Mostrar mensagens com a etiqueta estórias de Mansambo I. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta estórias de Mansambo I. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça junto ao velho obus 10.5, possivelmente de marca Krupp, uma temível arma que vinha da II Guerra Mundial... O obus é, por excelência, uma boca de fogo especializada em tiro curvo, de longo alcance... Ainda hoje tenho, nos meus ouvidos, o seu 'assobio' por cima das nossas cabeças, quando o Xime fazia fogo de apoio às NT, por ocasião de operações à Ponta do Inglês, ao Poidon/Ponta Varela, ao Baio/Buruntoni... O seu alcance era, porém, limitado: 10/12 km, no máximo, creio eu, com uma cadência de dois a quatro tiros por minuto, na melhor das hipóteses ... Não creio, por exemplo, que disparado do Xime conseguisse atingir a Ponta do Inglês. Ou que os obuses de Mansambo chegassem ao Buruntoni... Mas quem sou eu para falar de artilharia ? Tirei a especialidade de Armas Pesadas de Infantaria, mas juro que esqueci tudo, mal pus os pés na Guiné... É que deram-me uma G-3... (LG)

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1969 > Assinalado a azul Bambadinca (sede de batalhão, na época o BCAÇ 2852), a verde Mansambo (CART 2339) e a vermelho a base do PAIGC do Baio/Buruntoni.

Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Foto: © Luís Graça. Direitos reservados.

Mais uma estória da nova série de estórias do Torcato Mendonça que foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69. Chamei-lhe estórias de Mansambo, aquartelamento construído heroicamente, de raíz, pelo pessoal da CART 2339 (1), e que não vinha no mapa...

Burontoni: Mito ou Realidade ?

por Torcato Mendonça

Ambas, pensamos nós. Foram escritos dois textos – em 14 e 23 de Novembro, pelo Beja Santos (2) e C. M. dos Santos, – que merecem ser complementados com novas informações.

O maior Santuário do PAIGC no Sector L1 era o Burontoni. Deixando de fora, a zona do Fiofioli e a margem direita do Corubal até á Ponta do Inglês.

Segundo as informações, situava-se na zona Baio/Burontoni, sensivelmente a cerca de 5/6 Kms a Sul do Xime e, talvez, 10/12 Kms a Oeste de Mansambo. Ver carta do Xime. O Baio/Burontoni foi destruído na Lança Afiada (3).

No início de Julho de 1968, o novo Comandante-Chefe, Brigadeiro Spínola, visitou Mansambo. O seu antecessor, General Shultz, nunca o vi. Nessa visita breve, falou-se da posição geo-estratégica do novo aquartelamento (Mansambo). Logicamente, o Burontoni., como principal base inimiga, foi falada.

O Comandante da minha Companhia, como não costumava ir nas operações, minimizou o que daquela base do IN se dizia. Abanei a cabeça e o Brigadeiro viu. Esperou, pelo fim do palrar do Capitão e, com aquela voz que o monóculo ajudava a transformar-se em voz de ópera bufa, disparou:
- Diga lá porque discorda, alferes? - Já tinha trocado breves palavras com o Capitão Almeida Bruno. Calmamente – general ou brigadeiro não come militar – pensei Estou tramado e respondi:
-A aproximação é difícil porque, segundo dizem, têm pequenos postos de sentinela, com vários elementos, antes da base principal. - O Cap Almeida Bruno veio em meu socorro e lá disse ser essa a informação, as bolanhas eram difíceis e mais umas explicações para acalmar o Velho.
- Só com uma operação bem planeada.

Ficou a pairar no ar: Burontoni qualquer dia está aí. Mas não. O BART 1904 (4) nunca preparou nenhuma operação para lá. Nessa altura, Junho/Julho de 1968, já tínhamos ido ao Galo Corubal (Xitole), Poidom e Ponta Varela (Xime), Madina e Sinchã Camisa (Enxalé) e outros acampamentos IN. Tudo com êxito. Geralmente acompanhados de outras forças, como a CART 2338, CART 1746 (Xime), Pel Caç Nat 52 (no tempo do Saiegh, antes do Beja Santos) e Pelotões de Milícias. Além disso continuávamos a ser a Companhia de intervenção do Sector, a construir o aquartelamento e a iniciar a acção psicossocial, para as autodefesas das tabancas vizinhas. Posteriormente só se concretizariam Candamã e Afia.

Em Outubro soubemos ir participar numa operação ao Burontoni. Já estava o BCAÇ 2852 em Bambadinca, a comandar o Sector. Por essa altura, a nossa experiência em combate era, infelizmente, alguma. Assaltos a acampamentos, emboscadas, ataques ao aquartelamento…

O dia chegou. A Companhia ia a quatro grupos e em Manssambo ficavam os não operacionais, os operacionais com problemas de saúde... E para reforço vinha o Pelotão de Milícias do Tenente Mamadu (5). A comandar o aquartelamento, ainda bem, ficou o Alferes Rodrigues por se encontrar inoperacional.

Em Bambadinca tivemos um briefing surrealista:
- Eles estão bem armados, têm armas pesadas, e… Claro que, devido ao factor surpresa, não vão puder utilizar esse material.

Claro! Ver filmes de guerra, género Canhões de Navarone deve ajudar a certos militares. Nome da operação: Meia Onça... Tinha ficado melhor Bichano ou Tareco…! Claro que, mesmo antes de sairmos, o IN já sabia.

As NT eram formadas por dois agrupamentos. Um saindo do Xime: Cart 1746 e o Pel Caç Nat 53, com o apoio de um Pelotão de Artilharia. Outro saindo de Taibatá: CART 2339, Pel Caç Nat 52 e 1 Grupo da CCAÇ 2401. Francamente não me lembro da constituição das nossas forças, só da CART 1746 do Xime. Soube agora ao ler o Historial da Companhia. Mas falha o relato. Não se passou assim. O que o Historial relata induziu o C. M. dos Santos em erro.

O Beja Santos relata, e bem, o briefing e, em certa medida, o desenrolar da operação. Eu estava lá. Aquela era a minha guerra e seria a do Marques dos Santos, se não estivesse de férias. Saímos de Bambadinca, passámos por Amedalai e virámos para Taibatá. Certamente, talvez alguém de Amedalai ou da Tabanca do Xime foi dar um passeio pelo mato. Encontrou, por mero acaso, o comandante dos Libertadores ou PAIGC – e esta hein? – e disse-lhe:
- Já saíram…

A nossa Companhia tinha novo comandante (o terceiro capitão) (6) e seria ele o comandante daquele agrupamento. A CART 2339 tinha dois oficiais – ele e eu. O Rodrigues, inoperacional em Manssambo, outro talvez de férias e, em Taibatá, ficaria o último, vítima de um acidente à chegada.

Saímos, a meio da noite com a missão: assaltar e destruir o Burontoni. O outro agrupamento saía do Xime com a missão: montar emboscadas em determinados lugares e proteger ou, se necessário, apoiar o nosso agrupamento.

Os guias eram fracos, tinham medo e diziam não conhecer bem a zona. Falei com um Milícia – o 91? - que já tinha estado no Burontoni mas vindo do Xime. Passadas poucas horas, depois da saída, verificámos que algo não estava certo. Acresce que a chuva não ajudava nada. Contudo a bússola não engana e não progredíamos bem. Parámos, conferenciámos e continuámos. Ao romper do dia nova paragem. Estávamos longe do objectivo. O Historial fala em Dembataco. Falso. Isso era para sudeste e nós caminhávamos para sudoeste, só que com muita volta…continuámos e sentimos que já devíamos estar detectados.

A meio da manhã sentimos, ao longe, o PCV (Posto de Comando Volante) na habitual DO 27. Ao longe e, ainda bem, do ar o silêncio era de ouro. Tentámos o contacto com o outro agrupamento. Nada. Nova paragem e conversa com o Capitão. Estava desorientado. Esta era a sua primeira operação. Creio que foi a última, talvez uma ida, em coluna ao Xitole. O teor da conversa que tivemos diluiu-se no tempo.

Contactámos o PCV e soubemos que o outro agrupamento não tinha atingido a posição determinada. Nós estávamos longe. De quê?! Perdemos o contacto. Por volta do meio-dia rebenta forte tiroteio. Percebemos ser Manssambo a enrolar. Ouvíamos o barulho da nossa pesada.

Convém dizer o que era a pesada. Cortava-se a tampa de um bidão de 200 litros e, do outro lado, só metade. Depois, bem depois, metia-se lá uma G3 e em rajadas curtas e cadenciadas fazia-se um barulho dos diabos. Arma perigosa… deve ter intrigado muita gente.

O IN respondia assim ao nosso atrevimento, atacando em pleno dia e perto do arame farpado, durante quase uma hora, Mansambo.

Passado pouco tempo foi restabelecido o contacto com o PCV. Ordens para abortar a operação. Progressão difícil até Taibatá. A bússola continuava a funcionar bem e muito melhor que os guias. Embarque nas viaturas e regresso a Bambadinca.

Foi das piores, senão a pior operação em que participei. Mal planeada, mal comandada, mal…mal…tudo e mais não digo!

Mansambo teve que ser remuniciado de héli. Os homens do Tenente Mamadu tinham o dedo do gatilho pesado… safa!

Ficou-me a imagem do comandante de Taibatá, um furriel miliciano. Tinha uma mosca (tufo de pêlos por debaixo do lábio inferior), género rabicho chinês ao contrário. Teria seguramente um palmo de comprimento. Ele torcia-a, ria-se e beberricava uma cerveja… O clima era terrível e o isolamento dava-lhe a pitada de sal e pimenta certas… Malhas que o império teceu.
_____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

(2) Vd. posts de:

14 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1276: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (20): A (má) fama do Tigre de Missirá em Bambadinca

23 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1306: Meia Onça, Meia Operação (Carlos Marques dos Santos, CART 2339)

(3) Sobre a Operação Lança Afiada (que mobilizou cerca de 1100 homens, entre combatentes e carregadores, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, durante dez dias e dez noites, de 8 a 18 de Março de 1969), vd. os seguintes posts:

31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

(4) Batalhão que antecedeu o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Este, por sua vez, foi rendido pelo BART 2917 (1970/72).

(5) O famoso régulo de Badora, de quem se dizia que tinha 50 mulheres, uma cada tabanca do seu chão... e vários filhos na CCAÇ 12.

(6) Vd. post de 14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça na poda...

Évora > RAL 3 > 1967 > Esta foto é de uma das primeiras reuniões de graduados das CART 2338 e 2339. Na primeira fila estão o Capitão Miliciano e o Alf Mil Diniz (na altura, aspirante), ambos da CART 2338 (O Diniz é o oficial que irá mais tarde coordenar a travessia do Corubal, no Cheche, na retirada de Madina do Boé, em Fevereiro de 1968). "Não sei do Diniz. Mas mando-lhe um forte abraço", escreveu há tempos o Torcato (1). O Asp Mil Torcato Mendonça, dfa CART 2339, está na primeira fila, à esquerda do capitão.

Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006). Direitos reservados (Foto do arquivo pessoal do ex-Alf Mil Cardoso; cópia enviada pelo ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos. A ambos o nosso agradecimento).

Série de estórias do Torcato Mendonça que foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69. Chamei-lhe Estórias de Mansambo (2), por homengem aos heróicos construtores e defensores daquele aquartelamento da Zona Leste, Sector L1 (Bambadinca) (1). A ordem por que aparecem não é nem lógica nem cronológica, é ditada por critérios de conveniência do autor e do editor. A estória do postal foi-me enviado em 12 de Fevereiro de 2007, a par da já publicada, a dança dos capitães (2).

Mais recentemente, pela Páscoa, o Torcato mandou-me mais uma meia dúzia de estórias, subordinadas ao título comum Estórias do Zé... Ora eu já tinha, em boa hora, dado início à série Estórias de Mansambo... Ao telefone, decidimos manter este título... E vamos recuperar outras (pequenas estórias) do Torcato que andam por aí dispersas. Hoje, e numa assentada, publicam-se duas, uma vez que estão interligadas: (i) O José ou o Zé; (ii) O postal [da tropa]...

Estórias de Mansambo (2) - O José ou Zé

por Torcato Mendonça

Conheço o José há tanto tempo que não sei, ao certo, nem onde nem quando o encontrei pela primeira vez.

Fizemos ambos a tropa e estivemos na Guiné. Muito pouco falamos nisso. Talvez o tenhamos feito, uma ou outra vez, porque não podíamos fugir ao tema.

Numa tarde fria e baça, recebi a inesperada visita do José para dois dedos de conversa. O tempo cinzentão deixava-me amolecido. Devagar acabava o trabalho. Ele, depois de entrar e dos cumprimentos, sentou-se num cadeirão e começou a folhear uma revista. Continuei a trabalhar, alheado ao que me rodeava. De repente, levanto os olhos e vejo o José a ler os papéis espalhados na habitual desordem, mais aparente que real, sobre a mesa de trabalho.
- Espreitar não vale – disse-lhe, gracejando.
- Pois é - respondeu-me, meio virado para a janela com olhar de nada ver. E acrescentou, com a sua voz grave e calma:
- Eu estive lá; eu também estive na Guiné há muitos anos. Quase nunca falamos sobre isso.
Fitei-o, esperei um pouco, passei o olhar para os papéis e disse:
– São apontamentos, pequenos textos em exercício de memória, sem ordem nem tema. Recordações minhas, desse tempo, transcritas para o papel ao correr da pena ou da tecla. Um dia posso ordenar tudo ou não.

Na sua voz calma, olhando também os papéis retorquiu:
- Fui tentando esquecer mas, como marca de ferro em brasa, aquele tempo ficou-me indelevelmente gravado na memória. Podemos falar um pouco sobre isso... Cedo, ainda criança, por razões várias apercebi-me das desigualdades no nosso País, do cuidado a ter em certas conversas e não só. Isto, para te dizer que, quando me chamaram para prestar o serviço militar e posteriormente fui mobilizado, sabia não ir defender causa justa. Fui, porque tinha e devia ir. Fugir, desertar, nunca tal foi por mim equacionado.



Sentámo-nos mais confortavelmente. Entre os dois a mesa baixa e, sobre ela a bandeja com chávenas, copos, o termo do café, uma garrafa de água e outra de uísque. Nenhum queria iniciar a conversa. Começou ele, titubeante, a não ir directo ao assunto, a rodar o copo com água ora numa mão ora noutra. Tossiu, respirou fundo, pousou o copo e depois de dar uma palmada no joelho falou mais alto que era o seu hábito.
-Vou contar-te, sem sentido cronológico, sem qualquer pretensão de ligação de factos. Vou fazê-lo, à medida que me vier à memória, aquela parte do meu passado tão fortemente vivido e que me transformou tanto - E continmou:
-Começo então e chamo metamorfoses a essas transformações. Porquê metamorfoses? Porque o jovem alegre, brincalhão, bonacheirão, jogador de unha afiada para o ás, amigo do copo e do petisco, do belo sexo – no bordel, hotel e… em tanto lado –, sofre, de forma maquiavélica e bem programada, uma radical modificação. Resiste. Um dia, sem saber como, sente que claudicou. Saltou o muro e tornou-se solitário. Já não é o mesmo de outrora.
Transformou-se. Muito, muito tempo depois, aos poucos, sente que esqueceu…já não diz, quando sente situação de perigo: - Vou vestir o camuflado… isso foi-se. Mas não. Um som, um cheiro, certas palavras ou uma imagem… sem querer, é o suficiente para voltar a ser solitário. Hoje sabe porquê e, mesmo solitário, também está mais solidário com aquilo… E vale a pena, sente que recordar é necessário.

Estórias de Mansambo (3) - O postal

por Torcato Mendonça

Prefiro contar na terceira pessoa, como se fosse referente a outro indivíduo... Posso, eventualmente, fazer o relato na primeira pessoa. Se bem me lembro...

Naquele ano, descera do Alentejo até ao Algarve já com Setembro á vista.

Sabia que mais tarde ou mais cedo, teria que servir a Pátria. Sinceramente não sentia nada por ela. Gostava e gosta de ser português. Mas Pátria? Cheirava a bafio, a botas, a Estado Novo. Pátria, não.

Já tinha ido à inspecção, às sortes, e pedira adiamento. Continuou a estudar. Mas…sorte madrasta…agora, aí estava ele especado, aturdido. Se tivesse levado um murro no estômago, a surpresa não seria maior. Ali estava ele, com o postal na mão e lia e relia a sentença. O texto era de chapa e de prosa curta: Tem que se apresentar, no quartel das Caldas da Rainha, a 12 de Setembro. Não teve direito a adiamentos. Porquê? Logo agora que até tinha trazido os livros, devido a exames no fim de Setembro. E a faculdade, o curso, o… raio que os parta! Sonhos desfeitos ou adiados.

Pôs a toalha ao ombro e foi até á praia. Sentou-se junto da rebentação para melhor sentir o embrulhar das pequenas ondas. Aos poucos sentia-se mais relaxado ou resignado. Logo neste ano que, ao fim de três ou quatro dias, conhecera aquela miúda. Linda! Cabelo loiro, longo e liso, olhos cor de mar. Aos poucos a rápida empatia…as voltas…as conversas…enfim …o estarem sós… no meio do grupo! E agora?

O regresso a casa, no Alentejo, mais depressa do que imaginara. Ficaram promessas no ar, prisões de amor em traição ou infidelidade próprias dos verdes anos. Dias depois a vinda para Lisboa, a despedida na velha Casa de Fados com os amigos. No dia seguinte, manhã cedo, o comboio apanhado no Rossio – Linha do Oeste... Poucas horas depois, aí estava a cidade das Caldas.

Acompanhava-o um amigo, antigo colega no Colégio que trazia uma cunha para um Alferes, antigo camarada de um seu cunhado na Academia. Falaram com ele e rumaram ao Quartel. Que mundo diferente, a cor verde e o cheiro da caserna…

Dias depois ei-lo a sair para fazer os exames.
-Trazes o papel mas não entregas a ninguém, só quando eu disser.

Alferes manda. Passado cerca de um mês, nova ordem:
-Vai á Secretaria e entrega o papel. Já não te mandam para Mafra.

Conseguiu safar-se da porrada que o Comandante de Companhia lhe queria dar.
- Não entregar as habilitações literárias é grave - berrava o 1º Sargento e berrou o Tenente.
- Esqueci-me.
- Assinaste um papel quando foste á inspecção.
- Não me lembro.

Passou. Tudo serenou e continuou nas Caldas. Bela cidade, boas voltas, cidade com atractivos para militares…o museu e o jardim clar0... para descansar o olhar… e… pois isso também... óptima recruta.

Do Pelotão dele, nem meia dúzia foram para atiradores. Ele estava nesse pequeno grupo. Ia para Vendas Novas, curso de oficiais milicianos, especialidade – atirador.

Raios partam… a dança ia começar!
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

(2) Vd. post de 14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

quarta-feira, 14 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Brasão da CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/79)

Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Direitos reservados.

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > CART 2339 > 1968 > O terceiro e penúltimo Comandante da Companhia (um Capitão do QP, de artilharia, com o seu metro e oitenta e tal de altura, assinalado com um círculo a amarelo). Atrás de si, o comandante do Batalhão 2852, Tenente-Coronel Pimentel Bastos, também conhecido por Pimbas. Ao todo, a CART 2339 teve seis comandantes, sendo três capitães, um miliciano e dois do QP, um tenente do QP graduado em capitão, e ainda dois alferes milicianos, nos interregnos... (LG)

Foto: © Torcato Mendonça (2006) . Direitos reservados

Início de mais uma série de estórias do Torcato Mendonça que foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69. Vamos chamar-lhe estórias de Mansambo, aquartelamento construído heroicamente, de raíz, pelo pessoal da CART 2339 (1).

Começo então pela… Dança dos Capitães. Uso as iniciais dos nomes. O nome completo será enviado ao Luís Graça, no fim de cada estória. Não é medo. Creio que muitos estão vivos e, devido a um texto recente, achei preferível fazer assim. Assunto a resolver quando do envio. Assumo tudo o que escrevo e, uma vez enviado, deixa de ser meu. Ou seja, o Luís Graça publica ou não da forma que entender.

Conto, procurando ser o mais fiel possível, a experiência vivida por mim e pela minha Companhia há 40 anos.

A Companhia Independente de Artilharia 2339, foi formada em Setembro de 1967. A Unidade mobilizadora foi o RAL 3 de Évora. Na mesma data, para não ficar só, teve uma irmã gémea, a CART 2338. Ambas foram para a Guiné e para o Leste. Nós, CART 2339, dependentes de Bambadinca (sede do Sector L1) e de Bafatá (sede do Agrupamento nº 2959), eles para a zona de Nova Lamego (Gabu).

Em Évora, eram comandadas, aquando da formação, por Capitães Milicianos.

O primeiro capitão, miliciano e arquitecto...

O meu comandante teria cerca de trinta anos ou um pouco mais, arquitecto de profissão, casado. Era o Capitão Mil M. de C. Não pretendia ter grande profissionalismo militar. Procurava o convívio aberto, próprio de quem era uma excelente pessoa na vida civil. Sentia-se que, o ser militar não lhe agradava. Também não tinha grande apreço, estou a ser leve, pelo regime. Nem eu. Soube-o, porque nas escolhas dos nomes para a companhia sugeriram, Centuriões ou Pretorianos. Influências dos livros de Jean Laterguy, sobre as guerras na Indochina e Argélia. O Capitão M. de C. disse-me:
- Olhe que isso tem a ver com Roma mas também com Mussolini.

Falava-se com cuidado. O assunto também seria tratado do mesmo modo. Procurou-se outro nome. Surgiu, sabe-se lá como, o nome do Chefe Guerrilheiro Lusitano Viriato. Ficou a Companhia com o nome Os Viriatos. Como diria Bocage, foi pior a emenda que o soneto. Os portugueses que ajudaram Franco tinham esse nome (2).

Um dia o Capitão informou-nos:
- Devido a doença vou ser internado e, pelos exames já feitos, as doenças de pele, que é o meu caso, não se dão bem em climas tropicais...

Foi internado e não mais voltou. Ficamos assim órfãos do 1º Comandante. Pouco tempo depois ficámos sem um aspirante. Uma lesão num pé e tornozelo levou-o ao Hospital Militar Principal. Não mais regressou também.

2ª Comandante: Um tenente com uma comissão em Angola

Veio o 2º Comandante. Era um Tenente, mais tarde graduado em Capitão. Já tinha feito uma comissão em Angola. Após o regresso continuou como militar. Mais tarde, por razão que desconheço, foi mobilizado e enviado para a CART 2339.

Ainda participou connosco na instrução e fez a semana de campo. Estávamos acampados, próximo de Évora em Novembro de 1967 (2), quando das grandes cheias mais sentidas, principalmente na periferia de Lisboa. A imprensa livre de então relatou bem o que se passou. País amordaçado!

O 2º Comandante da 2339, Capitão L., foi connosco para a Guiné. Por lá andou talvez até Agosto de 68. Se consultarmos o Historial da Companhia vemos que os castigos ou punições terminaram com a saída dele. Posteriormente, uma ou outra, sem intervenção directa de ninguém da Companhia.

O nosso Comandante um dia regressou à Metrópole. Veio, segundo creio, frequentar a Academia Militar. Não sei nem me interessa a carreira militar por ele seguida.

Enquanto esteve connosco, quantas operações fez? Duas ou três? Não sei. Não falo mais dele. Gostei do 1º Comandante pois era uma óptima pessoa. Deste não gostei e não me dei bem com ele.

3º Comandante: um tipo alto, com o seu metro e oitenta e tal...

Ficou a Companhia a ser comandada pelo Alferes Cardoso.

Um dia, no início de Outubro de 68, regressava eu de uma operação e, na subida para o aquartelamento de Bambadinca, sentido Rio Geba ou estrada de Bafatá para o aquartelamento, uma viatura negou-se a cumprir a missão e não subiu. Salta militar e o Unimog recua, desgovernado. Percorre curta distância, entra na valeta e pára meio virado.

Veio gente e gera-se o burburinho do costume. A situação estava controlada. No meio das tropas surge um Capitão, camuflado novo, voz forte e ordem pronta vinda do alto do seu metro e oitenta e muito. Não sabia quem ele era e achei que devia pertencer a outro filme. Dirigi-me a ele, pus-me em sentido e disparei:
- Meu capitão, sou o comandante da coluna, tenho a situação controlada e se precisar de ajuda trato disso.- A resposta veio rápida:
- Sei quem você é, já me falaram de si e esperava-o. As ordens dou-as eu. Sou o seu comandante de Companhia.

Melhor apresentação não podia ter acontecido. Se com o 2º Capitão tinha corrido mal, com o 3º prometia!

Aí estava o terceiro comandante da 2339, Capitão do Quadro Permanente (QP), quase a passar a major e a iniciar a sua terceira comissão, a primeira na Guiné, o seu nome era M. S. A apresentação não foi pacífica mas o relacionamento foi bom. Meses depois, quando o Capitão M. S. comandava a Bataria de Artilharia em Bissau, ajudou alguns militares da sua ex-companhia que continuava com a base em Mansambo.

Foi curta a passagem do 3º Comandante. A Companhia, em Outubro de 68 atravessava um período menos bom. As condições do aquartelamento em tempo de chuvas eram péssimas e a parte militar também não ia bem. O desastre da fonte (4), dois mortos e vários feridos graves, estava bem presente. Cedo o Capitão disso se apercebeu. Tentou e em parte conseguiu, melhorar as condições de vida da companhia.

Operacionalmente, cedo se apercebeu também, haverem muitas diferenças entre os dois teatros de operações – Angola/Guiné. Creio ter feito só uma operação. Bem falava dos seus feitos em Angola. A operação que fez foi ao Burontoni. Azar do Capitão. Correu mal, demasiado mal e foi abortada. Adoeceu, pouco tempo depois, com um problema doloroso e veio até Bambadinca. Assim se finou a passagem do 3º Comandante da 2339. Convenhamos que perder tanto capitão é obra.

O 4º, o último e o verdadeiro comandante da companhia

Passado algum tempo, finalmente, aparece o verdadeiro Comandante da nossa Companhia.

Recebemos, em Dezembro de 68, a visita do nosso antigo Comandante, acompanhado de um outro Capitão. Viemos a saber ser o Capitão L.H. do QP, também na sua 3ª comissão. Era mais novo, vinte e oito anos creio eu, mais baixo na estatura, mais alto na operacionalidade e não só. Um verdadeiro profissional, mesmo com alguma mazela provocada pelas duas comissões anteriores. Era o Comandante que uma Companhia com o perfil da nossa necessitava. Comandou a 2339 em cerca de metade da comissão.

A ele se deveu o elevar da moral, da auto-estima, operacionalidade e um novo ritmo na construção do aquartelamento. Melhoraram os aspectos sanitários, de saúde, alimentação. Logicamente tivemos, a partir daí, uma melhor qualidade de vida. Mesmo assim, foi-nos difícil manter aquele ritmo de operacionalidade, apoio à construção de Manssambo, autodefesas e não só.

Apesar de um melhor comando, não foi fácil. No final da comissão deixou-me saudades. Certamente aos outros militares também. Tinha menos tempo de comissão e ficou em Bissau.

O último comandante fui eu, o sexto se contarmos com o Alf Cardoso. Já a terminar a comissão, o Cardoso veio para o Hospital em Bissau. O estômago atraiçoou-o. Felizmente esperava-nos à chegada em Lisboa.

Se bem me lembro, quarenta anos depois, os acontecimentos ora relatados passaram-se assim. Claro que havia muito mais a relatar. Talvez não tenha interesse. Fica para outras estórias.
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDI: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (3): Memórias da CART 2339 (Luís Graça / Carlos Marques dos Santos)

(2) Vd. Fundação Mário Soares > Arquivo & Biblioteca > Guerra Civil de Espanha 1936/39

(3) Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967 registou-se, na região de Lisboa, precipitação intensa e concentrada, tendo atingido, na estação de São Julião do Tojal, no concelho de Loures, 111 mm em apenas 5 horas (entre as 19h e as 24 h do dia 25). As estações da região de Lisboa registaram, nesta data, cerca de um quinto do total da precipitação anual. A dimensão da tragédia foi ocultada pelo regime de Salazar, através da censura: cerca de 500 pessoas perderam a vida, e cerca de 1100 ficaram desalojadas ou viram as suas casas serem seriamente danificadas, muitos quilómetros de estradas ficaram destruídos... Estimaram-se os prejuízos em mais de milhões de dólares, preços da época. Fonte: Geologia Ambiental > Cheias > Casos de Estudo > As Cheias de Novembro de 1967 em Lisboa

(4) Sobre a fonte de Mansambo e as suas tragédias, vd. posts de:

5 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1248: Monteiro: apanhado à unha na fonte de Mansambo em 1968, retido pelo IN em Conacri, libertado em 1970 (Torcato Mendonça)

2 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXV: Do Porto a Bissau (12): A fonte de Mansambo (Albano Costa)

14 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCVIII: A emboscada na fonte de Mansambo (19 de Setembro de 1968) (Carlos Marques dos Santos)