Mostrar mensagens com a etiqueta Os nossos médicos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Os nossos médicos. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25101: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (15): A vida é curta e a arte é longa: memórias de um médico que também passou pelo Hospital Militar de Bissau

 Guiné > Bissau >  O  antigo Pavilhão de Tisiologia, desenhado pelos arquitectos Licínio Cruz e Mário Oliveira, do Gabinete de Urbanização do Ultramar,  Projeto de 1951/53. Passará a Hospital Militar, o HM 241, com o início da guerra, em 1963.

Foto (e legenda): © Mário Beja Santos (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A vida é curta e a arte é longa: memórias de um médico que também passou pelo Hospital Militar de Bissau

por Luís Graça


Fizeram-te um almoço de despedida nessa semana em que passaste à reforma. Sempre detestaste as festas de despedida. E aquela tinha  qualquer coisa de amargo e ao mesmo tempo de inquietante. Era como partir, de barco, de um porto seguro para uma viagem desconhecida. Sabias o que tinhas, ou o que acabavas de perder, desconhecias o que te esperava o dia seguinte. Porque esse seria "o primeiro dia do resto da tua vida", citando a letra da canção  do Sérgio Godinho que costumavas ouvir no CD que punhas a tocar no carro logo pela manhã a caminho do hospital. (Maldita IC 19, foi o primeiro pensamento que te veio à cabeça no teu último dia de trabalho.) 

Aconteceu-te isso, a angústia da despedida, talvez pela primeira vez, quando foste mobilizado para a Guiné, em rendição individual, aos 28 anos, em março de 1968  (se a memória não te estiver a trair, o que já não podes garantir, cinquenta anos depois).

Amigos da faculdade e do hospital, colegas de curso e um ou outro "pilão" (antigo colega dos Pupilos do Exército), "poucos mas bons", fizeram-te uma festinha, discreta mas comovente, de despedida.

Foi num café-restaurante das Avenidas Novas, em Lisboa, que já não existe, hoje deve ser uma agência bancária ou imobiliária. 

Na altura, eras monitor de Anatomia na Faculdade de Medicina, um cadeirão que sempre foi o terror dos candidatos a médicos. E trabalhavas, para mais, no Hospital de Santa Maria, à borla, na equipa de um dos "barões" que eram os donos dos serviços… 
 
Não, não vale a pena recordar o nome. Não te deixou saudade, nem a ti nem aos outros "escravos". Era um professor que estava ligado a um dos grandes do futebol da cidade de Lisboa. Já ninguém se lembra dele. Arrumou as "chuteiras" com o 25 de Abril, foi coerente, não virou a casaca, como os "democratas do 26 de Abril"...

Carreira médica  ?  Não , também não havia ainda carreiras médicas, so foram criadas em 1971.... Os jovens licenciados em medicina tinham que "pagar para aprender", com um patrono, "um grande clínico ou um grande cirurgião"…

Como o local do almoço era público e a PIDE costumava ter "bufos" por aqueles sítios, não houve grande discursos, e muito menos efusivos, e muito menos ainda contestatários… Aquilo, o teu almoço de despedida, parecia mais um velório do que outra coisa... 

Bolas, tu eras médico, ias para a Guiné, haverias de voltar, com vida e saúde!.... A tropa protegia os médicos, não os mandava fazer operações, de G3 em punho,  "não iam para o mato" (como se dizia então) !... Era pelo menos a garantia que tu tinhas, de alguém importante do Hospital Principal na Estrela, com quem te aconselhaste.  E depois com a tua prática de "ajudante de  cirurgião" (sic) haverias de ficar em Bissau, nem seria preciso meter nenhuma cunha. 

Afinal, foste tu que tiveste de animar os teus amigos e colegas, todos mais acabrunhados do que tu, só de pensarem que, um dia destes, também veriam a tropa interromper-lhes  as "promissoras carreiras"  e despachá-los, com  "guia de marcha",  para a África dos tiros e dos mosquitos. Pelo sim pelo não adiavam-se casamentos e outras decisões importantes na vida de um homem como a de fazer um filho.

Só muito mais tarde, há uns anos atrás, é que tu foste à Torre do Tombo, movido por uma natural curiosidade,  legítima mas algo mórbida. Acabaste então  por saber que também tu tinhas  ficha nos arquivos da PIDE/DGS… (No teu íntimo, não foi nada que te revoltasse, até pelo contrário,  surpreendeu-te mas fez-te bem ao ego que de vez em quando também tem de ser massajado.) 

E verdade que o motivo era mesquinho, para não dizer anedótico: alguém te denunciara por seres amigo de um tipo da direção da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina, envolvido na crise estudantil de 1962… Uma pecha nacional, desde os tempos da Inquisição, comentaste tu para a malta da tua equipa: denunciava-se o primo ou o vizinho, às vezes por pura maldade ou inveja, como aconteceu com o grande Ribeiro Sanches, o nosso maior médico do séc. XVIII, que teve de sair do país e nunca cá mais  pôs os pés. Morreu em Paris, se  bem me lembro das aulas de história da medicina.

Fator aparentemente abonatório para a tua pessoa aos olhos da polícia política: eras filho de militar de carreira, com "boa folha de serviços no Ultramar" e tido como “adepto da situação”… E depois tinhas passado pelos Pupilos do Exército... Um "pilão" só podia ser um bom português! ...

Em boa verdade, tu nunca te tinhas metido em "encrenca" nenhuma até acabar o curso de medicina, não querias ver o teu pobre pai embrulhado em maus lençóis, e sobretudo perder a tua valiosa bolsa de estudo, paga por uma conhecida fundação.

Em suma, não tinhas liberdade económica para te poder armar em herói antifascista e anticolonialista, como alguns dos teus colegas (que tinham papás da classe média alta, gente bem relacionada ). Mas não escondias que, em 1968, eras "contra o regime" (como então se dizia) e achavas uma estupidez a continuação da guerra do Ultramar, sem fim à vista. (Para mais o "velho", o "botas", estava a "esticar o pernil"...)

Uma parte da juventude universitária daquele tempo começou a "ganhar consciência política" (como então se dizia) com a crise universitária de 62 e com o alargamento da guerra  do Ultramar aos territórios da Guiné e de Moçambique.

Não vais dizer "boa parte da juventude universitária",  porque isso era mentira: quem estudava naquela época eram filhos e filhas de gente da "situação", ou que tinha algum, para não dizer razoável, poder económico, empresários, proprietários, comerciantes, professores, advogados, médicos, médio e alto funcionalismo público… Conheceste inclusive vários estudantes que eram filhos de ministros e secretários de estado do Salazar... e que "degeneraram", cuspind0 na sopa ou mordendo a mão a quem lhes dera o ser e o ter...

A maior parte da juventude estudantil, liceal e universitária, acomodava-se e tratava da vidinha, como acontecia em todas as ditaduras até então conhecidas. Para mais a tua que até tinha a benção da Santa Madre Igreja... Bom, já não era bem assim, tiveste colegas, católicos, que já não liam a missa pelo mesmo missal do Cardeal Cerejeira, amigo íntimo de Salazar...

Entretanto, tu davas conta de que a guerra, de que pouco ou nada se falava em público, muito menos nos jornais, na rádio e na televisão (a não ser no programa do "Natal do Soldado"), 
começava a mexer com a malta. Havia mortos e feridos, havia faltosos, refratários e desertores, e alguns até eram da tua rede de relações ou conhecimentos… 

Guerra que, em todo o caso, era bem longe da nossa terra, da nossa casa, da nossa família, das nossas escolas e locais de trabalho, enfim, dos nossos cafés das Avenidas Novas... Portugal, naquele tempo, ainda era Lisboa e o resto era paisagem... 

Na altura, tu moravas por ali, perto do Campo Grande, num quarto alugado. E quando chegava a hora da verdade, poucos afinal davam o corpo ao manifesto. Participaste, em 1962, num ou noutra manifestação de estudantes, com cargas da polícia de choque, tinhas 22 anos, sangue na guelra e e começavas a ter asco ao autoritarismo (dos professores,  da policia,  das administracoes...) sem todavia nunca te teres metido em nenhuma organização clandestina, nem muito menos assinado papéis que te pudessem  comprometer. Nesse aspeto, sempre foste um "medricas", sabias que nunca aguentarias a tortura do sono por mais de 48 horas... (Se tivesses feito na altura um teste psicotécnico, terias chumbado de certeza para cirurgião!)

Também nunca tiveste conversas, nem grandes nem pequenas, com o teu pai, quando ele vinha de férias, ou regressava de mais um comissão de serviço, sobre a situação nos territórios ultramarinos, como então se dizia e escrevia. Sabias (ou melhor, suspeitavas) que ele "não morria de amores pelo regime" mas não podia dar-se ao luxo de morder a mão de quem lhe pagava o vencimento ao fim do mês. Além disso, era um militar de secretaria, oriundo da Escola Central de Sargentos que, se bem te recordas, funcionava em Águeda.


A tua mãe, embora apenas com a 4ª classe mal tirada, era mais politizada do que o teu pai. Ela era natural de Alcácer do Sal, emigrara, muito jovem, para Setúbal com a família. Trabalhara como empregada doméstica, logo acabada a escola, e depois como operária na indústria conserveira. Foi em Setúbal que os teus pais se conheceram. E foi aí que tu nasceste.  Tempos difíceis. Valeu-te uma bolsa de estudos que te permitiu ir fazer, em Lisboa, o curso de medicina, em 1958. És do curso de 1958/59.

Em solteira, quando operária conserveira, aos 17/18 anos, ainda menor, a   tua mãe terá chegado a distribuir o clandestino jornal "Avante", na fábrica e no bairro onde residia. Não sabes se alguma vez foi "antifascista", um palavrão que nunca lhe ouviste, da sua boca. 

De qualquer modo, depois de casada, acabou o seu eventual "antifascismo". Casada com o teu pai, subira um degrau na hierarquia social. E depois vieram os filhos. Julgas que ainda viveu, com alguma euforia e esperança, o fim da II Guerra Mundial. A ditadura manteve-se de pedra e cal,  e a tua mãe teve de continuar a ser pai e mãe durante o resto da vida. Quando muito lembras-te,  isso sim, de ela  barafustar, à mesa,  contra a carestia da vida na época em que andavas na escola primária. Nunca te faltou nada, isto é, o pão à mesa.

A tua mãe também não era beata, se bem que fosse à igreja, uma vez por outra, em cerimónias militares oficiais e em certas datas, por conveniência social: na festa de Natal, no dia do Regimento, no dia nacional da infantaria, etc. Afinal, era casada com um militar de carreira (e isso era, de facto,  uma pequena promoção social naquele tempo, para uma filha e neta de trabalhadores dos arrozais). A tropa, mal  ou bem,  era também um pouco a sua família alargada… E depois tinha orgulho no seu "menino que andava nos Pupilos do Exército". Fazia gala de o dizer às amigas, vizinhas e patroas.  Todavia, não havia nesse tempo grandes misturas, entre as famílias dos senhores oficiais e as dos sargentos… Eram oriundos de estratos sociais diferentes, estava tudo dito.


Em todo o caso, para completar o magro vencimento do teu pai, a tua mãe vira-se obrigada a trabalhar de costura, em casa, e fazer bolos para festinhas, nomeadamente para as famílias dos oficiais e sargentos do RI 11, em Setúbal.

Não,  também nunca acompanhou o teu pai nas quatro comissões de serviço no ultramar (Cabo Verde, Índia, Angola e Moçambique), ou nas mudanças de regimento (além do RI 11, em Setubal, esteve em Tomar e nas Caldas da Rainha). E ficaria viúva bastante cedo, aos quarenta e oito anos. 

Era mais nova  do que o teu pai. Nascera em 1920 e teve-te, a ti, aos 20 anos, já depois do teu pai regressar de Cabo Verde. (Depois nasceria a tua irmã, já falecida, que foi enfermeira, estava nos finais dos anos 60 no Alcoitão, quando o teu pai faleceu em maio de 1968, ia completar os 57 anos e passar à reserva, se bem te lembras.)

Nasceste num ano bissexto, em 1940, no dia 29 de fevereiro, uma quinta-feira, recordava a tua falecida mãe. Nasceste em casa, de um parto difícil, já quase de madrugada. Daí talvez tu teres sido sempre mais mocho do que cotovia.

Não chegou a ser preciso chamar o médico do regimento, o RI 11, onde o teu pai estava colocado, na altura. O médico era um bom homem,  alentejano de Évora. O teu pai era de Estremoz. E até se dizia que o médico era do reviralho, só por ser alentejano e republicano.

Tens uma vaga ideia de o ter ido esperar, ao teu pai, já criança com quatro anos, ou coisa assim, a Lisboa, ao Cais da Rocha Conde de Óbidos. Regressava de Cabo Verde, com a sua companhia ou batalhão, não sabes ao certo.

Terá sido a primeira vez que andaste de automóvel e, depois, de barco. Foste tu, e a tua mãe, de carro, à boleia. Não sabes de quem era o carro, pensas que era conduzido por um amigo da família, que tinha carros de aluguer na praça de Setúbal. Talvez também fosse de Estremoz, conterrâneo e colega de escola do teu pai. 

Foste até Cacilhas, ainda não havia a ponte sobre o Tejo, nem nada que se parecesse. Apanhaste um cacilheiro até ao cais do Sodré. Não reconheceste o teu pai, naturalmente, ele andara fora trinta e tal meses. E tu eras ainda muito novo.  Ele não terá vindo bem de saúde, segundo contava a tua mãe. Tinha estado na ilha do Sal e depois na ilha de São Vicente, já para o fim, antes do regresso.

Ou, se calhar, foi mais tarde. Tens as memórias de infância baralhadas. Se calhar foi quando ele voltou a partir para outra comissão, desta vez para a Índia, já como 1.º sargento, aí por volta de 1947 ou 1948, quando masceu a tua irmã. Tu devias ter 7 ou 8 anos. Já andavas na escola, deve ter sido, pois, em 1948. Lembras-te que ainda não havia o Cristo-Rei em Almada.

Ele acabou por fazer lá duas comissões, a segunda como voluntário, com direito a vir de férias de licença graciosa. Aproveitou para fazer o 7.º ano no liceu de Goa. Virá depois a frequentar a Escola Central de Sargentos. Ainda esteve em Angola, em 1961, aqui já com o posto de  tenente SGE. Acabou a sua carreira militar em Moçambique, em 1965… 


Regressou em 1967, para morrer um ano depois, já tu estavas na Guiné. Morreu cedo demais, o teu pai, ainda primeiro que o Salazar. Foi em maio de 1968. Estava o Schulz a ir-se embora. E tu no mato, na zona leste,  quando recebeste a triste notícia. Não foste ao funeral do teu pai, não te deram a devida autorização a tempo de apanhar o avião da TAP. Uma prepotência ou uma mesquinhez que nunca perdoaste ao teu comandante do batalhão. Talvez por esse motivo nunca morreste de amores por ele. (Soubeste, mais tarde, que, sendo
  hipocondríaco e egocêntrico,  não suportava a ideia de ficar sem médico, em pleno mato,  na tua ausência.)

Escassos meses depois de chegares à Guiné, foste colocado no Hospital Militar de Bissau, "onde fazias muito mais falta do que no mato", segundo a ordem pessoal que recebeste de Spínola, ainda brigadeiro,  o teu comandante-chefe que  tiveste a honra de conhecer na altura. 

Com o recrudescimento da guerra e o aumento dos efetivos militares, havia falta de cirurgiões, anestesistas, estomatologistas, intensivistas, etc., para além dos tipos da medicina tropical, que as doenças infectocontagiosas eram mais do que muitas. Com um diganóstico de hepatite, mandava-se um desgraçado tratar-se na metrópole, o que para muitos era a "sorte grande"... 

Estás a falar do Hospital Militar de Bissau,  o HM 241 (ainda te lembras do número). E, em boa verdade, foi um grande escola para ti e outros medicos e cirurgiões. Foi lá que fizeste verdadeiramente o teu internato em cirurgia geral e  ortopedia. Tiveste lá grandes mestres. O que não admira, também não faltava "matéria-prima". E depois, com o Spínola, o Hospital tornou-se um verdadeiro orgulho para todos. Dizia-se, sem exagero, que era o melhor hospital da África Subsariana, só tendo paralelo nos hospitais centrais da África do Sul… (Não sabes, nunca lá estiveste nessa altura.)

Ganhaste admiração pelo homem e pelo militar, que fazia visitas frequentes  ao pessoal do hospital, aos serviços e aos doentes internados.  Ele e a esposa, a simpatiquíssima dona Helena, uma senhora muito fina. E falaste com ele mais do que uma vez. Chegou-te a convidar para ficares na Guiné. Ele sabia que tinhas sido "pilão",  e julgava que tinhas as virtudes militares no teu ADN (coisa que verdadeiramente tu nunca pudeste confirmar).

Em suma, e voltando à tua infância e adolescênia, cresceste com um pai ausente, que tu mal conhecias, a não ser pelos retratos que a tua mãe e espalhava pela casa, com uma velinha acesa para que a santa da sua devoção o protegesse. Quando vinha a casa, recompensava-te com alguns brinquedos, baratos, de lata, e sobretudo muitas histórias. Era um bom contador de histórias, sabia as aventuras todos do Tigre da Malásia, dos livros do Emílio Salgari. Mas nunca falava da guerra,  da guerra do ultramar, que depois passou a chamar-se guerra colonial...


Era um homem meigo, contrariamente à tua mãe (que, coitada,  tinha de ser pai e mãe, que tinha de
 dar o pão, o amor e a educação, a ti e à tu mana; era uma mulher precocemente marcada pela dureza da vida e pelas agruras do casamento com um homem ausente do lar).

Por tudo isto, é difícil responder a perguntas estúpidas como aquela de saber se tiveste uma  infância feliz...  Também não sabes por que razão é  que foste agora desenterrar estas memórias, recalcadas,  do passado.
Na semana em que fizeste 70 anos, o dia 28 de fevereiro de 2010 calhava a um domingo e o dia 1 de março era segunda-feira. Alguém sugeriu fazer a tua "festinha de despedida" na sexta-feira à noite, mas tu opuseste-te terminantemente.

Durante os dias úteis da semana não dava jeito, porque afetava o normal funcionamento do serviço e muita gente não poderia vir. E depois nunca se devia comemorar o aniversário natalício, na véspera, porque dava azar. E tu nessas coisas, eras mesmo supersticioso. Ou não fosses cirurgião.

Ah, sim, as profissões de rilsco têm os seus mlecanismos de defesa contra o sofrimento psíquico. Já alguém te explicara isso, num congresso médico em França: dos toureiros aos pilotos de avião, dos mineiros aos tipos que trabalham nos arranha-céus, dos artistas de circo aos pescadores de alto mar, sem esquecer os polícias e os militares… Todos têm que saber racionalizar os riscos a que estão expostos. 

No caso dos médicos, eles lidam todos os dias com a doença e a morte, pelo que acabam por ter a perigosa ilusão de que são invulneráveis e imortais. Por outro lado, estão sujeitos ao erro, à incerteza... Mas o preço a pagar é, muitas vezes, a exaustão. 

Enfim, a "tua festa" (ou foi a festa dos outros ?)  acabou por ser marcada para um sábado, dia 6 de março de 2010.

Bolas, já lá vai uma boa dezena de anos!... Como o tempo passa. Há mais de meio século atrás andavas em Bissau a amputar pernas e braços, de homens, brancos e pretos, apanhados pelas malditas minas e armadilhas que o PAIGC punha nos trilhos e picadas. Mas também da população civil, nomeadamente fula, que era atacada com armas pesadas e balas incendiárias, nas suas tabancas, sem dó nem piada. 

Enfim, mesmo na retaguarda de um hospital viste o suficiente da guerra para não falar dela de ânimo leve e, muito menos, com saudade.

Com Spínola, há uma escalada da guerra. Mas não se discriminava ninguém... Propaganda? Não, no HM 241  chegava-se a a operar "turras" do PAIGC (e até um cubano, o capitão Peralta!),  feridos e aprisionados pela tropa e evacuados de helicóptero, que custava uma pipa de massa à hora. 

Recordas-te da péssima disposição com que te levantaste, nessa sexta-feira, dia 26 de fevereiro de 2010. Era o teu último dia de trabalho. Segunda feira era já o início de outro mês. Costumavas dizer que só fazias anos de quatro em quatro anos, nos anos bissextos. A partir de 2010, fizeste questão, talvez por pirraça, de deixar de fazer anos...

Nessa semana tu atingias o limite legal de idade para trabalhar na função pública, neste caso no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Já te poderias ter reformado alguns anos antes, acumulando os anos de serviço com o tempo da tropa. Mas não quiseste. Por altruísmo? Por amor ao serviço  público? Não  tens a certeza... Se calhar, foi antes por medo de ir para casa onde ninguém te esperava de braços abertos . Chamavam-te, por isso, o “dinossauro” do Hospital, o "velhadas", o "marreta", o "missionário"  e outros mimos. 


É uma imposição estúpida: sentias-te ainda, aos 70 anos, em boa forma, física e mental, com forças para continuar a dirigir o serviço de ortopedia, que era o teu mimo,a menina dos teus olhos. É certo que já não operavas há uns tempos. Ou melhor: ias fazendo uns “biscates” para não perder a firmeza da mão… Enfim, umas coisas mais leves: fraturas simples, joanetes, uma ou outra artroplastia do joelho, umas infiltrações... Por outro lado,  tinhas uma excelente equipa, de fazer inveja a qualquer hospital.

De qualquer modo reconhecias que um tipo, aos 70 anos,  já não tem o mesmo treino de mão, a mesma agilidade, a mesma paciência, a mesma resistência e os mesmos reflexos de quando era mais novo. E sobretudo a mesma pachorra para aturar os diretores clínicos e os administradores hospitalares e as suas folhas de excel, os gráficos de desempenho, qualidade e produtividade, enfim, para lidar com a burocracia e a numeracia da saúde. Um hospital, público ou privado, é uma fábrica, é cada vez mais gerido como uma fábrica. E infamante foi a imposição do controlo biométrico da assiduidade, da iniciativa de um ministro qualquer, de quem também já esqueceste o nome.

Uma parte dos teus colegas, nesse tempo,  reformava-se do público, logo que preenchia os requisitos legais, na expetativa de vir a poder trabalhar na privada. Alguns até aceitaram ser penalizados na contagem de tempo. Mas era uma ilusão. No privado eram esmifrados até ao tutano. E tinham que alimentar todos os setores da fábrica, da imagiologia ao bloco operatório, da hotelaria aos cuidados médicos e de enfermagem, do nascer ao morrer...


Nunca pensaste em vir a trabalhar na privada, querias tu dizer, numa clínica ou num hospital fora do SNS. E muito menos depois de acabar a carreira no público. Afinal estavas cansado de aturar doentes cada vez mais reivindicativos (e que sabiam tudo da sua doença através da Wikipedia!),  para além dos constrangimentos impostos pela direção clínica e o conselho de administração, da escassez de recursos humanos e materiais, das birras dos anestesistas, da ingratidão dos internos, dos narizes empinados das senhoras doutoras enfermeiras,  

Acho que fizeste bem em pôr um ponto final na tua aventura terrena no domínio da saúde… Na próxima encarnação, serias o que Deus ou o Diabo quisessem…

Estavas em regime de dedicação plena, o que era raro na tua especialidade, que até pode ter uma baiuca cá fora numa qualquer clínica com nome de santo. De qualquer modo, aos 70 anos, punha-se o dilema: o que irias fazer a partir de então, com todo o tempo do mundo à tua frente?!... 

Cedo te apercebeste, depois de reformado, que o tempo era, afinal, depois da saúde e da liberdade, o recurso mais precioso que um homem tinha, e que em geral era mal gerido... 

Afinal, deste conta de que desperdiçaras uma boa parte da tua vida. E, de ciência certa, só se vivia uma vez. Tiveste essa terrível certeza quando, logo aos sessenta, começaste a ver desaparecer alguns amigos e conhecidos.

Não eras escritor nem pintor como alguns dos teus colegas médicos, mais talentosos e famosos. Vivias na periferia de Lisboa e tinhas perdido as tuas raízes em Setúbal e no Alentejo. Perderas completamente o rasto aos teus parentes de Alcácer do Sal e de Estremoz. Também nunca tiveste o culto da família. E infelizmente também nunca tiveste um filho. A tua vida conjugal não fora feliz. Casaste-te, descasaste-te, e com o tempo, depois de alguns relacionamentos desastrosos, começaste a  ficar cada vez mais... misógino.

Mas, voltando ao teu almoço de despedida e à tua retirada de cena…Desde o início do ano de 2010, tinhas o sacana do teu adjunto à perna, a contar os dias do calendário, sempre  à espera do "grande dia" em que o "o filho da puta do velho" (sic) arrumasse de vez o bisturi e despisse a bata… Se ele não o dizia, bem o pensava: “O filho da puta do velho!”…

Reconhecias que tu eras o último obstáculo para ele subir até ao topo da hierarquia do serviço… Para isso, era preciso "matar o pai"…

Mas tu não o condenavas… No lugar dele, tu farias o mesmo, confidenciaste a alguém. De certo modo, acontecera-te o mesmo com o teu "patrão" no hospital anterior, onde começaste a tua carreira. Desististe de esperar que ele arrumasse as botas, tinhas mais três ou quatro rivais à frente… O que fizeste foi concorrer para outro hospital, que ia abrir e que tinha vagas para ortopedistas, e logo a chefiar. Aliás, foste tu  que, aos quarenta e tal anos, foste montar o serviço… E essa foi a tua coroa de glória, abrir um serviço de raiz.


Em suma, já estavas ali, no último hospital em que trabalhaste, há uma eternidade… Enfim, chegara a vez do render da guarda, por muito que isso te custasse. 

Mas voltando ao teu sucessor: e se tu foste um pai para ele!... E que pai!... Recebeste-o de braços abertos, ajudaste-o a fazer o internato da especialidade e, se ele hoje é um grande ortopedista, muito melhor do que tu (és tu próprio a reconhecê-lo), a ti também o deve. Pelo menos em parte. O resto é mérito dele e da estrelinha da sorte que o levou até ao estrangeiro onde aprendeu novas técnicas que tu não dominavas... É verdade?!

Em contrapartida, ele foi o filho que tu nunca tiveste.

Reconheces igualmente que tu foste uma espécie de pai tirano. Foste muito mais exigente e menos condescendente com ele do que com qualquer outro dos internos que por lá passaram pelo serviço. Porque ele era melhor do que os outros, ou tinha que ser o melhor. Provavelmente ficou-te a odiar… Mas nunca o deixou transparecer. É apenas o teu “feeling”…

Em suma, tu e ele tinham, então, na véspera da tua jubilação (odeias a palavra!), uma relação de amor-ódio, latente.

No almoço, nesse tal sábado, foi ele que fez o discurso da praxe… E que discurso! Deixou-me sensibilizado, quase até às lágrimas (a ti, que não tens lágrima fácil)… É difícil, se não impossível, saber se foi sincero, ele era um homem, ainda jovem, brilhante, eloquente, de grande inteligência e um sedutor nato, um "charmoso", bendito entre as mulheres.

Foi ele e a tua secretária clínica que organizaram tudo… Apareceu quase toda a gente, médicos, enfermeiras, assistentes técnicas e administrativas… O mulherio em peso, não tanto por ti mas mais provavelmente por ele, que era o teu sucessor. O poder é afrodisíaco, alguém o disse.

Veio também o teu colega de Ortopedia B, que nunca foi teu amigo íntimo, mas era um colega, bom e leal (também passara pela Guiné)... E  mais alguns médicos, esses, sim, amigos, dos poucos que tu tinhas no Hospital. Nunca foste um homem muito sociável nem de trato fácil, mas sempre foram vinte e tal anos passados naquele hospital, a que chamavas a tua casa. Achavas que era respeitado e, no mínimo,  estimado. Hoje não tens tanta certeza.

O hospital, ou seja, o conselho de administração, ofereceu-te uma salva de prata com o teu nome gravado, e duas linhas de blá-blá de cujo teor já não te lembras. O Ministério da Saúde também te deu uma medalha de mérito (era o mínimo!). E o pessoal do serviço, incluindo os participantes no almoço, tiveram a gentileza de te presentear com um “voucher” para tu fazeres um cruzeiro à Grécia, com visita ao sul da Itália (Vesúvio, Nápoles, Pompeia...), e uma excursão ao templo de Asclépio, em Epidauro, no Peloponeso, na Grécia, onde começou a grande aventura da medicina ocidental de que tu, embora insignificante ator (modéstia tua), também fazias parte.


Não sabes porque é que estás agora a recordar o teu passado. E, depois, a conversa é como as cerejas. Tem piada, reconheces que há séculos que não falavas da tropa, do teu passado como alferes miliciano médico, entre 1968 e 1970, na Guiné de má memória. Em boa verdade, desde que regressaste em 1970... (Também nunca ninguém tivera curiosidade em saber, nunca te perguntaram, nem tu falavas sequer sobre esse período da tua vida. )


Guiné de má memória?!... Confessas que não tens saudades desse tempo, a não ser pelo que aprendeste como médico e como ser humano. Da guerra não tens saudades, as guerras nunca são populares, e aquela muito menos o era. E tens pena de então não teres conhecido melhor os Bijagós onde fizeste uma pequena visita,  num fim de semana prolongado, 

Com os primeiros tempos de Spínola, logo em meados de 1968, tens a ideia de que a guerra se agravara, de um lado e do outro. Chegavam feridos muito graves ao Hospital de Bissau, politraumatizados, que era preciso tratar de imediato. O teu maior orgulho foram as vidas que conseguiste salvar, embora alguns dos rapazes que tu (e a tua equipa) operaste, tenham ficado deficientes para o resto da vida. Nunca, como naquele lugar distante da tua terra, tu tiveste a perceção da justeza do velho aforismo hipocrático: "A vida é curta e a arte é longa"... A arte, a  medicina, a cirurgia, as ciências da saúde. Quantas vezes não te sentiste impotente, inseguro, frustado com as limitações do teu conhecimento e do teu treino, com a escassez de recursos, técnicos e humanos....

A Guiné era pequena, aí do tamanho do Alentejo, e ainda mais pequena na maré-alta, a Força Aérea chegava a todo o lado, nomeadamente os helicópteros, os Alouettes III, que faziam as evacuações Ypsilon (se bem te recordas). Eram as ambulâncias do céu,  estavam equipadas com bom material de suporte de vida, e enfermeiras paraquedistas que prestavam logo, "in loco", no mato ou em pleno, os primeiros socorros, essenciais para manter o fio da vida até Bissau.

Elas eram poucas, mas desdobravam-se em múltiplas missões e foram uma mais-valia (como se diza agora...) para os serviços de saúde militares. Eram muito jovens mas corajosas e competentes. Já não te lembras do nome de nenhuma delas, nem sequer da cara. 

Sabes, isso sim, que, às vezes, ao domingo, chegavam a almoçar juntos, os médicos do HM 241 e elas. Se bem te recordas, os oficiais paraquedistas e os pilotos de Bissalanca guardavam-nas com algum ciúme e e sentido de posse, como "fêmeas do seu harém" (dizia um despeitado de um colega teu)... Uma coisa patológica? Nada, era mais uma manifestação do corporativismo castrense... Na realidade, elas eram poucas e valiosas e pertenciam à Força Aérea, se bem que não dormissem na base de Bissalanca.

Do mato, propriamente dito, tens poucas recordações. Fotos, algumas, mas não te lembras  onde param. Uma das situações que te marcou, talvez pela positiva (o que até pode parecer estranho!), foi a receção que te fizeram no quartel que te calhou na rifa (já não te recordas do número do batalhão).  

Tu já estavas avisado que os gajos mais velhos gostavam de pregar partidas aos "periquitos"… Mas nunca mais te lembraste desse precioso "lembrete", que já trazias de Mafra…  

Recordas-te de ter chegado ao sítio onde foste colocado, em 1968, não longe de Bafatá (não interesse agora o nome), 
nos finais da época seca,  a de maior atividade operacional, de parte a parte. Ao que parece, o quartel nunca tinha sido atacado, nem nas proximidades havia atividade inimiga recente, a não ser a norte do rio Geba e ao longo da margem direita do rio Corubal donde o PAIGC nunca fora desalojado...

Foste de avioneta, viste aquela enormidade de terras pantanosas e alagadas, e aqueles rios em ziguezague que eram a estreita porta de entrada na zona leste.

Mal acabaras de arrumar os teus pertences, num quarto partilhado com mais dois alferes, no edifício do comando, ouves alguns rebentamentos e rajadas de armas automáticas. E depois um profundo silêncio… Nem tiveste tempo de ficar acagaçado, veio logo um militar de transmissões chamar-te à pressa, porque tinha havido uma emboscada com mina anticarro, ao fundo da pista, ali a menos de um quilómetro e tal… Havia “manga de mortos e feridos”!… Manga? Não percebeste...

Logo as Daimlers e o piquete que estavam de serviço, partiram a toda a velocidade, ao longo da pista, do lado de fora do arame farpado…

Um dos majores, talvez o segundo comandante, já não podes precisar, eufórico, quase histérico, apareceu, equipado a rigor (o que te surpreendeu, já que tinhas estado com ele, há menos de um hora!), a conduzir um jipe, mais o furriel enfermeiro, com a bolsa dos primeiros socorros… Os maqueiros já tinham seguido com o piquete, garantia-te o furriel. Havia uma grande excitação no ar, com gente a correr pelo corredor que ia dar à messe, atropelando-se uns aos outros...

O major deu-te ordens, com voz grossa (mas que te pareceu... algo teatral), para tu subires para o jipe. (Tratava-te, com alguma deferência, por doutor e não pelo teu posto.) … Tu nem sequer estavas de camuflado, nem tinhas nenhuma arma de defesa distribuída… Ficaste sem pinga de sangue, confessarás mais tarde, mas veio ao de cima o teu sentido do dever hipocrátrico, mais forte do que o medo do cagarolas do militar "periquito"… Pegaste na tua malota, ali à mão, e lá seguiste com o major a todo o gás…

Até apareceu uma "enfermeira paraquedista", vinda não sabes
 donde, de calça de camuflado, cabelo bem apanhado, e uma T-shirt branca, e  que, para vergonha tua, era bem  bem mais expedita e desembaraçada do que tu, no socorro aos "feridos"… Eles eram tantos que tu não sabias para onde te virar… E cada um gemia mais do que o vizinho... Mas, estranhamente, não havia fraturas expostas...

Ainda levou uns bons minutos até tu te aperceberes que tinhas caído… na esparrela!... Foras praxado, que nem um pato, para gáudio daquela cambada de malandros que estavam a escassos semanas de acabar a comissão!... Disseram-te depois que os oficiais "periquitos", de rendição individual, eram todos praxados à chegada... Mas nem todos gostavam da brincadeira!...

A encenação estava tão bem feita que até o sangue era sangue mesmo, embora de galinha ou de vaca, não era mercurocromo, como nos filmes de cobóis.

Soubeste mais tarde que a "enfermeira paraquedista" era a esposa de um dos furriéis ou alferes da CCS, e o que o furriel enfermeiro tinha sido o "cérebro" da brincadeira, com a cumplicidade sacana do major… 

Não levaste nada a mal, mostraste o teu "fair play", convidaste a malta  para o bar de sargentos, pagaste logo uma rodada de uísque a toda a malta, atores e figurantes… Em boa verdade, duas rodadas, que te custaram o equivalente a duas ou três garrafas!... Os gajos eram umas esponjas...

Pronto, são estas as histórias de que tu ainda  te lembras do teu passado, da infância, da juventude, e da guerra, ou das guerras, a da Guiné e dos hospitais onde, num caso como noutro, procuraste sempre fazer (e dar) o teu melhor… Tens a consciència do dever cumprido como médico, quer civil quer militar.

E aqui fica o resumo  da entrevista que aceitaste dar, com alguma relutância, para um projeto de investigação  sobre os médicos na guerra colonial...  Não tens a certeza da tua história valer grande coisa, mas esperas, ao menos, que os jovens historiadores façam bom uso dela. 

© Luís Graça (2019). 

Revisão: 21/1/2024
____________

Nota do editor:

sábado, 20 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25091: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (3): "Mulher 5 estrelas"



MULHER 5 ESTRELAS

adão cruz

- Ó Alves, escusas de estar para aí muito chateado por eu ter ido dormir com o meu ex, apenas com o fito de lhe gamar umas sapatilhas para o meu filho. E não te armes, pois tens à tua frente uma mulher 5 estrelas, que te ama, e é capaz de te mandar um pontapé nos tomates da noite pró dia.

A mulher 5 estrelas não era nova nem velha, tinha aquela idade subjectiva em que ninguém acerta. Era magra, quase escanzelada, e até não seria feia se tivesse dentes. Daí, a resposta do Alves não ser de todo descabida:
- 5 estrelas, o caralho!

O Alves ainda não tinha o estigma da terceira idade mas andava lá perto. Baixo e estreito, tinha aquela estatura que habitualmente se designa como roda 26. Devia ter tido um AVC, pois apresentava um pequeno desvio da comissura labial e soprava ligeiramente as sílabas graves, assobiando as agudas.

Ninguém tem nada com a vida dos outros e muito menos a D. Alice que por ali aparece, para comer uma torradinha e beber meia de leite, quando o negócio das cuecas e camisolas a um euro ou dos guarda-chuvas assim o permite.

- Coitada, e apontava o dedo à mulher 5 estrelas. Foi casada com um médico, não era bem um médico desses doutores de Medicina, era uma espécie de endireita. Um dia ele caiu de uma figueira e nunca mais se endireitou. Como não foi capaz de se endireitar a si próprio, nunca mais ninguém acreditou nele. E caiu outra vez, mas na miséria. Esta pobre, e estendeu o dedo na direcção da mulher 5 estrelas, ficou sem eira nem beira, com um filho nos braços (supomos que o mesmo que a levou a dormir com o ex). E, é claro, pôs os cornos ao marido na primeira esquina da vida. (A mulher 5 estrelas acenava com a cabeça em jeito de confirmação e aprovação. E inventou uma lagrimeta nos olhos).

- Mas não foi com este borradito, continuou a D. Alice com o dedo espetado no Alves. Este veio na onda da desgraça. Não é má pessoa, mas teve um ABC e ficou com a boca a tocar flauta e a mão a pôr açúcar nas farturas. O que lhe tem valido é a fé da velhota dele, ali sempre ajoelhada na Capela das Almas a pedir a cura. O certo é que está muito melhor e só quero que o Senhor o conserve. Do mal o menos. Ai Deus me perdoe, não leves a mal, ó Alves, mas sabes que é por bem que eu digo estas coisas e não era capaz de dizer mal do meu genro, ainda que meio emprestado.

Só aí ficamos a saber que a mulher 5 estrelas era filha da D. Alice e que o Alves fazia o papel de genro mais ou menos oficial. Portanto retirámos, neste caso, a observação de que ninguém tem nada a ver com a vida dos outros. Ela tinha.

O Alves não parecia lá muito contente com a conversa e já estava com os cabelos em pé. Por acaso não estava porque os não tinha. Quando foi danificado pelo AVC, os seus papéis foram trocados pelos de um outro doente que era cauteleiro e tinha um tumor cerebral. Aplicaram-lhe uma valente dose de quimioterapia que lhe fez cair tudo o que era pêlo. Quando deram pelo engano, já ele se queixava de quase tudo e até que mijava às pinguinhas. O médico disse que era da prósta e deu-lhe um daqueles remédios que amolecem o órgão mas põem um gajo a ejacular ao contrário, a ejacular para dentro. Por isso lhe fazia uma grande espécie quando ele batia uma e sentia todo aquele doce no baixo-ventre mas nem uma gota. Também por isso a mulher 5 estrelas lhe dizia que ele era uma malagueta seca. Com ele não precisava de tomar a pírula, ao que ele retorquia dizendo que nem com ele nem com outro, pois ela já tinha o úter fora de prazo.

E assim se passou um bocado da tarde entre dois finos, com o Alves a levantar-se da cadeira para depor ternamente um beijo na face da mulher 5 estrelas, esta a sorrir tapando a boca com a mão espalmada, a D. Alice a lamber os dedos besuntados de manteiga, e nós a virarmos a última página do jornal, desiludidos com as mentiras e as hipocrisias deste mundo.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25069: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (2): "A Rainha"

domingo, 14 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25069: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (2): "A Rainha"


A RAINHA

adão cruz

Dizem que toda a vida sonhara ser Rainha. Rainha de qualquer coisa, já que não podia ser Rainha a sério. Por isso, no bairro, todos lhe chamam Rainha. A Rainha para aqui, a Rainha para ali.

Não que haja, em bairro tão pobre, qualquer tipo de estatuto, hierarquia ou respeito especial. Não é um bairro onde os respeitos tenham degraus. No entanto, a Rainha, talvez pela idade, é assim uma espécie de pessoa honoris causa, uma espécie de Rainha-Mãe.

Dizem que é a prostituta mais antiga da cidade. Dizem que anda pelos oitenta, mas não precisam de o dizer. Está escrito nas engelhas. Trabalha na parte oriental da cidade, na zona oposta à do bairro onde vive. Noutro reino. Para não misturar as coisas.

Chega um pouco antes da meia-noite, ao único café aberto àquela hora. Senta-se sempre na mesma mesa, se estiver vaga, e na mesma posição. Virada para a porta. Com ela traz o filho e dois netos. O filho, alto e desengonçado, com um pequeno bigode à Hitler, mudo como uma pedra, não fala, e mal se senta não se mexe. Talvez fale para dentro, mas como falar para dentro é pensar, não é provável, porque ele dá a ideia de que não pensa. Dizem que nunca trabalhou e que sempre viveu à custa da mãe.

A neta, dos seus doze anos, engraçadinha, dá a entender que nada existe nem nunca existiu à sua volta. Não mexe uma fibra do corpo. Apenas os polegares, para premir, ininterruptamente, as teclas do telemóvel. O rapaz cola cromos numa caderneta como se, para ele, mais nenhuma tarefa houvesse neste mundo.

A Rainha e o filho comem um prego com mostarda, como quem cumpre um ritual, com os olhos fitos no nada, e bebem um fino. Ele, em duas goladas, ela, aos bocadinhos. Os netos comem hambúrger e bebem algo que está dentro de garrafinhas muito coloridas. E repetem, até à uma hora da madrugada. Entre a uma e as duas horas, o sono vence-os e eles tombam sobre a mesa. O pai pede mais um fino.

Por volta da uma hora, a Rainha mexe-se. Olha para os dedos enrolados em anéis de vários tamanhos e cores, compara-os com as argolas enfiadas nos pulsos magros, a ver se condizem, alisa as roupas e as repas que, teimosamente, saem do gorro vermelho, confirma a cor vermelha das unhas e das meias, espreme os lábios, onde o batom resvala para fora dos bordos e das comissuras por imprecisão das mãos secas e trémulas, sulcadas de veias. Com dificuldade põe a carteira a tiracolo, levanta-se um tanto cambaleante e sai. Dizem que vai trabalhar mas ninguém sabe para onde.

Cinco minutos antes das duas horas da madrugada regressa, antes de o café fechar. Paga a conta, o pai acorda os putos com um safanão, único gesto verdadeiramente activo da noite, e todos, como sonâmbulos, desaparecem na escuridão da rua, dizem que em direcção a casa, no bairro onde a mais antiga prostituta da cidade é Rainha.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24911: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (1): "Assinada e tudo"

domingo, 3 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24911: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (1): "Assinada e tudo"


1. Em mensagem de 1 de Dezembro de 2023, o nosso camarada Adão Cruz enviou-nos este conto cheio de humor:

ASSINADA E TUDO…

adão cruz

Vem isto a propósito ou a despropósito daquela moça trintona que se sentou à nossa frente na mesa da esplanada, entre dois tipos iguais, de fato escuro e pasta preta na mão. Acendeu o cigarro, pousou o maço na mesa, aspirou bem fundo e expeliu para o ar uma longa baforada de fumo e CO2.

Os cabelos caíam pelos ombros em estrias de várias cores, dentro da mesma tonalidade aloirada. Ostentava no alto da cabeça um par de óculos escuros com vidros do tamanho de um CD.

A pele castanha, de cima a baixo, um tanto ebanácea, denunciava uma enorme quantidade de dias, semanas ou meses de ultravioletas dentro das células, encharcadas de melanina. Um vaporoso vestido branco de renda cobria parte do corpo desde o meio dos seios ao terço superior das coxas, deixando perceber que por baixo havia, como que emboscados, um soutien e umas cuecas também brancos, ora espreitando, ora se escondendo, ao sabor dos movimentos.

Um colar cravejado de bolinhas de cor lilás, era irmão dos brincos que chegavam à clavícula. Afilavam os dedos das mãos umas unhas pontiagudas, de uma cor vermelha arroxeada igual à dos lábios, dando ao conjunto um ar vampiresco. Na mão direita havia dois anéis, um duplo, na falange e na falangeta do anelar, presumivelmente ligados por uma fina ponte invisível, e outro enorme, no indicador, com uma cabeça de urso, azul, do tamanho de uma bola de pingue-pongue. No braço esquerdo, uma enfiadura de pulseiras. De resto, céu limpo até aos pés, onde davam nas vistas uns sapatos completamente abertos, com saltos inspirados na Torre Eiffel de cabeça para baixo e cheios de atacadores que se inseriam a meio da perna e desciam até às pontas dos dedos, sendo que o eixo desse complexo de atilhos, tinha um correr de pérolas iguais às da gargantilha. No pé direito, entre o dorso e a planta, uma assinatura percorria o espaço que vai do calcanhar ao dedo mínimo.

Foi quando o meu amigo, de boca pasmada, me disse baixinho:
- E está assinada e tudo, carago!

____________

domingo, 24 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24693: Agenda cultural (838): Orquestra Médica Ibérica: Hoje, 24 de setembro, às 16h, vai dar um concerto solidário no Altice Forum Braga... Programa: Tchaikovsky, Mendelssohn e Joly Braga Santos... Ingresso: 10 euros


Hoje, 24 de setembro, às 16h, vão dar um concerto no Altice Forum Braga,


Um dos elementos da Orquestra Médica Ibérica (OMI) (fot0 acima, editada por nós, com a devida vénia) é o nosso amigo João Graça, psiquiatra no IPO de Lisboa e músico (violino), que faz parte desde 2009 da nossa Tabanca Grande; a OMI estreou-se em Lisboa, o ano passado, no anfiteatro da Reitoria da Universidade de Lisboa (fotoo acima). (*)


1. "A Orquestra Médica Ibérica, criada em 2020, é composta por médicos e estudantes de medicina de Portugal e Espanha, que partilham a sua paixão pela música e medicina.

"A sua principal missão é criar pontes entre os profissionais de saúde da península ibérica, reunindo-se anualmente para realizar um concerto solidário, cujas receitas de bilheteira revertem a favor de uma entidade que promova a melhoria dos cuidados de saúde, a investigação e a ajuda a pessoas mais desfavorecidas.

"Para tal, a Orquestra Médica Ibérica parte da convicção plena de que a saúde é um direito humano básico que deve ser de acesso universal e um pilar estruturante para uma sociedade mais justa."


2. Concerto solidário, no Altice Forum Braga, hoje 24 de setembro, às 16h00;

Programa (**):


  • Tchaikovsky, Sinfonia nº 5 em Mi menor, op.64
  • Mendelssohn, Concerto para violino em Mi menor, op. 64
  • Joly Braga Santos, Hino à juventude, da sinfonia nº 4 em Mi menor, op. 16

Direção: Sebastião Martins | 1º Violino: Mariana Vilela

O dinheiro angariado na Bilheteira do concerto será inteiramente doado à Associação de Voluntariado Porta Nova.

Bilhetes:

1ª Plateia: 10,00 €
2ª Plateia: 10,00 €

_____________

Notas do editor:

domingo, 17 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24665: Blogpoesia (794): "Lágrima de Sol", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



LÁGRIMA DE SOL

O sol vem sempre
o sol não mente
ou vermelho e quente
queimando a sede
e roendo a fome
de tanta gente inocente
ou pálido e frio
congelando a sede
e empedrando a fome
ainda que a gente o não veja
e pareça ausente.
E também o deserto
o deserto não mente
o deserto sempre aberto
na alma desta gente
ainda que pareça certo
o caminho em frente.
Vem sempre a dor
na secura das carnes
a dor não mente
ainda que ao mundo pouco importe
a dor que dói a tanta gente.
E também a alma não mente
e não mente o sofrimento
do esbugalhar dos olhos
ainda que a mente enlouqueça
e até se esqueça
de que é alma de gente.
E morre a paz
a paz podre não mente
ainda que na vaga esperança da sorte
não seja mais do que a paz da morte.


adão cruz
____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24465: Blogpoesia (793): "Um apenas", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 3 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24615: "O menino que abria rãs", texto de Eva Cruz, irmã do nosso camarada Adão Cruz


1. Texto de autoria de Eva Cruz, irmã do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68):

O MENINO QUE ABRIA RÃS

Vou lá abaixo ver o giro da água. Aproveito para olhar as últimas rosas à beira do canastro. Se tirar as velhas, ainda nascem novas. São rosas de muitas cores, plantadas há anos por mãos que perfumam a memória. Ao passar pelo tanque pequeno, dou com os olhos numa rã, da cor de musgo verde salpicado de pintas pretas, tão bem desenhadas que parecia obra de artista. Descansava à superfície da água sobre uma folha seca, como se andasse de jangada. Logo me veio à memória aquele menino que abria rãs, engendrava canalizações com os pés das folhas de abóbora que são ocos, fazia bolas de trapos, gaitas de palha centeia, jogava ao pião, corria tudo de arco e guincheta, construía uma camioneta de pau com travões e barquinhos de papel ou veleiros de cortiça. Caçava melros e pardais com caniçadas, que alojava temporariamente em gaiolas, pois não gostava de lhes roubar a liberdade. Não tinha medo dos bichos, incluindo cobras e lagartos, que dizia serem seus irmãos naturais. Já mais graúdo, o rio era a sua atracção ao fim da tarde, o que que lhe valeu algumas vergastadas nas pernas pelas mãos de nossa mãe. Tinha um pombal com pombos-correio e gabava-se de ter uma pombinha que ganhara um segundo prémio numa largada em Madrid.

Mas foi o facto de o ver há dias, entusiasmado, à volta da rã sarapintada que ali apareceu ninguém sabe como, procurando fotografá-la, que me trouxe à memória o menino cirurgião que abria rãs. Quando éramos crianças, havia muitas no tanque grande ou no rego lodoso da beira do campo do meio. Já rapaz, agarrava uma rã, anestesiava-a, colocando uma bolinha de algodão embebida em éter sobre a cabecita, estendia-a numa tábua de barriga para cima, fixava-lhe as patas com alfinetes e, com toda a habilidade cirúrgica, abria a pele do bichinho de alto a baixo, com a ponta bem afiada de um canivete e uma tesoura pequenina. Chamava-nos então, para que víssemos as suas entranhas e o coraçãozito a bater, do tamanho de uma semente de romã. De seguida, munido de uma pinça e de uma agulha de costura, suturava-lhe cuidadosamente a pele da barriga e esperava que ela acordasse. Mantinha-a alguns momentos no recobro e voltava a pô-la na água com todo o jeitinho. Estupefactos, sentíamos todos uma grande alegria ao vê-la nadar, como se nada tivesse acontecido.

Foi talvez aqui… que começou a aprender a olhar tão bem o coração dos homens.

____________

Nota do editor

Último post de Adão Cruz de 20 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24570: (In)citações (258): Reflexão extemporânea entre dois copos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 20 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24570: (In)citações (258): Reflexão extemporânea entre dois copos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)



REFLEXÃO EXTEMPORÂNEA ENTRE DOIS COPOS

adão cruz

Todos aqueles que já me leram sabem que eu considero o vinho como a melhor droga estimuladora da criatividade, moderado, claro está. Um copinho de tintol, ou mesmo de branco fresco, nestes dias de verão, é uma bênção do céu, admitindo que existe Céu.

Gostaria que nesta extemporânea reflexão coubesse tudo o que há de bom no mundo, mas infelizmente há mais de mau do que de bom, o suficiente para levar à extinção do ser humano, a espécie que, apesar de tão infinitesimal no Universo, mais tem envergonhado a natureza e mais tem dado cabo de tudo o que poderia criar o equilíbrio e a harmonia.

O vinho, como disse, é uma espécie de fio-de-prumo que equilibra o nosso pensamento. O pensamento é o resultado de triliões de neuro-transmissões, e não é grosseira metáfora dizer que o vinho é uma espécie de óleo que lubrifica os nossos canais neuronais. Quem quiser que acredite, quem não quiser acreditar que beba água. Sem pretender colidir com a maravilha, com a ética e a estética da existência, penso que um copinho permite chegar mais depressa à interface que eu considero como fronteira entre a condição antropológica e a condição universal do ser humano. Só aí, calmamente sentados em qualquer tosca pedra, poderemos olhar o infinito e sentirmo-nos capazes de reconhecer a merda que somos.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24499: (In)citações (257): Não basta sermos velhos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 23 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24499: (In)citações (257): Não basta sermos velhos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)


NÃO BASTA SERMOS VELHOS

adão cruz

Esta reflexão não é só em relação ao SNS que existe, mas também ao SNS que poderia vir a existir se houvesse vontade política. Ao que o SNS poderia vir a ser, se houvesse uma vontade séria de eliminar os defeitos, as imperfeições e as carências, no sentido de o amparar no seu tão ansiado e promissor caminho de um futuro indispensável à saúde de um povo.

Hoje, o conhecimento e a experiência médica são muito grandes. A investigação científica atingiu uma dimensão incalculável e a sua aplicação prática trouxe avanços inimagináveis na assistência aos doentes. Existem muitíssimos profissionais idóneos, com excelente formação técnica e humana e com grande vontade de colaborar no radioso futuro de um SNS de alto nível, mas também se verifica o contrário, nesta furiosa corrida ao desumano negócio da saúde. Apesar de estarmos num bom lugar a nível mundial, não podemos escamotear os defeitos, grandes imperfeições e carências em toda a assistência médica em Portugal, sobretudo na incapacidade de atendimento atempado e na ausência de um exercício clínico profundo e correcto, A substituição da sábia observação clínica de um doente por um computador e por uma fábrica de exames, a avaliação clínica atamancada e a abordagem vulgarmente negligente e irresponsável da situação do paciente, pode redundar em diagnósticos errados, prescrições inadequadas e exames dispendiosos, muitas vezes nefastos e até mortais.

Vem tudo isto a respeito do doente idoso, isto é, aquele doente da chamada terceira idade. Este doente é muito diferente do indivíduo jovem. É mais atingido por doenças, especialmente doenças crónicas e tem muitas comorbilidades. Além disso, as alterações fisiológicas próprias da idade são comuns, levando a problemas de absorção, de metabolismo e de excreção de substâncias.

Chegado ao ponto intencional deste pequeno texto, eu queria dizer que quando há necessidade de prescrever um medicamento a uma pessoa idosa, os principais problemas prendem-se com as patologias não tratadas ou patologias mal tratadas, com a indicação de tratamentos e fármacos inadequados, com a polimedicação, com o baixo nível de instrução, com as fracas condições sociais e económicas, e, sobretudo, com as reacções adversas aos medicamentos e as interacções medicamentosas. O idoso tem duas a três vezes mais probabilidades de sofrer uma reacção adversa do que um jovem. Um idoso a tomar vários medicamentos tem grandes probabilidades de interacções e reacções mais graves e de mortalidade duplamente mais elevada do que as pessoas mais novas.

Neste drama da terceira idade, porque de um drama se trata, essencialmente por passar à margem da responsabilidade e do bom senso, centra-se um dos maiores defeitos e um dos mais graves problemas da assistência médica, pública e privada. Não a que é praticada por profissionais conscientes, responsáveis e competentes, mas a que se faz em muitas dessas clínicas, por vezes quase de vão de escada, que por aí proliferam. A ignorância, a incompetência e a falta de juízo crítico e clínico estão na base de boa parte da morbilidade e mortalidade desta faixa etária.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24480: (In)citações (256): Sigamos a andorinha de Candoz (Luís Graça)

domingo, 9 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24465: Blogpoesia (793): "Um apenas", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



UM APENAS

Faço por ser um apenas…
quando tenho na frente
alguma nata de gente
a dizer o que diz
que a gente não sente.
Mas eu sou eu
e sei o que penso
quando estou sozinho
sem ter pela frente
esta nata de gente
que diz o que mente
e que a gente não diz.
Quando estou sozinho
em silêncio feliz
tal nata de gente
que diz o que diz
sem saber o que penso
não sabe o que rio…
quando não tenho na frente
esta nata de gente.


adão cruz

____________

Nota do editor

Último poste da série de > Guiné 61/74 - P24386: Blogpoesia (792): "Soneto", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 25 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24430: (In)citações (252): "Hoje falamos dela", de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


HOJE, FALAMOS DELA

adão cruz

A conversa que deveria ser com a minha amiga da onça não o é. Desta vez não quero nada, tu cá tu lá, com ela. Não é que esteja zangado, mas não quero falar com ela, prefiro falar dela, ainda que me digam que é má-língua.

A descodificação das arquitecturas neurais que levam à razão aponta para um conjunto complexo e heterogéneo de áreas do córtex cerebral, situadas no lobo frontal. A sua superfície cresceu exuberantemente do antepassado primitivo até ao Homem, o que levou a qualificá-lo de órgão da civilização. Há, além disso, áreas circunscritas do sistema límbico envolvidas no prazer e no seu oposto, a repulsa. Tudo leva a crer que o prazer estético resulta da interacção concertada entre as representações mentais elaboradas no córtex cerebral e os estados de actividade do sistema límbico. Se assim for, não se ofendam com a interposição pessoal de uma pergunta: situar-se-á por estas bandas, mais amplas ou menos amplas, a tal identificação com ela?

Numa espécie de conclusiva ilação podemos dizer que quem se entrega a esta atrevida senhora, a Arte, propõe a si próprio uma verdadeira aventura. Para isso tem de traçar um caminho, caminho belo, difícil, desconhecido, atapetado de contradições, sem rota nem destino. Outro não pode ser o caminho da Arte. Neste caminho que atravessou e atravessará os séculos, não podemos deixar de nos situar numa posição de humildes aprendizes. Não podemos viver se não estruturarmos um trajecto de análise, de reflexão, de aprofundamento cultural e de intensa pesquisa individual e colectiva, que nos confira a dignidade de intérpretes da “Filosofia da Arte”. Arte que ninguém consegue definir de forma absoluta e universal, pela qualidade de algo que é produzido na inteligência humana, com efeito estético gerando juízos de valor sobre a própria obra, o seu autor e as técnicas e modalidades de produção.

Será que todos sentimos necessidade de comunicação, destino aparentemente credível de uma “Obra de Arte”? Será este “movimento da mensagem” a seiva que pode fazer de todos os fenómenos culturais fenómenos de comunicação? Será o verdadeiro destinatário a satisfação de caprichos e vaidades, ou o Ser Humano, entidade interpretante de um processo de significação?

Cientes da riqueza, do deslumbramento e dos perigos do binómio “Arte e Comunicação”, mantendo alguma inclinação para considerar a Arte como linguagem, deixemo-nos aventurar no campo do pensamento. Assim, consideramos que a Obra de Arte se dirige não só ao autor, mas também ao fruidor, não como um convite para estabelecer uma relação primariamente sensível, mas para que ele a compreenda como sentimento.

O Ser Humano que sonha a Vida na Arte e a Arte na Vida pretende o diálogo entre ele e os outros. A sua obra foi criada com a necessidade e a exigência de que todos a compreendam, ainda que esta exigência seja idealista e pouco realizável. De qualquer forma, tal necessidade e exigência constituem uma propriedade fundamental da Obra de Arte e um estímulo essencial da criação artística. Pela forma de estar nesta magnífica aventura, começamos lenta e progressivamente a acreditar que a Obra de Arte deve mediar um significado suprapessoal.

Neste percurso dentro do mundo da nossa amiga, teimosamente falseado de arranjos curriculares que visam pôr o artista acima da obra, fica-nos a sensação e a ideia de que a autêntica obra artística é um jogo, no qual o autor instaura livremente valores e opostos, com total soberania, com muitas interrogações, mas sem respostas a dar ou a esperar, elegendo como resultado o sentimento veiculado numa linguagem privilegiada, que procura dar à mensagem a dimensão mais ampla e profunda do Ser Humano.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24411: (In)citações (250): Sou amigo do ex-cap QEO Bordalo Xavier, ex-cmdt da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1971/72); fui a Lamego pagar-lhe uma dívida de gratidão; sei que participou no 25 de Abril de 1974 mas não sei qual foi o seu papel (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

domingo, 18 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24410: (In)citações (249): "Sei que a culpa não é só tua", de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



SEI QUE A CULPA NÃO É SÓ TUA

adão cruz

São muitos os caminhos que nos conduzem à impostura, mas, mesmo assim, acredito que a única fonte da beleza ainda está em nunca nos separarmos de ti. Ao despedirmo-nos de ti, aliciados por modernas metáforas do pensamento banal, a nossa própria imperfeição nos basta, nos ilude e nos realiza. Tudo o que gira à tua volta, toda a mercadotecnia da arte, tanto mais ruidosa quanto mais artisticamente vazia, não passa de um barco sem remos à flor das águas quietas, numa falsa harmonia de contemplação, sem nada que a prenda medularmente ao artista, sem a luz e os espaços utópicos que a libertem deste mundo de merda.

O atrevido desconcerto das palavras, quando é bonito dizer-se que o poeta domina as palavras como se as levasse voando, a desconstrução de emoções e sentimentos, o desfazer dentro de nós da ordem e da criatura a fim de tentar abordar o não criado, são as ondas que na apatia do mar sereno tornam os poemas habitáveis e fazem da arte a real experimentação da vida. É muito grande a distância que nos separa do belo, e muito longo o caminho de libertação e renúncia para dele nos aproximarmos. Ainda que isso pressuponha o contratempo de não estar na moda, é imperioso acreditar que não é a rotura da mentira que faz a moda. A moda é o crime estético por excelência. Gira sobre si mesma para que nada mude a verdade-mentira. Se me permites um humilde conselho, foge das globalizações e hegemonias, geradoras de défices éticos e artísticos que fazem de ti um ser dominado e subalterno. Por isso te digo que não vale a pena dizer sim ou não quando o terreno não é fecundo e a vida não é mais do que imitação de si própria. Não vale a pena sonhar, se os fundos cálidos e cromáticos não nascem do destilar das horas e da vida, e se o diálogo de alegrias e desânimos não nos liberta da artificial conduta.

Muitos dos consumidores da ardilosa etiqueta e muitos dos argentários modeladores do mundo, instalados num presente sem fissuras e no acanhado espaço da exclusiva liberdade individual, em cujo peito o pulsar político-social, poético e artístico não é mais do que um coração de pedra, fabricam a ignorância, a incultura e a amoralidade necessárias à tua morte e à consagrada sobrevivência elitista. Sobre ti, basta-lhes o escolástico provérbio: De gustibus et coloribus non est disputandum (não há que discutir gostos e cores).

Uma vez na crista da onda, agarram-se ao mastro e passam a mandar no mundo, porque a sua fé lhes garante que a corrupção acompanha o poder como a sombra acompanha o corpo. Obreiros de um futuro podre, desconhecem a formosa face de uma alma nua e o apaixonante canto da arte e da vida em dignidade social. Compreender a obra é possuir a pessoa do criador, a sua experiência, a sua vida, os seus sentimentos e ideias. A Arte não é apenas a narração do estilo, mas a razão entre a força possuída e a força possessiva, a personalidade concreta feita modo de formar, na mais diversa e dialógica conversa com a vida.

Por mim, ainda que um tanto desconfiado, prefiro continuar a dizer-te: quando levas um seio ao vento e me dás a beber campos e cidades, glorifico a pouca luz que ainda me resta.

Se os lobos se atravessam no caminho para a tua cabana, o vento ergue-me nos ares e o coração aprende a não ter medo de cair.

Descobridor de sonhos, de amanhãs que riem e de estuários, continuo a pintar o vento, ainda que nele te vás.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24388: (In)citações (248): "Mais uma conversinha contigo", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 11 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24388: (In)citações (248): "Mais uma conversinha contigo", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


Mais uma conversinha contigo

adão cruz

A pérfida administração do silêncio é a melhor arma de matar ambições. Vês-me aos encontrões no nevoeiro, sem terra debaixo dos pés, à procura de um ponto de apoio, à procura de um princípio fiável da verdade e nada me dizes. Já reparaste que me escondes sempre a verdade? A verdade senta-se na paleta, mas tu trocas as cores da verdade pelas tintas da fama. Eu sei que todos temos direito ao nosso quarto de hora de fama, ainda que passemos uma vida inteira sem verdade. Gauguin nunca entendera a desordem de Van Gogh e Van Gogh nunca entendera a ordem de Gauguin. No entanto, a procura da verdade fora, provavelmente, a sua vida comum, o seu único acto comum, a consonância da arte que fez da substancialidade da pintura a ressonância dos tempos.

Quanto a mim, o pensar é garantia imediata do caminho da verdade, ainda que não deixe de nos acompanhar a dúvida imensa e incancelável. Quem tem as verdades e certezas das mentes formatadas, dos cabotinos e histriónicos trata a arte como os homens tratam as putas, isto é, utilizam-nas e elas sorriem-lhes, mas não os amam. Dizem eles que o tempo da beleza já passou e que a arte será cada vez mais científica e a ciência cada vez mais artística. Mas não fazem ideia do que dizem. A arte e a ciência, a ciência e a poesia podem fundir-se, é certo, dentro da progressiva cumplicidade entre as Ciências e as Humanidades, mas apenas quando a perversidade dá lugar à música do percurso. Sabemos que o engenho humano já manipula hoje a intimidade da Enciclopédia do Homem e dos muitos milhares de milhões de unidades que a compõem. E tudo isso nos leva a crer que a ciência pode, deve e tem de conviver contigo. Se a neuroplasticidade cerebral é base da compreensão da vida, isso mais nos ajuda a entender que a numerologia da arte é inimiga do sentimento e pode ser o diabo a cortar-te os braços para com eles se persignar. Todo o homem que te ama de verdade morre sempre na incerteza do seu próprio valor.

Na vida dizemos muitos adeuses. A lugares, amigos, relações, a gente que morre e a gente que se despede, a coisas que se acreditam e nos enganam. Só à verdade não é permitido dizer adeus. Será por isso que ma escondes? Consideras divertido esse teu espaço eleito como ideal mítico e atractivo, capaz de nos catapultar até à excelência interpretativa, mas o que nos mostras, a mim pelo menos, é uma cortina de fumo que me esconde o fogo e a espontaneidade da luz. Entre amanheceres e crepúsculos, exiges-me a verticalidade do meio-dia, amargamente impossível neste balancear incessante entre a intensidade do meu sentir, a que não é alheia a tua sensualidade, e a polarização dialéctica e simbólica.

Dentro das alegorias possíveis e de uma espécie de polifonia pictórica, considero-te a música do Universo, a mulher reinventada nas vivências e passagens do tempo, elemento de candor poético na intimidade do quotidiano. Talvez pelo hormonalismo poético da tua imagem feminina, nunca te outorguei o exíguo papel que tantos te atribuem. Mas pago bem caras a aspiração da tua pureza, a procura da tua inocência, a adoração da tua beleza, a ansiedade do teu absoluto, que fazem de mim um náufrago de sonhos preso nos lastros da realidade.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24380: (In)citações (247): Já comíamos ostras em Empada, em junho de 1969: abertas em chapa quente com o lume por baixo e passando depois pelo picante e limão... (José Manuel Samouco, ex-fur mil, CCAÇ 2381, 1968/70)

sábado, 10 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24386: Blogpoesia (792): "Soneto", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Hoje é dia de Camões. Longe de mim a pretensão, mas a título de comemoração, deixo aqui um dos poucos sonetos que fiz. Escrevi-o em 1971, dois anos após a morte de meu pai

Tão cedo a esta vida te roubaram
Saudoso pai, meu bom e grande amigo
Que mal teus olhos fundos se fecharam
Boa porção de mim partiu contigo.

Flores e velas, preces lacrimosas
Oh! Alienas artes da razão
Ainda bem que não te iludem rosas
Meu doce pai que em tudo és meu irmão.

Minha fé, minha crença, minha idade
De homem-filho, é grito de homenagem
Que outro não sei, sem lágrimas, sem prantos.

Mãos dadas pelos céus da eternidade
Nesse reino sem trono e sem linhagem
Vives tu, vivem papas, reis e santos.


adão cruz

____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24270: Blogpoesia (791): "Passei o dia a ouvir música", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24368: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte I: Tempo(s) de Homofobia(s) (Mário Vargas Cardoso, 1935-2023)

  

Capa do II Volume do documento policopiado "Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), 2008,  inumerado.


1.  O nosso saudoso camarada e amigo Raul Albino (1945-2020), ex-alf mil at inf, MA, CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), publicou ainda em vida dois volumes com a história da sua unidade. 

No II Volume, que teve a coordenação fotográfica do Maurício Esparteiro, contou ainda com a participação especial do ex-cmdt da companhia, Vargas Cardoso, e do ex-fur mil SAM, João Bonifácio.  Hoje publicamos um pequeno texto do Vargas Cardoso, ex-cor inf ref, que há dias nos deixou (*). No nosso blogue, o Raul Albino também publicou, no devido tempo, 18 postes com episódios da história da CCAÇ 2402 (**).


O transmissões que era gay...

por Vargas Cardoso 

Durante o período de preparação das unidades que mobilizavam para o Ultramar, quando já tinha conhecimento do teatro de operações do destino, e se preparavam os exercícios finais, que em 1968 se faziam no Continente / Metrópole, apresentavam-se na unidade mobilizadora (no nosso caso, o Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora) os chamados especialistas, ou sejam os elementos do comando da companhia.

De entre os condutores, enferfermeiros, mecânicos, radiotelegrafistas, trabsmissões, etc., apresentou-se-me um futuro cabo de transmissões, que durante a habitual entrevista que tive com todos os militares da CCAÇ 2402, me causou alguma preocupação, pois pareceu-me denunciar um comportamento de tipo sexual, à época, bastante anómalo.

Já não me recordo como obtive informações complementares, mas lembro-me que dias depois,  e uma vez confirmadas (em princípio) as minhas suspeitas, falei com o nosso médico, o dr. João Dória (***), manifestando-lhe os meus receios, por estar em vias de embarcar para a Guiné, um militar que iria ter uma actividade muitas vezes sozinho no seu posto de serviço.

Ficou decidido, entre mim e o nosso clínico, conseguir que o rapaz baixasse ao Hospital Militar da Estrela onde foi sujeito ao chamado teste do "prato de farinha" (****). Face às diligências do dr. Dória com os seus colegas do Hospital, chegou-se à conclusão que o rapaz era o que agora se designa por "gay".

Resultado, embarcámos com um militar de transmissões a menos, mas escapámos aos problemas que aquele militar, sendo "doente", nos poderia levantar.

Vargas Cardoso, cor ref 

Excerto de: Parte II - Comando da Companhia, textos de Vargas Cardoso. In: Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), II Volume, 2008, documento em pdf, inumerado.

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24363: In Memoriam (478): Mário Vargas Cardoso, cor inf ref (1935-2023), ex-cap inf, CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) e ex-cmdt do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74) (João Bonifácio, ex-fur mil SAM, CCAÇ 2402, 1968/70, a viver no Canadá); Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 3547, Contuboel, 1972/74)

(**) Vd. último poste da série > 19  de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7010: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (18): Terceiro ataque ao Olossato

(***) Julgamos tratar-se do dr. João Dória Nóbrega (1934-2021), ginecolista e obstetra.

(****) O "teste da farinha ou  do prato da farinha" era uma prática infamante, homofóbica, que esteve em voga em diversos exércitos, incluindo o brasileiro e, ao que parece, também no português.