a questões práticas.

Aonde estava, e de quem eram: o bloco de notas e a esferográfica? Com tanto sangue, a existir papel, este estava limpinho com as mãos ensanguentadas? E a esferográfica escrevia no papel molhado? E quem guardou o papel escrito? Se o Ulises Estrada foi o primeiro a dar-lhe apoio, recorrendo a outro guerrilheiro para o transportar até junto do médico, aonde chegou já morto, como era possível escrever uma mensagem tão estruturada e sem gaffes de memória ou funcionais. Como a terá escrito: de pé, sentado ou deitado? E onde a escreveu: nos joelhos, no chão ou nas costas de alguém? A caligrafia utilizada: foi em minúsculas ou em maiúsculas? …

Eis algumas razões que me levam a concluir estarmos perante uma ficção que passou, durante muitos anos, por verdade… (***)

Obrigado pela atenção.

Um forte abraço de amizade com votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

24OUT2016.
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Notas do editor:


(*) Vd,. postes de:

12 de outubro de  2016 >  Guiné 63/74 - P16592: Notas de leitura (889): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte X: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger´[I]: viajando até Conacri com nomes falsos... (Jorge Araújo)


18 de outubro de  2016 > Guiné 63/74 - P16613: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XI: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [II]: Estava a 3 km de Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966, quando o cmdt Domingos Ramos foi morto por um estilhaço de morteiro da CCAÇ 1416 (Jorge Araújo)


20 de setembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16506: (De)Caras (45): Médicos cubanos 'versus' comandante Mamadu Indjai (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/74)



(***) Último poste da série > 24 de outubor de 2016 > Guiné 63/74 - P16633: (De)caras (49). O 'embarazo' das esposas... O campeão de luta fula, Arfan Jau, do 4º pelotão, respondendo à moda do Porto à senhora do capitão, intrigada com a carecada que ele havia apanhado: 'Senhora, Arfan Jau cá tem cabelo, manga de fodido'... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16621: A construção de Mansambo, em imagens (Carlos Marques dos Santos, ex-fur mil at art, CART 2339, 1968/69) - Parte II: Fórmula para construir um aquartelamento de raiz, no mato: primeiro é preciso braços, cabeças, pernas, G3, pás, picaretas, enxadas, GMC do tempo da guerra da Coreia, etc.; depois cibes, areia ou pó de picada, terra, cimento, chapas, bidões, e muitos outros materiais; a seguir, construir paredes, tetos, telhados, abrigos, latrinas, manjedouras e outras amenidades hoteleiras; por fim, misturar tudo com... sangue, suor e lágrimas !




O  "campo fortificado" de Mansambo. Vista aérea (c. finais de 1969, princípios de 1970 ?). Foto do fur mil op esp, Humberto Reis (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). 




O  "campo fortificado" de Mansambo. Vista aérea (c. finais de 1969, princípios de 1970 ?). Foto (ampliada)  do Humberto Reis.

Sobre esta foto, escreveu o Carlos Marques dos Santos [e fica em aberto a questão da data: se a foto foi tirada, de heli ou de DO,  só pode ser de 1969 (2º semestre), 1970 ou 1971 (janeiro/fevereiro), já que o Humberto Reis, tal como os restantes camaradas da CCAÇ 12, chegou ao setor L1 (Bambadinca) na 3ª semana de julho de 1969 e terminou a sua comissâo em março de 1971; mas esta vista aérea também pode ser de 1968, tirada por algum amigo do Humberto, da Força Aérea: nesse caso, seria de Mansambo ainda construção; na realidade, parece faltar ainda o arame farpado, os 2 espaldões do obus 10,5 que só vieram em janeiro de 1969; vamos tentar esclarecer o "mistério" com o Humberto]: 

"Quanto à foto de Mansambo, a vista aérea – que é espectacular e que pessoalmente agradeço - gostava de saber de que ano é, se o Humberto tiver esses dados. A zona está totalmente nua, só com uma grande árvore ao fundo que se encontra à entrada do aquartelamento, pois vê-se a bifurcação para a estrada Bambadinca-Xitole (esquerda-direita). Falta ali uma árvore, a tal de referência para o IN, e que os nossos soldados chamavam a árvore dos 17 passarinhos, tal era a quantidade deles, que se situava na parte mais afastada da entrada. A mancha branca de maior dimensão seria o heliporto. Faltam os obuses, um de cada lado à esquerda e à direita. Ao lado dessa árvore ficava o depósito, que era uma palhota, de géneros e munições, que ardeu a 20 de Janeiro de 1969 (nesse dia chegaram os 2 Obuses 105 mm). Era véspera do aniversário da CART 2339. Ao fundo vê-se uma mancha à esquerda do trilho de entrada que era a tabanca dos picadores. À direita no triângulo de trilhos, ficava a nossa horta. A fonte ficava à direita da foto onde se vêem 3 trilhos, na mancha mais negra em baixo. Se confrontares com um mapa da zona vê-se aí uma linha de água."  



O Carlos Marques dos Santos, ex-fur mil, CART 2339 
(Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69)


CART 2339, Viriatos... leais e nobres
























Fotos (e legendas): © Carlos Marques dos Santos (2026). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segunda parte do trabalho sobre a "construção de Mansambo em imagens", realizado pelo Carlos Marques dos Santos, nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), subunidade adida ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70).

Depois de pronto, ao fim de largos meses, a "Maria Turra" chamava-lhe o "campo fortificado de Mansambo". O Mamadu Indjai não deu descanso à rapaziada da CART 2339, os famosos "Viriatos",,, Não houve tempo para tirar férias, gozar a piscina do "resort", curtir os fins de tarde românticos ou ir fazer uns piqueniques nos rápidos do Rio Corubal, era um Saltinho... 

O Mamadu tanto lhes f... o juízo  que eles um dia pregaram-lhe uma partida, fizeram-lhe uma espera, a ele e ao seu bigrupo quando atravessavam a estrada a caminho de casa...  e o Mamadu, o terrível,   teve que ir de padiola para o hospital de Boké. Desta vez, mesmo gravemente ferido,  safou-se. 

Conta a lenda  que seria mais tarde...  fuzilado pelos seus próprios camaradas de armas, na região do Boé, por estar envolvido, em Conacri,  na conspiração que levou ao assassinato de Amílcar Cabral... Amor com amor se paga...  Enfim, fica para a história como vilão e traidor. Se tivesse morrido às mãos do 3º Gr Comb, da CART 2339, a que pertencia o nosso Carlos Marques Santos, hoje seria um herói nacional, como o Domingos Ramos ou a Titina Silá, com direito a mausoléu na Amura (, o panteão nacional).  A história tem destas partidas... (LG)

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Nota do editor:

15 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16603: A construção de Mansambo, em imagens (Carlos Marques dos Santos, ex-fur mil at art, CART 2339, 1968/69) - Parte I: era uma vez uma obscura tabanca do regulado do Corubal que mal se via no mapa...