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quinta-feira, 7 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10009: Memória dos lugares (185): Saiba V. Excia que está na Ponta do Inglês!, disse o Alf Mil João Mata para o Brig Spínola (António Vaz, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)


VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > Monte Real > Palace Hotel > 21 de Abril de 2012> O ex-alf mil João Mata e o ex-cap mil António Vaz, da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69). O João Guerra da Mata foi o último comandante do destacamento da Ponta do Inglês, um dos míticos topónimos da guerra da Guiné...

Foto: © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados



1. Mensagem do nosso camarada António Vaz (ex-Cap Mil da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69), com data de 4 do corrente:

- Não tenho a certeza de ter aterrado no sítio certo… - disse, ao aterrar, o Brigadeiro Spínola. 
- Saiba V. Exa. que está na Ponta do Inglês - respondeu o Alf Mil João Mata que usava na ocasião calções, barba, tronco nu e uma extraordinária boina de cor verde alface com uma estrela de metal. 


A Ponta do Inglês

A Cart 1746 saiu de Bissorã a 7 de Janeiro de 1968,  seguindo de Bissau para o Xime via Bambadinca,  a bordo da barcaça Bor. Um Grupo de combate seguiu directamente para a Ponta do Inglês onde rendeu o pessoal da CCAÇ 1550.

Este Pelotão da Cart 1746 era comandado pelo Alf Mil Gilberto Madail que lá permaneceu cerca de 4 meses sendo substituído por outro comandado pelo Alf Mil João Guerra da Mata que lá esteve até Outubro data em que este Destacamento foi abandonado.

A Ponta do Inglês foi ocupada e os abrigos construídos em Dezembro de 1964 na Op Farol pela CCAÇ 508,  comandada pelo malogrado Capitão Torres de Meireles, morto em combate na Ponta Varela.

Este destacamento teve sempre uma triste sina porque não tinha meios senão para ESTAR. A dispersão de meios que encontramos no L1 a isso conduzia. Nunca serviu de nada a não ser castigar, sem culpa formada, as guarnições que para lá eram enviadas.

Não controlavam nada na foz do Corubal e nada podiam fazer em conjunto com o pessoal do Xime para manter aberto o itinerário Ponta do Inglês/Xime porque a Companhia do Xime ocupava também Samba Silate, Taibatá, Demba Taco e Galomaro. Assim o seu isolamento era, foi, praticamente total.

Os géneros só a Marinha os podia levar e o mesmo se pode dizer das munições, correio, tabaco, combustível, etc.

A chegada dos abastecimentos era motivo de alegria geral como se pode ver nas imagens que junto.


Por muito que o pessoal controlasse os gastos, a falta de quase tudo fazia-se sentir. Bem podia o Comando da Companhia pedir insistentemente pela vias normais a satisfação dos pedidos que não conseguíamos nada. Cheguei a tentar meter uma cunha directamente na Marinha, mas as prioridades eram outras. Como alguns géneros recebidos da Companhia que lá tínhamos rendido estavam deteriorados, a situação ainda foi pior. Esta situação originou, a pedido do Alf Madail, o Fado da Fome,  que o Manuel Moreira ilustrou nas quadras populares da sua autoria.

O Destacamento da Ponta do Inglês era a pequena distância da margem do Rio Corubal e tinha a forma quadrangular. A guarnição era formada por 1 GComb + 1 Esq/Pel Mort 1192 e pelo Pel Mil 105.


O destacamento era formado por 4 abrigos principais nos vértices para o pessoal, para a mecânica e rádio. O combustível e as munições ficavam na parte mais perto do Corubal; na parte central sob uma árvore frondosa (poilão ?) um abrigo mais pequeno onde ficava o Alferes, o enfermeiro e logo ao lado o forno do pão e uma cozinha, tudo muito rudimentar. Tinha o espaldão do Morteiro na parte central. Não tinha, ao contrário do Xime, paliçada e apenas duas fiadas de arame farpado.


Os abrigos eram de troncos de palmeira com as indispensáveis chapas de bidão, terra e não eram enterrados. Uma saída na direcção do rio e outra no lado oposto para as idas à água e à lenha. No destacamento havia um Unimog para estas tarefas.

A água era tirada a balde de um poço existente a cerca de 700 metros do arame farpado que também era utilizado pela população, totalmente controlada pelo IN, e pelo próprio IN, sem nunca este ter aproveitado as nossas idas à água e à lenha para nos incomodar e vice-versa

Diz o M. Moreira: 

O poço era um só,
Estava longe do abrigo,
Dava a água para nós
E também p’ro Inimigo.

Nunca percebi por que razão se fez o Destacamento,  afastado do único poço com água potável... Uma proposta de sã convivência? O caso é que resultou.

O que se passou nos tempos infindáveis em que o gerador esteve avariado, assunto já abordado neste Blogue, por quem o foi substituir, depois de aturados pedidos a Bissau sem que se resolvesse em tempo útil,  é inenarrável. 

As garrafas de cerveja penduradas no arame farpado, cheias de combustível,  tinham que ser continuamente acesas nas noites de chuva forte ou de vento. O risco que a “malta” corria nessas circunstâncias, sendo a única coisa iluminada na escuridão, tornando-se um alvo fácil era enorme, embora, que me lembre,  nunca tenha havido flagelações nessas alturas.


Flagelações houve muito poucas - seis - sem grandes consequências, a água do poço nunca foi envenenada e mesmo sabendo que a resistência oferecida pelas NT, aquando dos ataques, fosse de nutrido fogo mantendo o IN em respeito, penso que este nunca empenhou efectivos suficientes e capazes para provocar danos consideráveis. No fundo o IN sabia que enquanto aquele pessoal ali estivesse enquistado, a tropa do Xime, com a dispersão acima referida, estaria muito menos apta a fazer operações complicadas.

As relações entre o pessoal podem considerar-se muito boas,  não havendo atitudes condenáveis, que até seriam possíveis num ambiente concentracionário como aquele. A convivência com a Milícia logo de início se mostrou muito favorável porque, abastecendo-se de géneros junto das NT, passaram a pagar muito menos do que anteriormente porque os preços eram os mesmos que nos eram debitados sem alcavalas de qualquer espécie. Não me recordo da existência de familiares a viverem com o pessoal africano, mas segundo o testemunho do Tabanqueiro Manuel Moreira, uma mulher deu à luz na época em que lá esteve e foi o 1.º Cabo Enf Cordeiro Rodrigues - o Palmela - ajudado por ele que assistiram ao parto.

Com a falta de géneros tudo se aproveitava incluindo a caça, que se resumia a tiro de rajada para bandos de aves grandes, pernaltas (não sabemos quais) e se caiam nas redondezas eram o pitéu desse dia. As noites eram passadas como se calcula, com as sentinelas nos quatro cantos do quadrado e a malta a ver e a ouvir os rebentamentos que vinham da direcção de Jabadá, de Tite, Porto Gole e do Xime, claro. Pode ser sinistro mas não é difícil pensar que muitos diriam: 
- Antes eles do que nós.

Como de costume, depois das tarefas de rotina, quando o calor era menos intenso seguia-se o eterno futebol com bolas dadas pelo MNF, de péssima qualidade, substituídas pelas tradicionais trapeiras. Num dos reabastecimentos que se fizeram conseguimos levar para alem de gado mais miúdo algumas vacas, que como sabemos, na Guiné são de pequeno porte. Como o futebol também farta,  houve alguém que sugeriu tourear uma das vacas que ainda estava viva para tardios bifes.

Foi uma festa com as peripécias inerentes à Festa Brava e todos os dias “a las cinco en punto de la tarde” soltava-se a vaca e era um corrupio de faenas com cornadas… incompetentes. O tempo foi passando e já só restava um dos pobres animais para animar os fins da tarde. 

Como o reabastecimento nunca mais chegava e o atum com arroz já não se podia ver e muito menos comer o Alf Mata teve de decidir entre o partido pró-tourada e o partido pró-bife. Não foi fácil, mas acabou por vencer este último. Convocou-se o Soldado Condutor J. Viveiro Cabeceiras que também era padeiro, magarefe e pau para toda a obra, que procedeu à matança. Começando a esquartejar a rês,  vai ter com o Alferes e informa-o que a vaca estava tísica, pulmões quase desfeitos. 
- Come-se a vaca ou não se come a vaca

Nova discussão e resolveu-se não aproveitar as vísceras e apenas o músculo. Assim se comeu carne assada sem problema de maior. Quando esta acabou voltou-se ao atum aos enlatados,  tudo coisas que já escasseavam mas o pessoal andava triste com a falta dos fins de tarde taurinos. Então o Cabeceiras foi ter com o Alferes e disse-lhe:
- Meu Alferes a malta anda tão triste que se quiser e autorizar eu faço de vaca pois guardei os CORNOS.

E assim de conseguiram mais uns fins de tarde…

Felizmente com a redistribuição das Forças no terreno, iniciada pelo Brig Spínola, foi a Ponta do Inglês evacuada sem problemas em 7/8 de Outubro de 1968, pondo-se fim ao disparate da sua existência. 

Há uma enorme falta de informação (para mim) sobre a evacuação da Ponta do Inglês; nem na história do BART 1904, nem na da CART 1746, apenas é mencionada a data em que se efectuou. Tenho ideia que,  para além do pelotão da 1746, Secção  de Morteiros e Milícia,  estiveram na Ponta do Inglês pessoal de outras unidades a montar segurança (mas quais?) enquanto o pessoal carregava a barcaça Bor de todo o material e bagagem da rapaziada. Estivemos nas imediações da Ponta Varela a assegurar a passagem da Bor a caminho de Bambadinca. Foi uma operação, para mim sem nome, que envolveu mais meios que não recordo.

Segundo informação de oficiais do BART 1904, o Brig Spínola com o respectivo séquito aterrou na Ponta do Inglês, já ia adiantado o carregamento da Bor, mandando evacuar a segurança, depois de se ter armadilhado o que estava determinado, e só depois reparou que já não havia segurança nenhuma e que ele e os outros Oficiais que o acompanhavam tinham ficado, como hei-de dizer, abandonados na margem do Corubal com o pessoal do ou dos helis a chamá-los quando se aperceberam da situação.

O pelotão da Cart 1746 chegou ao Xime sem problemas e todos tivemos uma enorme alegria por voltarmos a estar juntos. ....E na verdade o que vos doi... É que não queremos ser heróis (FAUSTO).

António Vaz, ex Cap Mil

PS - Esta estória da Ponta do Inglês só foi possível com as recordações do Manuel Moreira (releiam o Fado da Fome), do João Guerra da Mata,  o ex-Alferes – último comandante daquele destacamento, e de Vera Vaz nas interpretações desenhadas.
_________

Nota do editor:

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2470: Diorama de Guileje (5): Geradores na Guiné (José Nunes)


Foto: Nuno Rubim (2007).


1. Em 13 de Janeiro de 2008, José Nunes (1) escreveu:

Estive na Guiné de 15 de Janeiro de 1968, 15 Janeiro de 1970.

Fiz assistências e electrificações em aquartelamentos, Porto Gole, Enxalé, Ponta do Inglés, Bolama, Bissum-Naga.

Acerca dos manuais que o Camarada Coronel precisa, deve ser difícil pois nunca os vi em 2 anos e um dia de Comissão, nem na escola Militar tivemos acesso a eles.

Os grupos geradores mais utilizados eram: 500/250KVA, 150, 50/47,5 KVA (2).

No QG, na Central nova, havia dois Dorman de 250 KVA, com 6 cilindros, refrigeração a água por radiador e, um grupo gerador de emergência Lister de 75 KVA.

Na Central velha, existia operacional um Deutz de 12 cilindros em V, refrigerado a ar e um Lister de 50 KVA.

Na Engenharia e no Hospital Militar estavam os grupos geradores maiores.

No mato, normalmente, encontravam-se geradores com potências de 50, 20 e 7,5 KVA.

As marcas Stanford e Frapil para pequenas potências até 20KVA.
As motorizações eram diversas: Dorman, Deutez, Lister e EFI produção nacional.

Em Porto Gole havia um Lister de 47,5/50 KVA, na Ponta do Inglês havia um Gerador de 20KVA que lá fui levar com um operador de Motores Fixos.

Ajudei a transferirr o grupo gerador, na lama, da LDP para cima do Unimog, a descarregar no local e a fazer ligações de potência.

Por azar, o meu camarada inverteu a polarização na excitação e o gerador ficou inoperacional.
Tive de me pirar porque fui lá desenfiado só para ajudar e para ver se o Operador vinha no mesmo dia para Bissau, mas ficaram sem iluminação e o Engenheiro ficou lá até ao próximo transporte, regressando eu a Porto Gole onde levei uma valente piçada.

Ponta do Inglês, iluminação? A bazucas cheias de petróleo penduradas no arame farpado.

A iluminação nos aquartelamentos era feito com cibes a fazer de postes, linhas de cobre nú de 2,5 mm2, circuito fechado em anel, lâmpadas Philips 150 Watts spot.
Os quadros eléctricos eram em baquelite, equipados com fusíveis ou disjuntores quando os havia.

Não havia uniformização nos geradores, tal como muita coisa era comprada ao sabor de quem dava melhor percentagem, mas a maioria dos aquartelamentos tinha geradores de 7,5 ou 20 KVA.

Até breve, com amizade.
Matenhas para toda a Tabanca.
____________________

Notas dos editores:

(1) - Vd. post de 22 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2469: Tabanca Grande (55): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec Electricista de Centrais (BENG 447, 1968/70)

(2) - Vd. post de 11 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2432: Diorama de Guileje (1): Geradores: Grupos Diesel Lister ou Frapil: fotos ou manuais, precisa-se (Nuno Rubim / Victor Condeço)

domingo, 13 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2436: Diorama de Guileje (2): a casota do gerador Lister... Agora só faltam os torpedos bengalórios (Nuno Rubim)

Diorama de Guiledje > 2008 > A casota do gerador Lister: miniatura, da autoria de Nuno Rubim.

Fotos: © Nuno Rubim (2008). Direitos reservados 


 1. Mensagem do Nuno Rubim, com data de 11 de Janeiro: 

 Caro Luís: Nem de propósito ! Eu acabar o modelo da casa do gerador de Guileje e ir ao blogue ver se encontrava algo de novo sobre os torpedos bangalore (1). E dou de caras com o poste sobre o motor Lister ! (2) Tirei logo duas fotos ! Pois o Vítor Condeço foi de grande ajuda. E aqui vai o se pôde fazer. 

A casota do gerador (ainda sem telhado, que era em chapa de zinco ondulada), com o seu grupo Lister, dois bidões com as cores indicadas pelo Condeço (3) e dois jerricãs. Claro que no Diorama isso será dificilmente visível, mas que me deu um grande gozo fazê-la, lá isso deu ... E se eu tivesse a vista e as mãos de há vinte ou trinta anos ... 

 Um abraço, Nuno Rubim 

  2. Comentário de L.G.: 

 Nuno, a verdade é que ninguém sabe o que eram esses tais torpedos bengalórios, a que se refere o Idálio Reis... Alguém sabe ? Eu confesso a minha ignorância, mas na Wikipédia, na versão inglesa, encontrei uma definição, além de uma imagem (espero que isto dê uma ajudinha). Já agora, acrescentarei que em português, no Google, só encontrei duas referências ao termo "torpedos bengalórios" - uma das quais remetendo para o nosso blogue (1) - e cerca de 20 mil ao termo "bangalore torpedo"... Agora percebo que fizesse sentido o PAIGC usar estes engenhos explosivos para cortar o arame farpado ou abrir brechas nos nossos campos de minas... 

  "A Bangalore torpedo is an explosive charge placed on the end of a long, extendable, tube. It is used by combat engineers to clear obstacles that would otherwise require them to approach directly, possibly under fire. It is sometimes colloquially referred to as a Bangalore mine, bangers or simply a Bangalore. It has been estimated that the modern Bangalore torpedo is effective for clearing a path through wire and mines up to 15 metres long and 1 metre wide". 

 É descrita também a sua origem histórica e as suas primeiras utilizações no teatro de operações: 

  (...) "The Bangalore torpedo was first devised by Captain McClintock, of the British Army Bengal, Bombay and Madras Sappers and Miners at Bangalore India, in 1912. He invented it as a means of exploding booby traps and barricades left over from the Boer and Russo-Japanese Wars. The Bangalore torpedo would be exploded over a mine without the sapper having to approach closer than about three metres (ten feet). "(...) By the time of World War I the Bangalore torpedo was primarily used for clearing barbed wire before an attack. It could be used while under fire, from a protected position in a trench. "The torpedo was standardized to consist of a number of externally identical 1.5 metre (five foot) lengths of threaded pipe, one of which contained the explosive charge. The pipes would be screwed together using connecting sleeves to make a longer pipe of the required length, and a smooth nose cone would be screwed on the end to prevent snagging on the ground. It would then be pushed forward from a protected position and detonated, to clear a 1.5 metre (five foot) wide hole through barbed wire " (...).

Israel > Museu Batey ha-Osef > Um torpedo bengalório...

Fonte: Wikipedia (2008) (imagem do domínio público, copyleft)

_______________ 

 Notas de L.G.: 


 (...) Assunto - Torpedos bengalórios (...) "Dos 372 ataques/flagelações que Gandembel sofreu, o maior foi a 15 de Julho (de 1968) e, com consequências mais desastrosas, bem diferenciado dos 2 que tiveram lugar na 1ª quinzena de Setembro. É que quando se quer quantificar o arsenal que o IN fez utilizar, somente lhe posso reconhecer que foi variado e imenso, ter a sensação do tempo dispendido, avaliar o tipo de armamento posto nesse teatro e tentar reconhecer os resultados. Fui incapaz de reconhecer quanto armamento ou efectivos se cercaram de Gandembel. "A utilização dos 'torpedos bengalórios' fez-se incidir muito em especial em 15 de Julho, em que se tornou bem visível que houve destruição do arame farpado em frente ao paiol" (...). 


 (3) Vd. postes de: 


sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2432: Diorama de Guileje (1): Geradores: Grupos Diesel Lister ou Frapil: fotos ou manuais, precisa-se (Nuno Rubim / Victor Condeço)


Um gerador de marca Lister, parecido com o que deveria existir em Guileje. Imgem retirada da Net: Nuno Rubim (2007). 

  
1. Mais um pedido, urgentíssimo, do Nuno Rubim com data de 3 do corrente, e que já circulou pela Tabanca Grande. Devido ao ruído de fundo, o pessoal da caserna não ligou patavina ao nosso coronel... No tempo da outra senhora, na Metrópole, isto piava mais fino... Houve uma honrosa excepção, que eu saiba: o Victor Condeço , ex-Fur Mil Mecânico de Armamento, CCS / BART 1913 ( Catió, 1967/69)... 

Desta, como da outra vez , quando pediu informações sobre as cores dos bidões de combustíveis e lubrificantes (*)... Bem hajas, Victor! 

 Pessoal da ferrugem, pessoal do serviço de material, camaradas: como nos bons velhos tempos, na Guiné, na nossa Tabanca Grande, vamos lá desenrascar o nosso homem... É por uma boa causa: O diorama de Guiledje... 

 Hoje, se eu voltasse à guerra, à nossa guerra (cruzes canhoto!), eu se calhar daria muito mais importância, mais valor, aos gajos da ferrugem, aos mecânicos auto, aos tipos do serviço de material, das nossas unidades, etc. que eram vistos pelos operacionais, com alguma condescendência ou até sobranceiria... Afinal, tanto na guerra como na paz todos somos úteis e importantes!... 

Nunca imaginei que (ou nunca me perguntei se) o gerador, em Bambadinca, podia bifar; nem nunca me preocupei se havia gasolina, gasóleo ou petróleo nos bidões (a não ser quando andava no mato, ou nas tabancas em auto-defesa, e sonhava com o meu uisquinho com 2 pedrinhas de gelo e água de Perrier)... Ou se tínhamos viaturas, em bom estado de conservação e de segurança, para fazermos, com sucesso, as nossas colunas logísticas e levar a bianda aos nossos camaradas de Mansambo, Xitole, Saltinho... 

 Hoje sei que, enquanto uns faziam a guerra, havia outros que se preocupavam com a logística, o material e até com o nosso bem-estar e conforto... Ontem como hoje... Confesso que o único mecânico de armamento que conheci na tropa foi... o nosso Victor Condeço. Ainda por cima, conhecimento virtual, já que ainda não fizémos o teste do quebra-costelas, como diria o nosso Paulo Raposo, o Almansor de Montemor-O-Novo, de quem já tenho saudades... (LG) 

 Caro Luís:

  Quando oportuno mais uma pergunta aos Camaradas do blogue. De uma relação existente em Guileje apurei a existência de : 

- Atrelado 1 Ton (Estação de serviço móvel ); 
- Motor diesel marca Lister com alternador Frapil 20 KVA;
- Motor diesel marca Lister com alternador Brush 1375 KVA ;

 Julgo que este tipo de material estaria distribuído a outras unidades da Guiné (aliás lembro-me de haver em Mansabá um gerador de um destes dois tipos, 1965). O que eu precisava: fotos ou eventualmente instruções ou manuais ilustrados destes equipamentos. 

 Obrigado.  Um abraço,   Nuno Rubim 

2. Resposta do Victor Condeço, no dia 5 de Janeiro: 

 Meu caro camarada Nuno, 

 Depois de várias pesquisas na Net e consulta ao meu camarada Alf Mil do Serviço de Material, que era responsável pela manutenção dos geradores de Catió (1967/1969), consegui pouco, apenas o que a seguir transcrevo da resposta recebida e de onde se depreende que o Grupo de 1375 KVA dificilmente terá existido no Guileje (terá havido confusão com os de 7,5 KVA ou com os de 47,5 KVA): 

"Infelizmente não posso ajudar grande coisa, pois não disponho de fotos nem de manuais, na minha posse. 

 "Em Catió, no quartel tínhamos 2 excelentes Grupos Diesel LISTER, refrigerados a ar, de 47,5 KVA – isto é seguro. Tenho quase a certeza de que os alternadores eram FRAPIL, mas a minha lembrança aqui já é menos segura. 

 "Estes Grupos de 47,5 KVA eram usados principalmente em sedes de batalhão, de certa forma pela sua potência e excelente qualidade eram ao tempo um luxo, e ainda para mais com reserva de 100%. 

 "Nas companhias mais pobrezinhas (Cachil, Ganjola) , fundamentalmente para fazer a iluminação da vedação, usavam-se uns Grupos de fabrico nacional – EFI, com alternador FRAPIL, penso que com uma potência de 7,5 KVA. 

 "Nas companhias mais importantes (Cufar, Bedanda), usavam-se os Grupos LISTER/FRAPIL de 20 KVA. 

 "Os Grupos referidos de 1375 KVA, ou seja 1 MW, isso já é outra fruta. É equipamento pesado de potência suficiente para alimentar uma pequena cidadela africana. Penso que seria equipamento para uma central civil de uma cidadela de alguma importância. 

 "Sendo a LISTER uma marca de referência no campo dos Grupos Diesel, e, estando estes tão difundidos em África, será que não conseguem arranjar localmente um manual?! O aspecto externo destes equipamentos não mudou muito."

Nuno, das minhas pesquisas na Net encontrei este site, EAGLE POWER LTD - Used and New Diesel Generators: as fotos aqui mostradas são o que de mais parecido encontrei, assemelham-se muito com os grupos existentes em Catió, embora o gerador fosse menor e a cor original era um verde, ligeiramente mais claro. Desculpa se não ajudei e te fiz perder tempo. 

 Um abraço e bom trabalho Victor Condeço 

3. Resposta do Nuno Rubim: 

 Caro Camarada Condeço: Perder tempo ???... Ganhar é que foi, pois estamos sempre a aprender qualquer coisa ! A ajuda foi importante pois, a partir da informação do seu camarada do Serviço de Material (a quem peço que agradeça em meu nome), encontrei na Net uma foto de um grupo que me parece muito semelhante ao que havia em Guileje (vd. foto acima) e que já me vai permitir fazer uma miniatura. 

 O que me envia, parece ser coisa mais moderna, mas muito obrigado pela sua colaboração. 

 Um abraço Nuno Rubim

 ____________ 

 Nota dos editores: 

 (*) Vd. postes de: 


quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "Ai tens a Missirá pobrezinha em que eu apareço a dar aulas aos milícias, junto do armazém de géneros, duas vezes volatilizado" (BS).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. A chegada de um helicóptero, em geral vindo de Bissau, a um destcamento como Missirá, Fá, Nhabijões ou Rio Udunduma, era sempre interpretado pelos respectivos comandantes (alfres ou furriéis milicianos), como "lá vem f... ou canelada". Neste episódio das memórias do nosso camarada Mário Beja Santos, conta-se a visita (de surpresa) do Homem Grande de Bissau, ao destacamento de Missirá, acvompanhado do seu séquito de oficiais (incluindo o tenente-coronel Hélio Felgas, comandante do Agrupamento de Bafatá, que eu descobri há dias que ainda é vivo, com 86 anos, embora doente e acamado: O blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné deseja-lhe as melhoras e agradece à esposa, a Sra. Dona Maria Fernanda Felgas, a gentileza com que atendeu, pelo telefone, o seu editor). (LG)

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Mensagem de 4 de Janeiro de 2007:

Caro Luís, agradeço-te do coração teres-me enviado a sequência de todos os episódios até agora publicados. Se me permites sugestões para a respectiva ilustração, dou-te as seguintes: na ausência de uma foto ao lado do Caco Baldé, escolhe uma dele à tua vontade; tens aí a Missirá pobrezinha em que eu apareço a dar aulas aos milícias, junto do armazém de géneros, duas vezes volatilizado; e envio-te pelo correio duas magníficas capas de livros: O Barão de Branquinho da Fonseca, com ilustração por João da Câmara Leme, e O Caso das Garras de Veludo, por Erle Stanley Gardner, com ilustração do Cândido da Costa Pinto. Recebe um grande obrigado por tudo deste amigo que tanto te admira, Mário.


Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em :


A primeira visita de Spínola a Missirá

por Beja Santos

Este ano de 1969 nasceu com as turbulências da guerra, já se fogueou no rio Gambiel e junto ao Geba, enquanto apanhávamos uma vaca, estivemos à beira de um reencontro com gente de Madina. Foi aqui que aprendemos que um espirro pode deitar abaixo 5 horas de paciência e a promessa de uma captura exemplar.

Em Cancumba, a cortar cibes

Os planos para a paz também são grandes: com os furriéis Casanova e Pires estabelecemos um plano da reconstrução de dois abrigos para substituir defesas completamente podres que não aguentaram um simples sopro de morteiro. Quem trabalha nos abrigos não vai a Mato de Cão. E é assim que, naquela manhã, saímos pelas 5 horas a caminho do palmeiral de Cancumba para cortar cibes, levando motosserra, bons machados e trazendo com os guinchos dos Unimog o bendito lenho da nossa segurança.

Trata-se de um dia muito claro, não há nuvens, trabalha-se afanosamente e com resultados: dá gosto ver retalhados os troncos de palmeira, transformados em ripas, ouvir o ruído do guincho a raspar pela picada, transportando-os numa nuvem de pó. Aí pela 1 h da tarde pedi aos nossos cozinheiros, Quebá Sissé e Umaru Baldé, que fossem para a cozinha e preparassem um atum com batata cozida, recorrendo à mão-de-obra juvenil para o descasque da batata. Teria que sair para Mato de Cão pelas 16 horas, levando soldados que presentemente trabalhavam no arame farpado.


O homem grande de Bissau

Súbito, ouve-se um murmúrio de rotores que se intensifica e vemos dois pontos a avançar para nós: são helicópteros que começam a dançar à volta de Missirá até pousar na ampla clareira junto à porta de armas. Ainda estão a emitir os suspiros do repouso, quando nos pomos a caminho. O Setúbal e o Vitória regressam afogueados com os Unimog:
- Meu alferes, é o homem grande de Bissau e mais cinco oficiais!

Subimos e junto da ilustre comitiva, onde identifico o tenente-coronel Hélio Felgas e o ajudante de campo do comandante-chefe, perfilo-me face ao Brigadeiro Spínola. Este traja a farda nº2, luvas e pingalim e iniciamos um diálogo que vou procurar reconstituir.
- Porque é que anda vestido desta maneira? Tem aí homens que parece que vieram de um circo. Quem comanda deve dar o exemplo.
- Meu Comandante, quando partimos para patrulhas e operações procuro ser exigente mas nestes trabalhos concedo todas as facilidades. Acho melhor que todos se sintam bem pois Missirá é a nossa casa.
- Não teve ainda tempo para pôr mais ordem e segurança neste quartel? Acha aceitável ter tudo misturado, tropa e população?
- Meu Comandante, temos progressivamente procurado melhorar a defesa e esta madeira toda é para novos abrigos e para casas que estamos a reconstruir depois do incêndio...
- Não, estou a falar desta misturada de abrigos junto das moranças, vejo sujidade, cabaças, comida da população. Um quartel não é isto!
- Meu Comandante, chegou população civil para as tarefas agrícolas, partiram ao amanhecer, não é fácil negociar a arrumação de tudo.
- Tem plano defensivo que eu possa ver?
- Escrito, não. O régulo deu instruções à sua população, toda a gente sabe para que abrigos deve ir. Toda a minha tropa sabe em que abrigos deve combater, como se posicionar.
- Devia estar escrito. Para onde vamos para eu ver o mapa desta região?

E avançámos pela parada, o comandante-chefe fazia reparos para o estado degradado do balneário, o ar desconjuntado das edificações. Como nunca foi meu hábito invocar heranças, limitei-me a dar conta das benfeitorias introduzidas. Frente à messe estacou e não escondeu a sua ira:
- Cascas de batatas, aqui? Você não tem ninguém que responda pela limpeza do quartel?
- Meu Comandante, vivemos um período de emergência, tenho muita gente doente, os cozinheiros também trabalham nos arranjos do quartel, há menos de 1 hora que estão a cozinhar para quem está arranchado. Isto não tem importância nenhuma, daqui a pouco tudo está limpo.

Entramos na messe onde a mesa está posta, com batatas a fumegar nas travessas e uma lata de atum aberta, mais uns ovos cozidos. Abri a carta do Cuor e procurei sintetizar a situação.
- Ao menos, mantenha a mentalidade ofensiva. É por não sair do quartel que o inimigo vai ganhando terreno. Mato de Cão é indispensável. Vou procurar alguns reforços. Que armamento tem?
- Muito antigo. Recebi há pouco um morteiro 81. Sou eu que faço fogo com ele.

Fomos ver o abrigo, bem centrado na parada, a cerca de 30 metros do monumento da unidade, onde se iça a bandeira portuguesa.
- Oiça, o morteiro não tem a alça regulada. Como é que faz fogo?
- Meu Comandante, não me passa pela cabeça estar a regular o fogo a não ser a olho. Tenho dois ajudantes com braçadeiras, vejo as saídas do fogo inimigo e procuro responder.

Vejo um riso escarninho, como se eu tivesse dito uma baboseira. Na parada, olha para o chão e repara nos invólucros de cartuchos vazios e cheios. Dispara-me indignado:
- Cada cartucho custa 19 tostões. Acha bem este desperdício?
- Não acho e deve ser rectificado. Quando saímos à noite para patrulhamentos ou para Mato de Cão mando pôr a culatra à retaguarda e é assim que as coisas acontecem.
- Mande formar a tropa, quero falar com os seus soldados.

Comandante, quando é que manda gerador para Missirá ?


Forma-se um grande U, os soldados estão manifestamente indispostos com a fome, ninguém se foi fardar a rigor para receber o homem grande de Bissau. Ele faz uma arenga, vai perlengando sobre a guerra que se tem de ganhar mostrando coragem e amor à Pátria. Exorta que se trabalhe mais e que se ganhe a outra batalha, a do espírito, convencendo os terroristas a apresentarem-se. Vai martelando regularmente a frase "Vocês são a luz do mato...". Acaba o discurso de um modo sacudido e pergunta se alguém lhe quer fazer perguntas. Vejo o soldado Bacar Djassi levantar a mão.
- Que é que queres?
- Comandante fala na luz do mato. Mas nunca falou no gerador. Gerador é que dá luz. Quando traz gerador para Missirá?

Vejo tudo a andar à roda. Ainda não percebi o objectivo desta visita, já recebi uma chuva de reparos, temo que o comandante-chefe pense que preparei uma provocação. Ele, aliás, tem aquele olho percutante do monóculo que se fixa numa pergunta reprovadora:
- Ó nosso alferes, o que é isto do gerador e da luz do mato?

Explico ao ilustre visitante que o soldado em apreço está interessado em saber se podemos melhorar o sistema defensivo com melhor iluminação graças a um gerador. Aponto-lhe mesmo para os petromaxes, e os riscos que todas as noites corremos quando vamos mudar as camisas, pois ao bombeá-los somos verdadeiros alvos humanos. Mas eu já estou distante, por carácter nunca me deixei intimidar por estes tipo de interrogatórios, podia ter dito a este senhor que quer o Comandante de Bambadinca quer o de Bafatá estão inteiramente informados da extrema penúria em que vivemos, ele prossegue a arenga e eu estou alheado como se tivesse fugido para uma ilha longínqua. Vejo Spínola agastado e dando instruções para a sua partida. Não resiste à sua última intimidação:
- Não chega combater, os quartéis e as tropas têm que revelar aprumo. Vou voltar em breve. Livre-se de não melhorar a segurança, separar a tropa do que é civil. Adeus.


As ameaças de Hélio Felgas

O tenente-coronel Hélio Felgas também está profundamente irado e diz-me entredentes:
-Apresente-se em breve em Bafatá. Você desiludiu-me com esta espelunca. Dá liberdades a mais a esta gente. Podem combater muito bem mas estão muito primitivos. Ou você muda ou dou-lhe uma porrada. Não brinque com as minhas ordens.

Sem saber, e proferindo um dito de puro cinismo, terei preparado a pazada de cal para a minha punição:
-Meu Comandante, agradeço-lhe esta visita que tanto desejou, pois deixou-nos muito animados. - Não recebi troco, mas senti o faiscar dos olhos.

Entre silvos e nuvens de poeira os helicópteros partem para parte incerta. Os rostos dos dois furriéis mostram incredulidade. Eu estou cheio de fome e, sinceramente, trato este episódio reduzindo-o a uma insignificância. Décadas depois, reconstitui este episódio com o Furriel Casanova. As nossas versões coincidiam e considero certeira a sua observação:
-O seu encolher de ombros e nunca mais ter falado do assunto deu para ver que não se sentiu magoado com aquela falta de correcção. O senhor vivia em Missirá com outros objectivos e noutro plano.

Leituras de Janeiro de 1969: O Barão, de Franquinho da Fonseca

De facto, Missirá era outra coisa. Eu era um jovem que aceitara a incumbência de viver nas profundezas do mato, construindo e colaborando na melhoria das condições de vida, a despeito da falta de tudo. Estabelecer uma relação ímpar com os soldados e tinha a noção que não era possível mudar nos tempos mais próximos o viver da população civil. Naquela altura, vivia a preparação da Operação Andorra que, incompreensivelmente, não consta (tal como outros episódios) da história do BCAÇ 2852.

Dentro em breve, com a aquiescência de Bambadinca, um pelotão fotocine vai ficar dois dias em Missirá para eu percorrer Sancorlã, Salá, descer o Cuor ate Biassa, Mato Madeira e Chicri. Sem surpresa, voltaremos a ter contacto com gente de Madina, haverá derramamento de sangue dos dois lados. A escola prossegue . Em Bambadinca, na companhia de Abudu Cassamá, a quem prometi comprar uma caixa de lápis, veio a correr ter comigo o Mazaqueu, uma criança doente que tem os olhos como dois carvões incendiados. Vezes sem conta trouxe-o ao colo, ele a exibir triunfante o seu pacote de rebuçados, o pião e a ardósia adquiridas no estanco do Zé Maria.

Continuei a tratar das deprecadas no processo dos filhos da Fatu, dilacerados pela explosão de uma granada incendiária, sinistro que ocorreu em Finete. O Pires vai a Bambadinca comprar arroz, cebola, massa tomate e latas de cavala e aproveita para trazer materiais de engenharia. Não, esta visita não me intimidou, não tenho que mudar de rumo, mesmo sabendo que há normas de limpeza em que temos que ser mais rigorosos.

Ainda tenho uma hora para descansar, antes de partir para Mato de Cão. O Pires vai levar os aerogramas que escrevi na madrugada de ontem, para a Cristina, para a minha Mãe, para o Ruy Cinatti, para o Carlos Sampaio, para a Amélia Lança. O meu correio começa a ser muito doloroso, estou a ser vergastado por tensões gravíssimas no relacionamento entre a minha mãe e a Cristina, com repercussões incontroláveis. Ainda não tenho consciência da frente de guerra que se abriu e não sarará tão cedo. Vejo igualmente que estou a sobressaltar demasiado a Cristina com este diário verdadeiro onde ponho acento tónico em palavras e expressões como guerra, cimento, emboscada nocturna, operações com contacto, até no envio de mensagens de soldados onde se fala na miséria como nos dons da amizade. Por muito que me doa, esta confissão íntima terá que vos ser revelada.





O Barão, de Branquinho da Fonseca, com ilustração por João da Câmara Leme. 4ª edição (Lisboa:Portugal Editora. 1942. 4ª edição: 1962). (Colecção O Livro de Bolso, 38).





Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Capa do livro O Caso das Garras de Veludo, por Erle Stanley Gardner, com ilustração do Cândido da Costa Pinto. Lsiboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vampiro,3).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


As minhas boas leituras continuam. Interrompi, tal a minha exaustão, a leitura de O Inverno do nosso descontentamento, por John Steinbeck. Li num ápice uma novela curta, seguramente, e ainda hoje, um dos monumentos literários mais sólidos de que nos podemos orgulhar: O Barão, do Branquinho da Fonseca. É o relato posto na boca de um inspector das escolas de instrução primária que vai parar à Serra do Barroso e, numa noite perdida, é alvo do acolhimento pelo senhor Barão, um encontro inesquecível, um barão que é um bafo de vida: "Era uma figura que intimidava. Ainda novo, com pouco mais de 40 anos, tinha um aspecto brutal, os gestos lentos, como se tudo parasse à sua volta durante o tempo que fosse preciso. O ar de dono de tudo". E manda mesmo, o inspector não vai ter descanso, da noite ao alvorecer. Bebe a cântaros, mata a fome depois de muito suplicar, visita o interior vistoso de um palácio, vê o Barão com os olhos rasos de lágrimas a propósito de histórias de amor, assiste-se à mais extraordinária exibição da Tuna, atrelado pela energia hercúlea do barão, o inspector percorre estradas até se chegar ao castelo da Bela Adormecida, onde se irá depositar uma flor à amada do Barão.

Nunca se foi tão longe no lirismo, aqui pincelado de violência em meio rústico, nunca mais voltaríamos a ter um Barão na nossa literatura. Igualmente O Caso das Garras de Veludo. Para meu pesar , nos anos posteriores à guerra voltei as costas à literatura policial. Há o preconceito de que se trata um subgénero literário pouco rico a não ser em emoções. É um puro engano como toda a gente sabe. Para quem ainda hesita, sugiro o Perry Mason, a criação lendária de Erle Santley Gardner.

Em O Caso das Garras de Veludo, Mason e a sua equipa (a sua secretária Della Street, e o pragmático Paul Drake, que tudo investiga como se fosse o alter ego de Mason nessas coisas activas de descobrir dados do passado e do presente dos outros) são confrontados com uma dama cheia de enigmas e semiverdades a que Mason vai responder com a mais mirabolante acusação de homicídio à própria cliente, jogo subtil para chegar ao desmascaramento e á acusação do verdadeiro homicida. Duas leituras de Janeiro que me encheram a alma, refrigério para estes tempos duros que vivo e os que se avizinham. Depois da Operação Andorra virá o desaire da Anda Cá. Mas outras coisas irão acontecer em Fevereiro que vos quero contar. Ora oiçam.

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