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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20649: Notas de leitura (1264): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (45) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Enquanto o bardo espraia a sua existência na rotina pacífica de Bissau, porque já se andou no Sul, na batalha do Como, se fez itinerância pelo Oio e arredores, havendo paz nos Bijagós, ocorre visitar um dos locais mais ásperos de toda aquela guerra, Madina do Boé, cedo o PAIGC se apercebeu que aquele lugar, aquele isolamento permitiam fazer um bulício tremendo, ter sempre à mão uma carreira de tiro, até para mostrar aos jornalistas e amantes da revolução.
O livro de Gustavo Pimenta contribui para se perceber a psicologia do combatente, resistente, preparado para viver todas as contingências da mais imprevista morteirada ou canhonada. E havia também que destilar alguns estados de alma. Gustavo Pimenta refere o que se sentia a levantar uma mina, o que nos deu aso a republicar belíssimas páginas escritas por Francisco Henriques da Silva na sua "Guerra da Bolanha".

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (45)

Beja Santos

“Este amigo e camarada
a camisa e os calções mudava.
Quando não ia passear
as botas eu não largava.

Às seis horas o clarim a tocar,
o Andrade se erguia,
e os calções ele vestia
e as botas a acompanhar.
A cara eu ia lavar.
Junto com a maçaricada
a bexiga era despejada
voltando para a caserna,
e punha a boina moderna
este amigo e camarada.

Depois de beber o café
levava horas pensando
e por letras ia contando
o que sofria na Guiné.
Eu tive sempre muita fé
que à terra natal regressava.
Na Amura os dias passava
ou alegre ou chateado,
e para andar sempre asseado
a camisa e os calções mudava.

De noite eu espairecia
a ver a mana russinha
e o nosso amigo Vidinha
com o Horta para lá ia.
O 49 e o Joaquim Maria
até chegaram a rastejar.
No canhão se vinham sentar,
junto de mim e do Teixeira.
Espiava as moças a noite inteira
quando não ia passear.

Tinha um barrete camuflado
que eu não podia deixar.
Servia para me sentar
ao chegar a qualquer lado.
Na minha cama recostado,
lia, escrevia e contava,
muitas noivas arranjava,
para não pensar na amargura.
E no quartel da Amura
as botas eu não largava.”

********************

O bardo deu em intimista, desabafa sobre o seu quotidiano, é como se nos desse luz verde para discretear sobre a guerra que continuava, ao rubro em Madina do Boé, como noutros pontos do Sul, no Oio e arredores. Porque em 1965, quando o bardo está na Amura, o PAIGC já não tem só pistolas nem armas antiquadas, há mais de um ano que usa minas, flagela com morteiros e bazucas, sobre quartéis e nas picadas. Alguns aquartelamentos, pelo seu isolamento, são o bombo da festa. É o caso de Madina, como escreve em “sairòmeM, Guerra Colonial”, Gustavo Pimenta, Palimage Editores, 2000. É um romance inequivocamente diferente de tudo quanto até agora se referiu, como logo o título alude é escrito do fim para o princípio, o leitor é forçado a um exercício de dilucidação, tem pela frente uma leitura em vários sentidos. É muito intimista, não se fala em nomes, regra geral, não há assomos de farronca nem tiques de heroísmo, temo-lo a observar a inquietação que assedia os outros que o acompanham.
Assim:
“Que sentirá um condutor-auto quando vê minas a destruírem sucessivamente as viaturas que o precedem e tem, de súbito, de ser ele a conduzir a que vai na cabeça da coluna? Sozinho, entregue aos seus pensamentos, que pensará?
Na mulher? Nos filhos?
Há poucos gestos comparáveis aos daqueles que vi, serenamente, sem protesto nem resmungo, assumir o lugar da mais presumível das vítimas. Quero supor que os animava o sentido do mais sagrado dos deveres. Que é o de, pela simplicidade de quem acredita e cumpre um destino, se oferecerem à troca por quem foi condenado a enfrentar desigualmente a roleta da vida e da morte”.

Gustavo Pimenta
Caminham para Madina do Boé, levantaram-se algumas minas entre Canjadude e o Ché Che, os T6, lá nos céus, eram presença tranquilizadora.
E descreve onde e como vive:
“Se o aquartelamento, com as enormes clareiras que o rodeavam, era praticamente inexpugnável a qualquer tentativa de assalto, a verdade é que se tornava extremamente vulnerável como alvo das elevações que o circundavam.
Deslocarmo-nos para as tarefas mais comezinhas, para uma simples mijada fora do abrigo, tornara-se numa espécie de jogo do gato e do rato. Nunca sabíamos se eles estavam à coca e nos sairia na rifa o tiro isolado do dia. Aos mais afoitos, os mais loucos, já lhes dava, às vezes, para subirem ao alto de um abrigo e despejarem insultos a tudo quanto fosse guerrilheiro inimigo e respectiva família, enquanto evidenciavam convenientes manguitos.
Foram os mais insustentáveis tempos da nossa guerra.
As múltiplas inscrições que o pessoal foi colocando, em estacas ou nas árvores, um pouco por todo o lado, eram significativas. Na zona mais exposta a esse verdadeiro exercício de tiro ao alvo, qual barraca de feira, ficava uma avenida Lee Oswald. Na parte central do quartel, protegido por quatro estacas com arame à volta, estava o monumento ao mijo, uma granada de morteiro semienterrada, que não rebentara. Do lado da pista, na única entrada, protegida com cavalos de arame farpado, por onde entravam viaturas, estava uma banca repleta de recordações de Madina: empenas de granadas de morteiro e de canhão sem recuo. Se pudéssemos, tínhamos lá misturado todas as nossas angústias.”

Numa atmosfera destas, importava manter regras, incentivar o lúdico, jogar a sério o jogo da normalidade, o capitão exigia que andassem indumentados, limpassem as armas, engraxassem as botas, o pessoal ocupava-se do lúdico, como Gustavo Pimenta observa:
“Para além dos jogos de cartas ou de tabuleiro, que se podiam praticar dentro dos abrigos, recorria-se aos que se pudessem concretizar no exterior mas que não implicassem grandes ajuntamentos. Uma granada de morteiro no meio de um campo de futebol seria uma tragédia.
A malha era dos jogos que mais se praticavam. Na zona de cada abrigo, com mais ou menos vales pelo meio, havia um espaço onde se arremessavam as pedras escolhidas ou as rodelas de tronco de árvore que serviam de malha. Os mecos, executados com primor, quase carinho, partir-se-iam amiudadamente, a cada mecada, senão tivesse havido o cuidado de escolher a madeira adequada”.

Num contexto de iminência de flagelação, naquele isolamento quase perpétuo, há alguém que é saudado com especial fervor:
“Cada piloto que nos visitava era recebido na pista: balde de gelo, água Perrier e garrafa de uísque na mão. A evidenciar a gratidão pelo risco, sempre grande, de o atrevimento de poisar em Madina. Se alguém nos podia pedir o que quisesse, eram esses bravos homens que nos consentiam, em regra semanalmente, a partilha de outros mundos, do mundo dos outros, que tínhamos a ilusão de ter quase à mão”.

E um dia saíram de Madina e mudaram de rumo, no entretanto ocorreu aquela catástrofe de fevereiro de 1969 que dizimou muita gente na travessia do Ché Che. Já estão em S. Domingos, este nosso alferes Gustavo Pimenta levanta minas, e não omite a aflição que pode ir na alma de quem o faz. Livro de uma urdidura raríssima, um verdadeiro filme desbobinado, que assim começa para depois preparar o seu termo:
“O beijo da minha mãe durava uma eternidade. Fechara os olhos para que o retrato fosse imperecível. Nas cores esmaecidas da casa, no amarelo tímido do meu quarto, o da frente, junto à rua. Nos meus, que me prodigalizavam abraços, venturas e lágrimas.
Tinha o pressentimento de que nunca mais seria o mesmo. Estava a despedir-me de mim”.

Houve Madina do Boé, depois S. Domingos, como já tinha havido Fá Mandinga e a região do Xime. Fez-se uma viagem para o Norte, depois de desembarcar e ganhar a disponibilidade. Regressa como cão, o motorista de táxis bem protestou.
E tudo acaba onde começou:
“A casa antiga – para não dizer velha – acolheu-me com o cheiro e o conforto que a memória reconheceu. Quanto tempo passado e como tudo me pareceu, de súbito, regressar ao princípio. As mesmas cores esmaecidas, em particular o amarelo da porta e janelas, o mesmo soalho corrido com tábuas carcomidas entremeadas, aqui e ali, por novas impecavelmente aplicadas, a motorizada logo à entrada do corredor e, ainda, a mesma cortina encobrindo o cubículo das garrafas de gás”.

********************

E a pensar no terrífico desse levantamento das minas, ocorreu-me alguns dos mais belos parágrafos que vi escritos sobre os estados de alma que percorrem esse levantador na hora da verdade, belos parágrafos que constam no livro “Guerra na Bolanha”, por Francisco Henriques da Silva, Âncora Editora, março de 2015:
“O que se passa pela cabeça quando estamos a desmontar uma mina com cerca de seis quilos e meio de trotil? Sabemos que qualquer erro seria, como diziam os nossos instrutores em Tancos, o primeiro, o único e o fatal. Nesse momento tudo nos incomoda, as pessoas, o arvoredo, a areia seca do arremedo da estrada em que nos encontramos, os ruídos indefinidos da floresta, as formigas que, indiferentes, passeavam num carreiro ali ao lado; alguém que assobiou lá ao longe, sem qualquer motivo; o fundo de um cigarro que o furriel deitou ali bem perto de nós, há minutos. E depois o que nos passa em flashes sucessivos pela cabeça: os eléctricos amarelos de Lisboa, tão perto do nosso coração e tão longe; a namorada que já não tínhamos, mas que podíamos ter; a última música dos Beatles, que era bem gira; os pais, os irmãos e a avó, com os seus límpidos olhos azuis e o seu ar autoritário; os estudos inacabados; a estupidez incomensurável da guerra naquele país ignorado e que poucos sabiam localizar com exatidão no mapa. Enfim, o que é que, em boa verdade, não nos passa pela cabeça? Mas, atenção: temos de nos concentrar, o importante é desactivar a mina, tão depressa quanto possível, mas sem grandes pressas. Temos medo? Creio que não. Estamos apenas apreensivos. Como é que isto se define? Não sei. A juventude e alguma inconsciência que a caracteriza acaba com qualquer vislumbre de medo e a prudência não é para aqui chamada. 

Francisco Henriques da Silva
Vamos a isto? Vamos! Mãos à obra.
Com efeito, ao escavar a terra sob a parte inferior da caixa de madeira da mina anticarro, deparei com algo de estranho, não sabia exactamente o que era. Parecia-me um arame, junto com um objecto redondo metálico em forma de pastilha. Não percebi muito bem o que era, mas estava desconfiado. Não conseguia, porém, escavar mais, até porque podia desequilibrar a mina e se esta estivesse contra-armadilhada podia dar por terminada a minha comissão na Guiné e começar outra de imediato no Além. Acresce que, à torreira do sol, estava com as mãos suadas e sujas de terra. Não podia continuar. Lembrei-me de um alferes sapador que, uma semana antes, lá para o Sul, deixou escapar o percutor e ficou feito em carne picada, que, segundo me contaram, mal cabia toda dentro de um quico. Para rematar, com todos os acontecimentos do dia, estava enervado com pequenas coisas e não com a mina propriamente dita, ou seria por causa dela?”

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 7 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20628: Notas de leitura (1262): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (44) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20639: Notas de leitura (1263): O nosso Guiné de Cabo Verde: as metamorfoses de um espaço (séculos XVI-XVII), por José da Silva Horta (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20628: Notas de leitura (1262): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (44) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Encaminhamo-nos para o desfecho esperado, o regresso a casa.
É tempo de cirandarmos por diferentes regiões, falou-se do Sul, do Norte, foram sobretudo estas as áreas de atuação do BCAV 490, faltando o Leste, é dele que hoje se fala, continuando para o episódio seguinte. E é o quadro de vida que também merece ser pontuado: a mina e a emboscada, por exemplo. E deixa-se um desabafo ao leitor: quanto mais se lê sobre as primícias da luta armada, logo releva silêncios e omissões dos dois lados, praticaram-se excessos, brutalidades inarráveis.
O PAIGC, no fervor da propaganda, não esquecia a morte de um dos seus primeiros líderes militares, Vitorino Costa, mas omitia as atrocidades, cortes de orelha e narizes, tudo ficou documentado, mas não convinha dar muito nas vistas, haverá sempre mistérios de parte a parte. E quanto mais se tenta perceber a reação dos Altos Comandos Portugueses a um fenómeno avassalador, totalmente inesperado enquanto atos subversivos, terá que se concluir que esses Altos Comandos, mormente Louro de Sousa e Arnaldo Schulz não podiam deixar de disseminar forças militares por todo o território e tentar, com aldeamentos nas proximidades dos destacamentos, dar a segurança indispensável. O que é curioso é que o mediático Spínola, que criticava acerbamente os seus antecessores, não mexeu nas pedras essenciais, e teve muitíssimos mais meios que esses seus antecessores não tiveram.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (44)

Beja Santos

“Grande amargura se passou
com estilhaços de uma granada.
A vinte e sete deste mês
morreu mais um camarada.

Em Maio com seus companheiros
o amigo Rogério saiu
e de manhã cedo se viu
num carreiro dois bandoleiros.
O Rodrigues foi dos primeiros
que aos bandidos apontou,
um deles morto ficou
e o outro nos acompanhava
e quando a Fambantã se chegava
grande amargura se passou.

O bandoleiro começou a gritar
com sinais despercebidos
fez despertar os bandidos
que nos vieram espiar.
Começaram então a atirar
à nossa rapaziada.
Foi uma espécie de emboscada
que nos armaram.
E no Candeias acertaram
com estilhaços de granada.

O Rogério levava o preso pela mão
e a ele logo apontaram
uma granada lhe jogaram
ficando estendido no chão.
O comandante do Pelotão
uma transmissão urgente fez
e o helicóptero, mais uma vez,
trouxe um ferido com gravidade,
que foi pra a eternidade
a vinte e sete deste mês.

Um telegrama à metrópole chegava
havendo grandes gemidos.
Os seus pais estavam convencidos
que seu filho regressava
pouco tempo lhe faltava
para se abraçarem na chegada.
Enquanto andou na porrada
lutou sempre com fé
mas, por azar, cá na Guiné,
morreu mais este camarada.”

********************

O bardo dá-nos a notícia de mais um morto em combate, notícia inopinada, e porquê? Quem vai acompanhando em sequência cronológica este final da comissão, dá-se bruscamente com a morte do Rogério, talvez em data anterior às delícias da vida em Bissau. O que quer que seja, remete-nos para considerações da grande elasticidade em que esta guerra da Guiné se apresenta, o BCAV 490 tarimbou no Norte, fez toda a batalha do Como, teve rescaldo na península de Bissau e partiu para o Norte, ali o esperavam novas agruras. Já se falou do Sul, onde praticamente brotou a luta armada, ainda em 1962, rebentando infraestruturas e comunicações, isolando comunidades, intimidando apoios, com resposta não menos violenta das nossas Forças Armadas. E logo em 1963 a guerrilha se apropriou da Ilha do Como, que deu pretexto mediático para anunciar uma “zona libertada”. Falou-se um pouco acima de Sangonhá, de Cacoca ou de Guileje, regiões de muito sobressalto, procurava-se travar o avanço da guerrilha nas zonas fronteiriças, impedir a formação de corredores de circulação nacionalista, a luta alastrou para o Corubal e para o Morés. No Leste, foi um tanto diferente, mas em finais de 1964 iniciava-se uma via-sacra para as forças portuguesas na região do Boé. Vale a pena darmos agora atenção a alguns testemunhos.

José Miranda Alves, em edição de autor, escreveu as suas recordações que intitulou “A passagem por uma guerra inútil, memórias e acontecimentos da minha juventude”. Conta-nos a sua infância e juventude, num pequeno lugar de Montalegre, vila onde aos 19 anos vai à inspeção, e faz questão de nos dizer com quem vai nesse dia: com o Toninho Martins, do lugar de Sidrós, o Alexandre Alves (Barreira), de Vila Nova, o já falecido João do Alves, o António do Amaro e ele, eram todos do Ferral, o Francisco de Trás da Casa de Viveiro, mais o Zé, mais o Chico Torrão de Santa Marinha e o também falecido Aníbal do Militão Sacoselo. O Zé Miranda trabalhou desde adolescente como eletricista, andou na Barragem de Pisões, no Alto Rabagão. Tem 20 anos quando recebe aviso para se apresentar no Regimento de Infantaria 13, em Vila Real, é incorporado em outubro de 1964, rememora muitas coisas, não esqueceu a semana de campo e outros detalhes.

Em agosto de 1965, o BCAÇ 1856 está sediado no Gabú, ele pertence à CCAÇ 1416. Foi mandado fazer um estágio com uma Companhia de Comandos, andou em operações no Oio, regressa e fez mais operações, em Canquelifá. Anda por Paunca e Cabuca. E em 27 de abril de 1966 inicia-se a sua estadia de um ano em Madina do Boé. O 3.º Pelotão da CCAÇ 1416 ficou em Béli, esta Companhia vinha substituir a CCAV 702. A partir deste momento, os relatos que o Zé Miranda nos dá são os ataques em catadupa a Madina, os grupos do PAIGC não escolhem a hora a que flagelam, mas têm as suas preferências no escurecer ou antes da alvorada, assim não havia o risco de aparecer a aviação. Os abastecimentos por terra são sempre operações com mortos e feridos, a passagem do Corubal em Ché Che informava o PAIGC, não faltavam minas nem emboscadas. A despeito deste fogo permanente, construíram-se abrigos e fizeram-se patrulhamentos próximos, mais era impossível. São recordados os bravos pilotos que traziam vitualhas, munições, medicamentos, correspondência e levavam feridos e também a correspondência para as famílias. Vem a férias entre janeiro e fevereiro de 1967, não deixa de registar que na sua ausência ocorreu uma emboscada na estrada Ché Che - Madina que provocou seis mortos e cinco feridos, em 9 de fevereiro. Destaca uma entrevista que anos depois foi feita ao seu comandante de Companhia, Capitão Jorge Monteiro, condecorado com a medalha de Valor Militar com Palma, este não esconde o seu ceticismo sobre as vantagens de se manter ali uma unidade militar, com uma capacidade de resposta mínima. E há também uma figura brejeira no seu testemunho, o Capelão Mota Tavares, reguila e contestatário.

Este documento pode associar-se a outro, porque lhe é muito próximo, intitulado “Uma Campanha na Guiné, 1965-1967, História de uma Guerra”, o seu autor é Manuel Domingues, que foi alferes, o seu fito foi o de deixar um testemunho, na falta de história da unidade do BCAÇ 1856, que, pasme-se, veio render o BCAV 490.

Manuel Domingues, nesta sua edição de autor, com data de 2003, enceta a publicação contando a origem, formação e mobilização do batalhão. A unidade mobilizadora foi o RI 1 e em junho de 1965 fizeram instrução de aperfeiçoamento operacional na Guarda. É profundamente crítico sobre a preparação militar, recorda a apresentação tardia de muitos especialistas, tudo veio a ter reflexos no funcionamento global da unidade e até nos aspetos operacionais. Por exemplo, o responsável da CCS – Companhia de Comando e Serviços, e os elementos das Transmissões só se apresentaram em setembro, já na Guiné. O BCAÇ 1856 ficou às ordens do Comando-Chefe. E confirma que a CCAÇ 1416 partiu logo para o Leste (Gabú), a CCAÇ 1417 veio a ter treino operacional em Bula e Fula Mandinga, e a CCAÇ 1418 treinou em Bissau, Bula e Teixeira Pinto. Em maio de 1966, o BCAÇ 1856 assume a responsabilidade do setor L3, o que significa que a sua missão se estendia por dois terços do concelho do Gabú e um sexto da área total da Guiné.

Manuel Domingues recorda que a grande maioria da população pertencia ao grupo étnico Fula mas que havia também bastantes Mandingas e núcleos de Pajadincas. As companhias operacionais irão ficar em zonas de fronteira, da seguinte forma: a CCAÇ 1416, em Madina do Boé, com um destacamento em Béli; a CCAÇ 1417 foi para Bajocunda, com um destacamento em Copá; e a CCAÇ 1418 sediou-se em Buruntuma, com destacamento em Ponte Caium. Manuel Domingues fala do imenso sofrimento das gentes de Madina do Boé. O que nos remete para outro livro, desta feita um romance, de que falaremos em seguida, “sairòmeM, Guerra Colonial”, Gustavo Pimenta, Palimage, 2000.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 31 de Janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20610: Notas de leitura (1260): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (43) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 3 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20619: Notas de leitura (1261): Longas Horas do Tempo Africano, por Manuel Barão da Cunha; 10.ª edição, revista e reestruturada, Oeiras Valley, Município de Oeiras, 2019 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20610: Notas de leitura (1260): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (43) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
O BCAV 490 está a terminar a sua comissão, vivem-se dias amenos em Bissau, missões de pouca monta, ouve-se a guerra à distância. Aproximando-se o fim da viagem, anda-se à roda do tempo, dá-se voz a um teórico do movimento revolucionário mundial, reputadíssimo, Gérard Chaliand, despedimo-nos do Capitão do Quadrado e aproveitando um romance de Luís Rosa, ele que assistiu ao reerguer de Sangonhá, onde passou as passas do Algarve, foi depois até Farim, ganhou consciência que a paz na Guiné era um conceito idílico.
Estamos em tempo de ruminações, aqui se procura dar voz a outros contemporâneos do bardo, chegará o momento, e isto em 1966, em que Arnaldo Schulz não se acanha a dizer para Lisboa como tudo se tinha agravado, a despeito de se terem criado quartéis, criado aldeamentos, procurado estabelecer elos de confiança com as populações foragidas, metidas dramaticamente entre dois fogos.
Pegamos nesses relatos e fica-nos a crença da inevitabilidade de qualquer solução militar face a um contendor entusiasmado, bem armado e credor de imensas solidariedades.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (43)

Beja Santos

“Bom serviço tem desempenhado
a Polícia Militar
fazendo serviços na cidade.
Estão sempre a alinhar.

Tem rondas de noite e dia
a pé ou de viatura.
No quartel da Amura
está toda a Companhia.
O 1.º Sargento da Secretaria
é um homem desenrascado
com seu bigode eriçado
faz andar tudo na linha.
E o nosso Cabo Batatinha
bom serviço tem desempenhado.

Às seis horas toca a alvorada,
tudo tem que se levantar.
Mas quem na cama quer ficar
dá voltinhas à parada.
O Túlio, bom camarada,
também voltas tem que dar,
o Faranhista a acompanhar
custa-lhe muito correr.
Mas tem que a disciplina manter
a Polícia Militar.

Canta o fado o Santarém,
joga futebol o Nogueira,
o Castro e o Trafaria, à sua beira,
dão uns toques muito bem.
O Tenório a cantar também,
tem grande formalidade.
O Ruas, com sua habilidade,
uma cachopa arranjou
porque anda sempre no Peugeot
fazendo serviços na cidade.

O Santiago e o Baião,
conduzem com normalidade,
e há condutores com vaidade
aqui dentro do esquadrão.
Os Alferes e o Sr. Capitão
a Companhia sabem mandar.
A classe de Sargentos a orientar
tem grande categoria
e estas praças de Cavalaria
estão sempre a alinhar.”

********************

O bardo, em território isento de luta armada, não se cansa de exaltar os afazeres da sua unidade militar e os respetivos serviços de vigilância policial. Deixemo-lo nessa doce atividade, na pacatez de Bissau, retorne-se ao contraditório, como outros viam o PAIGC nos primeiros anos da luta armada, e depois despedimo-nos do Capitão do Quadrado. Gérard Chaliand, como se disse, acompanhou Amílcar Cabral entre maio e junho de 1966 no Interior da Guiné, daí resultou um livro intitulado “Lutte Armée en Afrique”, edição François Maspero, 1967. Passando como gato pelas brasas sobre o quadro introdutório e as generalidades da Guiné, por ele elaborados, e nunca perdendo de vista de que se trata de um livro de panegírico e altamente comprometido com a luta do PAIGC, e onde nunca faltam mostras de admiração deste renomado investigador francês por Amílcar Cabral, depois de Chaliand nos ter dado conta do que foram os primeiros anos da luta, vemo-lo agora a passar do Senegal para o Interior da Guiné, na base de Maké são recebidos pelo comissário Chico Mendes (Chico Té), Amílcar Cabral arengou às massas, releva que não será admitida a exploração do trabalho por quem quer que seja, trata homens e mulheres da mesma maneira, recorda o valor que tem o trabalho da terra e lembra os presentes que é indispensável intensificar o esforço de guerra e o esforço da produção. Para ser bem-sucedida a luta armada é crucial que a população esteja do lado do PAIGC. Na resposta, Osvaldo Vieira garante-lhe que a luta continuará, são precisas mais armas porque há cada vez mais gente a querer combater. Chaliand vai recebendo testemunhos de civis que apoiam a luta, alguém lhe mostra um documento português recuperado no decurso de operações, trata-se da Ordem de Operações N.º 18/66 que fala da Operação Achega no Pelundo. Depois seguem para o Oio, seis horas de marcha entre Maké e a Base Central do Norte. Regista que a vegetação é muito densa, caminha-se por estradas estreitíssimas entre árvores e mato. Passeia-se pelas dependências da base, regista escola, hospital de campanha, dormitórios, cozinhas, tudo com um quilómetro de diâmetro. Dorme-se sobre esteiras, a base é intensamente vigiada por grupos disseminados num raio de cinco quilómetros, os militares devidamente indumentados, vê bazucas, morteiros, metralhadoras ligeiras e pesadas. Ali perto começa o primeiro bombardeamento aéreo. A ordem é de dispersar.

Retomada a calma, Chaliand visita o hospital, conversa com dois médicos-cirurgiões, há doentes com paludismo e parasitas intestinais, há alguns casos de tuberculose, lepra e sífilis. Chaliand conversa com vários combatentes e até com um desertor português, José Augusto Teixeira Mourão. Haverá novo discurso de Amílcar Cabral, fala intensamente dos direitos das mulheres e na reconstrução do país, reitera a necessidade de haver boas relações entre os militares e as populações. Depois Chaliand retoma o registo de depoimentos, um dos quais se revela bastante importante para o entendimento do início da luta armada, é dado por António Bana, mais tarde falecido. A cerca de quinze quilómetros do Morés tenta-se reconstruir uma ponte para religar a estrada de Olossato a Bissorã antes da época das chuvas. Bana mostra-se orgulhoso, na antevéspera os combatentes da esfarpe destruíram à bazucada a parte da ponte que tinha sido recentemente reconstruída. Bana pertenceu ao primeiro grupo de jovens que aprendeu guerrilha na China e formação política em Conacri com Amílcar Cabral. Segundo ele, no início de 1962, eles eram oito os guerrilheiros com responsabilidade para desencadear a luta armada, o líder era Osvaldo Vieira, tinham como missão ocupar a zona Balanta, a zona Mandinga e a zona Fula e Saracolé, no Oio. Nesse tempo, havia enorme crispação em Dacar, vários partidos procuravam sobrepor-se ao PAIGC, caso do Movimento para a Libertação da Guiné, rapidamente se veio a descobrir que eram quadros sem apoio das populações. Bana refere a ofensiva lançada pelas tropas portuguesas em finais de 1962, é o exato momento em que começa a separação das águas, os que foram para o mato e os que persistiram em ficar à sombra da soberania portuguesa. A comitiva faz agora o seu retorno para o Senegal, passa-se de novo por Maké, Djagali, Osvaldo Vieira vai explicando como se processara a luta armada a partir de meados de 1963 na região, e os resultados obtidos em 1964 e 1965. Em Djagali, Amílcar Cabral arengou num comício para cerca de três mil camponeses, entusiasma as massas, lembra que as tropas portuguesas começam a ficar confinadas aos seus campos fortificados, que qualquer dia vão ter que abandonar o Boé, onde a guerrilha não lhes dá descanso. A comitiva põe-se ao caminho, atravessa a fronteira e a última parte do livro de Chaliand é uma súmula sobre a luta armada em toda a África.

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Em 2011, nas suas memórias intituladas “La Pointe du Couteau”, Volume I, Edições Robert Laffont, Chaliand recorda esta viagem que o marcou profundamente, ele era o quarto estrangeiro a entrar clandestinamente na Guiné-Bissau. Antes dele, tinham lá estado dois jornalistas franceses e Mario Marret que realizou o filme Lala Quema. São memórias em que ele lembra todos os guerrilheiros com quem conversara e que já tinham falecido e termina o seu relato dizendo que ao longo da sua vida recusara polidamente altas distinções e condecorações de toda a espécie, a única que não recusou foi a Medalha Amílcar Cabral, concedida pelas autoridades de Cabo Verde, e como se falasse para si recorda o extraordinário dirigente político que ele sempre considerou como um dos raros africanos do século XX que podem ser alçapremados ao nível dos grandes dirigentes do mundo contemporâneo, apesar da pequenez do país.

“Tenente General Alípio Tomé Pinto, o Capitão do Quadrado”, por Sarah Adamopoulos e Alípio Tomé Pinto, Ler devagar, 2016, é uma biografia de alguém que viveu intensamente os tempos do BCAV 490 no Norte da Guiné. Observa a quem o entrevista: “A Guiné mudou-me. A minha mulher diz que quando eu fui para lá era ainda um miúdo, apesar dos meus 28 anos, e que quando voltei parecia ter envelhecido 10 anos. Penso que ela tem razão”. Ele recorda Binta, o Oio, a gente afeta ao PAIGC a cirandar com todas as facilidades, quando ele pôs os pés em terra à frente da CCAÇ 675. E escreve- no livro que só um mês depois de ter chegado a Binta ele se abalançou a sair com as viaturas para percorrer os escassos 16 quilómetros que distavam entre Binta e Farim, onde estava o BCAV 490. Com prudência e astúcia, atirou-se ao trabalho, começou por uma batida à região de Lenquetó, onde estaria reunido um grupo do PAIGC na presença do seu chefe. Esta operação fez dezenas de mortos e gerou quarenta prisioneiros. Resultados animadores que levam à multiplicação dos patrulhamentos ofensivos, golpes de mão e batidas; aos poucos, os grupos do PAIGC recuam, desistem mesmo de pôr abatises nas estradas. É ferido em combate e recupera. Segue-se uma operação no Oio, tudo correu bem. Afastados os guerrilheiros, Tomé Pinto e os seus homens dedicam-se a reerguer a povoação de Binta, a população, outrora apavorada, metida entre dois fogos, começa a regressar. É nisto que chega a notícia de que fora admitido ao curso do Estado-Maior. Com enorme emoção, despede-se de Binta.

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O escritor Luís Rosa combateu na Guiné entre 1964 e 1966, escreverá uma obra alusiva “Memória dos Dias Sem Fim”, Editorial Presença, 2009. É colocado em Sangonhá, no Sul, assim definido:  
“Um corredor estreito de cerca de três quilómetros, esganado entre o rio Cacine e a linha imaginária da fronteira. Terra de imprevistos, onde a guerrilha se movia à vontade e se construía uma linha de quartéis, tentando conter a infiltração”.
Descreve a construção do quartel, naquele ponto, entre Gadamael e Cacine constroem-se as defesas, espessas paredes de chapas abertas de bidão, profundas fossas circulares, abrigos, isto entre flagelações e emboscadas. Rasga-se uma pista de aviação. Fazem-se surtidas, autênticas manobras punitivas sobre as forças do PAIGC.
A vida em Sangonhá parece renascer, distribuíram-se sementes, desbravou-se a terra, semeou-se a mancarra, o resultado foi uma colheita abundantíssima. Ali perto, em Guileje, já se vive às portas do inferno. É transferido para Farim, e o que parecia ser um paraíso traz-lhe um novo fragor da guerra.
Um romance com algumas páginas muito belas e que nos faz situar em vários pontos da Guiné, entre 1964 e 1966, com intensidade, e com raras exceções, na Guiné continental a guerrilha não dava tréguas.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 24 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20589: Notas de leitura (1258): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (42) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 27 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20599: Notas de leitura (1259): "Memórias Boas da Minha Guerra", por José Ferreira - Recordar, recolher, semear alegrias e solidariedades: Um incansável ex-combatente que ata e desata entre o passado e o presente (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20589: Notas de leitura (1258): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (42) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Entrou-se numa fase tranquila no BCAV 490, o bardo anda disfarçado de polícia militar e não se queixa.
Alguém que acompanha o blogue, que foi alferes em Moçambique, veio à estacada falar do seu irmão, um furriel miliciano do BCAV 490, louvado e condecorado. Impossível não acolher tão oportuna e benfazeja intervenção, oxalá que apareçam mais.
Põe-se termo às intervenções de Dutra Faria, o primeiro dos jornalistas que veio até à Guiné (uma série a que se podem juntar nomes como os de Amândio César, Horácio Caio e José Manuel Pintasilgo, série essa que culminará com um conjunto de reportagens de Avelino Rodrigues com uma polémica entrevista a Spínola onde se aflora a autodeterminação, pasme-se). E na linha do contraditório, dá-se a palavra a alguém que virá a ter reputação mundial como escritor e investigador dos movimentos revolucionários, Gérard Chaliand, que entre maio e junho de 1966 acompanhou Amílcar Cabral e outros dirigentes do PAIGC na região do Morés.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (42)

Beja Santos

“Continuamos a trabalhar
a missão desempenhámos.
Acabámos de rondar,
à Amura regressámos.

A placa contornando,
vemos as pernas às mocinhas.
Vão-se dando umas voltinhas
pela rua das montras passando,
à esquerda do sinaleiro voltando,
segue-se na rua à beira-mar.
Vêm-se os namoricos a gozar
nos bancos do jardim
e, com esta vidinha assim,
continuamos a trabalhar.

Voltando pelo mesmo lugar,
tomamos a rua do Hospital
e antes do quartel-general
tornamos à esquerda a voltar.
Aos Bombeiros vamos passar
e as duas gémeas miramos.
Ao Alto-Crim chegamos
e seguimos até à Flor do Minho.
E nas tabancas por outro caminho
a missão desempenhamos.

Passando ao Alto-Crim, novamente,
perto do Capitão se vai torcer
e as estudantes vamos ver
ao avançar prudentemente
à esquerda da rua em frente.
Vê-se a Milú a passear.
Ouve-se o Concha a tocar
com sua amabilidade
e correndo o resto da cidade
acabamos de rondar.

Temos que incomodar a rapaziada,
mandando apertar os botões
e manda-se desarregaçar os calções
e andar de farda asseada.
A malta às vezes é tarada,
e com eles nos chateamos
alguns malandrecos encontramos
que só obedecem a bastão
e levando-os ao nosso Capitão
à Amura regressamos.”

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O bardo prossegue a cantilena do quotidiano com roupagem de polícia militar, patrulham Bissau e não esquecem os namoricos. Aqui se faz um desvio e profundo. Acontece que quem acompanha o bardo escreve com regularidade num jornal de Tomar, com lastro de pergaminhos, O Templário. A propósito de uma recensão sobre Tomar e os seus tesouros, um leitor interveio com várias sugestões, Tomar não é só cidade, há tesouros pelas redondezas como Alviobeira, Asseiceira, S. Pedro da Beberriqueira, Bezelga, Carregueiros, Casais, Junceira, Madalena, Olalhas, Paialvo, Pedreira, Sabacheira e Serra, toca de inventariar tais tesouros de tais localidades. E depois de se apresentar como alferes miliciano de Cavalaria em Moçambique, onde permaneceu de outubro de 1972 a janeiro de 1974, na região de Cahora Bassa e de fevereiro a outubro de 1974 na Beira, lembrou que um seu irmão fora furriel miliciano de Cavalaria do BCAV 490. E deu pormenores, desta maneira:  
“Aqui vai a foto da Cruz de Guerra de 3.ª Classe com que o (então) Fur. Mil. Cav. António Augusto Pimenta Henriques Simões da CCav 488 do BCav 490 foi agraciado (entregue nas cerimónias do 10 de Junho em Tomar) pelos feitos em combate, designadamente em S. Nicolau na Ilha do Como - Guiné na Operação Tridente.
Irei fotografar o louvor do CMDT de Batalhão TCor Cav Fernando Cavaleiro que deu origem à condecoração e tempestivamente enviar-lho-ei.”


Mais tarde chegou o seguinte mail:

“Aqui vai a foto de um quadro com os louvores do meu irmão António Augusto Pimenta Henriques Simoes da CCava 488 BCav 490.”



E por fim o seguinte mail:
“Como prometi aqui remeto quatro fotos do meu irmão António Augusto Pimenta Henriques Simões (Fur. Mil. Cav. da CCav 488/BCav 490) em operações na Guiné 1963.1965.”





Um agradecimento profundo a João Manuel Pimenta Henriques Simões pelas cativantes lembranças que nos ofereceu sobre o seu irmão.
E voltamos a Dutra Faria e ao conjunto de textos intitulados “Na Guiné Portuguesa junto da Cortina-de-Ferro” que foram dados à estampa no jornal “Diário da Manhã”, inequivocamente ligado à ideologia do Estado Novo. O diretor da ANI – Agência de Notícias de Informação aproveita a oportunidade para referir movimentos rivais do PAIGC e não lhe escapou o despotismo de Sékou Touré e entrevista inclusivamente um fugitivo ao regime que se abrigou na colónia portuguesa. Deplora que uma boa parte dos portugueses não perceba que Portugal está em guerra contra o seu inimigo de estimação, o comunismo. Há a guerra, ele está absolutamente convicto que o terrorismo será em pouco tempo pulverizado, a rejeição dos verdadeiros guineenses é inequívoca. A sua reportagem culmina com uma visita a Bor, um asilo que tem funcionamento primoroso:
“Em Bor, os rapazes permanecem até aos sete ou oito anos, idade em que transitam, com largo pranto dos garotos e muitas lágrimas, também, nos olhos das Irmãs para outro asilo; as raparigas, porém, ficam até se casarem – ou até aos vinte e um anos, se acaso não se casam antes dessa idade. Aqui aprendem a ler e a escrever, a cozinhar e a costurar, a ter uma casa bem arrumada e a cuidar dos filhos que lhes hão de nascer um dia. Nas horas vagas, bordam, e das suas mãos saem então maravilhas só comparáveis aos bordados da Madeira e dos Açores.”

E a reportagem termina com um certo desconcerto:
“Ao sair pergunto à Irmã Rosa se os terroristas alguma vez as ameaçaram ou importunaram.
A resposta é encantadora:
- Porque haviam de fazê-lo? Nós educamos-lhes aqui as filhas…
Só Deus sabe, efectivamente, quantos dos indígenas que vemos pelos campos, debruçados para a terra a cavar, não trocam, à noite, a enxada pela pistola-metralhadora – ou, ao menos, não têm na palhota, bem escondido, o distintivo do PAIGC. Mas, se os pais ainda podem ser suspeitos, os maridos das raparigas que saem de Bor já são todos – e em grande parte graças à benéfica influência que sobre eles exercem as mulheres – portugueses dos melhores. E assim também combatem o terrorismo – à sua maneira – as seis boas freirinhas da Missão-Asilo de Bor”.

Findo este texto apologético de Dutra Faria, procura-se um contraditório, a viagem que Gérard Chaliand fez à Guiné entre maio e junho de 1966, é um dos primeiros brancos que acompanha Amílcar Cabral, atravessam a fronteira senegalesa, embrenham-se pelo mato, de piroga chegam a terra firme que os conduz ao Oio. Gérard Chaliand não esqueceu esta viagem e mais tarde no seu primeiro livro de memórias “La Pointe du Couteau”, Robert Laffont, 2011, revelará o entusiasmo que tal incursão lhe provocou, ficou marcado pela personalidade do líder do PAIGC. O seu livro “Lutte armée en Afrique” foi editado na Livraria François Maspero em 1967.
Investigador de reputação mundial em movimentos revolucionários, Chaliand começa por dizer que a luta armada mais consequente do continente africano era a que se desenrolava na Guiné, e menciona um comunicado do PAIGC, emitido em Conacri em 9 de maio de 1966, acerca da viagem em que Chaliand acompanhou Cabral. Tratou-se de uma itinerância pelo Norte, Cabral e a sua comitiva visitaram escolas, dispensários, bases de guerrilha e unidades das forças revolucionárias. O líder do PAIGC era acompanhado por Osvaldo Vieira e Francisco Mendes bem como por um responsável do MPLA e pelo jornalista e escritor francês Gérard Chaliand. Uma visita em que se percorreu Djagali, Maké e toda a base do Morés. Segue-se a narrativa da incursão.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 17 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20567: Notas de leitura (1256): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (41) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20577: Notas de leitura (1257): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20567: Notas de leitura (1256): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (41) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Depois da tempestade veio a bonança para o BCAV 490, atividades em Bissau, o bardo descreve-as álacre, até se faziam ações policiais com a detestada PM, imagine-se. Com o caminhar para o fim desta épica, não se pode descurar o que de um lado e de outro se dizia sobre aquela luta armada que tinha largos antecedentes para os acontecimentos de 1963. Por isso entrou em cena Basil Davidson, reputado jornalista britânico que durante a II Guerra calcorreara a Jugoslávia em guerrilha e que não esconde a profunda admiração pelo pensamento e ação do líder do PAIGC.
Vários repórteres portugueses foram à Guiné em tempo de guerra, recorde-se Amândio César, Horácio Caio e mais tarde José Manuel Pintassilgo. Mas não se pode esquecer que o primeiro de todos se chamou Dutra Faria, ele irá publicar no início de 1964 um conjunto de textos que serão publicados no inequívoco jornal do regime, o "Diário da Manhã". E, como o leitor constatará, dirá coisas do arco da velha, sem tirar nem pôr, a reportagem será intitulada "Na Guiné Portuguesa, junto da Cortina-de-Ferro". Dutra Faria ainda nos irá fazer companhia, a par de outro importante admirador de Cabral, Gérard Chaliand.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (41)

Beja Santos

“Como irmãos todos se dão,
na Polícia Militar
os doentes do Batalhão
estão sempre a alinhar.

Os cozinheiros a dividir o comer
não fazem de nós excepção.
O nosso capitão
nisso tem muito prazer.
Pelo Natal e Ano Novo nos quis ver
juntos no mesmo serão.
Houve uma reunião
onde o Entretela tudo orienta,
pois a PM e o quatro noventa
como irmãos todos se dão.

Na rua somos encontrados
mas não nos podem ralhar,
porque gostamos sempre de andar
com os botões apertados.
Andamos sempre asseados
vendo as raparigas passear
elas só querem namorar
oficiais e não soldados.
Mas há algumas praças desenrascados
na Polícia Militar.

O Borba e o 1.º Fortunato
em Bissau vão continuando
e para o Dakota vão mandando
para quem está capaz de mato.
O Primeiro torna-se chato
mas é essa a sua missão.
Faz muita opinião
em os cabelos mandar cortar
e está sempre a engatar
os doentes do Batalhão.

Albino e Joaquim, condutores,
Mário e Andrade, barbeiros,
Paulo e Vidinhas, enfermeiros,
são muito trabalhadores.
Nos quartos dos superiores
temos o Gomes a labutar.
O Mendes farta-se de trabalhar
e Artur guiando todos os dias
e os inutilizados das companhias
estão sempre a alinhar.”


********************

A Comissão do BCAV 490 aproxima-se do seu termo, o bardo aqui fala de rotinas e ocorre-nos trazer para a liça documentação a servir a causa do PAIGC e mais outra, bem nacionalista, uma reportagem publicada no Diário da Manhã, alguém que aterrou em Bissalanca em janeiro de 1964, o Governador era Vasco Rodrigues e o Comandante-Chefe Louro de Sousa.

Basil Davidson conheceu Amílcar Cabral e apoiou-o em Londres quando o líder do PAIGC visitou a capital do Reino Unido pela primeira vez. Sentir-se-á companheiro da causa de Amílcar Cabral, não esconde a admiração que por ele tem, visita a guerrilha e publicará em 1969 “A Libertação da Guiné, aspectos de uma revolução africana”, a edição portuguesa aparecerá em 1975. Como é evidente, narra a luta armada de forma encomiástica, é uma escrita com bastantes testemunhos e elogios rasgados. E traz elementos que podem abrir luz para o contexto histórico que precede e acompanha a vivência do bardo. Davidson ouve António Bana, um combatente com responsabilidades, e dá-nos o seu testemunho por escrito: “Éramos então sete, em 1961, Chico Mendes, Osvaldo Vieira, Nino, Domingos Ramos, Constantino Teixeira. Tínhamos acabado de regressar de um ano de instrução militar na Academia Militar de Nanquim, onde fomos muito bem treinados. Cabral fez-nos um curso intenso de política, depois explicou as tarefas que cabem a cada um de nós e como nos havíamos de desempenhar”. Um outro guerrilheiro, de nome Armando Ramos diz ao jornalista britânico: “Chamamos zona libertada a uma área em que temos controlo quotidiano, em que apenas excepcionalmente temos de usar o nosso exército para neutralizar uma possível surtida portuguesa a partir de uma dessas guarnições e em que a população está mobilizada para o nosso lado tanto no sentido político como no sentido militar da palavra”. É neste quadro de considerações que Davidson definirá o PAIGC como um movimento revolucionário que se baseia numa análise marxista da realidade social: “O ponto importante é que o PAIGC é um movimento baseado na análise da realidade social na Guiné”.

Basil Davidson
Acrescente-se que toda esta laude não invoca minimamente o contraditório. Se é verdade que foi capturado em 22 de maio de 1963 o então Sargento António Lobato, é descarada mentira dizer que os guerrilheiros deitaram dois aviões abaixo, o que acontecera foi que tinham tocado nas asas, um despenhou-se e o piloto morreu, o Sargento Lobato conseguiu manobrar e aterrar numa bolanha onde foi capturado. Alguém diz ao jornalista que as tropas portuguesas tinham sido desbaratadas no porto de Cachil pelas forças nacionalistas sob o comando de Agostinho de Sá, em 1 de junho de 1963, na ilha do Como, as forças portuguesas tinham sido forçadas a retirar-se e a refugiar-se em Bolama, uma outra mentira descarada. Falando mais adiante da batalha do Como, que durou mais de 70 dias, em 1964, o jornalista, sem titubear, informa que as forças portuguesas tinham sofrido pesadas baixas, fora a pior derrota de sempre em toda a história do colonialismo português. Alguém diz e ele escreve, sem qualquer hesitação: “Calculamos as baixas do inimigo em 650 homens”.

O jornalista Dutra Faria, diretor da ANI – Agência de Notícias de Informação vai à Guiné e publica no Diário da Manhã entre janeiro e fevereiro de 1964 um conjunto de crónicas intituladas “Na Guiné Portuguesa, junto da ‘Cortina de Ferro’”. Descreve o território, a sua complexidade, os heróis portugueses que por ali passaram, dirá que Amílcar Cabral, em Bissau, quando estudante, era um rapazinho que ia à missa todos os Domingos. Cabral deixou-se empolgar pelo marxismo no Instituto Superior de Agronomia onde conheceu a jovem com quem viria a casar-se. E escreve: “Pela fotografia que alguém nos mostra, é uma linda rapariga de olhos claros e cabelos talvez aloirados. Branquíssima. Ambos, concluído o curso, viveram e trabalharam em Bissau, onde, afirma-nos alguém – um chefe de Serviço, pelas suas gafes monumentais e por um estúpido racismo de última hora, completou no jovem agrónomo de cor a obra iniciada em Lisboa, no Instituto, pelos seus colegas comunistas e continuada, depois, pela esposa – revolucionária exaltada”. Dutra sabia pouco da história do PAIGC, mas adianta que tinha andado em digressão com outros revolucionários numa longa viagem entre a Cortina de Ferro e a Cortina de Bambu, alguns dos seus companheiros tinham frequentado escolas de agitação política e sabotagem, os quadros da guerrilha guineense estavam longe da improvisação dos ministros e generais de Holden Roberto, “criaturas que eram, ontem ainda, alfaiates e barbeiros; quando é Moscovo que organiza o terrorismo, tudo se faz a tempo e horas, sem pressas, sem precipitações, meticulosamente”.

Assombra tal elogio mas logo a seguir percebe-se porquê, Dutra está a picar nos EUA, a política norte-americana confiara declaradamente em Holden Roberto: “O lamentável é que sejamos nós a pagar as custas da aprendizagem. Nós, portugueses, que na batalha dos dois imperialismos pela posse de África nos encontramos entre dois fogos”. Dirá noutro texto que o PAIGC estava a ter relativo sucesso junto dos Balantas, pudera, era uma etnia onde o roubo se assumia como instituição…

O que se passava na atividade do PAIGC era infiltração, “os terroristas de Amílcar Cabral nunca conseguiram desalojar os nossos soldados de qualquer ponto por estes ocupado”. Dutra escreve muito com base no diz-se e consta, como adianta: “Ao que parece, cada grupo de terroristas – e, segundo me afirmam, não haverá, em toda a Guiné, mais do que uns oito – é constituído por um número de homens variável entre os trezentos e os quinhentos”. E ainda neste clima do diz-se e do consta, adianta que os guerrilheiros faziam patrulhas de dois e três homens, que tinham oficiais e comandantes, que o camarada oficial estava encarregado das operações de guerra, que havia um encarregado da distribuição das munições e conservação das armas. Eram mulheres afetas que vinham fazer compras às povoações e que tinham por missão espiar os movimentos das Forças Armadas Portuguesas e conclui drasticamente: “Não será de admirar que em Bissau e noutros centros algumas delas expressamente se prostituam… por amor ao partido”. Logo a seguir, informa que há duas grandes florestas na Guiné, a do Cantanhez, entre os rios Cacine e Cumbijã, e na parte central a Mata do Oio. Amílcar Cabral, proclama o jornalista, alimentava-se do exagero, a Rádio Conacri emitia os seus comunicados, no final do ano de 1963 afirmava que a guerrilha tinha abatido quinze aviões militares portugueses, Cabral chegara mesmo a proclamar que antes do fim de 1963 os nacionalistas entrariam em Bissau.


Mas havia mais vida para além do PAIGC, como ele escreve na edição do “Diário da Manhã” de 31 de janeiro de 1964. Em meados do ano anterior reunira-se em Dar-es-Salam a chamada “Comissão Coordenadora dos Movimentos de Libertação da África” que decidira enviar a Conacri e a Dacar uma missão para verificar qual era o mais representativo dos vários partidos que proclamavam os seus propósitos de emancipar a Guiné e o Arquipélago de Cabo Verde. Tudo correra a favor do PAIGC, o representante da FLING enterrara-se e desacreditara-se, ao chegar a Dacar já estava demitido. Fala-se em François Mendy e Henri Labéry, Dutra não chega a nenhuma conclusão sobre a importância dos movimentos de que eles fazem parte. Num outro texto vem dizer que há muita gente em fuga da Guiné Conacri, a ditadura de Sékou Touré é verdadeiramente insuportável. E no texto seguinte vai surpreender o leitor (atenda-se que o “Diário da Manhã” era o jornal dos indefetíveis do Estado Novo): “Portugal está em guerra: em Lisboa ainda talvez seja possível a alguns esquecer essa realidade que nos foi imposta – a que não podíamos fugir sem devolver à anarquia esta África que descobrimos um dia e que pacificámos ao longo dos séculos”.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 10 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20545: Notas de leitura (1254): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (40) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 13 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20555: Notas de leitura (1255): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20545: Notas de leitura (1254): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (40) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Era inaceitável não se fazer uma referência, ligeira que fosse, a quem escreveu poesia durante e depois da comissão. É a dimensão literária mais pobre que temos, mas há um ponto intrigante, a meu ver muito pouco explorado no blogue: a poesia popular. Reconheço que não se pode inventariar estes livrinhos que circulam nalgumas reuniões anuais, atribui-se pouca importância para a explicação histórica, é muito pessoal mas, reconheça-se, de grande pendor afetivo, deixo à vossa consideração a hipótese de se procurar tentar fazer um levantamento, não tenho nenhuma receita.
Para se olhar ao espelho com o bardo do BCAV 490 só me ocorre, pela máquina poética, Álamo Oliveira, o poema escolhido parece-me gracioso, um açoriano carregado de saudades da Guiné.
Que eu saiba, Álamo Oliveira não regressou ao tema.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (40)

Beja Santos

“Foi ferido um Furriel
ao pé da enfermaria.
A 489 com coragem
novamente se distinguia.

Como é de calcular,
ainda existe grande bando
e a 18 de Abril o Comando
eles vieram atacar.
Granadas começaram a jogar,
caindo muitas fora do quartel.
O nosso amigo Joel
grande susto apanhou
porque quando uma rebentou
foi ferido um Furriel.

Tudo se levantou
quando na caserna uma caiu
a mala do barbeiro se partiu,
mas ninguém se magoou.
Para as viaturas tudo abalou
onde perigo não havia.
Mas neste momento se ouvia
o Furriel Mortágua aos gemidos,
foi ferido pelos bandidos
ao pé da enfermaria.

Na 487 rebentaram
umas minas há tempos atrasados.
Ficaram alguns colegas atordoados,
mas todos recuperaram.
O Pardal foi dos que ficaram
estendidos na folhagem.
Contra o grupo selvagem
luta-se sem pena nem dó
por isso entrou em Sulucó
a 489 com coragem.

Avançando uns carreiros,
ao local preciso chegaram,
o acampamento cercaram,
desorientando os bandoleiros.
Cá de trás com os morteiros
muito fogo se fazia,
neste momento a Companhia
arrancou com os seus pelotões
e apanhando armas e munições
novamente se distinguia.”

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Enquanto decorrem estas refregas, cuide-se de saber se há livros de poesia dedicados à Guiné, ou com afinidades. Armor Pires Mota chegou a ser galardoado com o prémio Camilo Pessanha pelo seu livro "Baga-Baga". Há, em pequenas edições, outras obras de poesia popular. Um dia recebi de um antigo soldado, António Veríssimo, da CCAÇ 2402, um livro de perfeita rima métrica, detive-me num poema muito singelo, afetuoso, senti-o quase como padrão da poesia popular de toda a guerra da Guiné, veja-se esta “Carta P’rá Família”:

“Boa saúde a todos desejo
E que a vida vos corra bem
Eu não sei se mais vos vejo
Ou se pereço aqui, na terra de ninguém

Estou ótimo graças a Deus
Vou vivendo no meio da guerra
Esperando voltar para os meus
Para a paz da minha terra

Corre carta, corre carta
Sai daqui, vai embora
Leva a meus pais esta farta Saudade que eu sinto agora

Voa carta, carta voa
Segue sempre em frente
E quando chegares a Lisboa
Vai ter com a minha gente

Segue carta o teu caminho
Leva beijinhos e saudades também
Diz lá no meu cantinho
Que aqui mal! Eu estou bem”

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Álamo Oliveira
Como é óbvio, não há condições mínimas para se proceder a um inventário desta poesia popular, encontrámo-la casualmente, tal como eu tive a dita de encontrar em casa de alfarrábios esta obra do bardo do BCAV 490.
Mas há outros atrevimentos poéticos, um deles merece citação pelo que é e de quem é. “Triste vida leva a garça”, por Álamo Oliveira, Ulmeiro, 1984, precede uma obra já aqui referenciada, Até Hoje (Memória de Cão), também da Ulmeiro, 1986. Álamo Oliveira andou por Binta, honremos o bardo falando da poesia de Álamo Oliveira, aqui ficam extratos do seu poema “cantigas de ter ido à guerra não p’ra matar ou morrer – pico, soldado – mais nada”, com ressaibos açorianos, não se pode desmentir o sangue:

“Guiné, meu campo de guerra,
Gindungo com que tempero
A alcatra da minha terra…
Vinho de palma não quero.

Antes ‘cheiro’ que me aguarda
Com confeitos e alfenim.
Não fui herói de espingarda,
Não fui cobra de capim.

Noites longas, sem mulher;
Noites de cio em segredo.
- Seja soldado quem quer,
Toda a farda mete medo.
(…)
Foi mau. Foi duro. Foi reles.
(Hoje é só bruma passada).
Ó terra de curtir peles,
Mochila cheia de nada.

De resto, quem não recorda
O pavor que nos lançou
O Mastigas numa corda
No dia em que se enforcou?

Fui soldado. Simplesmente.
Soldado de corpo nu.
Amei África e sua gente…
Muito sumo de caju.

Por isso, canto, em quadra
A saudade que engatilha
A arma que me desarma:
- África-mim/minha ilha!

Dos companheiros de armas,
Guardo o rosto e afeição.
Soldados com espingardas
Murchas e presas à mão

Para puxar o gatilho
No momento de matar.
Antes, sachavam o milho,
Agora, são de odiar.

Hoje, à distância de anos,
Meia légua do caixão,
Coso, de memória, os panos:
- Meus companheiros quem são?
(…)
Que eu quis de África o chão,
O lugar e a madrugada;
Amei o seu povo sem pão…
Eu fui soldado – mais nada.

Ansumane, meu amigo,
Ainda estás na mesquita?
Sonho, às vezes, contigo,
Teu olhar mago me fita.

De toga, África te veja,
Verde-oiro bordado à mão,
Curvado – Alá te proteja! –,
Nas rezas do Alcorão.

Num só Deus me comprometo,
De um só Deus te não arranco.
O teu é negro de preto,
O meu é alvo de branco.
(…)
Terras de Binta, Mansoa,
Safim, Bissau, Jumbembem,
E outros nomes que, em boa
Verdade, não me lembro bem.

Lá no fundo da picada,
Vejo avançar para mim,
Negra balanta gingada
Com um molhe de capim.

Carrega o filho às costas,
Seios caídos de fora,
Mãe-negra, em quem apostas
O teu futuro agora?

Que eu vi cacheus e gebas
Caminharem com a maré,
Mas, por mais rios que bebas,
Não terás teu candomblé.
(…)
Mãe-negra – África-mim,
Meu postal desilustrado,
Tempo de angústia e capim
Ao meu ombro pendurado.

Que bem faço por esquecer
Armas, mosquitos, viagem.
África ferrou-me o ser,
Trouxe-a feita tatuagem.

Se da guerra me livrei,
Do seu povo é que não.
Na farda, não me piquei,
Mas trouxe, na minha mão

Ritos de fanado e morte,
Rios mansos que o sol coa,
Luar branco, trovão-forte,
Negro vogando em canoa.
(…)
Guiné! Guiné! Voz de gente!
Doce de coco e baunilha!
Bem te sinto, no meu ventre,
A pulsar no som da ilha,

Que é de mar, enxofre e lava
Hortênsias e solidão.
Guiné, minha irmã-escrava,
Mango caído no chão.”

Por aqui fiquemos, não posso escusar dizer que esta desgarrada com marca de água açoriana me impressiona profundamente, é toada nova de poesia de sabor luso-guineense, um espinho de saudade, ele é porta-estandarte dessa Guiné que ficou para muitos como uma irmã-escrava lá nas terras do poeta feitas de enxofre e lava.

(continua)
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Notas do editor:

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Último poste da série de 6 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20534: Notas de leitura (1253): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (1) (Mário Beja Santos)