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domingo, 19 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24154: Os nossos seres, saberes e lazeres (562): Os meus livros. Ao todo, quinze (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico)

1. Em mensagem do dia 17 de Março de 2023, o nosso camarada Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68), enviou-nos uma listagem dos seus livros publicados, cujos temas vão desde a Medicina à poesia, passando pelo Conto e pela pintura.
Felizmente o nosso blogue tem já muitas publicações dos seus trabalhos de pintura, normalmente ilustrando os seus apreciados poemas. Alguns dos livros mais antigos estão há muito esgotados.


Os meus livros.
Ao todo, quinze. Falta o primeiro, escrito há largos anos, do qual tenho um exemplar, mas não sei onde pára. Era um livro de cardiologia, com o título "Cirurgia geral no doente cardíaco".

Por ordem cronológica:


1 - Cirurgia geral no doente cardíaco.
2 - ESTA ÁGUA QUE AQUI VEM DAR (Poemas e pintura)
3 - VEM COMIGO COMER AMENDOIM (Contos e poemas)
4 - PALAVRAS E CORES (pintura e poemas)
5 - ADÃO CRUZ - Tempo, Sonho e Razão (Pintura e texto).
6 - ADÃO CRUZ - Hora a hora rente ao tempo (Pintura e texto).
7 - ADÃO CRUZ - Um gesto de silêncio (Pintura e poemas).
8 - Poemas do lusco-fusco (Poemas).
9 - Poemas do ser e não ser (poemas).
10 - Poemas estoricônticos (Poemas).
11 - VAI O RIO NO ESTUÁRIO - Poemas de braços abertos (Poemas).
12 - VAI O RIO NO ESTUÀRIO - Cores de braços abertos (Pintura e texto).
13 - CENAS DO PARAÍSO (Contos).
14 - CONTOS DO SER E NÃO SER (Contos).
15 - Entre as mãos e o sonho (Poemas).
Adão Cruz
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24152: Os nossos seres, saberes e lazeres (561): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (94): Da bela Tavira a uma exposição sobre a Ordem de Cristo em Castro Marim, com José Cutileiro em pano de fundo (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20468: Notas de leitura (1247): "A Medicina na Voz do Povo", 3ª edição, de Carlos Barreira da Costa, médico otorrino, do Porto

1. O nosso editor jubilado, Virgínio Briote, mandou-nos  esta "nota de leitura", de um livro,"A Medicina na Voz do Povo", e que vai já na 3ª edição,  podendo ser comprada "on line" no Sítio do Livro: o preço de capa é 22,00 €. (Na FNAC parece estar esgotado.)

O autor, Carlos Barreira da Costa, é médico otorrinolaringologista, vive e trabalha na cidade do Porto.
Neste livro,  "sugestivamente ilustrado" (por Fernando Vilhena de Mendonça), ele decidiu  compilar, "com o contributo de muitos colegas de profissão" (...) "trinta anos de histórias, crenças e dizeres ouvidos durante o exercício da sua prática da medicina".


A medicina na voz do povo : 30 anos a ouvir : histórias, crenças e dizeres contadas a um otorrino / Carlos Barreira da Costa ; il. Circulo Médico, Fernando Vilhena de Mendonça ; pref. Júlio Machado Vaz. - 1ª ed. - Queluz : Círculo Médico, 2007. - 142 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-95314-1-3

Mais sobre o autor, Carlos Barreira da Vosta: fez o curso de medicina em 1970; tirou a especialidade de otorrinolaringologia, em 1976, no Hospital de São João. Desde 1983,foi especialista do serviço de ORL do Instituto de Oncologia do Porto (IPOP), e diretor do respetivo serviço de 2003 a 2007. Já está reformado do SNS. Faz clínica privada.

"Resultado dos seus muitos anos já dedicados à medicina, o otorrinolaringologista  português Carlos Barreira da Costa reuniu neste livro as frases e comentários mais bizarros – desconcertantes, mesmo, em muitos casos – usadas pelos seus pacientes e pelos pacientes de outros colegas de profissão. Com esta recolha, ilustra-se o recurso a crenças, expressões e palavras da fala popular por quem, não dominando minimamente a terminologia técnica mais adequada, consegue assim dar conta das suas queixas e padecimentos." 

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/atualidades/montra/livros/a-medicina-na-voz-do-povo/144 [consultado em 18-12-2019]

2. Com a ajuda de várias páginas  da Net e nas redes sociais, compilámos, com a devida vénia, uma amostra destas expressões, ordenando-as apenas por ordem alfabética, e reformulando alguns dos títulos das categorias temáticas. 

Para quem está interessado em aprofundar este tema das representações leigas do corpo, da doença, da medicina e das práticas médicas, recomendo a leitura de um conjunto de artigos meus, datados de 2000, e alojados na minha pessoal na Net, "Luís  Graça: Saúde e Trabalho".

Contra um visão iatrocêntrica  e etnocêntrica, os sociólogos, antropólogos e historiadores da saúde gostam de lembrar que não há só uma "medicina" (, muito menos a "ocidental") nem só um "modelo explicativo" de saúde/doença... No fundo, aquilo que designamos por "acto médico", desde a Grécia Antiga até aos nossos dias, não é mais do que a situação em que um indivíduo, que se considera doente, procura ajuda, colocando-se na presença de outro a quem atribui poder(es) para curar: pode ser o médico de bata branca, pode ser o curandeiro da aldeia. O que importa é a "relação terapêutica", a interação entre ambos, a necessidade e a expetativa de quem se sente doente (, por ter ou sentir uma dor ou uma anomalia na aparência ou no funcionamento do corpo), de ser tratado... Diagnóstico, decisão terapêutica e tratamento, ou seja, o conjunto do ato médico, variam conforme o tempo e o espaço, a sociedade, a cultura, a própria religião, e, claro, a ciência e as técnicas e as práticas médicas...

É uma boa sugestão de leitura, para o Natal, sobretudo, para gente como nós, que tem não só  a língua "cheia de Áfricas", mas o corpo todo, dos pés à cabeça... LG


I. As perturbações da fala que impacientam o doente:

"Não tenho dores, a voz é que está muito fosforenta".
"Na voz sinto aquilo tudo embuzinado".
"O meu pai morreu de tísica na laringe".
"Tenho humidade gordurosa nas cordas vocais".


II. As dores da coluna e do aparelho mísculo-esquelético, 
que são difíceis de suportar:


"Além das itroses tenho classificação ossal".
"É uma dor insepulcrável".
"Estou desconfiado que tenho uma hérnia de escala".
"Já tenho os ossos desclassificados".
"Metade das minhas doenças é desfalsificação dos ossos e intendência para a tensão alta".
"O meu reumatismo é climático".
"O pouco cálcio que tenho acumula-se na fractura".

"Tenho artroses remodeladas e de densidade forte".


III. O aparelho digestivo, que  origina sempre muitas queixas:

"Ando com o fígado elevado. Já o tive a 40, mas agora está mais baixo".
"Eu era muito encharcado a essa coisa da azia".
"Fiz uma mamografia ao intestino".
"Fizeram-me um exame que era uma televisão a trabalhar 
e eu a comer papa".
"Fui operado ao panquecas".
"O meu filho foi operado ao pence (apêndice) mas não lhe puseram os trenos (drenos), 
encheu o pipo e teve que pôr o soma (sonda)".
"O meu marido está internado porque sangra pela via da frente 
e pinga pela via de trás".
"Senhor Doutor a minha mulher tem umas almorródias 
que, com a sua licença nem dá um peido".
"Tenho pedra na basílica".
"Tive três úlceras: uma macho, uma fêmea e uma de gastrina".



IV. O diálogo com o paciente com patologia da boca, olhos, ouvidos, nariz e garganta
 é sempre um desafio para o clínico e para a comunicação clínica :

"A garganta traqueia-me, dá-me aqueles estalinhos e depois fica melhor".
"Fui ao Ftalmologista, meteu-me uns parafusinhos nos olhos a ver se as lágrimas saíam".
"Gostava que as papilas gustativas se manifestassem a meu favor".
"Isto deu-me de ter metido a cabeça no frigorífico. Um mês depois fui ao Hospital 
e disseram-me que tinha bolhas de ar no ouvido".
"Não sei se isto que tenho no ouvido é cera ou caruncho".
"O dente arrecolhia pus e na altura em que arrecolhia às imidulas infeccionava-as".
"Ouço mal, vejo mal, tenho a mente descaída".
"Quando me assoo dou um traque pelo ouvido, e enquanto não puxar pelo corpo, suar, ou o car...., o nariz não se destapa".
"Tenho a língua cheia de Áfricas".
V.  Os aparelhos genital e urinário são objecto 
de queixas muito... "sui generis"

"A minha pardalona está a mudar de cor".
"Apareceu-me uma ferida, não sei se de infecção se de uma f... mal dada".
"Às vezes prega-se-me umas comichões nas barbatanas".
"Fazem aqui o Papa Micau ( Papanicolau )?"
"O Médico mandou-me lavar a montadeira logo de manhã".
"Quando estou de pau feito....,  a p... verga".
"Quantos filhos teve?" - pergunta o médico. "Para a retrete foram quatro, senhor doutor, 
e à pia baptismal levei três".
"Tenho de ser operado ao stick. Já fui operado aos estículos".
"Tenho esta comichão na perseguida porque o meu marido tem uma infecção 
na ponta da natureza".
"Venho aqui mostrar a parreca".

VI. Os medicamentos e os seus efeitos, que se prestam às maiores confusões:

"Agora estou melhor, tomo o Bate Certo"  (Betaserc)
"Andei a tomar umas injecções de Esferovite"  (Parenterovit)
"Ando a tomar o Castro Leão" (Castilium)
"Ando a tomar o EspermaCanulado" (Espasmo Canulase)
"Diz lá no papel que o medicamento podia dar muitas complicações e alienações".
"Era um antibiótico perlim pim pim mas não me fez nada"  (Piprilim)
"Estava a ficar com os abéticos no sangue".
"Na minha opinião sinto-me com melhores sintomas".
"Ó Sra. Enfermeira, ele tem o cu como um véu. O líquido entra e nem actua".
"Quando acordo mais descaída tomo comprimidos de alta potência e fico logo melhor".
"Receitou-me uns comprimidos que me põem um pouco tonha".
"Tenho cataratas na vista e ando a tomar o Simião"  (Sermion)
"Tomei Sexovir" (Isovir)
"Tomei uns comprimidos "jaunes", assim amarelados".
"Tomo o Sigerom e o Chico Bem" -(Stugeron e Gincoben)
"Tomo uma cábulas à noite".
"Tomo uns comprimidos a modos de umas aboborinhas".

"Ando a tomar o EspermaCanulado" (Espasmo Canulase)
"Tenho cataratas na vista e ando a tomar o Simião"  (Sermion)
"Andei a tomar umas injecções de Esferovite" (Parenterovit)
"Era um antibiótico perlim pim pim mas não me fez nada" (Piprilim)


VII. O português que bebe e fuma muito e que se desculpa com frequência:


"Eu abuso um pouco da água do Luso".
"Eu sou um fumador invertebrado".
"Fujo dos antibióticos por causa do estômago. Prefiro remédios caseiros, a aguardente queimada faz-me muito bem".
"Não era ébrio nato mas abusava um pouco do álcool"
"Tomo um vinho que não me assobe à cabeça".

VIII. O que os doentes, afinal,  pensam do(s) médico(s):

"Especialista, médico, mas entendido!".
"Gosto do Senhor Doutor! Diz logo o que tem a dizer, 
não anda a engasular ninguém".
"Não há melhor doente que eu! Faço tudo o que me mandam, 
com aquela coisa de não morrer".
"Não sou muito afluente de vir aos médicos".
"Quando eu estou mal, os senhores são Deus, mas se me vejo de saúde,
acho-vos uns estapores".
"Também desculpe, aquela médica não tinha modinhos nenhuns".


IX. Os "problemas da cabeça", que  são muito frequentes:

"A minha cabecinha começa assim a ferver e fico com ela húmida, 
assim aos tombos,
 a trabalhar".
"Andei num Neurologista que disse que parti o penedo, o rochedo ou lá o que é...".
"Fui a um desses médicos que não consultam a gente, só falam pra nós".
"Há dias fiz um exame ao capacete no Hospital de S. João".
"Ou caiu da burra ou foi um ataque cardeal".
"Vem-me muitos palpites ruins, assim de baixo para cima...".
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Nota de leitura:

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16776: Os nossos seres, saberes e lazeres (187): A medicina antes do 25 de Abril - Intervenção, no âmbito do 11.º Congresso da FNAM - Federação Nacional dos Médicos (Adão Cruz ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)

© Pintura de autoria de Adão Cruz


Introdução

Deram-me a honra de um convite para intervir, no âmbito do 11.º Congresso da FNAM (Federação Nacional dos Médicos), num debate sobre o Serviço Médico à Periferia, cabendo-me falar sobre o exercício da medicina antes do 25 de Abril.

Alguém sugeriu que era útil e interessante fazer um texto com o essencial da minha intervenção. Ele aí está, todavia liberto de todos os aspectos técnicos que só serviriam para entorpecer a leitura de quem não é médico

Pelo texto que se segue, todos ficarão com uma ideia de como era, com algumas variantes, a prática da medicina rural e de todo o interior do país antes do 25 de Abril e, portanto, antes da criação do SNS, por volta de 1989, o qual, em três décadas, como sabemos, se haveria de tornar num dos melhores e mais respeitados do mundo.

Hoje, infelizmente, encontra-se no meio do mais ignóbil processo de destruição, urdido pelo capital privado e pelas forças mais retrógradas que procuram miná-lo por todas as formas e feitio, de modo a poderem dizer que não funciona. Gente que se encontra nos antípodas dos homens progressistas que o criaram e ajudaram a desenvolver, homens de mente sã e avançada, como Miller Guerra, Albino Aroso, António Galhordas, Gonçalves Ferreira, Pereira de Moura, António Arnaut e outros.



11.º Congresso da FNAM (Federação Nacional dos Médicos), Porto, Hotel Ipanema, 12 e 13 de novembro de 2016

Debate FNAM > Programa > Serviço Médico à Periferia > Porto, Hotel Ipanema, 11 de novembro de 2016, 21h30 > Intervenção: Adão Cruz - Médico Cardiologista

Vídeo com a intervenção do dr, Adão Cruz, (27 m) que nos foi foi facultado pelo próprio



A medicina antes do 25 de Abril


Quando saí da Faculdade tive duas opções de vida: Fazer clínica na minha terra, como “João Semana”, ou aceitar o convite de um colega mais velho do que eu cerca de onze anos, amigo e conterrâneo que residia nos EU, médico hospitalar de medicina interna, para ir para a América. Tinha de escolher uma destas duas opções extremas. Optei pela primeira por duas razões principais: por um lado, tinha a guerra colonial à minha frente e dificilmente poderia sair do país, por outro lado, precisava de ganhar algum dinheiro. Os meus pais fizeram muitos sacrifícios para formarem dois filhos e eu não estava disposto a sacrificá-los mais tempo.

Estávamos no ano de 1964. E assim comecei a minha actividade clínica, em Vale de Cambra, sem estágio nem tese, três anos antes da ida para a guerra colonial da Guiné. Encostei-me a um velho clínico que era um monumento de sabedoria prática e experiência. Foram esses três anos os piores e mais difíceis. Vale de Cambra, um pequeno concelho com uma área de 147 Km2, tinha talvez menos de 15.000 habitantes. Dispersava-se por nove freguesias, algumas delas abrangendo os mais remotos e inóspitos lugares da Serra da Gralheira, com pequenos povoados e populações encravadas em locais quase inacessíveis, com muitas pessoas vivendo na maior ignorância e na mais extrema miséria.

Continuei durante outros três anos, após o meu regresso da Guiné, estes já melhores, pois iniciei na altura o Internato Geral no Hospital de Santo António, para onde me deslocava todos os dias. Este facto, a experiência da guerra e alguma presença em reuniões científicas, permitiram-me uma maior competência, bem como relações pessoais e com o hospital, que me facilitaram muito a minha prestação de cuidados médicos. Não tive, propriamente, contacto com o Serviço Médico à periferia, criado em 1975. Nessa altura já eu tinha obtido a especialidade e fazia parte do Serviço de Cardiologia do Hospital de Santo António.

Pediram-me para falar da medicina em Portugal antes do 25 de Abril, ou seja, antes da criação do Serviço Médico à periferia em 1975, o primeiro passo, por assim dizer, para o nascimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e também uma experiência valiosa e ímpar. As duas realidades, o antes e o depois do 25 de Abril, não podem comparar-se. Claro que eu não posso falar do que se passava em Portugal. Posso falar, sim, do que se passava numa parte de Portugal, que, muito provavelmente, com algumas diferenças, era o que se passava em todo o interior do país. E digo interior, porque havia uma significativa diferença com o litoral, onde existiam os poucos recursos técnicos da época. Com efeito, não havia qualquer rede hospitalar digna desse nome, e os únicos hospitais situavam-se em Lisboa, Porto e Coimbra, havendo um ou outro pequeno hospital, aqui e ali, de muito pouca eficácia, quase sempre ligado às misericórdias. De qualquer forma, os cuidados primários de saúde eram um conceito quase desconhecido, sendo notória uma profunda degradação dos poucos serviços de saúde existentes e uma enorme incapacidade de resposta às necessidades mais elementares.

Antes do 25 de Abril a assistência médica não estava assegurada, sobretudo antes do fim da década de sessenta. Competia às famílias, às instituições privadas e à caridadezinha, que a despeito de aviltar a dignidade humana, lá ia remendando as coisas aqui e ali, bem como aos débeis serviços médico-sociais da Previdência fazerem alguma coisa. Mas era sobretudo ao “João Semana”, pilar fundamental da saúde nesses tempos, que tudo se exigia. As áreas rurais dessa época tinham características comuns, o serem pouco populosas, muito isoladas, com uma população envelhecida, profundamente carenciada, com problemas de acessibilidade aos grandes centros que ficavam muito longe e com vias de comunicação péssimas, vivendo de uma agricultura de subsistência, e, portanto, profundamente vulneráveis. A saúde, ou o pouco que se poderia fazer na promoção da saúde era dependente da capacidade económica de cada cidadão, o que levava ao pagamento integral dos cuidados médicos, nomeadamente dos cuidados hospitalares, mesmo públicos. Só tinham direito a cuidados gratuitos, e obviamente de pior qualidade, aqueles que conseguissem apresentar um atestado de pobreza ou indigência passado pela junta de freguesia.

E foi nestas condições de 1964 que eu comecei a viver, de dia e de noite, 24 horas por dia, ao sol e à chuva, todas as peripécias clínicas que levaram um dia minha mãe a dizer-me: rapaz, muda de vida senão morres. Mas foram essas tremendas dificuldades e essas precaríssimas condições, que constituíram para mim uma segunda faculdade. Dizia o meu velho amigo Dr. Teixeira da Silva: você aqui vai ver tudo, desde a queda do cabelo à unha encravada. Com efeito, numa altura em que a esperança de vida era de quase menos 15 anos do que hoje, éramos senhores de todas as especialidades, desde a pediatria à ginecologia e obstetrícia, passando pela dermatologia, oftalmologia, psiquiatria etc. Em termos de material, eu tinha quase tudo o que era possível ter na altura, e muita coisa oferecida por um grupo de amigos: marquesa, mesa ginecológica, espéculos, estetoscópio, aparelho de tensões, otoscópio, oftalmoscópio, sondas e algálias, todo o material necessário a pequena cirurgia. Era frequente a incisão e drenagem de abcessos, a exérese de lipomas e quistos, extracção de unhas encravadas, circuncisões etc. Tinha ligaduras, pensos e desinfectantes variados, material para injectáveis, mala de urgência apetrechada com tudo o que era viável, e ainda fórceps e ventosa que o Dr. Teixeira da Silva me emprestava. Ele tinha também uma velha radioscopia cuja radiação nos deixava, ao fim de 5 minutos, como se tivéssemos apanhado uma descarga eléctrica. Para fazer uma radiografia, um electrocardiograma, qualquer exame mais avançado ou uma cirurgia, só no Porto, o que ficava muito caro. Fora do Porto nada havia, apenas um ou dois pequenos laboratórios de análises em concelhos limítrofes.

As pessoas viviam atormentadas com o medo da doença e viam-se obrigadas a algumas poupanças durante a vida não só para guardarem “um terço para a tarde”, como se dizia, mas também para ocorrerem ao inesperado, ou então tinham de vender terras e gados para pagar uma qualquer cirurgia ou outros cuidados de saúde mais dispendiosos. De uma maneira geral, só chamavam o médico quando viam que a coisa tinha atingido um tal estado que já não era resolúvel por si própria e pelas mezinhas caseiras. Claro que o nosso objectivo era muito mais o do alívio sintomático e a melhor resolução possível da situação, não havendo, por falta de meios de toda a espécie, nomeadamente meios auxiliares de diagnóstico, grandes preocupações de investigação e de diagnósticos precisos e etiológicos.

Uma das actividades para que mais vezes éramos solicitados era a assistência aos partos. Mas só quando a parteira habilidosa lá do lugar via o caso mal parado. Partos no hospital ou na maternidade eram uma raridade. A taxa de mortalidade neonatal andava pelos 25 por mil, a taxa de mortalidade perinatal pelos 40 por mil, a taxa de mortalidade infantil rondava os 60 por mil e a taxa de mortalidade materna atingia os 70 por 100.000. Fiz muitos partos, alguns à luz da candeia e do petróleo, em locais onde nunca passou Cristo, em que a camita de ferro da parturiente era por cima do curral da vaca. Quase todos os partos que fiz, por incrível que pareça, foram partos naturais, embora com auxílio de episiotomias, do fórceps e sobretudo da ventosa, o que a meu ver, pode pôr em causa a actual necessidade de muitas cesarianas.

As gastroenterites, sobretudo em bebés e crianças eram frequentes, e só nos chegavam às mãos em adiantado estado de desidratação que nós tentávamos resolver com a ministração subcutânea de soro, dos dois lados da barriguita, deixando a criança com dois ventres, como um sapinho. Era praticamente impossível canalizar e manter uma veia numa criança daquelas. Em adultos, lá conseguíamos fazer umas infusões com as poucas soluções parentéricas de que na altura dispúnhamos.

Caía-nos em cima tudo o que fosse infecções e todas as doenças infecto-contagiosas possíveis e imaginárias, incluindo tuberculose, febre tifóide, mononucleose, tétanos, muitos casos de sarampo, cuja vacina fora descoberta apenas um ano antes, escarlatina, varicela, coqueluche, reumatismo articular agudo e subsequentes doenças valvulares, meningites e a difteria ou garrotilho que produzia a terrível toxina diftérica. Na difteria, o que mais nos atemorizava eram as situações de obstrução respiratória, produzidas pelas placas brancas da orofaringe. Uma vez estive com o bisturi na mão, decidido a fazer uma traqueostomia (abertura na traqueia) num catraio de cinco ou seis anos, mas optei por fazer outra coisa que não era aconselhável, pois poderia disseminar a toxina, isto é, arrancar as placas da orofaringe. Felizmente correu bem, e a criança é hoje um saudável adulto emigrante na Alemanha. Infecções pulmonares, pneumonias graves, apendicites que nos chegavam algumas vezes com peritonite e que encaminhávamos para um pequeno hospital de que nos valíamos, o Hospital Conde de Sucena, em Águeda. Todavia, falar em ir para o hospital era sempre um problema e uma solução muitas vezes não aceite pelos familiares, não só porque constituía uma espécie de sentença de morte, mas também porque se temia a conta que daí adviria. Então para o Santo António nem pensar, não sei se por ser mais longe, se pela sua envergadura.

Acidentes de trabalho, por vezes com graves feridas e traumatismos, fracturas e queimaduras extensas, tudo situações que nos exigiam grande responsabilidade, muito tempo de tratamento e a aplicação rigorosa de todos os conhecimentos aprendidos na faculdade, que não eram poucos nem frágeis, pois a nossa formação, na altura, foi muito boa. A medicina no trabalho não existia, embora começasse a nascer em conceito. Havia algumas pequenas empresas, sobretudo na área das madeiras, dos lacticínios e da metalo-mecânica, mas o trabalhador era uma máquina como qualquer outra, tendo de ser reparada quando avariava. O trabalhador não tinha quaisquer direitos laborais e era-lhe negada a possibilidade de ser um sujeito activo na construção da sua própria saúde, incluindo o controle de factores que a determinavam positivamente, factores protectores, ou que a punham em risco, factores de risco, quer dentro quer fora do local de trabalho.

Frequentes situações de insuficiência respiratória e graves crises de asma, silicoses, insuficiência cardíaca grave, com edema agudo do pulmão. Ainda nos valíamos dos garrotes e da sangria. Arritmias cardíacas que classificávamos conforme podíamos, sem qualquer registo electrocardiográfico, e que tentávamos reverter quando havia repercussão clínica. Cardiopatias congénitas e outras malformações, sobretudo aquelas que eram mais susceptíveis de diagnóstico clínico. O primeiro diagnóstico que fiz, a “solo”, de uma dessas graves malformações chamada coartação da aorta, foi num rapaz de vinte anos, pouco mais novo do que eu. Foi operado em Lisboa pelo Professor Celestino da Costa, e hoje, ao fim de mais de meio século ainda é vivo e ainda vem à minha consulta. Havia AVCs e enfartes do miocárdio, com diagnóstico apenas clínico, que encaminhávamos para o hospital de Águeda ou Santo António. Ao compararmos o que se fazia na altura perante um enfarte do miocárdio, por exemplo, e o que se faz hoje em termos de cardiologia de intervenção, damos com um abismo apenas preenchido por uma monumental ignorância. No fim de contas, o resultado era o doente morrer ou ficar com o coração gravemente mutilado.

Havia amigdalites muito frequentes e repetitivas, e como na altura havia grande medo do reumatismo articular agudo (RAA), quanto mais cedo extirpássemos as amígdalas melhor. Juntávamos três ou quatro pacientes, e uma vez ou outra vinha um otorrino de Lisboa a Oliveira de Azeméis de onde era natural, e passava pelo consultório, operando-os de empreitada.

Eram frequentes as cólicas renais e biliares, bem como doenças oncológicas terminais, cancros do estômago, cancros pulmonares avançados, com punções pleurais por vezes repetidas, nos confins da serra, para esvaziar o líquido pleural e aliviar a asfixia do doente. Gangrenas, cirroses e drenagens de ascites monstruosas, limpeza e tratamento, às vezes durante meses, de feridas de toda a ordem, nomeadamente feridas cancerosas da pele onde cabia um punho, cancros da boca, do pénis e do ânus.

Para terminar, gostaria de dizer que muita coisa que hoje é quase banal no nosso país, não existia na altura. Fui algumas vezes a Madrid com dois tipos de doentes: asmáticos e doentes com patologias cardíacas valvulares. Tratava-se, obviamente, de pessoas com dinheiro, ou, pelo menos, com posses suficientes para as despesas que não eram pequenas. Quanto aos primeiros, não havia ainda em Portugal a especialidade de alergologia nem a existência de vacinas, pelo que recorríamos ao Instituto La Paz, onde trabalhava um grande alergologista, o Dr. Ojeda Casas, e de lá trazíamos as vacinas. No que respeita aos doentes com indicação de cirurgia cardíaca, que não existia em Portugal, essencialmente implantação de próteses valvulares mecânicas, valíamo-nos do Hospital de Nuestra Senhora de La Concepcion, onde trabalhava um dos mais conhecidos cirurgiões cardíacos da época, o Dr. Gregório de Rábago, o qual operou o meu amigo e colega de consultório, estomatologista, filho do Dr. Teixeira da Silva.

Adão Pinho da Cruz, 
Médico Cardiologista, 
ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, 
Canquelifá e Bigene, 1966/68





Cartaz e programa > 11.º Congresso da FNAM (Federação Nacional dos Médicos), Porto, Hotel Ipanema, 12 e 13 de novembro de 2016






Cartaz > Debate FNAM > Programa > Serviço Médico à Periferia > Porto, Hotel Ipanema, 11 de novembro de 2016, 21h30 > Intervenção: Adão Cruz - Médico Cardiologista


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Nota do editor

Último poste da série de 23 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16750: Os nossos seres, saberes e lazeres (186): Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (10) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 18 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11723: Manuscrito(s) (Luís Graça)(4): Comment ils sont toujours gais, les portugais!


Comment ils sont toujours gais, les portugais!

por Luís Graça

Olho do alto,
do mais alto edifício da Lisboa fontista,
o marquês in su situ,
o dito marquês de Pombal,
le plus fameux marquis du Portugal:
Estatuado,
bem apessoado, 

em pose de Estado,
futurista,
mas sem insígnias de general:
apeado,
sem burro, mula ou cavalo
para se poder passear
pelas futuras avenidas novas,
largas, chiques, burguesas, 

do Ressano Garcia
que ainda está por nascer.


Consulto o guia turístico do pós-25 de Abril
e vejo que lhe falta, do polícia oitocentista,
o cassetete e o apito,
mas ele está bem assim,
acima do Rei de Paus,

abaixo da Lei e da Grei,
maçon e republicano,
domando o leão,
dominando a cidade,
serena, sibilina,
com o Terreiro do Paço,

o Palácio do Santo Ofício, os Estaus,
e o Rio Tejo, o mundo, ao fundo.
── Comment ils sont toujours gais, les portugais! ──
exclama a guia, do vinte e oito da Carris,
que vai da Graça aos Prazeres
da boa mesa e melhor cama.

Olho-o de alto, 

ao Marquês e ao seu leão,
sem desprezo nem paixão,
com o tal olhar sociológico,
que deve ser distanciado,
profundo,
perscrutador, 
sideral, 
como me ensinou o meu professor
de métodos e técnicas
de investigação social:
── Saibam escutar Deus e Diabo,
e ponham a falar o pecador e o santo,
Deus e a sua corte,
mais os pobres deste mundo.


Mas só agora reparo,
no meu pequeno problema
do foro oftalmológico.
Não é uma questão de vida ou de morte,
mas apenas de incapacidade:
estou com falta de perspectiva,
não tenho o súbito ângulo de visão,
nem a suficiente lucidez,
luminosa, altiva,
para descer do pedestal
e caminhar, homo erectus, e sozinho,
pela Avenida, larga, da Liberdade.
O que vale é que p'ra baixo
todos os santos ajudam,

mesmo os papos de anjo e os querubins
do Hospital Real de Todos os Santos,
em ruínas.
Não, não sou santo, pederasta nem pedófilo,
sou o Intendente,
do Largo do mesmo nome,
Pina Manique,
um seu criado para o servir.
E eu, cá por mim,
prezo-me de ser um gajo decente,
não fumo, 

não bebo, 
não conspiro,
não conspurco,
não especulo,
não cometo crimes horrendos,
dou aos pobres,
empresto a Deus,
que me paga com juros e dividendos,
enfim, sou um anónimo súbdito leal.

Je viens du Siècle du Son et e de la Lumière!,
mas sou daqui natural,
primata social,
de sangue quente,
português, discreto,
cidadão avant la lettre,
jacobino, às vezes,
maçónico,
clandestino,

podem chamar-me estrangeirado,
e hoje liberal dos sete costados,
como o Espada, o Pacheco ou o Barreto;
por azar, nascido no Estado Novo,
educado em escola do Conde de Ferreira,
que antes de ser conde era visconde,
como antes tinha sido barão e cavaleiro,
e antes de tudo era o José Ferreira,
nascido em Gondomar,
de pais campónios, mas remediados, 

e maior roceiro e negreiro,
se não mesmo esclavagista,
p'las Angolas e p'los Brasis,
filantropo, benemérito,
apoiante da causa da Dona Maria,
e que eu saiba nunca foi setembrista
ou capitalista manufactureiro.
Mas que deixou o remanescente
da sua imensa fortuna
para fazer a escolinha
p'ró menino e p'rá menina,
a escolinha da minha infância.
E ainda, por duplo azar meu,
ex-combatente da guerra colonial,
no tarrafo do Rio Geba,

nos rápidos do Rio Corubal
e nas bolanhas da Guiné,
terra de azenegues e de negros.
E ainda por cima
contribuinte líquido,
cibernauta, blogador, 

com sintomas de burnout,
ao virar da esquina do século vinte e um.

── Desculpe,  Senhor Intendente,
excelência, 
senhoria,
mas não reparei na velhinha
com o cão pela trela,
na passagem de peões, 

que ia levantar o jackpot do euromilhões
ao quiosque da Tabacaria do Pessoa.

Vote no homem, avozinha,
que ele é bom chefe de família
e benfiquista.


Enfim, andei como tu,
pobre marquês no ocaso dos dias,
grande duque de copas o resto do ano,
uma vida inteira
a exercer ilegalmente
o mister da existência,
o duro ofício de viver:
a enterrar os mortos
e a cuidar dos vivos,
a destruir o passado,
a reconstruir o presente
e a riscar o futuro.
Só não matei de morte matada,
por objecção de consciência, 

nas guerras da pacificação
com o capitão diabo.

E afinal,
alguém me passou um atestado
de robustez física
para poder circular
entre o núcleo duro
da insanidade mental
da mítica cidade de Ulisses:
hoje faz parte da blogosfera,
a cidade gravada em cobre por Braúnio
em Civitates Orbis Terrarum.
── Não sei como deixei escapar
esta exposição
no Centro Cultural de Belém.
──
diz o Intendente Pina Manique,
agora caído em desgraça,

lá p'rós lados da Mouraria.


Por entre reclusos e negros,
mouros cativos
e filosófos esotéricos,
judeus sefarditas
e cristãos velhos,
marinheiros e mercadores,

balantas fuzilados entre a Mina e o Fiofioli,
batedores, dançarinos e cantadores de fado,
portadores do virús HIV,
operários sinistrados
das obras do convento de Mafra,

lançados,
grafiteiros,alcoviteiras,
tocadores de kora,
jagudis, 
e poetas alcoolizados
no Martinho da Arcádia,
pederastas e prefeitos
dos Reais Colégios,

que gostam de pôr os pontos nos ii,
lá me escapei, 

passei a fila
e cheguei à consulta do morbo gálico
no Hospital Real de Todos os Santos.
Estava semidestruído,
vinte anos depois da Grande Peste
(De que Deus nos livre!).

Afinal, o meu mal era português,
disse-me o físico,
de serviço ao banco de urgência.
Era já velho, trinta anos,
a cara coberta de bexigas
por causa da varíola
ou de algum esquentamento mal curado. 
── E aos trinta anos, senhor,
quem não é médico é louco. ──, 
ameaçou-me o maqueiro,
mal barbeado,
com ar de galicado
e chulo do Bairro Alto,

sobrevivente da guerra dos três Guês,
Guidaje, Guileje e Gadamael.
Deu-me, o físico, alguns unguentos e sedativos
e um estranho papel com uma receita com mel:
── Senhor real boticário,
é completamente inútil
este exercício ilegal da medicina.

O mal do doente é português
e quiçá irremediável e universal.
Do coração a sangrar não há sinais,

e da bilis amarela só sai fel,
dê-se conhecimento ao físico-mor
para os devidos efeitos
e procedimentos habituais!

Prognóstico reservado,
depois de vistas as águas!


E eu a pensar que o meu mal
era espanhol,
quando fero conquistador no Novo Mundo,
ou francês,
da rive gauche, que chique!
Ou veramente italiano,
florentino, 
de capa e espada,
católico, apostólico, romano,
genovês,
veneziano, 
viperino...
Não, o meu mal é português,
irremediavelmente, genuinamente, português
em Goa, Damão e Diu;
em Cabo Verde ou na Guiné;
em Angola ou Moçambique,
no Minho, em Macau ou em Timor 

ou outras terras que a gente nunca viu.
Tirei a sina na feira da ladra
e a sentença ficou dada, 

na barraca dos tirinhos:
── Pobrete mas alegrete!

Se não tens voz de tenor, senhor,
canta de falsete;
e se não tens cão, hombre!, 
caça com gato.

E sobretudo nunca olhes para trás,
a menos que a vista mereça a pena!


Hoje a cidade está vazia
à hora do terço e da novena,
e já não se dispensam mais
cuidados paliativos nem terminais.
Facto trivial,
uma criança é abandonada
na Roda da Misericórdia,
e dois turistas acidentais
espreitam
à porta da cervejaria Trindade,

fechada por causa do Grande Sismo do Ocidente,
enquanto El-Rei, nosso senhor,
no Paço se deita com a abadessa...
Sangra de saúde, compulsivo,
deixando o seu ministro aflito,

mais o confessor conselheiro,
entre o patíbulo dos Távoras
e a Real Fábrica das Sedas,
ali, às Amoreiras,

de portas abertas à espera do investidor estrangeiro.
Nas paredes do hospital da cidade
alguém escreveu um grafito,
jocoso, 

quiçá subversivo, 
e lesa-majestade:
── Meu caro Marquês, em Lisboa...
nem sangria má nem purga boa!


27 out 2004 / Revisto nesta data


Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade). Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus, ao fundo, e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito. O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira. (LG)
_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 20 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11599: Manuscrito(s) (Luís Graça) (3): O país que via passar os comboios

terça-feira, 15 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2762: PAIGC: Instrução, táctica e logística (11): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XI Parte): A máquina logística (A. Marques Lopes)

Guiné > Região, possivelmente do sul, controlada pelo PAIGC > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 14 > TRasnporte de sacos de arroz ... As autoridades militares portugueses subestimaram, inicialmente, o génio organizativo de Amílcar Cabral e dos demais dirigentes e militantes do PAIGC. Em 1971, num documento produzido pela inteligência militar do Estado-Maior de Spínola, reconhecia-se a real importância da logística do PAIGC, mesmo não tendo os meios (navais, aéreos e terrestres) das NT...

Guiné > Região do interior (possivelmente, no sul) controlada pelo PAIGC > Visita de uma delegação escandinva às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 19 > Uma pequena enfermaria ou hospital de campanha, com camas e lençóis brancos. Na foto, vê-se uma enfermeira.

Guiné > Região (no interior, possivelmente no sul) controlada pelo PAIGC > Visita de uma delegação escandinva às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 31 > A piroga era uma dos meios de transporte mais adequados à guerrilha, nomeadamente no apoio às colunas logísticas. Contrariamente à ideia que se fazia, na época, as colunas de reabastecimento do PAIGC eram compostas por cerca de 30 elementos civis. Julgo que por razões de segurança e dificuldades de recrutamento de carregadores. A estes elementos deveria acrescentar-se a escolta, presume-se.


Guiné > Região controlada pelo PAIGC > Novembro de 1970 > Foto nº23 > Uma consulta médica, ao ar livre. Em primeiro plano, um enfermeiro (presume-se) e a "farmácia ambulante".

Guiné -Conacri (?) > Base do PAIGC em Kandiafara ? > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 30 > Uma sala de esterilização de um hospital do PAIGC

Guiné > Região controlada pelo PAIGC, possivelmente no sul > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 25 > Progressão, na savana arbustiva, por meio do capim alto, de um grupo de guerrilheiros. Presume-se que as colunas logísticas do PAIGC tivessem segurança por parte da milícia ou do exército populares...


Guiné > Região controlada pelo PAIGC , possivelmente no sul > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 7 > Uma aldeia, possivelmente no Cantanhez (onde a tropa portuguesa não entrava desde 1966)


Guiné > Região controlada pelo PAIGC > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 29 > Aproximação de guerrilheiros a uma aldeia

Guiné > Possivelmente numa base do PAIGC, no sul, na região fronteiriça > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 28 > Transporte de sacos de arroz em viaturas soviéticas. Segundo a inteligência militar portuguesa, o PAIGC dispunha, na Guiné Conacri, de cerca de 4 dezenas de camiões russos (havia dois modelos, o Gaz e o Gil) , que faziam o transporte dos abastecimentos de Conacri até a Kandiafara e, depois de queda de Guileje, em 22 de Maio de 1973, até mesmo para lá das fronteira... Recorde-se que o corredor de Guiledje (também chamado Caminho do Povo e Caminho da Liberdade) estendia-se de Kandiafra, Simbel e Tarsaiá (Guiné-Conacry) a Gandembel, Balana, Salancaur e Unal (na Guiné-Bissau).

Este corredor foi, para o PAIGC, o maior e mais importante corredor de infiltração e de abastecimento ao longo de toda a guerra. A sua função estratégica potenciou-se consideravelmente após o assalto ao quartel de Guiledje em Maio de 1973 até sensivelmente depois do 25 de Abril, quando se instituíram as tréguas entre os contendores. Depois do 25 de Avril e das tréguas estes camiões passaram mais vezes a transpor a fronteira desde Kandiafara, passando por Gandembel e parte importante do Carreiro de Guiledje no sentido Gandembel-Salancaur e Porto de Santa Clara.

Guiné > Região controlada pelo PAIGC, possivelmente no sector de Bedanda ou Cacine > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº35 > Magnífica imagem de uma bolanha, com produção de arroz. Parte da população controlada pelo PAIGC tinha que ser reabastecida, em arroz, alimentação-base, por não ser autosuficiente. Como se pode ler no Supintrep, "este reabastecimento não se processa, no entanto, de igual modo para as duas Inter-Regiões, pois que (...), enquanto a Inter-Região Sul (à excepção da Frente Bafatá/Gabú Sul) é auto-suficiente na produção do alimento base, o arroz, a Inter-Região Norte não produz hoje o necessário para se abastecer, pelo que, além das colectas efectuadas às populações controladas, se torna necessário enviar para as bases da fronteira e interior quantidades muito apreciáveis deste produto".

Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > Imagens obtidas algures, nas bases sediadas na Guiné-Conacri, e nos regiões libertadas do sul (possivelmente, Cantanhez), pelo fotógrafo norueguês Knut Andreasson. Recorde-se que o fotógrafo norueguês acompanhou uma delegação sueca (tendo à frente a antiga líder do parlamento sueco, Birgitta Dahl) na visita às regiões libertadas da Guiné-Bissau, em Novembro de 1970.

Segundo o sítio da
Nordic Africa Institute (uma agência dos países nórdicos, com sede na Suécia, em Upsala ), esta visita deu-lhe oportunidade de falar com Amílcar Cabral, em pleno palco da luta pela independência, e ficar a conhecer melhor o PAIGC, a guerrilha e a sua implantação no terreno.

Andreasson e Dahl publicaram mais tarde um livro em sueco sobre essa viagem. Andreasson, por sua vez, realizou uma exposição fotográfica e publicou um álbum fotográfica sobre esta visita. A maior parte das fotos deste período foram doadas ao Nordic Africa Institute pela viúva de Andreasson. A exposição foi , por sua vez, doada à
Fundação Amílcar Cabral pelo Nordic Africa Institute, sendo apresentada por Birgitta Dahl, a antiga líder do Parlamento Sueco, por ocasião das celebrações do 80º aniversário de Amílcar Cabral, em Setembro de 2004.

A Suécia foi o país ocidental que mais apoio deu ao PAIGC, no plano político, diplomático, humanitário e financeiro. Os manuais escolares eram impressos na Suécia. Este país escandinavo, nomeadamente sob a liderança do social-democrata Olof Palme (1927-1986), também fornecia gratuitamente ao PAIGC material médico e sanitário, como se reconhece no Supintrep, nº 32, de Junho de 1971, que temos vindo a publicar.

As fotos acima ilustram alguns aspectos da máquina logística do PAIGC de cuja grandeza e complexidade muitos de nós, combatentes portugueses, no terreno, não tínhamos uma ideia exacta... Ao ler este documento, insuspeito, ficamos a saber que a população e a guerrilha do PAIGC, no interior do TO da Guiné, era abastecida regularmente (em alimentos, medicamentos, armamento, equipamento, etc.). Ficamos a saber que havia evacuações (incluindo por meios aéreos) de feridos graves para os hospitais de rectaguarda (Ziguinchor, no Senegal; Conacri, Koundara e Boké, na Guiné-Conacri). Devo, no entanto, acrescentar que foi recentemente desmentida, por uma histórica e mítica dirigente do PAIGC, Carminda Pereira - no Simpósio Internacional de Guileje (Bissau, 1 a 7 de Março de 2008) - que houvesse helicópteros ("O PAIGC nunca teve helicópteros ou outras aeronaves"). Agora também é verdade que foi fundamental para o PAIGC o apoio, sem reservas, dado pelo regime de Sékou Touré. Já no Senegal, o PAIGC não se movimentava tão à vontade.


Ficamos também a saber que havia evacuações de feridos graves, em tratamento, para outros países estrangeiros (nomeadamente, da Europa de Leste). Que nesses hospitais, na rectaguarda, havia médicos, estrangeiros, tanto ocidentais (por exemplo, holandeses) como do bloco soviético (cubanos, jugoslavos e russos). Curiosamente não se faz menção do português, natural de Angola, o Dr. Mário Pádua, médico, que desertou das fileiras do nosso exército, Angola, e dedicou parte da sua vida, como médico e como militante, ao PAIGC, no Hospital de Ziguinchor, Senegal)(Vd. o seu depoimento no filme-documentário de Diana Andringa e Flora Gomes, As Duas Faces da Guerra, 2007).

Este excerto do Supintrep sobre a logística do PAIGC deve ser lido em complemento do que já aqui escrevemos sobre a importância estratégica que tinha o corredor de Guileje e o significado da queda de Guileje (1).

Fonte:
Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI) (2) (As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda. Legendagem de LG).


Continuação da publicação do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971, documento classificado na época como reservado, de que nos foi enviada uma cópia, em 18 de Setembro de 2007 pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, Cor DFA, na situação de reforma, e a quem mais uma vez agradecemos publicamente (3):

PAIGC - Instrução, táctica e logística (11): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (Parte XI) > Logística


LOGÍSTICA

a. Generalidades


Para satisfação das necessidades resultantes da actividade desenvolvida, o PAIGC organizou nos países limítrofes (República do Senegal e República da Guiné) um “complexo logístico” com a finalidade de introduzir no nosso território os meios indispensáveis à manutenção do seu esforço de guerra. Os órgãos centrais dessa “máquina” – armazéns de víveres, depósitos de armamento e munições, de combustíveis, medicamentos, oficinas e fardamento – encontram-se em Conakry, om órgãos de menor capacidade em Boké, Kandiafara, Kambera, Foulamory e .

É pois a partir de Conakry que cerca de quatro dezenas de viaturas de fabrico soviético (marcas Gas e Gil) estabelecem a ligação entre os pontos atrás referidos, transportando pessoal, material e víveres.

Para Boké e Kandiafara e também Bissamala, onde o PAIGC dispõe de um complexo logístico de apoio ao Quitafine, é aproveitada ainda a navegabilidade dos rios Nunez e Kandiafara, os quais são percorridos por um conjunto de barcos de carga de que se destacam:

AROUCA (BI 72 L) – ex-SAGRES, é uma lancha a motor, casco de aço, casa de motor, porão e escotilhas, um mastro. O motor é Diesel Kelvin K3, n.º 26927, de 3 cilindros de 66HP e 750 RPM; tem 15,40 m de comprimento, 4,10 m de boca e capacidade para 19,700 tons. de carga.

MIRANDELA (BI 112 L) – ex-SADO, é um batelão a reboque, casco de ferro, alojamento para a tripulação com seis beliches, duas escotilhas, um porão de carga com duas coberturas de ferro corrediças que lhe servem de tampa, um mastro de ferro com dois paus de carga, motor com potência de 95/105 HP, 24,40 m de comprimento, 4,82 m de boca e capacidade para 65,054 tons. de carga.

2 BARCAÇAS – tal como são denominadas, que se julga tratar de duas embarcações tipo lancha de desembarque, talvez semelhantes às LDM da nossa marinha.

Os abastecimentos são enviados mensalmente de Conakry para as bases logísticas de apoio, sendo destinados ao mês seguinte, com níveis que se julgam bastante baixos, pois que, quando o reabastecimento se atrasa, que é frequente, logo as bases do interior insistem na sua falha. São polivalentes, incluindo géneros alimentícios, gasolina e óleos, material e munições.

Estas remessas são feitas nos últimos dias do mês, dando origem a concentrações de viaturas em Conakry.

Efectuados que são os reabastecimentos, algumas viaturas e embarcações regressam a Conakry, fazendo no retorno o escoamento dos produtos agrícolas cultivados nas “regiões libertadas” (arroz, milho, coconote...) e ainda evacuações, quer de feridos ou doentes, quer de material inoperacional.


b. Apoio exetrior à actividade logística


Em 21 de Março de 1966 foi celebrado um “protocolo” entre o Governo Senegalês e o PAIGC que estabelecia as modalidades de cooperação entre as autoridades senegalesas e os responsáveis do PAIGC, o qual, fundamentalmente, assenta nos seguintes pontos:

- Serão fixados pontos de reagrupamento obrigatórios pelas autoridades senegalesas para o estacionamento prolongado dos militantes combatentes. Os militantes combatentes detentores de armas e de munições deverão entregá-las obrigatoriamente nestes centros nas mãos das autoridades senegalesas. Toda a entrada de armas ou material destinado ao PAIGC em território senegalês deverá fazer-se com o acordo das autoridades encarregadas da segurança, que tomarão posse e assegurarão a entrega nas condições a definir.
- Para permitir aos militantes e combatentes do PAIGC abastecerem-se em território senegalês, os responsáveis designados pelo PAIGC devem dirigir-se às Autoridades Administrativas que se esforçarão para satisfazer os pedidos em toda a medida do possível. Este fornecimento de mercadoria e artigos diversos não são gratuitos.
- Os militantes e os combatentes do PAIGC doentes ou feridos beneficiam, como no passado, dos cuidados dispensados pelas formações sanitárias senegalesas.
- Para permitir a identificação dos militantes, os únicos beneficiários destas medidas, os responsáveis do PAIGC comprometem-se a entregar-lhes os documentos de identidade com fotografia e a remeter às Autoridades Senegalesas encarregadas da segurança a lista completa destas pessoas com os talões.
- Estas facilidades concedidas aos militantes e combatentes do PAIGC são susceptíveis de serem anuladas unilateralmente pelas Autoridades Senegalesas devido a factos imputáveis ao PAIGC ou devido a circunstâncias particulares.

Como se verifica analisando o teor do acordo, este, a ser cumprido, implicaria uma série de restrições que, em boa verdade, e com excepção de algumas alíneas, nunca foram totalmente impostas, continuando o PAIGC a proceder quase como se o referido acordo não existisse e com liberdade de acção em todo o Casamansa, muito provavelmente até pela força do Partido naquela região.

Muito mais amplo, no entanto, é o apoio incondicional dado pelo Governo de Sékou Touré ao PAIGC, que tem na Rep Guiné, como já se referiu, além dos órgãos de direcção central e de apoio logístico de base, uma total liberdade de circulação nos itinerários, as mais amplas facilidades de instrução militar das FARP e de educação dos futuros quadros, assistência sanitária e hospitalar, instalações e até empréstimos de material de guerra, quando o PAIGC dele carece.

Salienta-se, no entanto, que, dada a excentricidade de determinados “departamentos” fronteiriços, o que os liberta de certo modo do controle eficaz dos Governos Centrais, o apoio concedido ao PAIGC depende muitas vezes das Autoridades Civis e Militares que superintendem esses Departamentos, embora não o afectando e sendo este aspecto mais palpável na Rep Senegal.

O apoio concedido por outros países africanos não fronteiriços não tem significado, traduzindo-se apenas em manifestações de “solidariedade política”, o que, aliás, sucede com a maioria dos países e organizações internacionais, à excepção dos referidos em 3.a [do Supintrep].

c. Fabrico, confecção e manutenção


Muito pouco tem sido assinalado sobre o “fabrico, confecção e manutenção” presumindo-se, por isso, que, neste capítulo, o PAIGC está ainda numa fase muito incipiente. Admite-se que, nas oficinas referenciadas em Conakry, Boké, Kandiafara, Koudara e Ziguinchor, execute diversos escalões de manutenção do seu material auto, a qual se julga eficaz, dado que as dificuldades neste campo decorrem normalmente da quantidade e não do aspecto funcional. Igualmente se admite que as oficinas instaladas em Conakry para o efeito procedem a determinadas beneficiações no seu material de guerra, dadas as “evacuações” detectadas.

Em Boké está referenciado um estaleiro naval onde se procede a reparações nos barcos que o PAIGC possui.

Quanto ao “fabrico”, além da execução e arranjo de alfaias agrícolas e utensílios domésticos por processos rudimentares, há a referir, ligada aos Serviços de Economia e Produção e dentro do âmbito das actividades do Comité da Inter-Região Norte, a existência, algures na região do Morés, de uma pequena fábrica de sabão (marca Lolo), aproveitando a abundância da matéria prima utilizada, o óleo de palma. Muito embora não detectadas, admite-se a existência de outras fábricas deste tipo.

d. Alimentação


Mensalmente, tal como acontece com a generalidade dos reabastecimentos, são enviados de Conakry para as bases de apoio às Inter-Regiões géneros alimentícios, nomeadamente arroz, açúcar, sal e conservas, os quais são depois distribuídos pelos efectivos estacionados ao longo da fronteira e interior.

Este reabastecimento não se processa, no entanto, de igual modo para as duas Inter-Regiões, pois que, como veremos, enquanto a Inter-Região Sul (à excepção da Frente Bafatá/Gabú Sul) é auto-suficiente na produção do alimento base, o arroz, a Inter-Região Norte não produz hoje o necessário para se abastecer, pelo que, além das colectas efectuadas às populações controladas, se torna necessário enviar para as bases da fronteira e interior quantidades muito apreciáveis deste produto.

Em quase toda a Província o IN procede a colectas de arroz nas tabancas sob o seu controle. Estas colectas são feitas por tabancas ou por áreas e delas se encarrega o chefe da tabanca que faz a cobrança junto de cada morança, ou um delegado da área que tem por missão reunir o arroz colectado pelos cobradores distribuídos pelas tabancas da referida área.

Depois de reunido o arroz colectado é aguardada a chegada dos grupos que o vão buscar a cada uma das áreas ou tabancas. Estes grupos têm um efectivo de cerca de 10 elementos armados de maneira a poderem reagir a possíveis encontros com as NT. Por vezes vão efectivos maiores, cerca de 30 a 40 elementos, que se admite seja devido ao conhecimento que o IN possa ter da presença das NT na região.

A colecta exigida varia com a época do ano, razão por que na época seca as colectas são maiores que na das chuvas.

Do estudo feito a documentos bem como de declarações prestadas por elementos IN capturados pelas NT, é possível concluir da maneira como se processa o reabastecimento de géneros alimentícios às unidades IN sediadas ao longo da fronteira, bem como aos efectivos no interior. Assim:

Para as Unidades da Fronteira

Ao longo da Fronteira, as populações refugiadas encontram-se organizadas político-administrativamente, pelo que encontramos entre elas os comités de tabanca e de secção, órgãos primários da estrutura político-administrativa do PAIGC. As bases e acampamentos IN que se situam nesses locais apoiam-se nessa organização, do que resulta serem os referidos órgãos os encarregados de proverem aos reabastecimentos, efectuando colectas e, de seguida, a entrega dos géneros obtidos. Por outro lado, as unidades em deslocamentos ao longo da fronteira e em contacto com as referidas populações vão também efectuando, por sua vez, colectas.

Para as Unidades do Interior (só Inter-Região Norte)

Só a partir do corrente ano passaram a ser detectadas colunas de reabastecimento de arroz que, idas das bases logísticas do Casamansa, se destinem a prover as necessidades do interior.

Assim, a partir de Koundara o arroz é canalizado especialmente para a base de Cumbamore em colunas de viaturas, sendo depois transportado para o interior por colunas de carregadores através dos corredores de infiltração, como oportunamente se referirá.

e. Saúde

(1) O Desenvolvimento do Serviço de Saúde no PAIGC

Vencendo inúmeras dificuldades, resultantes muito especialmente da falta de quadros logo após a eclosão da luta armada, o PAIGC começou a instalar pouco a pouco em diversos pontos das Regiões Libertadas alguns postos de saúde, onde colocou os poucos enfermeiros que o Partido à data dispunha.

Sendo este número, porém, insuficiente, e segundo directivas da Direcção do Partido, estes enfermeiros procuravam dar a outros elementos recrutados nas escolas na Milícia Popular uma preparação mínima que lhes permitisse auxiliá-los no seu trabalho. Foram assim iniciados no serviço de enfermagem muitos elementos que, muito embora carecendo de preparação teórica, foram solucionando o problema até à formação e Escolas de Enfermagem no interior, entre as quais se destaca a Escola de Ajudantes de Enfermagem do Morés.

Entretanto, e dada a insuficiência a que estas escolas ainda conduzem, o Partido, no sentido da formação o pessoal qualificado necessário a um funcionamento mais eficaz dos centros de saúde, tem enviado para o estrangeiro muitos jovens que aí seguem estudos práticos de enfermagem e medicina, de modo a poder dispor, a curto prazo, de um número sempre crescente de pessoal capaz, o que irá permitir uma progressiva melhoria da actividade do Partido no domínio da saúde.

(2) O auxílio estrangeiro

Como já se referiu, o auxílio estrangeiro ao PAIGC no domínio da saúde reveste-se de uma importância muito grande, dado que é através do fornecimento de bolsas de estudo para a frequência de cursos médicos e de enfermagem que o PAIGC obtém elementos qualificados de cuja carência tanto se ressente. Assim, numerosos bolseiros do PAIGC cursam Medicina na Rússia e na Bulgária, enfermagem na Bulgária e Cuba e Profilaxia e Higiene Social na Checoslováquia.

Não termina, porém, aqui o auxílio estrangeiro ao Partido, pelo que se caracteriza também na cedência de pessoal médico, pelo que vamos encontrar médicos cubanos, jugoslavos, russos e holandeses nos principais estabelecimentos hospitalares. Este auxílio é completado com o fornecimento gratuito de medicamentos e material sanitário por parte de Cuba e dos países do Leste da Europa, revestindo-se também de particular importância a contribuição dada por particulares da Europa Ocidental, nomeadamente a Fundação Mondlane, com sede em Haia, e a Suécia.

(3) Como é prestada a assistência sanitária

A assistência sanitária aos combatentes e populações sob o controle IN é realizada através de enfermarias e hospitais existentes no interior do TO, formações sanitárias muito rudimentares, quase nunca dispondo de médico.

Os indisponíveis que denunciam casos graves são transportados em macas improvisadas desde essas enfermarias ou hospitais para as bases fronteiriças, onde normalmente o PAIGC dispõe de instalações mais apetrechadas, e daqui, em automacas ou viaturas de transporte, senão mesmo em meios aéreos, para os hospitais de Conakry, Ziguinchor, Koundara ou Boké.

No capítulo da assistência sanitária, mormente nos hospitais e enfermarias do interior, além da falta de pessoal qualificado surge ainda toda uma série de condicionamentos, nomeadamente o reabastecimento irrregular dos medicamentos, a conservação do sangue para transfusões e o transporte e feridos graves para o exterior, que muito afectam o funcionamento normal do serviço.

(4) Orgnização dos serviços de saúde (civil e militar) do PAIGC


Tanto quanto os elementos disponíveis o permitem, julga-se que estes centros sanitários (hospitais e enfermarias) se dividem em dois ramos, o civil e o militar, dependentes de entidades distintas.

No meio civil, ainda em estado incipiente de organização, compreenderá enfermarias ou mesmo hospitais existentes nas áreas libertadas, os quais se destinam a prestar assistência às populações controladas pelo IN. Estas enfermarias são accionadas nos escalões administrativos a que correspondem pelos responsáveis da Saúde dos respectivos Comités, e destacam, com o fim de efectuarem uma cobertura eficaz das respectivas zonas, brigadas sanitárias que percorrem as tabancas que não dispõem de serviço de saúde próprio. Julga-se que a saúde civil esteja dependente, a nível superior, da Direcção para os Assuntos Sociais do Departamento para os Assuntos Sociais e Cultura.

No ramo militar, o serviço de saúde encontra-se já num grau de desenvolvimento diferente, dispondo de estabelecimentos hospitalares (no exterior) de apreciáveis recursos. Julga-se que no topo de toda a organização sanitária militar se encontra o Serviço de Saúde do Departamento da Defesa, o qual acciona três Secções Sanitárias (Ziguinchor, Koundara e Boké) que abrangem todo o TO e zonas fronteiriças dos países limítrofes. Estas Secções Sanitárias corresponderam às três Frentes (Norte, Leste e Sul) em que o IN dividia o TO até à reorganização levada a efeito durante o ano de 1970, mas mantendo actualidade mesmo depois desta reorganização.

Cada Secção dispõe de um Hospital Central, dela dependendo os hospitais e enfermarias correspondentes aos Sectores e Frentes. As unidades, por sua vez, dispõem também de enfermeiros responsáveis pela assistência sanitária imediata aos guerrilheiros.

Continua

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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

2 de Fevereiro de 2008
Guiné 63/74 - P2499: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (13): Enquadramento histórico (I): a importância estratégica de Guileje

3 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/4 - P2502: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (14): Enquadramento histórico (II): o significado da queda de Guileje

16 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje

17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)

17 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)


(2) Mensagem anterior da
Webmaster do NAI:

Dear Luís Graça, I am glad to hear that you like the photos and that you use them. Best regards,

Agneta Rodling
Information/Webb
Nordiska Afrikainstitutet
The Nordic Africa Institute
Box 1703,
SE-751 47 UPPSALA
Tel +46-18 56 22 21

Mensagem enviada hoje pelo editor do blogue:

Dear Agneta:

I have written to you recently. My name is Luis Graca. I am the founder and main editor of the Portuguese blog Luis Graca & Camaradas da Guine, centred on the individual and collective experience of Guinea Bissau colonial war / liberation struggle, during the period of 1963/74.

Please notice that I have used again some photos from your album on Guinea-Bissau (see the text posted today, on my blog; subject: PAIGC logistics during the liberation struggle)… Blog members are war veterans, ancient fighters of both sides, or their relatives and friends of Portugal and Guinea-Bissau.

I have used, with your kind permission, the following photos, taken in November 1979, by Knut Andreasson: 07, 023, 025, 029, 030, 031, 032, 035 and 038.

Our blog has no commercial purpose, it intends to be a bridge of peace, reconciliation, co-operation and friendship and but also an information and knowledge database (research and dissemination, photo and paper documentation, poetry, life stories, fiction, scientific meetings, social events…). And my self, I appreciate very much your institutional support to the people of Guinea-Bissau.

Please feel free to use also our web materials.
Many thanks.
Luís Graça



(3) Vd. postes anteriores, desta série:

22 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2124: PAIGC - Instrução, táctica e logística (1): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (I Parte) (A. Marques Lopes)

24 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2126: PAIGC - Instrução, táctica e logística (2): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (II Parte) (A. Marques Lopes)

1 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2146: PAIGC - Instrução, táctica e logística (3): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (III Parte) (A. Marques Lopes)

8 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2164: PAIGC - Instrução, táctica e logística (4): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (IV Parte): Emboscadas (A. Marques Lopes)

29 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2228: PAIGC - Instrução, táctica e logística (5): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (V Parte): Flagelações (A. Marques Lopes)

4 de Dezembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2327: PAIGC - Instrução, táctica e logística (6): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VI Parte): Minas I (A. Marques Lopes)

17 de Janeiro de 2008 >
Guine 63/74 - P2446: PAIGC - Instrução, táctica e logística (7): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VII Parte): Minas II (A. Marques Lopes)

19 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2454: PAIGC - Instrução, táctica e logística (8): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VIII Parte): Minas III (A. Marques Lopes)

13 de Fevereiro de 2008
Guiné 63/74 - P2535: PAIGC - Instrução, táctica e logística (9): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (IX Parte): Defesa anti-aérea (A. Marques Lopes)

7 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2730: PAIGC - Instrução, táctica e logística (10): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (X Parte): Organização defensiva (A. Marques Lopes)