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sábado, 2 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22591: Os nossos seres, saberes e lazeres (470): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (18): A Família Humana, exposição no Museu do Neorrealismo até maio de 2022 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
É uma bela oportunidade para conhecer uma coleção de fotógrafos famosos e o acervo, já hoje muito expressivo, da fotografia do Museu do Neorrealismo. O curador, Jorge Calado, delineou com enorme talento um percurso onde o humanismo faz fé e toma conta do nosso olhar, foi ambicioso e ganhou, quis revelar a universalidade da experiência humana, temos aqui inclusivamente a Lisboa de outras eras, imagens de Vila Franca e da Lezíria bem entrosadas com o mundo inteiro. Ninguém sairá daqui desiludido e muito menos a duvidar de que a fotografia, câmara escura e clara, é uma inegável dimensão do que melhor pode a arte.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (18):
A Família Humana, exposição no Museu do Neorrealismo até maio de 2022


Mário Beja Santos

O acervo de fotografia internacional no Museu do Neorrealismo já tem muito que se diga. Como escreve o curador desta exposição, Jorge Calado, a coleção “Família Humana” deste museu, conta agora com 375 fotografias de mais de 175 artistas, gente de 25 nacionalidades que fotografaram em 60 países dos 5 continentes. Ele repertoria o nome destes grandes mestres a que não faltam nomes portugueses como Carlos Relvas e Ernesto de Sousa. Devido às limitações de espaço, só é possível mostrar um terço da coleção, haverá periodicamente uma rotação das peças expostas.
A missão subjacente, continua a observar Jorge Calado, é de grande ambição: revelar a universalidade da experiência humana, à semelhança da célebre exposição de 1955 “A Família do Homem”, no Museu de Arte Moderna em Nova Iorque, que deu inclusivamente um belo livrinho, que comprei num alfarrabista que então existia na Calçada do Combro, teria eu uns 18 anos. Como o mundo encolheu, sentimos nesta deambulação fotográfica que estamos cada vez mais próximos uns dos outros, este ágape de fotografia humanista é uma grande angular, e a dita fotografia humanista que teve o seu auge nas décadas de 1930 e 1940 coincidem historicamente com movimentos e sensibilidades neorrealistas. O mesmo curador nos oferece um belo texto na folha que nos é entregue na receção:
“Somos novos e velhas mais os concebidos à espera de nascer. Somos magras e gordos; baixas e altos, morenos, ruivos e louras. A tez pode ser clara, quase branca, amarelada, rosada a virar para o avermelhado, castanha e escura até ao preto. Os olhos, azuis, garços, verdes, castanhos ou quase pretos. O cabelo varia entre o liso e o crespo e encaracolado. Os pelos mudam, e as sardas, também. Formamos todos e todas uma espécie, Homo sapiens, a Família Humana. Os cinco sentidos de comunicação, as emoções, o raciocínio – aquilo a que o povo chama o coração e a razão. O ápice glorioso da evolução”. Vamos entrar na exposição.



Diz o curador que uma exposição fotográfica forma um discurso complexo que cabe ao visitante completar e decifrar e que para facilitar a leitura, a exposição está organizada em sete secções e três núcleos, de acordo com as idades do homem e da mulher, sete como os dias da semana, as cores do arco-íris, as notas da escala musical ou os pecados mortais. Vamos contemplar facetas da religião, inevitavelmente imergir na Lezíria ribatejana, recordar como seria Lisboa durante a II Guerra Mundial. Pela itinerância, tomaremos partido sobre o que se passa pela rua, como se goza o lazer, como o trabalho é exigente e por vezes tão avassalador, como combatemos com as armas na mão. E no fim, aguarda-nos o mesmo fim, o término é igual para todos. E aqui estou, embevecido, foi o casal Roberto Rossellini, um mago do cinema, e Ingrid Bergman, uma senhora dona diva que jamais poderei esquecer. Como associamos as coisas mais estrambóticas do mundo, recordei o dia em que fui rever à Cinemateca Nacional o filme “Um Crime no Expresso do Oriente”, Albert Finney fazia de Poirot. No intervalo encontrei José-Augusto França e contei-lhe que tinha vindo ver aqueles prodigiosos seis minutos em que a Ingrid Bergman conquistou um Óscar de Atriz Secundária e ele respondeu-me que não me ficava atrás, tinha vindo rever a prodigiosa Lauren Bacall. É assim a Família Humana, Rossellini e Bergman com a filharada, pareciam bem felizes.


Aqui prefiro o anonimato, fico alheio se são católicos ou protestantes ou judeus, lembro a alegria de vermos os filhos a crescer, de lhes dar alimento, elas ou eles de perninhas tenras a alimentar-se com o nosso sorriso, é isso que me chega, o talento do fotógrafo de pôr toda a gente em movimento menos esta trindade do amor, isto me enche o coração.


A diva não precisa de apresentações, o que o fotógrafo registou e hoje caminha para a eternidade é um ambiente de bairro típico, o encontro entre a novel fadista e o guitarrista, o encontro entre a voz e as cordas, é um pátio de pedra vetusta, ou um troço de rua, o olhar daquela senhora do fado é o que mais conta, está inspirada, e a postura das mãos realça o que ela vai entoar no desassossego da sua alma naquele bairro antigo.


Foi um dos casais mais célebres da literatura universal, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, o que a fotografia capta é que estão unidos, provavelmente com os mesmos combates, distanciados pelo que se escreve ou lê, o que é de pouca importância, o resto é lenda, se eram solitários e mesmo infiéis um ao outro, legaram-nos obras sublimes, ainda hoje o teatro de Sartre me enche as medidas, seja As Troianas baseadas em Eurípedes, As Mãos Sujas ou As Moscas, dela prefiro o documento da despedida da mãe, mas não enjeito que tenha sido uma peça fulcral para o estudo da mulher, porque foi a ascensão da condição feminina um dos fenómenos determinantes do século XX.


O que o fotógrafo aqui explora não é a meditação de Arthur Miller, o famoso dramaturgo norte-americano, mas a cadeira vazia da superstar que curiosamente filmava argumento seu, Os Inadaptados, a superstar contracenava com um monstro sagrado, Clark Gable, que já preludiava o fim do seu próprio mito, mas há outra leitura possível para a cadeira vazia, tudo na vida do casal Miller/Marilyn acabou mal. A fotografia impressionou-me muito, peço desculpa ao leitor ter captado mal a imagem, escolhi ângulo errado, meti fotografia alheia no peito de Miller, besteira de amador.


Prefiro de novo o anonimato, é a celebração de membros de família que condescendem em sorrir, sabe-se lá em que circunstâncias, a criança não esteve para fazer pose e voltou-nos as costas e aquele menino crescido achou por bem que o tomassem a sério, tem a criança ao colo e aquela enorme mão estendida é manifesto do zelo protetor, e provavelmente afetivo. Uma grande beleza.


Algures, numa daquelas ruas bem estandardizadas num bairro popular de um rincão britânico, um fotógrafo ajeitou a perícia para nos dar a profundidade, uns laivos da identidade e aquela menina quer mostrar que é virtuosa no pino, exibe-se para crescidos e miúdos, o resto é vazio, é a perícia do pino que conta, o resto seguirá, de acordo com a rotina e as circunstâncias.


Quantas e quantas imagens mostram a mulher mortificada, neste caso toda a encenação é dúbia, ou o barco anda em bolandas no mar encapelado e ela pede a benevolência do Senhor ou também se pode dar o caso de que há para ali uma volumosa contenda e ela manifesta posição. É mistério à beira-mar, jamais saberemos se ela é vendedora de peixe ou trabalhava na indústria conserveira ou veio esperar membro da família. Ela ajeita o protesto talvez mesmo a dor, ponto final.


É a marca do trabalho duro no rosto, serão mineiros, será pó de carvão ou sílica, o céu parece ameaçador, o que me faz deter diante da fotografia é a dignidade destes olhares, como se estivessem a dizer “é para que vocês saibam a dureza do que fazemos para que nada vos falte”.


Ribatejo, sabemos o trabalho do forcado, mas fica sempre uma interrogação se ele chora ou limpa o suor, não nos dão mais pormenores sobre a lida, não saberemos se é cansaço ou tristeza, na praça ter-se-á passado algo em que naquele momento o touro não é importante, é o rosto escondido que nos intriga, ele até está vestido a preceito, o traje não andou a rojo, aconteceu algo, quem vê interprete como pode. Não são mais que os outros.


Um artista convidou Cruzeiro Seixas, quase centenário, a tocar em Deus, crucificado num cabide, desde que Marcel Duchamp deu outra vida aos objetos não há artista, mesmo surrealista, que não se sinta tentado a profanar o sagrado. É como se Cruzeiro Seixas pusesse Deus à nossa consideração, só ele pode manietar o gancho do cabide, dá-nos a ilusão de uma oferta personalizada. Aqui me quedei um bom tempo a saudar o fotógrafo e um grande artista que já partiu.

Amílcar Cabral, Dakar, 1969, por Uliano Lucas

Não conhecia esta fotografia de Uliano Lucas, ele terá seguramente querido reter não o líder em si mas o pensador africano, é um olhar que se estende ao infinito, há aquele braço que ajuda a meditar, o espaço é completamente nu, só o construtor de países é que conta.

Agora o leitor que se afoite, a exposição está à sua mercê até ao próximo ano, é uma boa ocasião para ir conhecer esta espantosa coleção de fotografia internacional, de sabor neorrealista mas não só.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22571: Os nossos seres, saberes e lazeres (469): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (10) (Mário Beja Santos)

sábado, 18 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22553: Os nossos seres, saberes e lazeres (468): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (16) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Só muito crescidinho é que passei a visitar este palácio onde é marcante a influência italiana na arquitetura, que passou a ser habitado por D. Luís e a sua família, mais tarde adaptado a museu e biblioteca. Se nas pinturas do teto, na magnificência dos seus soalhos, há sinais evidentes de décadas de decoração anteriores a 1862, é bem claro que coube a Maria Pia de Sabóia o papel de refinar o gosto do espaço habitado pela família real. Tenho tido a sorte de ir vendo ao longo das décadas intervenções de grande qualidade, há cada vez mais espaço recuperado, é um gosto ir ao site do Palácio e de estudar as suas publicações, todas elas de grande qualidade. O que penso que falta para estimular visitas mais frequentes é uma forma de captar a atenção para o espaço da biblioteca e dos jardins, a visita convencional é só aos espaços interiores do palácio, todos ganharíamos se se desse uma possibilidade ao visitante de visitar mais. Agora há que aguardar por novembro, pela inauguração do Museu do Tesouro Real.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (16)

Mário Beja Santos

A partir dos meus 12 anos, sobretudo nos fins de semana ensolarados, a minha mãezinha que Deus tem organizava passeios culturais e era inevitável a visita a museus, igrejas, capelas, havia a descrição das praças, até da Cerca Fernandina. E consigo guardar memória de visita ao Museu Nacional de Arte Antiga em que a Baixela Germain estava bem encardida, os tapetes puídos no Museu de Arte Contemporânea, até a Igreja de São Roque não era credora das cuidadas intervenções que tem hoje. E lembro-me perfeitamente de ela me ter dito que era o cabo dos trabalhos ir visitar o Palácio Nacional da Ajuda, que não estava aberto ao público. Pus mãos à obra, fui ler uma descrição de Norberto Araújo sobre o Palácio Nacional da Ajuda numa edição do então Secretariado de Propaganda Nacional (que teve a sua vitalidade entre meados dos anos 1930 e princípio dos anos 1950, transmudou-se em SNI). O palácio era então museu e biblioteca. O ilustre olisipógrafo refere os antecedentes, um palácio existiu no século XVIII e depois as inúmeras adaptações introduzidas na segunda metade do século XIX, passou a ser uma residência real permanente a partir de 1862. Vestíbulo com 47 estátuas de estilo italiano, fatura de artistas portugueses, centenas de salas e de dependências. O palácio, por essa época, era lugar de algumas receções e cerimónias de grande gala. Ali tinha sido recebido Alberto da Bélgica, acompanhado do príncipe Brabante, o futuro Leopoldo III. Enumera os Salões dos Arqueiros, do Porteiro da Cana, do Dossel, da Espera, do Despacho, da Música, de Mármore, de Sax, os Salões Vermelho, Verde e Azul, a Sala de Jantar, a Sala do Trono, o Salão de D. João V, a Sala do Corpo Diplomático, dos Embaixadores. Conclui dizendo que todas estas divisões guardam numerosos objetos de arte e um rico mobiliário. E seguidamente descreve a importantíssima biblioteca que ainda hoje não é de fácil acesso, mas que é património magnífico. Peguei seguidamente no guia do palácio organizado por Isabel da Silveira Godinho, data de 1988, era ela diretora do monumento nacional. Fala-nos da Real Barraca que antecedeu o projeto arquitetónico interrompido com a ida da família real para o Brasil, diz-nos quais as residências da família real enquanto decorrem os trabalhos do palácio e ficamos a saber que coube a Joaquim Possidónio Narciso da Silva, arquiteto da Casa Real, a decoração e a organização de todos os espaços destinados ao casal D. Luís e D. Maria Pia de Saboia. Mesmo com a chegada do casal continuaram os trabalhos de decoração, a rainha era infatigável, fizeram-se inúmeras encomendas e daí o visitante ser hoje deslumbrado com uma imensidão de obras de arte e rutilantes artes decorativas da segunda metade do século XIX. A rainha Maria Pia ficou sempre a viver no palácio, na companhia do Infante D. Afonso, o rei D. Carlos vivia nas Necessidades usando exclusivamente o Palácio da Ajuda para as cerimónias oficiais. Com o Estado Novo, o palácio foi transformado em museu e só mais tarde é que abriu ao público. Serve este preâmbulo para indicar que ao longo dos últimos anos tenho vindo a apreciar excelentes intervenções, algumas delas obras de mecenato, tetos repintados, substituição de tecidos, restauro de obras. O visitante entra pela Porta dos Arqueiros, segue-se a Sala do Porteiro de Cana e depois a Sala das Tapeçarias Espanholas, antiga Sala de Audiência, aqui se encontram tapeçarias executadas seguindo o desenho de Francisco Goya, oferecidas pela Coroa Espanhola por ocasião do casamento do futuro D. João VI com Carlota Joaquina de Bourbon. A sala tem vindo a sofrer alterações, seguramente que aqui se realizaram algumas receções de pompa, não é por acaso a enorme quantidade de cadeirões.
Surpreendem as sedas, os adamascados, as tapeçarias, há uma sala de passagem com retrato do rei D. Carlos pintado por Malhoa, segue-se a Sala do Despacho, muito provavelmente os salões seguintes têm sido objetos de redecoração, será o caso da Sala de Música, onde se davam concertos de música de câmara, vemos violoncelos e uma harpa, há o retrato de D. João VI a cavalo, vitrinas com peças decorativas das coleções de D. Luís e D. Maria Pia. No centro um piano de cauda. E passa-se para a antiga câmara de dormir de D. Luís, vou comparando as diferenças entre 1888 e a atualidade, o que se pode dizer é que tem havido muita intervenção e muito restauro, porventura muito rigor na colocação do mobiliário e dos objetos, de acordo com a lógica de quem dele usufruiu ao seu tempo.
Percorrem-se mais umas salas, as denominadas Salas Azul, em carvalho, o Jardim de Inverno, a Sala de Sax e a Sala Verde, a Rosa, para ser sincero com o leitor, sei que algumas estão para obras e outras estavam fechadas, assim se chegou à Sala de Jantar da Rainha e depois à Sala de Bilhar, não me lembro de ter visto o Ateliê de Pintura do rei D. Luís, sei que em dado momento entrei num vasto corredor que me levou ao andar superior, aí me aguardava o grande fausto. Antes, porém, estive na capela de D. Maria Pia, tudo em estilo neogótico, tudo muito severo, mas tocante. Não queria deixar de falar do Quarto da Rainha D. Maria Pia, pejado de quadros de membros da sua família, mobiliário riquíssimo, em ébano, a cama com baldaquino, tudo muito ao estilo de Napoleão III, no baldaquino em madeira dourada e esculpida temos as armas da rainha.
A idade já não ajuda a dar o máximo de atenção às salas com motivos chineses, com estilo império, com tapeçarias Gobelins, há sala de receção do corpo diplomático, havia notícia de restauros recentes na Sala do Trono, para ali avancei. Como se pode ver, é uma sala de grandes dimensões, ocupa o espaço que corresponde ao Torreão Sul do palácio. O teto é magnífico, consta que a intenção dos pintores foi exaltar a Majestade, o Rei D. Miguel. A sala é iluminada por um grande lustre em cristal e bronze cinzelado, de 180 velas, não faltam jarrões alemães e chineses, é patente a pompa e circunstância e daqui vou diretamente para a Sala de Banquetes, também imponente pelas suas dimensões e decoração, teto com uma alegoria ao aniversário do nascimento do rei D. João VI, é neste espaço que ainda hoje se dão banquetes de Estado. E creio que o leitor, caso ainda não tenha apanhado a fase dos últimos restauros, fique com a curiosidade acicatada para se ir deslumbrar com estes últimos faustos da monarquia que o sistema republicano não desdenha em determinadas solenidades.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22534: Os nossos seres, saberes e lazeres (467): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (8) (Mário Beja Santos)

sábado, 11 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22534: Os nossos seres, saberes e lazeres (467): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (15) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Depois da Lourinhã e de Sines, andei por aí, o mês de agosto em Lisboa é sempre aprazível, pouco ruidoso e dando facilidades a participar em eventos sem o risco das enchentes. Lá fui para a Ajuda, queria ver as transformações operadas no fechamento do palácio e ver ainda a distância onde vai ficar o Museu do Tesouro Real. E daqui parti para esta riquíssima exposição que tem o dom de bem comunicar o que foi o reinado da Senhora Dona Maria da Glória, fadada para ser uma princesa do Brasil, o destino trocou-lhe as voltas, D. Pedro reivindicou o trono de Portugal, seguiu-se uma terrível guerra civil, D.ª Maria II ascendeu ao trono e bem confrontada foi com ultimatos, ameaças, revoltas, levantamentos, período bem acidentado que culminou com o fim do Cabralismo e o advento da Regeneração. Todas estas peripécias aqui aparecem plasmadas e bem retratados os atores principais, desvelam-se objetos e documentos, o sucesso da exposição é permitir ao visitante captar em grande angular o reinado desta mulher que bem gostava de ser dona de casa e estar muito tempo ao pé dos filhos. Uma exposição que vale ouro, até pelo ouro que vamos ver, riquezas é coisa que ali não falta...

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (15)

Mário Beja Santos

Há muito que sentia a curiosidade de “acompanhar mais de perto” o reinado da Senhora Dona Maria da Glória, sobre a qual há a dita de profusos trabalhos de historiografia. Saber algo mais, e sequenciado, através da imagem, dos documentos e dos objetos desta princesa nascida no Brasil e catapultada para o trono de Portugal. Vida atribulada, o pai imperador do Brasil e a fazer dela a rainha do trono dos avós. Casa com um príncipe alemão em plena mocidade, logo viúva, e com a mão destinada ao tio, El-Rei D. Miguel, o das touradas e o filho mais querido de D.ª Carlota Joaquina, rei absolutista, que repudiou a mão da sobrinha e se envolveu numa tremenda guerra civil que terminou na Convenção de Évoramonte, e partiu para o exílio. A escolha de novo marido recaiu em novo mancebo alemão, de nome Fernando, vindo da família Saxe-Coburgo-Gota, do ramo católico, ter-se-ão amado profundamente, tiveram uma filharada.
Ora a exposição patente na Galeria do Rei D. Luís, no Palácio Nacional da Ajuda, até fins deste mês, é um verdadeiro acontecimento cultural, um evento museográfico e museológico de grande qualidade, recomenda-se que não se perca a oportunidade de acompanhar o itinerário desta princesa do Brasil até ao falecimento quando deu à luz o seu 11º filho. O cartaz do evento é belo, vejam-se as imagens da Coroa, do estandarte real e o quadro do príncipe-consorte, a quem tanto o país ficou a dever, alcandorou os padrões culturais, preservou património, concedeu bolsas, devemos-lhe o Palácio Nacional da Pena e muitíssimo mais.


A escolha de objetos ajuda-nos a compreender certos acontecimentos históricos, será o caso destas porcelanas comemorativas de viagens de D. Miguel. A jovem rainha e o seu marido vão ser de imediato confrontados com acesas disputas entre as linhas liberais, cartistas e vintistas, introduzem-se reformas de vulto, lembremos Mouzinho da Silveira e Passos Manuel, é uma linha de atuações ou promessas de tirar o país da letargia do Antigo Regime, do clericalismo fanático, lançar bases de progresso na indústria, no comércio e na agricultura. Irão confrontar-se líderes de diferentes matizes, Saldanha, Costa Cabral, Palmela, aparecem retratos expressivos na exposição, coincidem com todo este tremendo e avassalador período de revoltas como a da Maria da Fonte, levantamentos como a Patuleia ou a Setembrada. Na Câmara dos Pares os adversários insultavam-se, de todos eles Costa Cabral foi o bombo de festa, o mínimo que lhe chamavam era ladrão, era constantemente desafiado a explicar como da pobreza disparara para a vida opulenta, até uma boa parte do Convento de Cristo comprou, para assinalar que era Conde e depois Marquês de Tomar. No tomo do regime constitucional, D.ª Maria II e o futuro rei D. Fernando II procuravam aplacar as ondas, mas todo este período turbulento se prolongará até à Regeneração e ao Fontismo, já com novas lideranças régias
Esta senhora, a infanta Isabel Maria, não aparece por acaso. No meio das convulsões, das insubordinações de D. Miguel, do seu exílio, do seu regresso e aclamação como rei absolutista, esta infanta teve um especial papel moderador, procurou dignificar pela regência o que devia ser o real cumprimento pela exemplaridade, buscou consensos, e daí a bonita imagem que deixou, mereceu por direito próprio ter aparecido nesta exposição.
Aqui estão alguns dos protagonistas, D. Miguel, Saldanha, Palmela ou Costa Cabral, por exemplo, têm todo o direito a estar no palco, para o melhor ou para o pior mas em parte do reinado desta monarca que adorava a vida familiar, educar os filhos e andar com aquela ranchada entre Lisboa e Sintra, vendo o desvelo com que o marido preparava o príncipe real para futuras funções, como veio a suceder. D. Pedro V foi um monarca profundamente dedicado à busca da modernidade do país, uma tifoide levou-o precocemente, deixando uma admiração sem limites.
Uma exposição que cumpra literalmente o que promete tem sucesso assegurado. É o caso desta, veja-se aqui a jovem princesa, o seu pai imperador e a sua madrasta, quem diria as voltas do destino, os vendavais que iria encontrar como monarca constitucional; a leitura permanente que a exposição permite da vida do seu reinado e os símbolos artísticos que falam desta realeza, de uma rainha que aceitou o peso das suas funções sem nunca perder o gosto de acompanhar a educação dos filhos e viver todos os momentos disponíveis na companhia do seu amado marido. E parto desta exposição bem agradado, agora vou visitar o palácio onde viveu um dos seus filhos, D. Luís, depois os netos e os bisnetos, aqui findou a monarquia, a 3 de outubro de 1910 houve um jantar precipitado em honra do presidente do Brasil, D. Manuel partiu para Sintra e depois para Mafra, e da Ericeira para o exílio.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22511: Os nossos seres, saberes e lazeres (466): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (7) (Mário Beja Santos)