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segunda-feira, 13 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20853: Notas de leitura (1279): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Dirão alguns que esta investigação universitária aborda o demasiado óbvio: havia censura de que um regime totalitário não abria mão, a guerra colonial ainda é uma história para contar. Há que reconhecer o mérito da metodologia utilizada: o que foi concretamente o jornalismo português na divulgação da guerra colonial, como operou a censura, que memórias guardam radialistas e jornalistas que chegaram a pisar o solo nos teatros de operações, qual a atmosfera das redações, que papel desempenhou a autocensura, e muito mais. Há memórias e testemunhos de valor perdurável e estamos em querer que a investigação histórica de futuro não poderá prescindir desta sondagem sobre o jornalismo e os jornalistas, em Portugal e nas colónias.

Um abraço do
Mário


O jornalismo português e a guerra colonial (2)

Beja Santos

Sílvia Torres
“O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016, é um laborioso trabalho de pesquisa e de inquirição a protagonistas diretos na ótica de uma dupla temática: como era feita a cobertura jornalística dos jornalistas portugueses da Metrópole e das províncias ultramarinas envolvidas no conflito, uma investigação que obrigou a identificar o jornalismo português durante o Estado Novo, quais os meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas sobretudo durante a guerra colonial, com se fabricavam as notícias, como agia a censura, sob que prisma, e com base em testemunhos de alguns dos protagonistas diretos este género jornalístico é de estudo indispensável na investigação histórica.

O professor Francisco Rui Cádima aborda o tratamento da guerra colonial na RTP, observa que a ausência da ideia de império nos telejornais da década de 1950, ou mesmo a ausência de uma estratégia deliberada de manipulação das consciências, a informação era tipo oficioso, com pouco uso da imagem.

Iniciada a guerra colonial em Angola, mostram-se imagens do terror praticado, mas insistia-se na tese de tranquilidade e incriminava-se a ingerência estrangeira e os bandidos vindos do exterior. A RTP abriu uma campanha nacional de apoio às vítimas do terrorismo em Angola para recolha de donativos.

Toda a informação televisiva aparecerá altamente condicionada. Manuel Maria Múrias irá desempenhar o papel de agente de legitimação da política salazarista. Haverá uma viragem com a chegada de Ramiro Valadão em 1970. “Esta mudança não foi apenas uma mudança de pessoas, ou de liderança na redação, mas significou também uma importante alteração no quadro do próprio discurso jornalístico televisivo”. O regime não deixou abrir fendas na doutrina oficial de que o Ultramar era matéria fora de discussão.

Vários autores debruçam-se sobre a censura e como esta se constituiu como o elemento dissuasor de qualquer veleidade em abrir discussões sobre o nacionalismo, a existência de atrocidades ou até exploração económica.

A equipa organizada por Sílvia Torres ouviu memórias de jornalistas e intervenientes na guerra colonial, desde Agostinho Azevedo que escrevia no oficioso Voz da Guiné, passando por Armor Pires Mota que publicava crónicas durante a sua comissão militar na Guiné no Jornal da Bairrada, nem a PIDE nem a censura deram por nada, publicou o livro Tarrafo com as mesmíssimas crónicas, foi imediatamente apreendido e houve interrogatórios, depõem igualmente Baptista Bastos, Cesário Borga, Diamantino Monteiro, do Rádio Clube da Huíla, como também David Borges da Rádio Clube da Huíla, o jornalista Fernando Correia que pisou os três teatros de operações e que explica cabalmente todo o processo de crescente desinteresse do próprio regime em dar informações sobre a guerra; o jornalista Fernando Dacosta observa que a guerra foi muito mal contada, nenhum jornalista legou um grande trabalho sobre a guerra colonial e justifica:

“Não podia fazer. Na literatura, hoje, a história já começa a ser contada. Cada vez se escrevem mais livros sobre a guerra colonial. Mas, neste plano, importa destacar um dos primeiros escritores: o jornalista Fernando Assis Pacheco, que escreveu Walt, um livro que situa a guerra colonial na guerra do Vietname para, desta forma, poder falar sobre a guerra colonial e escapar ao corte da censura. É talvez um dos documentos mais importantes sobre a guerra colonial que foi publicado muito antes do 25 de Abril”.

E analisa igualmente a imprensa na metrópole: “A censura era ferocíssima em relação às notícias, filtrava tudo quanto os jornais tentassem publicar e, de uma maneira geral, cortava. Só se publicavam as informações que a própria censura entendia ou que o gabinete militar divulgava”.

Uma figura lendária, o jornalista Fernando Farinha, que acompanhava as tropas no terreno, descreve os seus métodos de trabalho, como é que as suas reportagens chegavam à redação:

  “Fazer chegar os rolos fotográficos e os textos ou notas de texto à redação requeria alguma imaginação. Umas vezes, aproveitava o transporte de feridos, feito por helicóptero, para o Hospital Militar de Luanda, para enviar rolos e notas de texto. Punha o papel dentro do rolo e colava tudo com fita-adesiva às ligaduras ou talas dos feridos. Os próprios feridos ou outros militares informavam depois a redação de que era preciso ir buscar o material ao hospital. Outras vezes, verbalmente, via rádio do Exército para o rádio do avião que sobrevoasse a zona, pedia aos pilotos que transmitissem determinadas informações”.

E discreteia quanto ao modo quanto o conflito passou a ser visto internamente:

“No início, a guerra era vista pelos militares como um dever de patriotismo a cumprir. Era fundamental manter a pátria unida e defender um território que era português, custasse o que custasse. O inimigo era terrorista e tinha de ser abatido. Mais tarde, o pensamento já não era este, sendo a guerra vista como desnecessária. No final, já só se queria um entendimento com os terroristas e o fim da guerra. O inimigo passou a ser mais respeitado, porque as tropas portuguesas perceberam que os guerrilheiros lutavam pela sua terra. O amor à pátria e a portugalidade das colónias foi-se perdendo à medida que a guerra avançava”.

Segue-se a entrevista a alguém que teve atividade humorística na imprensa, Fernando Gonçalves criou o cartoon Zé da Fisga, que aparecia em publicações com sede em Luanda; Francisco Pinto Balsemão, João Palmeiro e Joaquim Letria irão depor sobre o seu papel de jornalistas ou intervenientes nos meios de comunicação social.

Letria fala dos problemas com a censura mas também da autocensura, e conta a experiência amarga que teve na Guiné como repórter de guerra:

“Posso contar que me levaram ao Palácio do Governo por causa de um telegrama, com cerca de 150 palavras, que eu enviei para o Diário de Lisboa por correio. Julgava eu que o telegrama tinha sido enviado, quando aparece um jipe, conduzido por um funcionário para me levar ao palácio. E aí fui muito maltratado por General Arnaldo Schulz e pelo representante do SNI. Porquê? Porque eu tinha tentado enviar para Lisboa informação classificada que prejudicava as nossas tropas. Eu escrevi no telegrama que tinha havido um ataque do PAIGC que tinha matado nove soldados portugueses e dizia aonde é que tinha sido o ataque, quantos soldados é que tínhamos na Guiné e quando é que a guerra tinha começado. Fui repreendido por ter contado a verdade. Tinha cometido um erro gravíssimo e se o voltasse a fazer mandavam-me para Lisboa”[1].

Para Letria a guerra colonial é uma história por contar, ainda há muito para mostrar. E recorda que ainda não foi ouvida gente que gravava as mensagens de Natal, esses operadores da RTP ainda não testemunharam.

(Continua)
____________

Notas do editor:

[1] - A propósito destas mortes anunciadas pelo jornalista Joaquim Letria, consultar o Poste de 7 de Dezembro de 2017 > Guiné 63/74 - P15455: Notas de leitura (783): “Sem Papas na Língua”, Joaquim Letria em conversa com Dora Santos Rosa, Âncora Editora, 2014 (Mário Beja Santos).

Último poste da série de 6 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20820: Notas de leitura (1278): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 26 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19622: Notas de leitura (1163): O que "ultra" Dutra Faria (citado pela doutoranda e nossa grã-tabanqueira Sílvia Torres) pensava de Amílcar Cabral: um menino de coro (que "ia à missa, todos os domingos, em Bissau"), transviado em Lisboa pelo marxismo e por uma mulher, 'branquíssima'...






Guiné > Bissau > Jornal diário "O Arauto", quarta-feira,  27 de jlho de 1967, Ano XXV, nº  6242 > Cabeçalho do jornal "O Arauto", "diário da Guiné Portuguesa", diretor e editor: José Maria da Cruz.

Notícia: "A Companhia de Cavalaria de Catió termina a sua missão de soberania nesta Província"... A notícia  não refere o número da unidade (o que estava conforme as normas de segurança militar, mas sabemos que era a CAV 1484, a que pertencia o nosso querido amigo, camarada e grã-tabanqueiro Benito Neves). Diz apenas que era comandada pelo sr. Capitão Rui Manuel Soares Pessoa de Amorim, que esteve mais de um ano em Catió e que cumpriu "com exemplar dignidade, heroísmo e espírito de sacrifício a sua sagrada missão, arrecadando resultados francamente positivos no campo militar"...
 
À despedida, houve jantar (melhorado ?), no refeitório do Batalhão local, que serviu para confraternização entre todos os militares do Quartel de Catió, e as autoridades civis e militares. "Aos brindes, falaram o comandante do Batalhão de Catió, o Administrador do Concelho, [o ou um ?] agente da Pide e ainda um representante da Milícia, que puseram em destaque as qualidades reveladas pela Companhia e a simpatia que goza em todos os sectores de actividade do concelho" 

Anúncio das famosas ostras do "Miramar": (i) eram da rocha; (ii) abertas à pressão; e (iii) uma travessa gigante custava 20 pesos e dava para almoçar a meia dúzia de "desenfiados do mato",,, Nãoi se diz, mas eram regados com "lima" e acompanhavam com cerveja ou vinho branco... A "champanha" era muito cara!... (Dois anos depois, continuavama  a custar os mesmos 20 escudos da Guiné ("pesos"), o que equivaleria hoje a 6,3 € - preço de 1967 - ou 5,5 € - preço de 1969 -, considerando que 100 "pesos" equivaliam a 90 escudos da metrópole. Com 20 pesos comia-se um bife com batatas fritas e ovo a cavlo e um cerveja... em Bafatá, no Restaurante "Transmontana", no 2º trimestre de 1969...


Fotos (e legendas): © Benito Neves (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




TORRES, Sílvia - A Guerra Colonial na imprensa portuguesa da Guiné. A cobertura jornalística do conflito feita pelos jornais O Arauto, Notícias da Guiné e Voz da Guiné, entre 1961  e 1974  / The Colonial War in the Portuguese press of Guinea. The media coverage of the conflict made by the newspapers O Arauto, Notícias da Guiné and Voz da Guiné, between 1961 and 1974.

PRISMA.COM (33) 2017, p. 33-46 DOI 10.21747/16463153/33a2 33


A nossa amiga Sílvia Torres (que tem sete referências no nosso blogue e é membro nº 736 da  Tabanca Grande) (*)  escreveu este artigo, no âmbito do Doutoramento, em curso,  em Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. 

 Este artigo centrou-se na análise da na imprensa portuguesa da Guiné publicada durante a Guerra Colonial.   A autora quis perceber que tipo de cobertura jornalística fazia esta imprensa colonial sobre o conflito:

"A presente investigação (,,,) visa também recuperar a história do jornalismo então português praticado em tempo de censura (e autocensura), durante a Guerra Colonial e numa das províncias ultramarinas envolvidas no conflito", tendo a autoria concluído que "a imprensa portuguesa da Guiné também serviu as Forças Armadas e que o Governo, da metrópole e da Guiné Portuguesa, se serviu desta imprensa."

No período em análise, entre 1961 e 1974, existiram apenas três jornais na Guiné Portuguesa, em períodos distintos: (i) "Arauto" (até 1968), (ii) "Notícias da Guiné" (1968-1970); e (iii) "Voz da Guiné"  (1972-1974). São estes três periódicos que foram objeto do estudo.

Já aqui falámos do "Arauto" (**), cujos primórdios remontam a 1942, ano em que surgiu sob a forma de boletim, policopiado, da responsabilidade das missões católicas.  Em 1943,  passa a mensário, e é impresso na tipografia da Imprensa Nacional, em Bolama. O diretor é o padre Afonso Simões, e a redação e a administração são na Residência Missionária de Bolama.

Em 1945, passa a ser impresso na Tipografia das Missões e, no início da década de 50, torna-se um jornal  diário (só não saindo à  segunda-feira), com novo diretor:  o padre, também franciscano,  José Maria da Cruz Amaral. Em 1958, o "Arauto"  passa a designar-se "O Arauto". Em 1961, era vendido, em Bissau,  por 1$00.

"Por esta altura, já continha também notícias internacionais, provenientes de agências noticiosas nacionais e estrangeiras" e, "apesar de a publicação não incluir ficha técnica", sabe-se que a equipa era reduzida: só tinha redatores para a "página desportiva"... O resto é feito só por um homem, o padre Cruz Amaral.

 "O retrato é feito por Dutra Faria, então diretor executivo e enviado especial da ANI (Agência
Noticiosa de Informação), a 7 de fevereiro de 1964, n’O Arauto, num texto sobre a Guerra
 Colonial. Dutra Faria revelava que Portugal estava em guerra, “uma guerra revolucionária – e
que abrange, por isso todas as frentes”, sendo uma delas a informação." (Torres, pp. 35/36).

 A falta de recursos humanos, já referenciada por Dutra Faria, bem como os problemas financeiros e técnicos que se agravam, levam ao  encerramento, em 1968, o único jornal diário da província. 

Sobre Dutra Faria [Angra do Heroísmo, 1910 - Lisboa, 1978], Sílvia Torres faz-nos revelações interessantes;

(...) "Dutra Faria, então diretor da agência ANI, foi à Guiné como enviado especial. Desta viagem, fez vários artigos com o mesmo antetítulo – “Na Guiné Portuguesa, junto da Cortina de Ferro”. O segundo texto, intitulado “Entre dois fogos”, foi proibido de ser publicado na edição de 30 de janeiro de 1964. Neste artigo, Dutra Faria diz que o inimigo das Forças Armadas Portuguesas, na Guiné, não se pode “desprezar” porque foi “bem” treinado para a luta de guerrilhas em escolas de Praga e de Moscovo. Faz ainda referência à qualidade e à abundância do armamento que o inimigo possui e à sua inteligência." (p. 40)

Mais interessante, é o que Dutra Faria  escreve sobre o líder do PAIGC, Vamos citar  mais um  excerto do artigo de Sílvia Torres (p. 431):

(...) Amílcar Cabral, “um rapazinho que ia à Missa todos os domingos”, em Bissau, tal como Mário de Andrade o fazia, em Luanda. Os dois, em Lisboa, foram estudantes universitários que “se deixaram empolgar pelo marxismo”: “(…) há responsabilidades a que não podemos fugir e esta é uma delas – não soubemos defender de influências nefastas estes dois rapazes e muitos outros estudantes ultramarinos”.

"Segundo Dutra Faria, também Maria Helena de Ataíde – “uma linda rapariga de olhos claros e cabelos talvez aloirados. Branquíssima” – então esposa de Amílcar Cabral, estudou em Lisboa. Foi na capital da metrópole que se conheceram e que ela exerceu sobre ele “decisiva influência”. O casal chegou a trabalhar em Bissau, “onde (…) um Chefe de Serviços, pelas suas ‘gafes’   monumentais e por um estúpido racismo de última hora, completou no jovem agrónomo de
coroa obra iniciada em Lisboa, no Instituto [Superior de Agronomia], pelos seus colegas comunistas e continuada, depois, pela esposa – revolucionária exaltada: Amílcar Cabral passou-se assim, definitivamente, para o campo dos inimigos de Portugal”.

Por é que este texto, escrito por um dos homens da "ala dura" do regime, foi censurado ?

Sílvia Torres explica (pp. 41/42):

(...) "A 12 de fevereiro de 1964, o Governador da Guiné Portuguesa, capitão-de-fragata Vasco António Martins Rodrigues, envia uma carta para o ministro do Ultramar, onde comunica que aprovou a proibição do texto de Dutra Faria por destacar os “sucessivos êxitos que o inimigo vem conseguindo”; por comparar o inimigo da Guiné, de “superior qualidade”, com o inimigo de Angola; por atribuir responsabilidades a Portugal pelo caminho seguido por Amílcar Cabral; e por desprestigiar o serviço público, ao criticar um seu funcionário." (...)

De qualquer modo, Dutra Faria terá sido injusto em relação a Amílcar Cabral e a Maria Helena de Ataíde Rodrigues, a transmontana de Chaves que foi a primeira mulher do líder do PAIGC e uma das primeiras mulheres a formar-se em engenharia agronómica, e que não era loura, e muito menos estúpida... A história de amor destes dois seres humanos é lindíssima, como todas as grandes histórias de amor... Dutra Faria nunca leu as cartas de amor que eles escreveram um ao outro... E as suas insinuações estão eivadas de racismo e machismo...

Maria Helena [de Ataíde] Vilhena Rodrigues, engenheira agrónoma, transmontana de Chaves, casou em 1951 com Amílcar Cabral, de quem teve duas filhas, Iva e Ana. Iva Maria nasceu em 1953, é hoje historiadora e vive na Praia, Cabo Verde. Conhecia-a pessoalmente em Bissau, em 2008, por ocasião do Simpósio Internacional de Guiledje. Quanto à  Ana Luísa,  nasceu em 1962 e, segundo li, licenciou-se em medicina e vive discretamente em Braga. 

Maria Helena e Amílcar separaram-se definitivamente em meados da década de 60. Cabral irá casar, em segundas núpcias, com Ana Maria Foss Sá, mais conhecida como Ana Maria Cabral, em maio de 1966. É assassinado em 20 de janeiro de 1973, na presença da segunda mulher. É muitas vezes confundida, por alguns camaradas nossos, como a "Maria Turra", a locutora da rádio "Libertação", do PAIGC.

Enfim, ainda em relação a "O Arauto", sabe.se que a publicação, em julho de 1965, de "notas biográficas"   de alguns destacados líderes africanos da época não foi bem vista pelo novo ministro do ultramar, Joaquim Moreira da Silva Cunha [1920-2014]. (, esteve no cargo entre 19 de março de 1965 e 7 de novembro de 1973),  por serem apontados "como "símbolo da auto-determinação e da revolta dos povos de cor contra os países colonizadores"... Na sequência desse desagrado, solicita-se ao governador que: (i) transmita à comissão de censura as necessárias instruções par "põr cobro à publicação das biografias"; e (ii) passe a  estar atento à “orientação seguida pelo jornal”, uma vez que que não estava a  corresponder “aos interesses nacionais” (cit por Torres, p. 42).

Recorde-se que o governador-geral (e comandante-chefe) era então o gen Arnaldo Schulz. Mas estes "mal-entendidos" não são matéria que possa ser tomada como suficiente para que o padre franciscano José Maria da Cruz [Amaral] (1910-1993) venha, mais tarde, alegar que foi vítima de perseguição política  por parte do antecessor de Spínola.

Dois anos depois deste "incidente",  no aniversário de "O Arauto", em 5 de julho de 1967,  José Maria da Cruz  viria a agradecia ao governador [, o gen Arnaldo Schulz,] a concessão de um subsídio de 50 mil escudos [, em dinheiro da metrópole era o equivalente hoje a c. 17.600 €, bastante dinheiro, dava para comprar uma viatura automóvel tipo FIAT 127 ou gama superior...]. Em 1966 o défice do jornal era já de 486 mil escudos [, mais de 178,6 mil euros, hoje, um a pipa de massa] e o diretor já  se questionava  sobre a sua viabilibilidade económica.

Luís Graça (***)

______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17052: Tabanca Grande (426): Sílvia Torres, filha de ex-combatente, doutoranda em ciências da comunicação pela NOVA, autora do livro "O jornalismo português e a guerra colonial", nossa grã-tabanqueira nº 736

(**) Vd. poste de 13 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19581: Notas de leitura (1158): o caso do jornal diário "O Arauto", extinto em 1968, num artigo da doutora Isadora Ataíde Fonseca, sobre a imprensa na época colonial (Luís Graça)

(***) Último poste da série >  25 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19621: Notas de leitura (1162): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 15 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19587: (D)o outro lado do combate (47): A Missão especial da ONU na Guiné - Abril 1972 (António Graça de Abreu / Luís Graça) - Parte II: capa + pp. 4-8





1. Continuação da publicação, para conhecimento e análise crítica dos nossos leitores, do relatório, de 11 (onze) páginas,  policopiado, que tem por título em português "A Missão Especial da ONU na Guiné - Abril de 1972" (*). É uma versão, mais resumida do original, "Report of the Mission of the United Nations Special Committee on Decolonization after visiting the liberated Areas of Guinea-Bissau (A/AC. 109/L. 804; 3 July 1972)".

A cópia, em papel, de que dispomos foi-nos fornecida, com vista a uma eventual publicação no blogue, pelo nosso camarada António Graça de Abreu, por volta de 2010, na sequência dos comentários ao poste P5680 (**)

O documento que agora estamos a publicar parece corresponder à seguinte referência  que encontramos  na base de dados bibliográfica do CIDAC - Centro De Intervenção Para O Desenvolvimento Amílcar Cabral:

BAC-051/2

CIDAC

BORJA, Horácio Sevilla ; LOFGREN, Folke ; BELKHIRIA, Kamel
A Missão especial da ONU na Guiné Bissau, Abril 72 / Horácio Sevilla Borja, Folke Lofgren, Kamel Belkhiria . - [S.l.] : PAIGC, 1972. - 11 p

Portanto, a edição é atribuída ao PAIGC. É uma edição tosca, para não dizer mesmo, "pirata", do relatório da Missão Especial. Mas as partes traduzidas em português correspondem ao original em inglês. Não sabemos de quem é a tradução. Há diversos erros quer de datilografia quer de português. A autoria é atribuída aos três membros da Missão Especial, os diplomatas Horácio Sevilla Borja (Equador), Folke Lögfren (Suécia) e Kamel Belkhiria (Tunísia).

Não sabemos a origem do documento: o António Graça de Abreu poderá explicar-nos. É possível que tenha circulado antes do 25 de Abril, clandestinamente. De qualquer modo, é ainda pouco conhecido, ao fim destes anos todos. No tempo da ditadura, com o país em guerra, era impensável a censura deixar passar, na imprensa, referências detalhadas a esta Missão Especial da ONU e, muito menos, ao seu relatório. 

Em abril de 1972 ninguém sabia (nem podia saber...) desta "missão". De resto, o medo dos portgueses era...  "a guerra do Vietname" e a iminente derrota militar dos Estados Unidos: vejam-se os títulos de caixa alta dos jornais da época... "Guiné ?... Isso é longe do Vietname", ironizavamos nós, em 1969, no bar de sargentos de Bambadinca...

Os três membros do Comité Especial de Descolonização da ONU, mais dois membros do "staff" da ONU,  visitaram as "áreas libertadas da Guiné-Bissau" (sic), de 2 a 8 de abril de 1972, antes da época das chuvas, a convite do PAIGC, e à revelia do Governo Português. Claro que a missão tinha que ser secreta, por razões de segurança. Nesse curto espaço de tempo (menos de um semana), terão percorrido  200 quilómetros, quase sempre a pé, visitando 9 localidades diferentes, numa parte restrita da Região de Tombali:  sectores de Bedanda, Catió e Quitafine.

Os diplomatas focaram a sua atenção nas estruturas militares, tabancas,  escolas e armazéns, e fizeram depois apreciações, que constam no relatório, sobre "a situação no campo do ensino, da saúde, da administração da justiça, da reconstrução da economia e da formação de uma assembleia nacional". Os membros da missão vestiam fardas militares, com insígnias das Nações Unidas, e tiveram escolta de um bigrupo reforçado do PAIGC (cerca de 60 homens armados) sob o comando do Constantino Teixeira. 

No regresso, já a 6 de abril, a escolta passou a ser de 200 homens, provavelmente com o receio de alguma ação militar portuguesa com vista a capturar os diplomatas.

A principal base do PAIGC referida no relatório, dentro do território da então província da Guiné, era na zona de Balana / Gandembel, ou seja, no corredor de Guileje.

Já agora ficam aqui os nomes e os cargos dos cinco elementos que compuseram a Missão:

(...) Mr. Horacio Sevilla-Borja, Deputy Permanent Representative of Ecuador to
the United Nations (Chairman)~

Mr. Folke Löfgren, First Secretary of the Permanent Mission of Sweden to the
United Nations

Mr. Kamel Belkhiria, First Secretary of the Permanent Mission of Tunisia to
the United Nations

The Special Mission was accompanied by the following Secretariat staff: 

Mr Cheikh Tidiane Gaye (Principal Secretary) and Mr. Yutaka Nagata (photographer). 

(Fonte: relatório original em inglês)

Publicam-se mais 5 páginas do documento supracitado (pp. 4-8).

Repare-se no cuidado que o PAIGC teve com a segurança dos elementos da Missão Especial:  foram escoltados, à partida, por uma força de 60 guerrilheiros, de 1 a 3 de abril; na noite de 3 de abril, na viagem, da base central em Balana (corredor de Guileje) até ao setor de Cubucaré (zona de Catió), tiveram uma escolta de mais de 400 homens armados; na tarde de 6 de abril, iniciam a viagem de volta (até à fronteira com regressso a Conacri,via Kandiafara e Boké), com uma escolta armada de 200 homens...

O PAIGC levava a sério as forças armadas portugueses... O que não o impediu de, muito possivelmente,  encenar algumas situações para "onusiano ver": a Missão especial passa pela aldeia de Botche [Boche] Djate [Jate] [, vd. carta de Bedanda], por entre ruínas  das palhotas recém-queimadas, celeiros destruídos, grande quantidade de arroz queimada... E neste cenário não podia faltar uma bomba da FAP,  daquelas que não explodiam... A Missão tomou nota das inscrições na bomba: "The bomb bore the following markings: MI-7, 61A; TNT; BPE-I-124; 8/69; 50-7KG-0.035-M3."...

Atenção: o original tem 10 anexos, onde não faltam os itinerários, as datas e as horas e locais das visitas e entrevistas, a lista (fornecido pelo PAIGC) do armamento usado pelas Forças Armadas Portugueses, o  mapa da Guiné-Bissau (fornecida pelo PAIG), a lista (parcial) de filmes, livros e artigos sobre as "áreas libertadas", as fotografias tiradas pela Missão, e até os formulários usados pela administração nas "áreas libertadas"... 

O relatório do secretário geral do PAIGC sobre "a agressão (portuguesa) contra a Missão Especial da ONU" é o anexo III, reproduzido a seguir, mas que não faz parte do corpo do relatório no original...


(Continuação) (**)






-7-

-8-


(Continua)

________________

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19476: Recortes de imprensa (101): o desastre do Cheche, no rio Corubal, ocorrido na manhã de 6/2/1969 (Diário de Lisboa, 8 de fevereiro de 1969, p. 1)






Diário de Lisboa, 8 de fevereiro de 1969, p. 1




Citação:
(1969), "Diário de Lisboa", nº 16573, Ano 48, Sábado, 8 de Fevereiro de 1969, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_7148 (2019-2-6)



Fonte: Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 06597.135.23237 | Título: Diário de Lisboa | Número: 16573 | Ano: 48 | Data: Sábado, 8 de Fevereiro de 1969 | Directores: Director: António Ruella Ramos | Edição: 2ª edição | Observações: Inclui supl. "Diário de Lisboa Magazine". | Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos | Tipo Documental: Imprensa.

(Com a devida vénia...)


1. A notícia chegou tarde às redações dos jornais. O "Diário de Lisboa", que se publicava à tarde,  deu-a em título de caixa alta só na 2ª edição, dia 8 de fevereiro de 1969,  que era um sábado. Fez ainda uma 3ª edição. (*)

De qualquer modo, o jornal limitava-se a transcrecever a notícia dada pela agência oficiosa L [Lusitânia], com proveniência de Bissau e com data de 8 de fevereiro... As autoridades da província (leia-se: o general Spínola) levaram dois dias a recolher e a tratar a informação...

Omite-se, por certo intencionalmente, por razões de segurança militar, os seguintes elementos factuais:

(i) o "acidente" ocorreu na manhã de 5ª feira, dia 6 de fevereiro de 1969;

(ii) no  final da Op Mabecos Bravios, ou na seja, na sequência da retirada do aquartelamento de Madina do Boé e do destacamento de Cheche..

Os jovens de hoje não sabem o que era isso, mas  os jornais (o "Diário de Lisboa" e os outros) eram "visados pela censura": havia uns senhores todo poderosos, em geral militares, coronéis do exército ou equivalentes,  que tinham um "lápis azul", e que passavam a pente fino, previamente (ou seja, antes da publicação), todas as notícias que saiam na imprensa escrita. 

A grande maioria dos portugueses na época, e nomeadamente os da nossa geração, nascera já no Estado Novo, o regime de Salazar (e depois Caetano),  pelo que não sabia o que era a  liberdade de imprensa, escrita e falada...

O título de caixa alta,  "Desastre na Guiné", da responsabilidade do editor do jornal, era suscetível de causar alarme e consternação, nomeadamente entre as famílias dos militares que estavam então no TO da Guiné: 47 mortos (militares, em rigor 46 militares e 1 civil guineense) era o balanço do "trágico acidente".

Eu estva em Castelo Branco, no BC 6, a dar instrução militra, como 1º cabo miliciano, e em véspera de ser mobilizado. A  notícia deste desastre mexeu comigo... A notícia da minha mobilização chega a 27 desse mês...Na noite seguinte, às 3h41 ocorre o violento sismo de magnitude 8 na escala de Richter (, o maior depois de 1755), com epicentro no mar, a sudoeste do cabo de S. Vicente, na planície da Ferradura, se fez sentir em Portugal, Espanha e Marrocos. Eu nessa noite dormia o "sono dos justos"..

Mas, voltando à notícia da agência Lusitânia:  houve logo a preocupação, pelo menos, por parte do "governo da província da Guiné", de dar o núnero exato de mortos e desaparecidos (não se faz a distinção, fala-se em "vítimas") e listar os seus nomes

O balanço era, de facto, trágico: na lista das 47 vítimas, por afogamento (, parte das quais nunca chegarão a ser encontradas), constavam: 

(i) 2 furriéis milicianos; 

(ii) 7 primeiros cabos; 

e (iii) 38 soldados (na realidade, um dos nomes era de um civil). 

Mas os termos da notícia eram lacónicos, secos, quase telegráficos, como  de resto era habitual nos comunicados oficiais ou oficiosos em assuntos "melindrosos" como este:

"Na passagem do rio Corubal, na estrada para Nova Lamego, afundou-se a jangada que transportava uma força militar, havendo a lamentar, em consequência deste acidente, a morte, por afogamento, de 47 militares".

E a notícia ficou por ali: não se voltou a falar do "trágico acidente", nas edições seguintes, nem muito menos o jornal se podia dar ao uso de, por sua conta e risco, mandar à Guiné uma equipa de reportagem para aprofundar o assunto... Voltou-se à rotina da atualidade nacional e internacional, e os nossos valorosos camaradas que estavam na Guiné lá continuaram a "aguentar o barco" por mais cinco anos...

Para não dar azo, entretanto,  a perigosas  especulações, o ministro do Exércitofoi nomeou (e mandou de imediato para o CTIG) o cor cav Fernando Cavaleiro, um militar prestigiado,  o "herói da ilha do Como" (1964), infelizmente já falecido,  a fim de instruir localmente o processo de averiguações. Não sabemos quanto tempo levou a instrução do processo, mas temos um resumo das conclusões preliminares do cor cav Fernando Cavaleiro, publicado no jornal "Província de Angola", em data desconhecida, conforme recorte que nos foi enviado pelo nosso camarada José Teixeira, e que já aqui publicámos em poste de 25 de julho de 2015 (**).

Cinquenta anos depois, ainda não tivemos acesso ao relatório original (, nem sabemos se existe cópia no Arquivo Histórico-Militar), mas tudo indica que há nele erros factuais graves, permitindo ytirar conclusões enviesadas que acabam por escmotear, ignorar ou branquear a responsabilidade do 2º comandante da operação, que ultrapassou o oficial de segurança, o alf mil Diniz. 

Hoje sabemos que, na última e trágica viagem, em vez de 2 pelotões, a jangada levou o dobro, contrariamente as regras estabelecidas pelo alf mil Diniz... Mas este era o "elo mais fraco" da cadeia hierárquica e acabou por ser ele o "bode expiatório" de toda esta história que ainda continua mal contada...

2. Hoje comemoram-se os 50 anos deste trágico evento... E muita água ainda há-de ainda passar sob as pontes do rio Corubal até que se saiba a verdade ou toda a verdade sobre esta tragédia que ensombrou o primeiro ano do consulado do Spínola. 

Ainda está por realizar o prometido encontro do nosso editor Luís Graça com o ex-alf mil José Luís Dumas Diniz (, da CART 2338), responsável pela segurança da jangada que fazia a travessia do rio Corubal, em Cheche, aquando da retirada de Madina do Boé. Uma peça fundamental neste feliz encontro foi (e vai ser) o ex-alf mil trms, Fernando Calado, da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), membro da nossa Tabanca Grande, e meu contemporâneo da Guiné (estivemos juntos, em Bambadinca, entre julho de 1969 e maio de 1970). Foi o Fernando Calado que me pôs em contacto com o José Luís Dumas Diniz.Dificuldades de agenda, de parte a parte, ainda não nos permitiram fazer o encontro a três.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19447: Recortes de inprensa (100): para a história da luta dos deficientes das Forças Armadas: a manifestação em Lisboa, de 20 de setembro de 1975 (Diário de Lisboa, 22/9/1975)

domingo, 18 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18432: Foto à procura de... uma legenda (104): O caso da mulher fula amamentando, com o leite do seu próprio peito, a "sua" cabrinha... O João Martins queixa-se de escesso de zelo censório por parte do Facebook...


Guiné > Região de Gabu > Piche > Foto nº 112/199 do álbum do João Martins > 1968 > Uma mulher fula amamentando, com o leite do seu próprio peito, a "sua" cabrinha (ou cabritinho ?), provavelmente um dos bens mais preciosos do seu escasso património familiar... Uma ternura de foto do álbum do nosso camarada João Martins, já célebre nas redes sociais.... Era mais fácil a um  homem  grande (fula) vender-nos uma vaca do que uma mulher grande (fula) desfazer-se do seu  cabrito (*)...

'Mãe de leite', que extraordinária fotografia!, comenta o Valdemar Queiroz. Por seu turno, o nosso colaborador permanente, Cherno Baldé, que vive em Bissau, escreveu o seguinte: "A julgar pela posição e elasticidade dos seios caídos no peito e o à.vontade no amamentar não é o primeiro filho (nós dizemos 'barriga'). Ela é muito nova, não devendo ter mais de 22 anos, mas não tão nova para o casamento que, entre os fulas, começa aos 15/16 anos. Todavia, posso estar errado na minha avaliação. Quanto ao animal, parece-me impossivel determinar se é macho ou femea, nessa fase".

E acrescenta o Cherno Baldé: "Confesso que fiquei tão atónito quanto vocêes, não é uma prática corrente, nunca tinha visto nem ouvido falar. A vida (e a especialidade)  dos fulas estava ligada  à criação de gado bovino. Mas, também, o caprino não é negligenciado, com a sedentarização. O João Martins conseguiu, de facto, um feito que, talvez, nunca se repetirá no futuro. O instinto humano é capaz de milagres. Será possível repetir, mas não será encorajado, pelos riscos que poderia acarretar, relativamente ao(s) filho(a) humano(a), supondo que estivesse vivo(a) e utilizando a mesma fonte."

Foto: © João José Alves Martins (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada João Martins, que tem página no Facebook:

Data: 18 de março de 2018 às 18:44
Assunto: Fotografia

Amigo e camarada Luís Graça

Espero que esteja tudo bem contigo e com a Alice, assim como com os teus filhos.

Ontem vi que colocaste no blog a fotografia que tirei a uma mulher a dar de mamar a um cabrito (*).

Como tinha a possibilidade de a partilhar no Facebook, pensei que o devia fazer pois se trata de uma recordação com quase 50 anos, foi tirada em setembro de 68.

Já a tinha entregue juntamente com as minhas memórias que escrevi,  pensando no blog, a página Dos Veteranos da Guerra do Ultramar (UTW) as tratou, inserindo-as no Facebook, sem que ninguém tivesse levantado qualquer objecção.

Depois de ontem a partir do blog, a ter partilhado no Facebook, qual o meu espanto ao receber deste uma mensagem de que a fotografia mostrava uma "nudez" que não era compatível com as normas por eles seguidas pelo que a tinham retirado.

Perguntei se era por iniciativa do próprio Facebook ou se era em consequência de alguém meu "amigo do Faceboo", tendo acesso à minha página, me tivesse bloqueado.

Como não obtive resposta e a opinião geral é de que não fere as susceptibilidades de ninguém, concluo que há quem queira atirar para o esquecimento todo o nosso esforço, sacrifíco e dor, assim como o sofrimento das nossas famílias, durante aqueles anos da nossa juventude, e, porque não posso aceitar que o que a nossa geração passou seja facilmente olvidado como se nada tivesse ocorrido, venho pedir-te que solicites aos nossos camaradas que partilhem essa fotografia no Facebook.

Um grande abraço com muita amizade, João Martins

2. Resposta do editor LG:

João, obrigado. Na página do Facebook da Tabanca Grande não cortaram nada... E no teu álbum de fotos da Guiné também não... Estão lá as 199 fotos de origem...Mas vou publicar o teu pedido no nosso blogue...Dualidade de critérios ? És capaz de ter razão, há puritanismo ou hipocrisia a mais no Facebook. Ou como diria a poetisa Sophia de Mello Breyner, há gente incapaz de matar galinha, mas come... galinha. [ "As pessoas sensíveis não são capazes / De matar galinhas / Porém são capazesDe comer galinhas"].

Um bom fim de semana. Até 3ª feira, na Quinta das Conchas, para a nossa caminhada matinal (das 10h às 12h, todas as semanas, às 3ªs). Ab, Luís.

3. Resposta do João Martins, acabada de receber:

 Luís: Procura ver no meu mural. Cortaram uma fotografia e voltei a colocar com pedido de esclarecimento.  Não creio que a verdadeira razão seja a fotografia em si, mas o facto de eu contar que,  após ter percorrido uns 300 metros, ter encontrado uma tabanca onde me sentei à sombra de uma árvore, terem aparecido uns 5 africanos com catanas na mão prontos a matarem-me, eu ter pedido intervenção divina e, em consequência disso, terem espetado as catanas na árvore.

Para comunistas e agnósticos, esta descrição é demais. Pois pressupõe a existência de Deus e a sua ação na nossa proteção. Só que é tudo verdade, e as verdades são para serem transmitidas. Perante elas, é nossa obrigação revelá-las, custe o que custar e a quem custar.

Grande abraço e muito obrigado. João Martins.

4. Comentário, final, do nosso editor:

Nada de teorias da conspiração!...Nem adianta vitimizarmo-nos... Se te cortarem a foto, vamos protestar, por dualidade de critérios... E por excelo de zelo censório...Concordo contigo: é uma foto "inocente", até "poética", e inegavelmente de grande interesse etnográfico ou simplesmente documental.

Estes casos não são inéditos: encontras, no You Tube, vídeos de mulheres (em África, na Índia, na Amazónia brasileira...), amamentando bezerros, cachorros, cabritos, pequenos macacos do Novo Mundo... Com o seu próprio peito, não de biberão !... Será que os senhores censores do Facebook  achariam estes vídeos "pornográficos ? Serão estas "práticas"... aberrantes, patológicas,,, quiçá manifestações, mais ou menos explícitas, de "zoofilia" )

 Veja-se aqui o caso dos ameríndios awá-guajá:

(...) "Os awá-guajá são uma das últimas tribos námadas das Américas. Na sua reserva, no noroeste do Maranhão, eles mantêm a  tradição de contato próximo com os animais. O filhote de cutia é alimentado com o fruto do babaçu. E o de macaco é amamentado pelas índias.

"O awá-guajá é um povo muito único. E essa relação que eles têm com o bicho, ele passa a ser membro da família", conta Bruno Fragoso, coordenador de Índios Isolados da Funai. A índia Tapanií explica que quando o macaco órfão que ela adotou ficar maior e mais agressivo, ela o soltará na mata. É na floresta que a vida dos awá-guajá se renova e também corre risco no encontro com invasores. (...)(**)


PS - É contra os princípios do blogue, fazer quaisquer juízos de valor sobre o "comportsmento" de um camarada. Não cometerei a indelicadeza, muito menos a arrogância, de pôr em causa a tua visão  das cinco catanas espetadas ao teu peito e desviadas, "in extremis", para uma árvore, por proteção divina,,, Em Piche, em 1968... 

Ao teu depoimento, só posso acrescentar o meu: estive numa companhia africana, de fulas,  entre 1969 e 1971, combati com eles no mato, fiquei muitas noites nas suas tabancas, estive destacado em Nhabijões ("tabanca turra", balanta, ou,  pelo menos, classificada como "sob duplo controlo"), dormi no Pilão em "camas turras", e ainda tenho a cabeça em cima dos ombros...E eu nunca me armei em herói... Mas, também é verdade,  se vi turras (e vi muitos...),  nunca os vi por toda a parte, debaixo da cama, muito menos em tabancas amigas... Claro que, quando um periquito chegava à Guiné, até era capaz de ver leões e elefantes, à noite, junto ao arame farpado... Conheci sentinelas que me garantiram ter visto estes animais, imagina, em sítios onde não havia registo histórico recente da passagens de leões e elefantes...
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Notas do editor:


(**) Vd. 16 de março de 2018 >  Guiné 61/74 - P18425: Fotos à procura de... uma legenda (103): Malta do Pel Rec Daimler 1129, do meu tempo de Nova Lamego (Virgílio Teixeira, alf mil SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

quarta-feira, 14 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18413: Recortes de imprensa (93): A guerra e a censura: o caso de Armor Pires Mota (Sílvia Torres, "Diário de Coimbra", artigo de opinião, 9/3/2018)



1. Texto enviado pela nossa amiga e grã-tabanqueira Sílvia Torres, com data de ontem. Foi publicado no Diário de Coimbra de 9 de março de 2018, como artigo de opinião.

Crónicas de guerra "perigosas"
por Sílvia Torres

Há 57 anos, a Guerra do Ultramar dava os primeiros passos em Angola, estendendo-se à Guiné Portuguesa em 1963 e a Moçambique, no ano seguinte. Os meios de comunicação social portugueses noticiaram o conflito, na medida do possível, com o controlo severo e discreto da censura. A guerra era um tema tabu, sobre o qual pouco se podia contar e, menos ainda, mostrar.

O Diário de Coimbra, jornal considerado hostil ao Estado Novo, estava na lista dos mais vigiados. O "lápis azul" tinha especial atenção à imprensa "opositora" e de maior tiragem, sendo nestes casos mais rigoroso. Perante jornais de pequena difusão, com sede em meios rurais, o rigor diminuía e, por vezes, temas proibidos viam a luz do dia. O quinzenário Jornal da Bairrada, que ainda hoje se publica como semanário, beneficiou desta imperfeição da censura.

Entre 1964 e 1965, o Jornal da Bairrada publicou "crónicas de guerra", da autoria do bairradino e então alferes Armor Pires Mota (*) que cumpria parte do Serviço Militar Obrigatório na Guiné Portuguesa. Aerogramas transportavam as palavras da província ultramarina para a metrópole. Nenhuma das crónicas, que se confundem com páginas de um diário, sofreu qualquer corte por parte da censura. 

Em todas, como neste excerto, o alferes Mota mostrou aos leitores a guerra que conheceu, sem filtros: 

"(…) causa-me calafrios a morte daqueles dois moços que, ao entardecer, foram encontrados nus. Só lhes deixaram as meias enfiadas nos pés (…) Tinham o sexo mutilado, o nariz arrancado e os olhos, e, pelos rasgões espalhados pelo corpo, tudo leva a crer que lutaram corpo-a-corpo, quando se viram sós e sem munições. (…) Sinto-me em baixo. E estive mesmo tentado a pôr de parte a intenção de contar as guerras. Mas achei que devia trazer para a luz o que anda nas sombras: o mistério do sangue".

Já na metrópole, findas as obrigações militares, Armor Pires Mota reuniu em livro os textos que já tinham sido publicados no jornal bairradino. A obra Tarrafo – crónicas de um soldado na Guiné foi posta à venda na livraria Vieira da Cunha, em Aveiro (**). O que havia escapado à censura na aldeia fez soar o alarme do "lápis azul" na cidade. Consequentemente, o livro foi apreendido pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). E, sabe-se agora graças aos arquivos que guardam documentos da época, a censura levou um valente "puxão de orelhas" por ter permitido a publicação de textos "perigosos" no Jornal da Bairrada.

Hoje, quase a chegar aos 80 anos, Armor Pires Mota não precisa de ler o que escreveu para recordar os dois anos passados na Guiné Portuguesa. Há histórias que a memória, por mais que se esforce, não consegue apagar.


Sílvia Torres (***)

[Fixação de texto, para efeitos de edição no blogue: LG]
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Notas do editor:

Armor Pires Mota, Lisboa, 10/11/2010.
Foto: Luís Graça (2010)
(*) Armor Pires Mota [ex-alf mil acv, CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, escritor, autor dos livros, entre outros, o "Tarrafo", 1965 (com edição facsimilada, com as anotações do "lapis azul" dos censores, em 2013); "Guiné, Sol e Sangue, 1968; "Cabo Donato, Pastor de Raparigas", 1991; "Estranha Noiva de Guerra, 1995: e a "Cubana que dançava flamenco", 2008,  alguns podendo ser adquiridos pela interneta, aqui].

(**) Vd. poste de 5 de novembro de 2011
Guiné 63/74 - P9000: Antologia (75): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (8): Ilha do Como, 15 de Março de 1964: E Deus desceu à guerra para a paz (Último episódio)...

(***) Último poste da série de 2 de março de 2018
Guiné 61/74 - P18372: Recortes de imprensa (92) : artigo de opinião de Sílvia Torres: A Guerra em 'copo meio cheio', "Diário de Coimbra", 23 de fevereiro de 2018

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17565: Inquérito 'on line' (120): Mesmo com ficha na PIDE/DGS, nunca me inibi de escrever cartas e aerogramas, sem autocensura nem receio de represálias... E foram mais de 300!... Contei, a quem gostava, tudo o que acontecia no CTIG no meu tempo (António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74)



Guiné >Região de Tombali > Cufar> CAOP 1 > O António Graça de Abreu, no aeroporto de Cufar, em dezembro de 1973, posando junto a um heli, Allouette III. No mês anterior, o aquartelamento de Cufar tinha sofrido uma flagelação com foguetões 122, e um ataque com RPG [lança-granadas foguete] e armas automáticas, nas proximidades dos arame farpado... Dezete meses depois do início da comissão, o António recebia finalmente o tão desejado quanto temido baptismo de fogo. Recorde-se que o António Graça de Abreu foi Alf Mil, CAOP 1,Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar (1972/74)

Foto: © António Graça de Abreu (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Capa do livro do António Graça de Abreu,
 "Diário da Guiné: lama, sangue água pura"
 (Lisboa,  Guerra & Paz, 2007)
1. Comentário do António Graça de Abreu ao 
poste P17558 (*):

Cada um fala do que sabe. No meu caso, CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/1974, com aviões e helis a chegar todos os dias aos nossos aquartelamentos (sei do que falo), algumas vezes com o meu major de Operações, outras vezes sozinho, habituei-me, guiando os jeeps, a ir buscar o piloto e o correio à pista.

Eu era o alferes miliciano da pequena logística do CAOP 1. O correio não falhava. Era eu quem, muitas vezes, abria os sacos com o correio e juntava uma multidão à minha volta ansiosa pelas cartas e aerogramas que eu, carteiro de circunstância, distribuía aos meus soldados.

No que me diz respeito escrevi mais de trezentos aerogramas, sem autocensura, contando, a quem gostava, tudo o que nos acontecia na Guiné. A PIDE/DGS, que havia dado por mim antes da Guiné, nos tempos de Faculdade de Letras (tenho um lindo processo que consultei e fotocopiei, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo), desde que fui promovido a aspirante parece que me perdeu o rasto.

Tudo o que escrevi então chegou ao destinatário. Em 1972/1974 garanto que o correio, desde Lisboa, chegava a Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, quase todo, em menos de 24 horas.

Abraço,
António Graça de Abreu
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Nota do editor:

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17550: O Serviço Postal Militar (SPM) do nosso contentamento: cartas e aerogramas... (E, a propósito, o que é feito dessas 10 toneladas de correio diário que circulavam nos vários teatros de operações durante a guerra ?)


"Este Aerograma foi-me devolvido tal como está, traçado de balas ou estilhaços na emboscada de 26/10/1971, efectuada à Coluna Piche-Nova Lamego, em que faleceram o Alf Mil Soares, o 1º. Cabo Cruz, o Sold Cond Ferreira e o Sold Manuel Pereira, todos da CART 3332.Guardo-o religiosamente comigo..." (*)

Documento que nos foi enviado pelo nosso grã-tabanqueiro  Carlos [Alberto Rodrigues] Carvalho, ex-fur mil da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche e Ponte Caium, 1970/72, irmão da nossa amiga Júlia Neto e, portanto, cunhado do nosso saudoso Zé Neto. Muito provavelmente o aerograma ia no saco do correio... Pelo que se depreende, o destinatário do aerograma era um seu familiar, possivelmente a sua mãe (Rosa Maria Silva Simão Melo Rodrigues de Carvalho), que vivia em Lamego.  Não temos tido notícias deste camarada. Página no facebook: Carlos Alberto Carvalho.


Carta


José Casimiro > Cacine, 22/5/73:

Queridos pais: Vou-lhes contar uma coisa difícil de acreditar como vão ter oportunidade de ler: Guileje foi abandonada [a bold, no original], ainda não sei se foram os soldados que se juntaram todos e abandonaram o quartel, ou se foi ordem dada pelo Comandante-Chefe, mas uma coisa é certa: GUILEJE ESTÁ À MERCÊ ‘DELES’ [, em maíusculas, no original].

Não sei se as minhas coisas todas estão lá, ou se os meus colegas as trouxeram. Tinha lá tudo, mas paciência.

Se foi com ordem de Bissau que se abandonou a nossa posição, posso dar graças a Deus e dizer que foi um milagre, mas se foi uma insubordinação, nem quero pensar…

Mas… já não volto para lá!!! Não tinha dito ainda que Guileje era bombardeada pelos turras há vários dias e diversas vezes por dia. Os soldados e outros não tinham pão, nem água. Comida era ração de combate e não se lavavam. Sempre metidos nos abrigos e nas valas. A situação era impossível de sustentar. Vosso para sempre (…).



Aerograma


José Casimiro > Guileje, 22/4/1973

Meu querido pai: Hoje foi um dia de fartura cá no Guileje, recebi nada mais nada menos do que 10 cartas, uma das quais era uma que eu tinha mandado à avó, e que foi devolvida, pois não existe o nº que me disseram, no Largo das Fonsecas. Adiante...

Pai, recebi as "cacholas", até dá para gozar. Recebi o salpicão - estava uma delícia. Quando eu chegar aí, não deve haver peixes no rio nem nomar. Quanto a a fotos de pretas [, desenho de um corpo  feminino parcial.], eu já tinha arranjado, e mandei os rolos para Cufar, para o irmão da Ana levar aí a casa, mas ele não pôde ir de férias, e vai mandar aqui para Guileje, e eu mando para Bissau, pois aqui já não revelam

Quando puder mandar rolos, mande. A Olinda (Montijo) tem-me escrito. A mãezinha que gaste  do meu dinheiro para remédios, é um desejo meu que gostava que fosse cumprido, ok ? Retribua os cumprimentos à D. Elisa e família. Mando-os também para todos os vizinhos com que eu me dava bem. Para todos em casa um grande beijo (A BIG KISS) [, desenho de uns lábios]. Sempre vosso,  J. Casimiro.



Carta


José Casimiro > Gadamael, 26/6/73


NOW WE HAVE PEACE [, em inglês, finalmente temos paz]

Minha querida mãezinha:


É com imensa ternura que, mais uma vez, lhe dedico uns minutos do meu pensamento. Neste momento batem 8 horas numa emissora de London [sic] que ouvimos no rádio.

Então, como têm passado todos aí em casa, enquanto o vosso soldadinho finalmente tem sossego, pois os turras não nos têm chateado, nestes últimos dias ?!

Ontem chegou uma companhia nova aqui, veio substituir a companhia daqui, e há-de vir uma outra, daqui a uns dias, para nos substituir. Vai haver bebedeira, pela certa, e vamos para o Cumeré, para completar a Companhia, substituir mortos e feridos graves. O capitão também foi ferido gravemente, e foi evacuado para a Metrópole. O outro capitão, o daqui, também foi ferido.

Há já alguns dias que vivemos em paz de espírito, e agora, desde há alguns dias fui nomeado instrutor de um novo grupo de milícias (pretos, 40). Ensino-lhes desde armamento a táctica de combate a ginástica. É um passatempo e não saio para o mato, pela primeira vez em oito meses, feitos ontem, dia 25.

Já passou a nuvem negra que tapava o nosso amor, entre mim e a Ana, até ando mais feliz, pois embora não quisesse, ela não me saía do pensamento, pois gosto muito dela.

Parece que há um aumento de 500$00 a partir de Março e que recebemos tudo junto em Agosto. Mande dizer quanto marca o saldo B[anco] B[orges]. & Irmão.

 Um beijo para ser dividido igualmente entre todos, do militar J. Casimiro.


[Na vertical, na margem esquerda: Pax, Now we make love not war [Paz, agoramos fazemos amor e não guerra; na margem direita, PAZ]


1. O ex-fur mil op esp José Casimiro Carvalho [. foto à direita, c. 1973[, com residência na Maia, confiou-me, no I Encontro Nacional da Tabanca Grande (Ameira, Montemor-o-Novo, 14 de outubro de 2006), uma pequena colecção de aerogramas e cartas que escreveu à família durante o período em que esteve em Guileje e depois Cacine e Gadamael, coincidindo com o abandono de Guileje pelas NT. A unidade a que ele pertencia - a CCAV 8350, Os Piratas de Guileje - esteve lá entre dezembro de 1972 e maio de 1973.

Depois do regresso à metrópole, em 1974, ele entrou para Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana (BT/GNR),  primeiro como soldado e depois como agente patrulheiro. Está aposentado. De qualquer modo, quem o conhece (e conheceu na Guiné), nunca dirá dele que era um daqueles milicianos "politizados", com posições críticas face à guerra colonial e ao regime político de então. Como, de resto, a grande maioria dos milicianos e demais militares, incluindo os do quadro permanente, que durante 13 anos fizeram a guerra do ultramar (ou guerra colonial), na esperança, em todo o caso,  que o poder político acabasse por encontrar uma solução (política) para aquela maldita guerra que prometia eternizar-se...

Apresentamos acima um exemplo de um carta, devidamente selada (correio aéreo), e de um aerograma, amarelo, sem franquia,  enviados pelo nosso camarada José Casimiro Carvalho (ex-fur mil op esp, CCAV 8350) à família. A carta tem data de 22/5/1973, e foi remetida de Cacine, onde ele estava retido. Nesse mesmo dia, Guileje fora abandonado pelas NT.  O aerograma tem data de 22/4/1973, e é expedida de Guileje. Uma segunda carta é já de Gadamael, e tem data de 26/6/1973. (**)

No aerograma, dirigido ao seu "querido pai",  o nosso camarada tem uma conversa trivial, diz que está feliz por ter recebido nada menos do que 10 cartas, além das encomendas postais... Há uma evidente cumplicidade entre dois homens, pai e filho, mas não há inconfidências relativamente à situação militar...

Já nas cartas, há matéria que poderia ser considerada muito "sensível" e "classificada", como por exemplo o abandono de Guileje por parte das NT...e, um mês depois de terríveis combates  em Gadamael, o J. Casimiro Carvalho informa a sua "querida mãezinha" de que finalmente há paz, e que está a haver rendição de tropas, que a sua companhia, a CCAV  8350,  vai para o Cumeré, e que vai haver bebedeira, pela certa, e que ao mesmo tempo houve mortos e feridos graves, incluindo dois capitões, um dos quais evacuado para a metrópole!...

Ora, se eu alguma vez escrevesse uma carta destas para casa, era um terramoto, deixava os meus pais e irmãs a sangrar de dor!...De qualquer modo, muitos de nós nunca escreveriam cartas deste teor, não só para poupar a família mas também por autocensura.

Em suma, o J. Casimiro Carvalho, que não esconde nada aos pais,  parece usar o aerograma para a "conversa da treta" e as cartas para as inconfidências, as informações sobre a situação militar, etc.  Era algo de intuitivo para os militares,  o aerograma, na sua perceção, prestava-se mais à devassa, à violação... Ou seria o contrário ?


2. As questões que se podem pôr hoje, em relação à satisfação e confiança no Serviço Postal Militar (SPMS)  (***), são as seguintes: 


(i) o nosso correio era seguro ?



(ii) o aerograma, sem franquia,  era mais seguro 

do que a carta selada ?



(iii) a malta fazia autocensura ou, pelo contrário, escrevia, 

nos aerogramas e cartas,  tudo o que lhe apetecia ?



(iv) o correio era rápido ? quanto dias demorava a chegar ? (dependendo de a distribuição ser feita por avioneta
 ou por coluna auto)



(v) as cartas, os aerogramas, os valores declarados e  as encomendas postais não se extraviavam ?



(vi) houve camaradas que escreveram mas não chegaram a pôr no corrreio aerogramas e/ou  cartas com medo de serem abertos e lidas pelas autoridades militares e/ou  pela PIDE / DGS ?



(vii) era frequente (ou, pelo contrário, era raro) dar-se informações detalhadas sobre a situação político-militar tanto na Guiné como na Metrópole ?

A resposta a estas questões dá pano para mangas,,,e para alimentar o nosso blogue neste verão...


3. Relendo as  cartas que o meu cunhado José Ferreira Carneiro escreveu  à irmã, Alice Carneiro (****), constato que o aerograma, em Angola, não seria tanto fiável quanto a carta; podia levar um mês a chegar, enquanto a carta (, por via área,) demorava três dias a chegar a casa dos pais...

O correio era muito importante, nos dois sentidos. O aerograma tranquilizava as nossas famílias. Mas também é verdade que podia veicular boatos de toda a espécie, a par de informações que, para as chefias militares, deviam ser classificadas ou reservadas...

Recordo-me de, em finais de maio de 1969, quando cheguei à Guiné, o terror do "periquitos" eram então as histórias que se contavam de Gadembel e de Madina do Boê. Tanto a retirada de uma e outra ainda estavam na memória de muita gente. O nosso grã-tabanqueiro, Henrique Cerqueira, por sua vez, tinha mais confiança no aerograma do que na carta. Mas as nossas namoradas e esposas não gostavam nada de receber o aerograma em vez da carta, que o diga o nosso Manuel Joaquim! (*****).


José Carneiro, 1º cabo trms, de rendição individual,
Camabatela,  norte de Angola, 1969/71
José Carneiro > Camabatela 16/06/70

Querida mana Chita: 

 Estou a escrever uma carta porque os aeros [aerogramas] chegam a demorar cerca de um mês até chegarem ao seu destino, isto quando não são devolvidos. Estou mesmo muito aborrecido com isto. Pensei agora só escrever cartas, mas de 15 em 15 dias. Assim as cartas só demoram 3 dias a chegar a vossa mão. Tens que escrever é para a caixa postal. Que achas? Assim não repetimos as notícias. Quando receberes carta minha, peço-te que telefones aos pais para ficarem descansados. Está bem assim? (*)



Henrique Cerqueira > Comentário de 6/12/2012 (**)

[ foto à esquerda: Henrique Cerqueira,  ex-fur mil, 3.ª CCAÇ/BCAÇ4610/72, e CCAÇ 13, Biambe
e Bissorã, 1972/74; vive no Porto]:



(...) Para mim o aerograma tinha uma grande vantagem em relação à carta envelope normal. É que no aerograma havia maior possibilidade de enviar informações que o Estado (PIDE/DGS) considerava de teor político e assim os censurava. 

Tinha que haver o cuidado de colar bem as margens. Assim os censores tinham uma maior dificuldade em violar o aerograma e, como eram aos milhares, havia que contar com a "burrice preguiçosa" dos tais indivíduos. Este foi um conselho dado por um agente da DGS que na altura estava em Bissorã.(Era um novato e ainda com as ideias pouco contaminadas). 

Aliás quando o tive de acompanhar a Bissau no pós-Abril e sob detenção, tive mais uma vez a possibilidade de verificar que o indivíduo politicamente era mesmo um pouco "inocente". Ou seja era mais um "recrutado" pelo objectivo monetário e não político. 

Eu próprio senti na pele essa pressão de recrutamento um pouco antes do 25 de Abril. Felizmente resisti conforme pude, pois que até ameaças de repatriamento da família para a metrópole eu recebi. Como já disse, eu tinha a mulher e filho comigo em Bissorã nos últimos nove meses da comissão.

Um abraço a todos e viva o "aerograma" que até era de borla. (****)

4. Haverá, por certo, outros camaradas com opinião qualificada sobre a organização e o funcionamento do Serviço Postal Militar (SPM) , a sua alegada independência face à PIDE / DGS, e à própria hierarquia militar, as demoras do correio, os eventuais extravios, e sobretudo o risco de violação da correspondência. 

Em suma, o SPM era mesmo o do nosso contentamento? Era o melhor serviço que a tropa nos prestava? Nunca nos fizeram um inquérito... de satisfação... Mas, meio século depois, ainda vamos a tempo de fazê-lo, mesmo que o SPM tenha sido extinto em 1981 e a guerra acabado em 1975, com o regresso dos últimos soldados do império...

Mas haverá por certo muitas cartas e aerogramas ainda por salvar... Vamos fazer um apelo aos filhos e netos dos nossos camaradas, esposas, madrinhas de guerra, antigas namoradas, amigos, amigas,  etc., para que salvam o "património epistelográfico" dos nossos "rapazes"...

O que é feito dessas 21 mil toneladas de correio que circularam durante a guerra colonial? As "cacholas", os salpicões, os queijos, o bacalhau, etc., isso comeu-se e fez-nos muito bom proveito... A "guita" gastou-se em "putas e vinho verde", como diria esse rapaz holandês de nome impronunciável por um "tuga" e que nunca foi à guerra, um tal Jeroen Dijsselbloem... Mas as cartas e aerogramas que escrevemos e recebemos, camaradas?!... O que é feito delas?... A maior parte foi parar ao caixote do lixo, mas outros apodrecem nos nossos baús...

Parabéns aos camaradas e às amigas que já aqui partilharam parte do seu espólio postal: o Mário Beja Santos, a Cristina Allen, o Manuel Joaquim, o Renato Monteiro, o José Ferreira Carneiro, a Alice Carneiro, o J. Casimiro Carvalho, o António Graça de Abreu, o José Teixeira, o Armor  Pires Mota, o Silvério Dias, o Albano  Mendes de Matos e outros (cito de cor!)...
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de novembro de  2010 >Guiné 63/74 - P7327: Facebook...ando (1): O aerograma traçado de balas ou estilhaços na emboscada de 26/10/1971, na estrada Piche-Nova Lamego, e em que morreram 4 camaradas da CART 3332 (Carlos Carvalho)

(**) Vd. postes de:

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 9

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

Vd. também poste de

1 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9837: Cartas de Gadamael: maio e junho de 1973 (J. Casimiro Carvalho, Fur Mil Op Esp, CCAV 8350, Guileje, 1972/73)

(***) Vd. poste de 27 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17518: Antologia (76): "O Correio durante a guerra colonial", por José Aparício (cor inf ref, ex-cmdt da CART 1790, Madina do Boé, 1967/69)... Homenagem ao SPM - Serviço Postal Militar, criado em 1961 e extinto em 1981.

(...) O serviço prestado pelo SPM foi notável. Muito para além dos números impressionantes de milhões de aerogramas, cartas, encomendas, vales do correio e valores declarados, por eles tratados e enviados; durante os anos de guerra a expedição média diária foi de 10 toneladas de correio (!!!) para um total transportado de 21 mil toneladas. É que nunca falhou, mesmo nos locais mais perigosos, difíceis e isolados, e os prazos médios entre a expedição e a recepção eram mínimos. (...)


(*****)  Vd. poste de 19 de junho de  2013 > Guiné 63/74 - P11732: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (16): Aerogramas e insuficiência das mensagens

(...) O aerograma foi um óptimo meio de comunicação mas sempre o olhei como um substituto menor da tradicional carta usada nas relações afectivas, principalmente no discurso amoroso (ou fizeram-me crer nessa menoridade). Tendo, muitas vezes por preguiça, desleixo, cansaço ou mesmo falta de tempo, recorrido ao aerograma para manter uma periodicidade regular na minha correspondência de guerra, nunca ninguém se me “queixou” do seu uso, exceto a namorada. Receber aerogramas em vez de cartas, era coisa de que ela não gostava nada. Mas lá foi disfarçando … até já não poder mais. (...)