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quarta-feira, 22 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4725: Blogoterapia (120): Como falam as fotografias (António G. Matos)

1. Mensagem de António G. Matos, (*), ex-Alf Mil MA da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, com data de 20 de Julho de 2009: Caríssimos editores, Assim o considerem e aqui fica mais um dos meus flashbacks a pretenderem ser post. Um abraço amigo, António Matos 2. Como falam as fotografias!... Que clarividência!... Quanta angústia!... Quantas ilusões e desilusões naqueles corações de meninos que se apertam de encontro à carcaça do "Carvalho Araújo" na incerteza do dia seguinte.... E quanta afeição nos agarrou àquele barco para o resto da vida.... Lá dentro, um sentimento indefinido e confuso dum certo dever patriótico que não se ajustava ao desprezo aviltante criado pelas condições em que, principalmente os soldados, eram transportados para uma acção de defesa duma pátria que tudo lhes ficava a dever!... Até a vida !... Como falam as fotografias!... Desde o cais de S. Miguel até ao de Pijiguiti foram 10 dias sofridos, de uma lassidão confrangedora que a calmaria proporcionava, com uma derivação à Ilha do Sal para abastecimento de água (até nisto a ironia do destino...) e regresso ao Atlântico para a recta final... Para além do mais, tivemos que aguentar uma viagem com o barco inclinado (vejam as fotos!) que criava umas dores de costas dos diabos! O "Carvalho Araújo", também ele já entregou a alma ao Criador... Sinal dos tempos... Ficam-nos as recordações fotográficas para memória futura... António Matos Navio Carvalho Araújo > À partida de S. Miguel Navio Carvalho Araújo > À chegada a Bissau __________ Notas de CV: (*) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4674: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (16): O alvoroço dos (re)encontros: obrigado, malta da CCAÇ 2790 (António Matos) Vd. último poste da série de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4710: Blogoterapia (119): As Fantas, as Marias, as Natachas, ou o amor em tempo de guerra e de diáspora (Cherno Baldé)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3894: O cruzeiro das nossas vidas (13): S.O.S., fogo a bordo do Carvalho Araújo (Luís F. Moreira)

1. Mensagem de Luís F. Moreira (*), ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 2789/BCAÇ 2928, Bula, 1970/72, com data de 13 de Fevereiro de 2009: Complemento do escrito do António Matos e a sua viagem para a Guiné, com todo o respeito e consideração por tudo quanto tem escrito. Obriga-nos a retirar das gavetas das nossas memórias recordações envelhecidas. A nossa atribulada viagem para a Guiné Dia 25 de Novembro de 1970, cerca das 10.00 horas, tudo a postos para embarcar mais uma carga para a Guiné. Todas as cerimónias habituais, ninguém ligou nada. Portaló colocado ao navio e começaram a entrar os militares que pertenciam às Companhias, em seguida aqueles que iam em rendição individual, (era o meu caso), e quando toda a gente pensava que íamos seguir viagem, começaram a chegar carrinhas militares, mas celulares. Imediatamente surgiu um boato, constava que tinha havido distúrbios a bordo e que os tropas envolvidos já não iam seguir connosco, mas iriam presos. Passado algum tempo tudo se clarificava, as carrinhas começaram a encostar ao navio e a descarregar os presos que transportavam, eram militares que iam de facto para a Guiné de castigo e com a indicação de serem colocados em locais de maior porrada. Recordo apenas um ou outro pormenor. Vinham de diversos quartéis; um deles tinha a alcunha do gaiolas e o seu crime tinha sido pegar num jeep do Quartel do Batalhão Caçadores 9, em Viana do Castelo e num fim-de-semana que não tinha passaporte foi para casa e só veio quando o foram buscar. Posto isto, o Carvalho Araújo zarpou barra fora. Nos primeiros dias os enjoos do costume e quase toda a gente a não conseguir comer, por isso a não preservar os instrumentos que lhe iriam fazer falta nos dias que a fome apertasse e o enjoo passasse. Era ver pelo convés garfos, facas copos e pratos abandonados, houve até quem os atirasse ao mar. No terceiro dia, houve simulacro de incêndio, para cada um saber o que fazer em caso de emergência e qual a baleeira que lhe era atribuída em caso de evacuação. Todos ficámos espantados com as camadas de tinta que tinham os cabos das roldanas que deveriam estar soltos para levarem as mesmas para a água. No quarto dia, cerca das 4.00 horas, foi dado o alarme de incêndio a bordo e que cada um deveria ocupar os lugares previamente distribuídos, todos pensamos que seria mais um simulacro e portanto não tínhamos nenhuma pressa, ainda por cima de madrugada. Tomámos consciência da realidade quando vimos a tripulação já de coletes vestidos, atrapalhados e a não saber o que fazer. Verificou-se que existia uma fuga de fuel na cozinha e que ia escorrendo a arder para dentro dos porões, local onde eram acomodados os soldados, em beliches feitos em madeira. Estava o pânico instalado, os que estavam dentro dos porões queriam sair, e quem queria apagar o fogo tinha que entrar. O acesso era apenas uma mísera escada de madeira com um corrimão. Eis que surgem os nossos salvadores, autênticos bombeiros de primeira qualidade, eram os militares que tinham chegado nas carrinhas celulares, que pondo em perigo as suas próprias vidas se lançaram heroicamente contra tudo e contra todos a apagar o incêndio que já estava a tomar proporções incontroláveis. Ao fim de pouco tempo tudo estava resolvido, mas sem nenhuma dúvida graças a esses corajosos companheiros, que com a sua generosidade e alguma loucura resolveram a situação. Reunidos os comandantes das tropas e do navio, decidiram de imediato propor um louvor a todos esses presidiários. De novo eles tornaram a surpreender. Todo o equipamento que havia na parte exterior do navio foi por eles atirado ao mar, e não mais houve cadeiras ou bancos para alguém se sentar a apanhar um pouco de sol. Escusado será dizer que o louvor ficou apenas pela proposta. O Carvalho Araújo estava mesmo muito mal e ao sétimo dia voltou a incendiar, desta vez com menos violência e a tripulação resolveu o problema. Toda a gente queria era chegar depressa à Guiné, pois morrer por morrer que fosse em terra. Finalmente chegámos em 04 de Dezembro de 1970. Regressou a Lisboa e penso que aí sim foi dado por incapaz e não mais voltou a navegar. Muito ele durou, pois falava-se que o mesmo já estava arrumado para abate, mas foi recuperado para transporte de tropas. Carvalho Araújo, N/M da Empresa Insulana de Navegação. Tinha lotação para 354 passageiros. Foi abatido em 1973. Imagem extraída de navios porugueses. Com a vénia devida. Frente e verso da Ementa do primeiro jantar servido a bordo do Carvalho Araújo A bordo do Carvalho Araújo > Saida da Barra de Lisboa > Da Esq para a Dta. > ???, Luís Moreira, ??? e ex-Fur Vaguemestre Cameiro da CCAÇ 2789 que esteve em Bula de 5 de Dezembro de 1970 a 29 de Setembro de 1972, natural de Rio Maior, penso que, infelizmente, já falecido. Um abraço a toda a caserna. Luís Moreira __________ Notas de CV: (*) Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3876: Tabanca Grande (116): José F. Moreira, ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 2789/BCAÇ 2928 (Bula, 1970/72) Vd. último poste da série de 23 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3345: O cruzeiro das nossas vidas (12): Uíge, 5 de Fevereiro de 1969, destino Guiné (António Varela)

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3555: Navio "Carvalho Araújo". (António Matos)

imagem extraída de navios porugueses. Com a vénia devida.

"Carvalho Araújo" – verdadeiro símbolo nacional da altura Nestas curtas linhas limito-me a uma referência ao velhinho "Carvalho Araújo". Para mim era uma referência incontornável pois o comandante e herói José Botelho de Carvalho Araújo era meu conterrâneo e este barco perpetuava-lhe o nome! Ambos Vila-realenses, sabiam? Pois bem, a minha viagem para a Guiné foi genericamente agradável uma vez que, à excepção da aproximação a Cabo Verde, o mar era chão e a novidade do "cruzeiro" fazia disfarçar a missão que nos impingiram. As primeiras horas, porém, após a partida de Ponta Delgada, não auguravam nada de simpático uma vez que logo se seguiu o jantar e esse, foi digno de registo. Não pelas vitualhas que não recordo, de todo, mas duma operação logística com a qual se tentava compensar o balanceamento da embarcação. Serviram a sopa e levá-la à boca tornou-se uma prova de perícia na arte de bem manejar a colher! Aquilo parecia uma camioneta a curvar nas voltinhas do Marão! Ora agora adornava a bombordo ora agora a estibordo. Em cada uma destas oscilações, a sopa teimava em sair do prato e então era necessário pôr a colher do lado de fora para a "apanhar" quando se derramava pela mesa. Uma vez levada à boca, era urgente fazer a mesma operação para o outro lado, e assim sucessivamente. Devo confessar que cheguei a temer pelo enjoo de 10 dias consecutivos tão agoniado fiquei no fim da 1ª refeição. Felizmente que umas boas inspirações de ar puro no deck aliviaram as tonturas e tudo se normalizou. Se a memória não me atraiçoa, o paquete, após largar a carga no cais do Pijiguiti, regressou a Lisboa e nessa viagem, recordo, houve indicação de incêndio a bordo. Posteriormente arranjado, ainda rumou novamente à Guiné com grandes complicações que o seu fundo em cimento provocava. Finalmente em Lisboa, acostou ao cais da Rocha de Conde d'Óbidos e por lá deve ter apodrecido. Cheguei a vê-lo, abandonado à triste sina dos tempos, com um misto de nostalgia e pena por ver aquele símbolo nacional a agonizar.... Paz à sua alma! António Matos ex-Alf Mil da CCaç 2790 Bula 1970/72

__________ 

  Notas de vb: 1. Navio "Carvalho Araújo", misto de 2 hélices. Construído em 1929, em Monfalcone, Itália, por Cantiere Navale Trestino, foi registado na Capitania do porto de Lisboa em 21 Abril de 1930. Pertencia à Insulana, Cª de Navegação, e fez durante dezenas de anos a carreira para os Açores. Com cerca de 113 m de comprimento era movido por duas máquinas construídas em 1929, em Greenock - Escócia. Com uma velocidade normal a rondar os 12 nós, tinha capacidade para 354 passageiros com alojamentos para 10 passageiros em classe de luxo, 68 em primeira classe, 78 em segunda, 98 em terceira e 100 em cobertas. Serviam no navio 98 tripulantes. O "Carvalho Araújo" foi abatido ao efectivo em 1973. 2. Artigos de António Matos em 1 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3547: Um telefonema de Bula para a Metrópole...(António Matos)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3397: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (1): A ida, do RI5 a Bissau


Luís Faria,
ex-Fur Mil Inf MA
CCAÇ 2791,
Bula e Teixeira Pinto,
1970/72


Capítulo I > A minha viagem - Do RI5 a Bissau

Em 1969 era eu, um bom moço, melhor rapaz e estudante do antigo 7.º ano, quando me convidaram para o RI5 [Regimento de Infantaria nº 5, nas Caldas da Rainha), sob o comando de Giacomino Mendes Ferrari (creio ser o nome correcto). E por lá andei a fazer a recruta com as insígnias de Instruendo. Até que, chegou a hora de escolher uma das Especialidades disponíveis, a saber: Amanuense, Atirador e Operações Especiais. Dado que para Amanuense não ia concerteza e para Atirador era certo, optei por ser o melhor da minha rua e só por isso pelas Op Especiais!

Por lá apareceu um dia o famoso Cap Robles e… lá fui parar a Lamego, ao CIOE [Centro de Intrução de Operações Especiais].

Boa comida, bons pequenos almoços… e há que optar: Op Esp (Rangers) ou Comandos? Fui parar a Penude, ao novo Quartel dos Comandos sob o comando Cap Jaime Neves. Boa comida, más dormidas!...

Estávamos no Inverno, um frio de rachar e depois de muitas peripécias que recordo com saudade a camaradagem, a disciplina, a preparação física e bélica adquiridas, o conhecimento humano em várias vertentes… muito me serviram na Guiné!... Dizia eu do frio de rachar… e um belo (!?) regresso de fim de semana, vou dar com o corpo na enfermaria, com gripe. Lá se foram o salto da ponte, o esgoto, o slide e o rapel!... E lá fui eu para Tancos, sem crachá, mas com os conhecimentos, tirar o curso de Minas e Armadilhas (nada de novo) com direito a Diploma, claro está!

Depois de ter resolvido, a contento, um problema grave de despromoção e prisão por ter invadido um aquartelamento da NATO (entrei com o meu amigo Meirinhos e outro por um buraco na rede), eis-me a caminho do RI 16, Évora, cidade do Templo de Diana, para formar Companhia com destino à… Guiné (o pesadelo que poucos quereriam !)

Ao tempo Salazar morreu, Tenentes ausentaram-se, falou-se que a guerra na Guiné tinha amainado e ia acabar (grande alívio !!!), enfim, valeram aquelas donzelas simpáticas e de fala doce e musicada, que nos distraíram o pensamento. Certo, Jorge Fontinha? E já que o nosso Tenente se ausentou, quem assumiu o comando do 4.º Gr Comb, deixando o 3.º, fui eu, por ser o Furriel mais antigo. E assim, o Jorge Fontinha (Op Esp), o Chaves (açoriano) e eu, lá demos instrução ao 4.º Gr Comb, levando-o até ao aquartelamento abandonado do RAC-Espargal em Oeiras, de onde embarcámos, em 19 de Setembro de 1970, depois das cerimonias habituais - Movimento Nacional Feminino, cigarros, Parada, despedidas e mais (só um meu irmão soube da minha partida) - no paquete inclinado para bombordo Carvallho Araújo, que nos levou ao destino, via Açores e Cabo Verde.

Ao entrarmos no Geba, já noite, na amurada a pensar e a sentir o cheiro caraterístico daquela Terra, entrei em alerta ao ver que os Turras já nos estavam a atacar com objectos incendiários que vogavam pelas águas em direcção ao barco...

Ufa… que alívio?! Afinal era apenas fauna marítima eléctrica!!!!!

E eis-nos atracados no cais do Pijiguiti, prontíssimos para o IAO e para o que mais viesse. Estávamos a 2 de Outubro de 1970. A partir desta data nos iríamos transformar em Homens, rapidamente…

Um abraço a todos os Tertulianos
Luís Sampaio Faria


Foto 1 > Luís Faria na Parada do RI5, Caldas da Rainha, cujo Comandante era o Coronel Giacomino Mendes Ferrari

Foto 2 > Fevereiro de 1970 > Luís Faria já no Curso de Comandos, em Penude, no novo Quartel dos Comandos sob o comando Cap Jaime Neves.

Foto 3 > Setembro de 1970 > RI 16 > Luís Faria durante a Semana de Campo

Foto 4 > A bordo do Carvalho Araújo, saída de Angra do Heroísmo, a caminho da Guiné

Foto 5 > Setembro de 1970 > Luís Faria em Ponta Delgada

Foto 6 > Cabo Verde > Luís Faria em Mindelo, Ilha de São Vicente durante a escala do Carvalho Araújo naquele Arquipélago

Fotos: © Luís Faria (2008). Direitos reservados.

___________________

Nota de CV

Vd. poste de 31 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3388: Tabanca Grande (94): Luís Sampaio Faria, ex-Fur Mil da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto (1970/72)

sábado, 1 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3390: Tabanca Grande (95): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula (1970/72)


António Garcia de Matos
ex-Alf Mil
CCAÇ 2790
Bula
1970/72

1. Mensagem do nosso camarada António Matos, com data de 1 de Novembro de 2008:

É um verdadeiro turbilhão de recordações de imagens ...
do embarque em Ponta Delgada no Carvalho Araújo,
da viagem, mares fora, e do cerco do nosso barco por uma miríade ameaçadora de outras embarcações, mar alto, e o aparecimento dum submarino a estibordo, da chegada a Cabo Verde para reabastecimento de água,
da chegada a Bissau,
do cais do Pijiguiti,
do calor daquela noite em que desertei do Carvalho Araújo e fui, a bordo dum bote, para um café andar à volta duma ventoinha de tecto e beber ceveja enquanto destilava suor por quantos poros tinha,
da ida para o Cumeré a fim de fazermos o IAO,
de grandes ocasiões (na pequenez do sentimento individual),
de pequenos nadas,
de camaradas precocemente desaparecidos,
de outros a quem a morte poupou ainda que lhes tivesse arrancado partes do seu corpo,
das gentes,
dos locais,
dos mosquitos,
das tabancas,
do mato,
das minas,
dos combates,
das ganas de viver,
das horas da distribuição do correio,
da imagem do avião da TAP a levantar voo quando me encontrava algures entre o Choquemone e Ponta Matar e sonhava com o regresso,
da noite do ataque de mísseis a Bula,
das tempestades tropicais,
da Nave dos Loucos,
da aterragem do heli do General Spínola após um ataque ao meu destacamento em Augusto Barros,
do Capitão Sucena,
do Capitão Gertrudes da Silva,
do Batalhão 2928 humoristicamente apelidado de batalhoa devido ao seu conselho de administração constituído por um Coronel e dois Tenentes-Coronéis,
do ataque de abelhas ao quartel de Bula,
da núvem também de abelhas que sobrevoaram a malta que comigo estava na montagem do campo de minas e de onde uma delas desalvorou em voo picado saindo da sua formação e aterrou dentro da bota do Luís Sampaio Faria que, entretanto, conseguiu resistir à tentação de lhe mandar um soco demolidor mas que traria, concerteza, a vingança do enxame que se mantinha em sonoro e ameaçador voo sobre as nossas cabeças,
do rebentamento de minas ali ao nosso lado e que nos davam a incerteza de termos sido nós próprios os acidentados,
da desmontagem daquelas minas,
de duas ocasiões em que, na neutralização dessas minas, a cavilha de segurança não aguentou o disparo do precutor tendo nós sobrevivido devido ao estado de destruição que o tempo provocou naqueles objectos,
da trágica recordação dos relatos da emboscada sofrida pelo meu grupo de combate na estrada Bula-S.Vicente,
da protecção à Engenharia na construção da estrada Bula-Binar,
e de tantas outras coisas que o tempo não faz esquecer mas que a geração dos nossos filhos (para não falar da dos nossos netos) necessita de ter plena consciência para compreender este discurso das liberdades e o valor que as mesmas têm para quem viveu do outro lado da cortina...

Eu fui Alferes Miliciano.
António Garcia de Matos, Guiné, Setembro de 1970 a Setembro de 1972 na CCaç 2790 que ostentou o lema In Hoc Signo Vinces!

Os sinais dos tempos vão-se notando e as fotos aí estão para nos trazer à realidade!
Aqui vos deixo (em anexo) a evolução implacável, ainda que prazenteira, da imagem deste vosso camarada de armas.

António Matos
Amadora, 01 de Novembro de 2008




Esta foto não trazia legenda, pelo que se deduz estar representado nela o nosso camarada Matos numa operação de neutralização de uma mina IN

2. Comentário de CV

Caro António Matos
Entra, acomoda-te e começa a conhecer os cantos da casa.

Tiveste uma atitude rara nos camaradas que querem pertencer à nossa Tabanca Grande. Apresentaste-te com malas e bagagens e nem pediste licença para entrar. Como se dizia nos tempos dos louvores, tiveste uma atitude exemplar e deve ser seguida por todos os teus camaradas, nesta caso os que ainda não se apresentaram para colaborar connosco. Sabemos que há imensos companheiros que por acanhamento, preguiça, por julgarem que não percebem destas coisas de informática, etc. adiam a sua apresentação. Alguns até me dizem que não têm nada para contar. Como se alguém acredite nisso. Todos nós tivemos as nossas experiências negativas e positivas, momentos de glória ou embaraço, momentos alegres e de profunda tristeza, saudades sem fim dos familiares e amigos, vida adiada nos estudos e na profissão, tanto que é só começar a passar para o papel e pedir às gerações mais novas para passar ao computador, caso não se esteja à vontade com estas máquinas infernais.

Reparei que tens as tuas recordações devidamente catalogadas. Queiras tu mandá-las via mail para nós e vê-las-ás publicadas no nosso Blogue. Teus filhos e netos poderão ficar a saber aquilo que provavelmente nunca lhes contaste, porque achavas que eles não estariam na tua onda. É verdade, camarada, só nós os ex-combatentes nos compreendemos. Ao mesmo tempo que farás, quiçá, uma catarse, deixarás para os vindouros um testemunho real e pessoal, muito mais importante do que aquilo que qualquer jornalista escreve em livro, depois de andar por aqui e por ali às vozes.

Toda a Tabanca Grande te envia um abraço de boas-vindas.
CV
_________

Nota de CV

Vd. último poste da série de 31 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3388: Tabanca Grande (94): Luís Sampaio Faria, ex-Fur Mil da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto (1970/72)

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3071: Os nossos regressos (11): Guiné, 1970/73. Porra, é muito tempo. (Germano Santos).

A ida e o regresso do BCaç 3832

Germano Santos

ex-1.º Cabo Operador Cripto
CCaç 3305/BCaç 3832
Mansoa 1971/73
__________

Tudo começou a 19 de Dezembro de 1970 quando manhã cedo os putos e os menos putos, sendo que na maioria eram mesmo putos, nos pusemos a subir as escadas que nos conduziam ao barco que nos iria levar.
Grande estreia em viagens marítimas e de tão grande distância para quase todos nós.

O destino era Bissau. O destino era a Guerra.

O "Carvalho Araújo" também não queria ir



O transporte era horrível, nada mais nada menos que o "Carvalho Araújo", barco que simultaneamente com o transporte de militares para África, servia também para o transporte de gado dos Açores para o Continente.
Os aposentos então, eram uma pequena "maravilha". Tudo ao molho e fé em Deus porque o cansaço por certo apareceria e para dormir qualquer lado havia de surgir.
Lá arrancámos, mas as coisas não começaram bem. Então não é que o "Carvalho Araújo" não queria navegar e resolveu parar ali mais ou menos sob a ponte. Já não me recordo se foi na noite desse dia ou na manhã seguinte que ele resolveu abrir caminho para abraçar e nos pôr também a abraçar essa maravilhosa terra africana.
Viagem de amotinados ou coisa parecida foi o que me pareceu ser a viagem nos primeiros dias, tantos eram os vómitos, tantas eram as bebedeiras.

Para compensar o facto do nosso barco navegar muito depressa e por essa razão nos ter feito passar o Natal dentro dele, lá fomos presenteados com uma manhã no Mindelo, São Vicente, Cabo Verde.
Creio que uma grande parte de nós terá comido pela primeira vez batatas fritas, mas doces. Eu comi e estranhei imenso.

Seguimos viagem e eis-nos em Bissau a 29 de Dezembro. Julgo que terá sido batido o record marítimo Lisboa-Bissau, nada menos nada mais que dez dias. Um espectáculo.

Depois seguiu-se o Cumeré para uns, o Quartel-General para outros e, mais tarde, cerca de um mês, a zona de intervenção do Batalhão para todos.

De volta no Uíge

O regresso, o ansiado regresso deu-se em Janeiro de 1973, aos dias 6 desse mês e num barco a sério (para quem tinha ido no Carvalho Araújo) o "Uíge". Cinco dias, apenas cinco dias, metade do tempo gasto na ida, foi quanto demorámos a regressar.

Para além da felicidade que foi o regresso, as condições não tinham nada a ver com a ida.
Melhores acomodações. Melhor comida. Menos vómitos. Menos bebedeiras, mas muita, muita alegria.

Duas situações ocorreram nesta viagem que demonstram claramente como alguns de nós crescemos em África e também como alguns de nós já embarcámos algo crescidos.
Num espectáculo levado a efeito numa das noites da viagem, espectáculo todo ele concebido e realizado por nós militares, praças, cabos, sargentos e oficiais, a certa altura ia actuar, creio que declamar poesia, um alferes, mais concretamente o alferes Farinha (actualmente no Brasil).
Todo o comando do Batalhão e do navio estava a assistir ao dito espectáculo. Vai daí o apresentador do mesmo anunciou que o camarada Farinha ia actuar.
Foi o bom e o bonito, o comando do Batalhão chamou de imediato o apresentador para o informar que termo camarada tinha-se esgotado na Guiné, agora os oficiais tinham de ser apresentados pela sua patente.
O apresentador desceu ao palco e informou o alferes Farinha que o espectáculo deixava de ter apresentador.
Confesso que já não me lembro se o espectáculo continuou ou não, penso que sim, mas não comigo.

Uns dias antes de embarcarmos, alguns de nós que em Bissau, no Café Pelicano, aguardávamos pelo transporte de regresso, começámos a falar sobre a "porra" do tempo que tínhamos estado na Guiné. Achávamos nós que tinha sido muito tempo, de Dezembro de 1970 a Janeiro de 1973. Para nós eram três anos de calendário, embora soubéssemos que de facto tinham sido mais ou menos 25 meses.
Vai daí decidimos arranjar um lençol no qual escreveríamos qualquer coisa parecida com isto:

Guiné 1970 – 1973 – Porra é muito tempo

A ideia era prender o lençol onde fosse possível e apenas no dia do desembarque em Lisboa, para que todos soubessem o que pensávamos da nossa guerra em terras da Guiné. Se melhor o pensámos melhor o fizemos.
E, na verdade, no dia do desembarque, lá no alto do "Uíge", preso aos botes de salvação, lá estava o nosso lençol, muito esticadinho para que se pudesse ler bem o que nele escrevemos.

Com o que não contávamos é que nesse dia, manhã cedo, Lisboa iria acordar com um denso nevoeiro no Cais da Rocha e nem tão pouco com a pronta resposta da Polícia Militar.
O que o lençol dizia só se começou a ler quando o barco atracou, mas foi mensagem de pouca duração, dado que a Polícia Militar entrou pelo navio dentro e deu cabo da nossa saudação.
Creio que ainda tentaram saber quem tinham sido os engraçadinhos, mas julgo que acabaram por desistir e deixaram-nos ir em paz, não para casa, mas sim para Abrantes a fim de fazermos o espólio.

E pronto, acabou-se a minha história sobre a ida e o regresso do Valoroso Batalhão de Caçadores 3832.

Um abraço para todos.
Germano Santos
__________

Notas:

1. fixação do texto e sublinhados de vb;

2. Artigos relacionados em 11 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1835: Tabanca Grande (10): Germano Santos, ex-1º Cabo Op Cripto, CCAÇ 3305 / BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73

16 Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3064: Os nossos regressos (10): Uma ida atribulada, um regresso tranquilo...(Valentim Oliveira)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

Guiné-Bissau > Saltinho > Abril de 2006 > Um olhar de esperança no futuro... É, pelo menos, o que gostaríamos de adivinhar neste olhar inocente de uma criança às costas de sua mãe... O que mudou na Guiné-Bissau, desde que o Hélder Sousa desembarcou, em Bissau, do Ambrizete, em rendição individual, em 9 de Novembro de 1970...

Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Bissau > 1996 > Rua onde ficava a célebre cervejaria Solmar, aqui evocada pelo Hélder Sousa.... "Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse, Solmar, Solar do 10, Ronda, o inevitável Café do Bento (5ª Rep.), a casa das ostras na rua paralela à marginal, o Pelicano" (HS).

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Bissau > Abril de 2006 > Um velho Toca-Toca (transporte colectivo) que morreu no asfalto, numa das ruas da capital guineense... Em 1970, apesar de militarizada, Bissau ainda era uma pequena cidade, com ar pacato, limpa, bonitinha, colonial... Como comentou o Hélder nouro poste, afinal Bissau sempre era maior do que a nossa aldeia: (...) "Bissau era o que mais se aproximava à realidade da maioria daqueles jovens que estavam espalhados no TO do CTIG (era também assim que se dizia) e que, naqueles idos dos finais de 60, inícios de 70 - excepção feita aos habitantes da grande Lisboa, Porto, Coimbra e limítrofes - não tinham a vivência de grandes metrópoles e para eles aquilo já era um grande movimento"....

Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.

Navio de carga Ambrizete > Construído em 1948 na Inglaterra, tinha cerca de 138 metros de comprimento e 5500 toneladas de arqueação bruta. Deslocava-se a uma velocidade de 13 nós, tinha 37 tripulantes e pertencia à SG, a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, com sede em Lisboa (Grupo CUF). Recorde-se que a CUF - Companhia União Fabril estava representado na Guiné pela Casa Gouveia, adquirida na década de 1920 (1)... Eram cargueiros da SG como o Ambrizete que traziam para a Metrópole a mancarra com que a CUF fazia o seu famoso Óleo Fula (em 1929 conseguiu a autorização para produzir óleo alimentar, em regime de monopólio, e em clara concorrência, desleal, com os produtores de azeite)...

Fonte: © Navios Mercantes Portugueses, página de Carlos Russo Belo (2006) (com a devida vénia...). O autor foi oficial da marinha mercante. A página, alojada do Sapo, deixou entretanto de estar disponível.


1. Texto do Helder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72), em que ele descreve a sua chegada a Bissau, no navio da marinha mercante Ambrizete, em rendição individual, e as suas primeiras impressões da cidade, dos seus lugares mais afamados e da sua fauna humana (2).

Luís Graça e Caros Co-Editores:

Há algum tempo atrás enviei-vos a história da minha partida para a Guiné (3), a qual foi precedida pela ida ao Tivoli assistir ao filme O Último Adeus.

Pois bem, agora pretendo relatar a minha chegada à Guiné, mais propriamente a Bissau.

A partida ocorreu então cerca das 22 horas do dia 3 de Novembro de 1970, quando o velho Ambrizete rumou à foz do Tejo com destino a Bissau, navegando com uma inclinação de 7º para estibordo motivada por uma qualquer má distribução da carga que consistia, para além de géneros alimentícios, em material de guerra diverso e sobressalentes para manutenção.

A viagem correu bem, com mar sem causar problemas (vaga larga, como nos explicaram), gozando aqui e ali da companhia dos peixes voadores que faziam questão de acompanhar e, aparentemente, rivalizar com o navio.

A aproximação à costa da Guiné deu-se pela madrugada do dia 9 de Novembro, com todas as sensações que aqui no Blogue já foram descritas por outros camaradas, como a visualização da linha do que parecia ser uma mata cerrada, o bafo quente e húmido de que lá emanava, os sons e os silêncios, tudo isto ainda mais ampliado pelo facto de estar a nascer o sol em contra-luz em relação à nossa posição.

Durante a madrugada tínhamos ultrapassado o Carvalho Araújo que seguia carregado de militares mas que nos disseram ter tido um conjunto de problemas (fogo a bordo?) que o fazia navegar muito lentamente. Deste modo, todos aqueles que seguiam no Ambrizete (como tinha dito, 6 militares, todos Furriéis de Transmissões, 3 TPF (transmissões por fios) e 3 TSF (eu, o Nélson Batalha e o Manuel Martinho)) desembarcámos a meio da manhã desse dia 9, enquanto que o desembarque do pessoal do Carvalho Araújo só ocorreu no dia seguinte, dia 10 de Novembro, dia de S. Martinho, o que nos fez ficar com velhice acrescida em relação a todos os que viajaram naquele barco, nomeadamente os nossos camaradas de curso e especialidade, Furriéis Milicianos Eduardo Pinto, Luís Dutra Figueiredo, António Calmeiro e José Manuel Fanha, sendo que, como era sabido, "a velhice era um posto"!

O episódio do desembarque teve algo que me marcou e que me deixou de pé atrás, como se costuma dizer...

Devido à tal situação do posicionamento relativo dos dois barcos que estavam a chegar ao cais de Bissau, o Ambrizete ficou um tanto ancorado ao largo para dar a primazia ao Carvalho Araújo, razão pela qual a passagem dos passageiros do barco para terra foi feita por intermédio de pequenas embarcações do tipo que lá se usavam para fazer as cambanças mas que no nosso imaginário eram pirogas dirigidas por nativos, sendo aí o primeiro contacto (desconfiado) com os naturais.

Quando o barquito manobrava na aproximação à rampa, estando nós naturalmente a um nível mais baixo do que aqueles que se encontravam no cais, um militar que lá se encontrava procurou saber se "algum de vós é o Furriel Hélder Sousa ?". Após a confirmação de que eu "era eu", o militar em causa, de que eu era o substituto, desesperado pela demora da minha chegada (não esquecer que oficialmente parti a 23 de Outubro, embora só o tenha feito realmente em 3 de Novembro e, sendo das Transmissões, sabia que eu já tinha embarcado) começa aos saltos e aos gritos de É ele!, é ele!, é ele!", o que fez aumentar a minha preocupação sobre onde me vinha meter para suscitar tanta alegria pela partida...

Hoje já não me lembro do seu nome, ele que fez tanta questão em me acompanhar em todas as voltas que foi necessário dar para me apresentar no Quartel, de me levar a uns amigos de Vila Franca que me tinham guardado um lugar para ficar, de me levar a almoçar à messe de sargentos, etc., mas a imagem que tenho é de um macaquinho aos saltos (era o que me parecia, já que o via de baixo para cima e ele estava acocorado), feliz da vida por ter encontrado o seu pira e safar-se dali o mais depressa possível, provavelmente na viagem de regresso do Carvalho Araújo.

Depois das apresentações fiquei a saber que os Comandantes da Companhia de Transmissões e do STM (Serviço de Telecomunicações Militares) eram respectivamente os Capitães Cordeiro e Oliveira Pinto (excelentes pessoas), que eram cunhados e contemporâneos da minha (nossa) passagem pelo B.T., no Quartel da Graça, quando fazíamos a especialidade, o 2º Ciclo do C.S.M., e eles eram Tenentes a fazer o tirocínio para capitães, período de alguma agitação pois ocorreu no último trimestre de 1969, quando tiveram lugar as chamadas Eleições de 69.

Igualmente o 1º Sargento que supervisionava o STM em Bissau e que nos iria instruir preparando-nos para as tarefas que teríamos que desempenhar quando fossemos destacados para os postos no interior era meu velho conhecido, já que tinha sido ele a orientar o meu estágio da especialidade em Tancos, na EPE (meu e do Manuel Martinho que também foi para a Guiné, bem como do Miguel Rodrigues que foi para Angola, salvo erro, e do Fernando Marques que ficou cá em Portugal, na CHERET).

O camarada que fui substituir deixou-me depois aos cuidados dos meus conterrâneos vilafranquenses, Furriéis Milicianos José Augusto Gonçalves e Vitor Ferreira, o primeiro deles meu colega da Escola Industrial e o outro das tertúlias do Café A Brasileira, mais parceiro que adversário das partidas de bilhar, os quais estavam integrados nas Transmissões (nessa ocasião ainda estava em criação o futuro Agrupamento de Transmissões) os quais arranjaram um espaço para me acomodar no quarto que compartilhavam nas instalações para sargentos em Santa Luzia, juntamente com outro Furriel, de apelido Pechincha, que tinha estado numa Companhia de Caçadores Nativos e que estava agora destacado numa repartição qualquer do Q.G..

Levaram-me a jantar à Meta (já li algumas referências no Blogue mas não me parece que lhe tenham dado o relevo que de facto tinha naqueles finais de 1970), lugar muito frequentado, com uma zona de Bar, zona de restauração e uma enorme pista de minicarros, muito maior que as que conhecia cá na Metrópole e que era palco de acesas e renhidas disputas de competição dos vários miniaceleras que por lá iam gastando o seu tempo e dinheiro.

Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse, Solmar, Solar do 10, Ronda, o inevitável Café do Bento (5ª Rep.), a casa das ostras na rua paralela à marginal, o Pelicano.

Aqui no Pelicano, quando para me integrar saboreava a minha Coca Cola com uísque (era um privilegiado, já tinha tido a oportunidade de beber aquela coisa quando em 1968 estivera em França, Bélgica e Inglaterra), tive contacto directo com mais algumas das realidades do mundo onde estava a entrar...

O primeiro foi a sensação estranha de estar ali na esplanada a ouvir embrulhar lá longe, do outro lado do grande e largo Geba, diziam que era em Tite, ou Fulacunda ou qualquer outro nome que para mim naquela ocasião não assumia personalidade, coisa que mais tarde já não era assim, os nomes tinham depois uma identidade própria, acho mesmo que havia até uma como que espécie de hierarquia, no que respeita à forma como eram identificados pelas dificuladdes de vida que lhes eram inerentes. Estar ali a ouvir os rebentamentos abafados pela distância e a ver alguns clarões deu logo um arrepiozinho na espinha, com aquele misto de temor e de ansiedade que nessas ocasiões nos assaltam, mas também com um pensamento de solidaridade e angústia pela impotência de quem só pode assistir e não intervir.

O segundo contacto foi mais do género de constactar a degradação moral que a permanência em situações daquelas podia produzir em espíritos mais fracos. Já se falava do que acontecia no Vietnam com os soldados americanos consumindo droga para resolver os seus problemas mas ali no Pelicano não foi esse o caso. Tratou-se apenas do facto de que em determinado momento um desgraçado qualquer acercou-se da mesa onde estávamos e procurou vender uma fotos "de gaijas nuas". É claro que recusámos mas fui depois esclarecido de que não se tratavam de "gaijas" mas sim de "uma gaija", a própria mulher dele, a quem ele (diziam que era um fulano já bastante apanhado do clima) enviava fotos que tirava a si mesmo sem roupa e pedindo que ela lhe enviasse fotos do mesmo jeito, que ele depois reproduzia e tentava vender.

Fiquei bastante impressionado com aquela demonstração prática da alienação a que o clima de guerra e o consequente improviso da vivência podiam produzir em seres humanos e jurei a mim mesmo que haveria de sair da Guiné são de cabeça e mais determinado em contribuir para as mudanças inevitáveis que haveriam de ocorrer na nossa sociedade.

Cumprimentos
Hélder Sousa
Ex-Furriel Mil
Transmissões TSF
__________________

Notas dos editores:

(1) Vd. o interessante blogue do jovem Ricardo Ferreira, 26 anos, estudante de história, O Grupo CUF - Elementos para a sua História e o primeiro poste que é dedicado à memória do seu fundador Alfredo da Silva (1871-1942):

(...) Em 1918 sobe ao poder Sidónio Pais, é conhecido o seu apoio pelo industrial, que durante este período será eleito senador, e também designado para o Conselho Superior Económico. Com a guerra terminada, lança-se na criação de uma nova empresa, que será crucial para o futuro da C.U.F., de seu nome Sociedade Geral de Indústria Comércio e Transportes. Esta empresa fundada em 1919, iria ainda antes de se lançar no ramo dos transportes marítimos (1922), estava apta a adquirir ou fazer parte do capital de outras empresas que interessassem ao projecto de expansão da C.U.F., foi esse o caso da Casa Gouveia na Guiné. Assentava na exploração agrícola, centrada na palma, no mendobi (amendoim) e gergelim, que passariam a ser carregados em barcos da S.G. e passariam a ser transformadas em óleos comestíveis no Barreiro (...)

(2) Vd. postes desta série Estórias de Bissau:

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

19 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2290: Estórias de Bissau (14) : O Pilão, a menina, o Jesus e os pesos que tinha esquecido (Virgínio Briote)

Vd. também:

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

(3) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2438: História de vida (10): O Último Adeus ou as peripécias da minha partida no N/M Ambrizete (Helder Sousa)

domingo, 15 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1953: O cruzeiro das nossas vidas (6): Ou a estória de uma garrafa, com o SPM de Mansoa, que viajou até às Bahamas (Germano Santos)


O Carvalho Araújo (1930-1973), um navio da frota da Empresa Insulana de Navegação (1871-1974). Por quem se interessa pela história da nossa marimha mercante, recomendo o belíssimo sítio do Carlos Alberto Monteiro, que é um velho passageiro da Insulana, e em especial do Funchal, e um apaixonado coleccionador de postais e outros documentos relacionados com a frota da Insulana.

Foto: Ships Insulana, página de Carlos Albert Monteiro (2006) (com a devida vénia...).



Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1971 > "Foto 16 - Na rua principal de Mansoa. Eu estou de camuflado com o meu amigo Sampaio, de Guimarães, infelizmente falecido o ano passado" (GS)

Fotos e legendas: © Germano Santos (2007). Direitos reservados.


1. Texto do Germano Santos, ex-operador cripto da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 (Mansoa, (1)

Caro Luís Graça,

Conforme prometido há já uns tempos, aqui vai, finalmente, a minha história sobre a garrafa que decidiu dar uma grande volta marítima.

É uma história sem guerra, mas que nasceu do facto de eu ter ido para a guerra.

Como sabes, eu fui Operador Cripto (1), logo não operacional, e portanto a minha guerra foi muito diferente das guerras de alguns dos nossos camaradas.

Contudo, também sei o que é a guerra, através das diversas flagelações que Mansoa sofreu durante a minha estada por lá.

Também vi coisas que não queria ver; também passei por coisas que não desejava ter passado, etc.

Mas falemos então da viagem da minha garrafa, que começa exactamente na minha viagem para a Guiné.

Estamos em 1970, 19 de Dezembro, quando a bordo do navio Carvalho Araújo (2) - que até aí, segundo me relataram, fazia constantemente o transporte de gado dos Açores para o Continente - inicia a sua viagem para a Guiné o Batalhão de Caçadores 3832, formado pela CCS e pelas Companhias de Caçadores 3303, 3304 e 3305. Eu era um dos dois Operadores de Cripto desta última Companhia.

Este início de viagem não correu lá muito bem, dado que logo nesse dia o navio avariou e passámos a noite sob a ponte 25 de Abril.

Porém, lá fomos navegando e a certa altura mais me parecia que estava num barco de amotinados do que outra coisa qualquer, tal era a quantidade de gente mal embriagada e indisposta com a viagem.

Convém referir que estávamos em vésperas de Natal e passar esta quadra festiva, longe da família e a caminho da guerra, não era evidentemente o que nós desejávamos mais.

Já não me recordo muito bem, mas nesse dia de Natal ou no dia a seguir, alguns de nós - talvez uns quatro ou cinco - decidimos carpir as nossas mágoas com alguém que estivesse noutras paragens, e do mar nos quisemos servir como meio de comunicação. Vai daí, lançámos ao mar algumas garrafas com as mais variadas mensagens. A minha era tão só um cartão de visita, no qual acrescentei o SPM do Batalhão ou do local para onde íamos (Mansoa).

O tempo foi passando e a guerra também.

E surpresa das surpresas. Em finais de Janeiro de 1972 (um ano e pouco após ter deitado ao mar a garrafa), recebo uma carta proveniente dos Estados Unidos da América, mais concretamente de Milwaukee, datada de 19 de Janeiro desse ano e assinada por uma Senhora de nome Lillian Drake, dando-me conta de ter encontrado a garrafa com o meu cartão.

Como não sabia inglês, fui pedir ajuda ao meu Major de Operações - o saudoso, porque falecido, Major Cerqueira Rocha, irmão do então, salvo êrro, Comandante Chefe das Forças Armadas em Portugal (não sei se era assim a designação, mas fica a idéia). Quero deixar aqui uma palavra de muito apreço para os familiares do Major Cerqueira Rocha, um militar e um homem extraordinário, com quem foi um prazer conviver durante dois anos na Guiné.

Foi ele que me leu a carta e que, tal como eu, ficou muito surpreendido por tudo o que nela era referido.

Dizia a Senhora que tinha encontrado a garrafa na Ilha de Eleuthera, nas Bahamas, a pouca distância do continente norte-americano, em 10 de Dezembro de 1971 quando se encontrava naquela ilha a visitar amigos. Mais dizia que estava a passear na praia, apanhando conchas e outras coisas, quando reparou na garrafa. Na carta perguntava-me quando e onde é que eu a tinha atirado ao mar.

Passados dias, com a ajuda do meu Major, satisfiz a curiosidade dela.

Aproveito para informar que naquela altura as Bahamas eram pertença dos Estados Unidos da América, sendo, desde 1973, um país independente.

Já após ter regressado a Portugal, tive oportunidade de me deslocar à Embaixada dos Estados Unidos da América e falado com um funcionário sobre esta história. Na altura esse funcionário pedíu-me para esperar um pouco e, passados uns minutos, fui recebido pelo Embaixador que ficou encantado com o ocorrido, e fez o favor de me mostrar não só o mapa americano como o Atlas, para me explicar todo o percurso que a garrafa tinha feito desde o Golfo da Guiné até às Bahamas.

Também li recentemente que o percurso efectuado pela minha garrafa está dentro das 50 maiores distâncias até hoje percorridas por uma garrafa lançada ao mar.

Eu sei que não é uma história de guerra, mas sem a minha ida para a guerra esta história não existiria.

Se achares que é interessante para colocar no blogue, força.

Um grande abraço.

Germano Santos

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Germano: Aqui aparece todo o tipo de estórias, umas mais trágicas ou dramáticas, outras mais cómicas ou divertidas, umas outras ainda mais intimistas e pessoais... Estórias de guerra, de amor, de paz, de camaragem, de solidariedade, de humor... Todas elas estórias de homens (e de mulheres), afectados directa ou indirectamente por uma guerra. A tua estória merece a melhor atenção de nós, até pelo seu insólito e pelo seu simbolismo: o mar, apesar da sua imensa vastidão, é também um ponto de encontro...

Como já tive ocasião de te dizer, tenho uma estória parecida com essa. Um vizinho meu, da Lourinhã, costumava ir pescar para a Praia da Peralta, a sul da Praia da Areia Branca. Isto por volta de meados da década de 1960. Um belo dia apanhou, na praia, um garrafa de gin ou de rum, com uma carta lá dentro, redigida em inglês. De regresso a casa, deu a carta a ler à minha irmã. Era de um súbdito de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra, embarcado num navio da Royal Navy. Ela mesmo respondeu à carta, com a mimnha ajuda, e fez um novo amigo. O marinheiro Barry começou a trocar correspondência com ela. Hoje, passados mais de quarenta anos, continuam amigos. E já se visitaram várias vezes: ele veio a Portugal, ela foi a Inglaterra... Ele inclusive aprendeu a falar e a escrever o português!...

Parabéns pela estória e pela tua garrafa que, na época, bem poderia ter entrado para o livro de recordes do Guiness (que já existia, desde 1951)... Obrigado pelas fotos (cerca de 20) que tu me mandaste, algumas da bela vila de Mansoa que tu ainda conheceste. Fica também aqui uma correcção: tu nunca pertenceste à CCS do BCAÇ 3832, mas sim à CCAÇ 3305, desse batalhão.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

4 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1814: Tabanca Grande (8): Apresenta-se o Operador Cripto da CCAÇ 3305 / BCAÇ 3832 (Mansoa, 1970/73) , Germano Santos

11 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1835: Tabanca Grande (10): Germano Santos, ex-1º Cabo Op Cripto, CCAÇ 3305 / BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73

12 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1840: A trágica história dos sapadores Alho e Fernandes da CCS do BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73 (César Dias / Gerrmano Santos)


(2) Vd. posts anteriores desta série:

11 de Janeiro de 2007> Guiné 63/74 - P1420: O cruzeiro das nossas vidas (5): A viagem do TT Niassa que em Maio de 1969 levou a CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Manuel Lema Santos)

21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1301: O cruzeiro das nossas vidas (4): Uíge, a viagem nº 127 (Victor Condeço, CCS/BART 1913)

21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1300: O cruzeiro das nossas vidas (3): um submarino por baixo do TT Niassa (Pedro Lauret)

19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1296: O cruzeiro das nossas vidas (2): A Bem da História: a partida do Uíge (Paulo Raposo / Rui Felício, CCAÇ 2405)

12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)