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quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10475: Blogpoesia (306): S. T. T. L., Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria, ao menos, te seja leve!.. (Luís Graça)


[Imagem à esquerda: Guernica, de Picasso, 1937. Óleo sobre tela, 349 cm × 776 cm. Museu Rainha Sofia, Madrid, Espanha... 

Imagem do domínio público: Cortesia da Wikipedia.]




S.T.T.L... Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria,
ao menos, te seja leve!

por Luís Graça



1. Um dia até as pombas da paz do Picasso
repousarão no museu da guerra.

Em relicários,
de aço.
Mais as moscas,
regressadas dos campos de batalha,

que ficarão lá espetadas em alfinetes
nos respetivos mo(n)struários.

As moscas.
Exangues.

Cobertas de terra.
E a merda das moscas,

liofilizada,
como os grelos que comias na noite de Natal,
a merda agora elevada à categoria
de artefacto cultural.

Um dia ouviste um coronel, 

veterano,
dizer, sem rancor nem fel
(mas nunca viste isso escrito na Ordem de Serviço):
 Chiça!, sempre mais vale uma mosca na sopa
do que um míssil na cozinha.


A tua guerra foi tacanha.

Foi uma guerrinha,
de baixa intensidade,
assegura-te o escriba, submisso,
agora garboso historiador oficial.
Não viste mísseis a cruzar o Geba ou o Corubal,
mas milhões de insetos caíam-te na sopa.

Salgada,
da água da bolanha.
Fria.
Desconsolada.

A responder-lhe,
ao veterano,
seria com a célebre frase de um  general prussiano
(um general das guerras napoleónicas,

ainda por cima prussiano,
sempre é mais ovoestrelado 
do que um coronel do exército colonial):
– A guerra não é mais do que
a continuação da política de Estado
por outros meios. 

Fim de citação. 
Ponto final.
Siga a Marinha.
Até ao Terreiro do Paço. 

2. De megafone em punho,

o guia-mor do museu,
antigo combatente
maneta, 
o olhar baço, 
o peito ainda ardente, 
fala-te da arte e da ciência da guerra.
E da importância que é devida
aos detalhes
de barba.
Lá estava o aviso exposto na tua camarata:
– Mais vale perder um minuto na vida,
do que a vida num minuto.
Confessa, camarada,
que nunca chegaste a perceber
por que é que o soldado tem que ser tosquiado.
E ir ao encontro da deusa da morte... devidamente ataviado.

3. Faltou-te sempre a visão do todo,
que, para um estratega, 
bem escanhoado,
como o teu major de operações,
só podia ser maior do que a soma dos detalhes.
A única filosofia de vida,

de vida sem liberdade,que tu ouviste,
foi na tropa,
ao teu tenente de instrução da especialidade 

de atirador de armas pesadas de infantaria.
Começava em porcaria, 
e rimava com morte.
Era cínica e dissolvente,
como qualquer vulgar detergente
de cozinha:
- A merda é o adubo... da vida;
é fazendo merda, que tu aprendes;
e sobretudo nunca te esqueças
que é com a merda dos grandes,
que os pequenos se afogam.



À quinta feira, 
recordas-te ainda tão bem,
depois da feira do gado vacum, 
em Tavira,
fazia-nos, à malta do nosso pelotão,

rastejar na bosta,
enquanto ele gania como um cão
debaixo da janela da sua amada.  
É por isso que ainda hoje 
nem tu nem eu gostamos... de xarém.

4. Na tropa-do-um-dois-três-e-troca-o-passo

nunca soubeste
onde ficava o norte,

meu desgraçado!
Nem nunca soubeste pôr ao pescoço o baraço.
Nem fazer o nó à gravata.
Nem onde pôr a mão esquerda.
Nem o ombro arma,
a arma no ombro
ou o ombro na arma.

Nem fazer o pino.
Nem adivinhar a hora da sorte.
Nem sequer fazer um manguito de bravata.
Nem por isso te chumbaram,
coitado.

Depois um dia, no meio da guerra,

quiseram mandar-te para a psiquiatria,
o que era estranho,
porque o RDM,
em todo o seu articulado,
não previa a figura do inimputável 
nem a do cacimbado
(muito menos  a do psicopata... do major).
 Deem-lhe um valium dez,
metem-no numa camisa de forças. –
gritou o comandante das tropas em parada
ao médico, amável, 
ao enfermeiro, calado que nem um rato,
ao maqueiro, rapaz cortês:
– Sempre é mais cómodo e barato
do que embrulhá-lo em papel selado!

5. Prometeram-te depois um mundo melhor,

porém chato, chatíssimo,
com escudo de proteção 
e seguro contra todos os riscos;
não te disseram onde,
nem quando,
nem a que preço.
Descobriste que era tarde
e longe do planeta

e caríssimo.

 6. Ter a consciência limpa,

ó meu... sacana ?!
Para ti, é ter a memória com as baterias em baixo.

–   Por favor avisa-me, camarada,
quando elas estiverem a cinco por cento.
Quero fazer 'reset' das minhas memórias da Guiné.


Procuras, além disso, uma mão ?
– Direita, 
com cinco dedos,
disposta a ajudar
o meu pobre braço.
Esquerdo.
Decepado.
Dou alvíssaras,

estou disposto a pagar
com o American Express Card.
Golden, claro!


7. Morrer é 

quando tu chegas um beco sem saída
e não tens um kit de salvação.

Morrer em Nhabijões,
em Madina do Boé,
em Gandembel,
em Mampatá,
na Ponta do Inglês,
em Gadamael
ou em Missirá
... ou no Pilão, numa cena canalha,
tanto faz.
A morte não tem SPM.
E quem morre,  morre de vez,
quer mortalha,
e sobretudo quer que o deixem em paz!

8. A vida com a morte se (a)paga.
Há sempre moscas à espera
do teu cadáver,

mesmo seco e magro.
E jagudis.
E formigas bagabaga.

E um dia aziago.
E um primeiro sorja da CCS que te põe os pontos nos ii.
E um capelão que te fecha os olhos, 
com extrema unção e compaixão.
E um coveiro que te prega as tábuas do caixão.
– Não me perturbem o sono eterno! –,
podia ser o teu epitáfio,
ó tuga dum carago!

9. A prática, dizem-te, leva à perfeição,
exceto no jogo da roleta russa

que jogavas nas picadas da Guiné,
a G3 contra a Kalash,
a pica contra o fornilho,
o coiro, encardido,  contra o Erre-Pê-Gê.
Por isso tu vivias cada dia,
como se aquele fosse
o único que te restasse

no calendário de parede,
no teu abrigo,
grafado com gajas nuas.
E muitos traços, em conjuntos de sete, 
marcando a eternidade de uma semana, 
ou de um mês:

Cada dia era o primeiro, 
o único, 
o original, 
o irrepetivel,
no jogo da vida e da morte!
E todos as manhãs fazias o teste do dedo grande do pé esquerdo,
o do joanete,
o dos calos,
o das bolhas,
o da unha encravada,
o das pisadelas,
o mais azarento, 
o rebenta-minas!

10. Não sei se o pintor de Guernica 

(ou Gernika, que o topónimo é basco),
gostaria de ter conhecido
Adão e Eva
no Paraíso.

Ou a Terra Prometida quando era rica,
e nela corria então o leite e o mel,
mais o ouro, o incenso e a mirra.
Deve ter achado que 
esteticamente o Inferno
dava muito mais... pica.





PS - Aqui vai, para a comissão de ética,

 a tua declaração de conflito de interesses:
– Não conheço nenhum museu da paz,
apenas este,  o da guerra.

Nada sei de estética.
Não sou columbófilo.
E muito menos fã do Picasso. 


Já agora escreve, 
no teu testamento vital,
a tua última vontade, 
o teu desejo final:
Quando eu morrer, camaradas, 
que a terra da minha Pátria, 
ao menos, me seja leve!

_____________


Nota do editor:


Último poste da série > 2 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10466: Blogpoesia (305): O helicóptero (Jorge Cabral, Missirá, 1970)

domingo, 23 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10425: Blogpoesia (301): Parassuicídio(s)... (Luís Graça)


Parassuicídio(s), em noite de São Bartolomeu 

por Luis Graça


Acho que adoraria
O silêncio mecânico das ventoinhas
Nas casas de passe,
No tempo em que havia casas de passe
E os pais levavam os rapazes às meninas
Para se fazerem homens.

Em contrapartida, sempre detestei
As flores de plástico e as cruzes de guerra de latão
Nos cemitérios, no talhão dos combatentes
De todas as guerras travadas e perdidas
Nos lugares mais quentes
Da memória.

Se me permitem,
Também não suporto as revistas cor de rosa
Nos consultórios dos psis,
Mesmo se lá colocadas com a intenção piedosa
De servirem de placebo ansíolítico
Para quem espera e desespera nas salas de espera
Sem saber que vai morrer.

Huguenote, católico, judeu,
Anabatista, luterano, ateu,
Muçulmano xiita ou sunita,
Xintoísta, hindu, budista,
Animista,
Voyeurista…
Afinal a vida é,
Irremediavelmente, dizem,
Uma merda,
Um pesadelo climatizado,
Uma encenação,
Um jogo de roleta russa,
Uma bomba de relógio ao retardador.

Sou poeta a
gnóstico, apostólico, romano, 
Mas confesso que tenho medo
Da ameaça de tempestade tropical
No final do verão da vida,
Entre dois equinócios.
Nada mais natural que o medo,
Nada mais humano que o medo do medo.
Fight or flight, luta ou foge, camarada,
Sabendo que nem sempre podes fugir,
Nem sempre podes lutar.

Setembro é um bom mês para se morrer, 

Na frente de todas as batalhas.
Poupem-me o outono,
Dispensem-me do inverno,
Não me falem do natal
Nem me desejem bom ano novo.
E a primavera, por favor,
Outra vez, não!
Quem disse que a vida renasce
Todos os anos pela primavera,
Só pode ter interesse no negócio...

Sou tolerante, ecuménico e laico, 

Sobretudo heterodoxo,
Sou capaz de ouvir e saber ouvir,

Com paciência e compaixão,
As lendas e narrativas contadas pelos mais velhos.
Haverá um dia em que matarão
Todos os mais velhos,
Como em Esparta.
Será o dia da amnésia final,
Tal como o massacre da noite de São Bartolomeu,
Em França, em 1572,
Que foi celebrada com gáudio pela corte portuguesa 
De el-rei dom Sebastião.
In nomine Dei.
Em nome de Deus. 


A velhice é uma heresia.
Todos os velhos são huguenotes.
Todos os velhos custam um pipa de massa
Ao serviço nacional de saúde
E à segurança social
E ao banco alimentar contra a fome
E ao miserável estado a que chegámos.


Por mim, não peço muito:
Uma mesa, com toalha de linha,
Num estreito promontório, sobre o mar,
Um prato de sardinhas douradas
Com pimentos vermelhos,
Um copo de tinto,
Um café e um Lourinhac.
Ah!, e o último cigarro do condenado à morte!

Seria o dia perfeito, (e)terno.
Sem o ruído dos comboios,
Nos seus carris metálicos,
Enquanto os soldados partem para a guerra,
E os navios embarcam
Velhos obuses encapuçados.
A maior noite de ternura
É quando o soldado se despede da mulher amada
E parte para ir morrer na frente da batalha.
Sou sensível aos detalhes,
Como qualquer miseur-en-scène.
Não havia mulheres nas trincheiras do meu tempo
E tinham fechado as últimas casas de passe.

Nunca saberei se o sexo é 

Uma pulsão da vida ou da morte. 
Quem disse Make love, not war
É porque nunca fez (nem poderia fazer)
Amor e guerra ao mesmo tempo. 
As duas artes são disjuntivas.

Candoz, 23/24 de agosto, noite de São Bartolomeu
_____________


Nota do editor:


Úlltimo poste da série > 23 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10424: Blogpoesia (300): Deram-me uma arma... (Ricardo Almeida, o poeta da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)

terça-feira, 31 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10212: Do Ninho D'Águia até África (3): Uma pausa para reflectir, guerra é guerra (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

1. Continuação da publicação de Do Ninho de D'Águia até África, de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Op Cripto, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177. O Tony Borié, natural de Águeda, vive nos EUA, Flórida, há 40 anos.


Do Ninho D'Águia até África (3)

Uma pausa para reflectir,
guerra é guerra

Ou se está no conflito, ou não se faz parte desse mesmo conflito. Isto é, o que qualquer e normal cidadão poderia dizer. O Cifra foi colocado em possível cenário de guerra. Tiraram-no do ambiente da sua aldeia no vale do Ninho de d’Águia, do seio da sua família, deixou de ouvir o comboio das seis e meia, que todos os dias o acordava, e de que tanto gostava, trouxeram-no para a cidade, com costumes e pessoas diferentes, deram-lhe uma instrução básica, concentrada em matar, ensinaram-lhe as partes do corpo, em como se matava, com prolongamento de dor, rápido, com faca, ou simplesmente com as mãos, ensinaram-no a manusear uma pistola ou uma metralhadora, e que a usasse, para disparar, contra um ser humano.

Embarcaram-no. Atravessou o oceano, e largaram-no dentro de um conflito, a milhares de quilómetros de distância da sua aldeia no vale do Ninho d’Águia, da sua família e dos seus amigos. Ficou na frente, e com uma arma nas mãos, a combater pessoas que não conhecia, e que não tinham nada a ver com ele, e de quem ele nada tinha contra. Só única e simplesmente, a tal frase, e o blá, blá, blá, de alguns dos seus instrutores, tal como o chefe do governo de Portugal, de defender a bandeira e a Pátria, que é a sua mãe, ir para a guerra, em força, contra os canhões, marchar, marchar. Tudo isto a milhares de quilómetros de distância, da sua aldeia do Ninho d’Águia.
- Meu Deus!. Que injustiça!. Porque razão me mandaram para aqui? Estes naturais olham para mim, e vêm tal e qual, como eu os podia ver, se eles invadissem a minha aldeia, no vale do Ninho d’Águia!. Esta é uma verdade, que eu não posso esquecer, e me vai atormentar.

Isto era o que pensava o Cifra. Mas também sabia que todos os seus instrutores tentaram tudo o que sabiam para modificar todo o seu comportamento. Pois, nunca lhe explicaram que do outro lado, lá em África, também havia pessoas normais, com direito a viver uma vida normal, junto de suas famílias, criando os seus filhos, tratando dos seus animais, cultivando a sua terra, tomando banho na água do seu rio, construindo a sua casa, caminhando pela sua floresta, respirando e vivendo em liberdade. Liberdade essa que o Cifra nunca teve em Portugal.

Mas o que era isso liberdade? O Cifra, nem sabia o significado da palavra liberdade. Pois até à idade de fazer parte do exército de Portugal, nunca precisou de saber. Tinha toda a liberdade que os pais lhe davam na sua aldeia, no vale do Ninho d’Águia, que era o trabalho na agricultura, alguns trabalhos menores na vila, que ninguém queria fazer, mas o Cifra fazia, pois era o único meio de ter alguns trocados, tinha família, as ovelhas, os porcos, as galinhas, a represa do seu lameiro, o rio da vila, lembrava as raparigas suas amigas, que pelo menos mostravam que morriam de amores por ele, o seu comboio da seis e meia, que adorava ouvir o som do seu apito, quando descia o vale do Ninho d’Águia, em direcção ao mar. Que mais queria ele?

Sim, mas fora do seu ambiente familiar não havia de facto liberdade. Lembrava, quando a sua mãe Joana, num ano de seca, em que as terras do pinhal não deram trigo nem aveia, lá na sua aldeia, do vale do Ninho d’Águia, e com alguma angústia, pois queria dar de comer aos quatro filhos, foi pedir dinheiro emprestado, para comprar um porco bebé, na feira dos vinte e quatro, que haveria de engordar e matar, por altura do Natal, que era a única alegria que a família tinha, pois nessa altura, enquanto o pai Tónio não salgava as carnes que seriam o governo para quase todo o ano, era uma fartura, com rojões e tudo.

A pessoa importante da vila que lhe emprestou alguns trocados depois da mãe Joana lhe bater à porta, por duas vezes, pois da primeira estava sentado debaixo de uma frondosa árvore, na frente de sua casa, a descansar, no fim de talvez um lauto almoço, e mandou dizer pela criada, que lá trabalhava, ninguém sabia desde quando, e trabalhava pelo comer e vestir, mas era uma fiel servidora, e disse à mãe Joana:
- O senhor não pode ser incomodado agora, venha para a semana, Joana. Quer um bocado de broa? Se quiser, eu vou buscar sem o senhor saber?! Ande, leve para os garotos, que devem de andar com fome. Principalmente, o mais novo, o Tó d’Agar, gosta tanto da broa que eu lhe dou. Quem me dera ter um filho assim!

A mãe Joana apareceu na semana seguinte, a lastimar da sua sorte, e o dito senhor, além de uns grandes suspensórios, também usava um grande cinto, a segurar a barriga. Depois de a ouvir, quase suplicar, põe a mão no bolso da samarra, com pele de raposa na gola, tira uma carteira recheada de notas novas, e disse:
- Quanto precisas,  rapariga? Vocês não têm meio de controlar a boca aos vossos filhos?

A mãe Joana, a medo, lá lhe disse quanto era, ao que ele respondeu:
- É só isso, espera que não tenho aqui trocado, vou lá dentro e volto já.

Regressa com o dinheiro e um papel escrito que lhe estendeu, dizendo:
- Assina aqui. Ninguém sabe o dia de amanhã, com estas doenças novas, há morrer e viver, e vocês que andam sempre mal alimentados, e nesse caso, alguém terá que pagar.

A mãe Joana assinou, de cruz, um papel onde hipotecava todas as suas terras. Pagou, assim que pode, mas teve que ir a casa da dita pessoa, três vezes para reaver o papel, a desculpa era que o papel estava no banco da vila. Era assim o sistema. Pagava-se a dívida, mas ficava-se devedor para o resto da vida, obrigando o pobre a andar de chapéu na mão, curvando-se e dando lugar na rua ao senhor, que queria que o tratassem por Vossa Excelência.

Quanto mais miséria no País, e principalmente nas aldeias, mais força tinham esses senhores, protegidos pelo sistema, de governar e passar por cima de quem entendiam. Em outras palavras, quanto mais miseravelmente vivessem as populações, melhor era para esses senhores que controlavam os bons empregos, a que só a família e alguns amigos, que se curvavam, tinham acesso, e beneficiavam de todas as regalias que o governo de então proporcionava a alguns.

Outros tempos... O seu Portugal, a tal Pátria que os seus instrutores constantemente lhe diziam que era a sua mãe, que agora defendia, sem saber de quê e qual a verdadeira razão, era um País de uns quantos. Assim lhe explicavam agora alguns companheiros, já mais vividos, que como ele se encontravam na mesma aflita e angustiante situação. Mas o Cifra não sabia, não foi treinado para isso. Foi treinado para matar, custe o que custar, a palavra final era sempre, em frente, contra tudo e todos, não importa a razão, se necessário for, não hesites, mata, para isso tens uma arma nas mãos e para isso te ensinámos a manuseá-la. Pode custar a vida a uma, duas, ou centenas de pessoas, não importa, não ouças ninguém, vai em frente, em força, e mata, a Pátria é a tua mãe, (não a verdadeira mãe, que era a Joana), mata e morre pela Pátria, não importa que a guerra seja injusta e não tenhas nada a ver com estas pessoas.

Isto foi o treino, contínuo de dias e dias, que chegou a meses, em que os companheiros se envolviam em luta de treino para melhor aprenderem a maneira de se ferirem uns aos outros. No meio de todo este cenário, o Cifra, todas as manhãs, tirava uns minutos de reflexão, meditando e tentando não perder os sentimentos de honestidade que a mãe Joana e a avó Agar, de quem herdou o nome, lhe ensinaram.

Nos seus momentos de reflexão, o Cifra tinha a firme certeza de que não tinha sido bem treinado. O treino a que o submeteram não resultou em pleno nele. Entre muitas, havia três fortes razões para pensar assim. Primeiro, odiava esta maldita guerra, segundo, não estava motivado para conflitos, terceiro, nunca teria coragem para matar alguém.

Então por que carga de água estava num cenário que odiava? Cada vez se convencia mais de que as pessoas que o instruíram, ou eram fracos instrutores, ou o Cifra tinha uma mentalidade muito forte e não se deixou convencer de todo. De uma coisa o Cifra estava convicto, que era:
- Vou sobreviver e tentar sair vivo deste conflito, sem pelo menos, matar ou ferir alguém. E se para aqui me trouxeram, também daqui me vão levar, nem que seja num caixão, mas aqui, não vou ficar.

Pedia a Deus para que isso fosse uma realidade e se o conseguisse, a sua guerra estava ganha. E dizia a todos os militares, seus colegas:
- Se eu morrer, quero ser enterrado na minha aldeia do vale do Ninho d’Águia.

(Continua)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10190: Do Ninho d'Águia até África (2): Montando o Centro de Cripto (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5259: Ser solidário (45): Falando do apoio americano aos seus Veteranos de Guerra (José da Câmara)

1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara*, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, radicado nos Estados Unidos da América, com data de 12 de Novembro de 2009:

Caro Carlos,
Junto encontrarás a minha resposta ao nosso camarada Alberto Branquinho.
Foi um prazer ler aquilo que ele escreveu.
Demonstrou ser um homem atento ao que se passa na sociedade americana. Isso apraz-me registar.

Com votos de muita saúde e um abraço amigo,
José Câmara


2. Caros camaradas,
Quando escrevi o P5222*, fi-lo com a convicção de que, ao escrever sobre o que se fazia em outras paragens, isso poderia contribuir como estímulo para as lutas de direitos (quero acreditar que também de deveres) que muitos de vós se vêm envolvidos ou gostariam de verem resolvidas pelo governo português, independentemente da sua cor política

O nosso camarada Alberto Branquinho respondeu, dissertando sobre o que escrevi, como ainda pondo algumas questões bastante pertinentes. Agradeço!

O Alberto Branquinho na sua mensagem P5247** desenvolveu um episódio que teve a oportunidade de presenciar em 1984 quando, ao serviço da empresa que o empregava, visitou os EUA. O acontecimento teve lugar em Washington deduzindo, e bem, que estava na presença de uma manifestação a nível nacional.
A manifestação era protagonizada por ex-combatentes da guerra do Vietname. Aqueles, por formas várias, entregavam-se à luta reivindicativa de direitos que julgavam merecer.

Apraz-me registar a argúcia das observações feitas pelo autor não sou sobre o causa/efeito da manifestação, e também da forma de estar do povo americano Eu, vivendo neste país americano, não teria conseguido dizê-lo melhor nem tão bem.
O grande fenómeno americano assenta nestes princípios básicos: liberdade, justiça, e o direito de questionar (pedir) o congresso na resolução dos problemas inerentes ao povo.

É naqueles princípios que a família aparece como factor principal do associativismo americano. Quando essas famílias são emanadas dos mesmos desejos transformam as suas causas e as suas comunidades em factor de pressão, o tal loby, sem o qual nada ou pouco se consegue.

As associações de veteranos locais fazem parte desse associativismo que, no seu conjunto a nível nacional, têm uma força política descomunal neste grande país americano.
Stoughton, MA., é uma pequena comunidade, inserida na área metropolitana de Boston.

Câmara Municipal de Stoughton, MA

A Câmara Municipal de Stoughton é dirigida por um Administrador contratado pelos Vereadores da Vila, e sua forma de governo é o Town Meeting (Assembleia Municipal). Entre os serviços da Administração Municipal está o Departamento de Veteranos, que é dirigido por um Agente contratado pela Vereação da Câmara Municipal.

O Agente não tem que ser necessariamente um veterano, mas não magoa se o for. O importante é que o Agente seja competente no desenvolvimento do trabalho que lhe é confiado.

No momento actual o Agente é um veterano da guerra do Vietname. Os anteriores, que conheci, também eram veteranos.
O Departamento de Veteranos é um serviço público e gere fundos públicos. O Estado Federal contribui com 75% do Orçamento do Departamento, e a vila de Stoughton contribui com os restantes 25%.

Na lei não existe nada que proíba o Agente de Veteranos de angariar e dirigir fundos provenientes de empresas, serviços e particulares. Não pode é misturar os dinheiros públicos com os dinheiros privados.

Na colheita dos fundos particulares o Agente conta sempre com voluntários que o ajudam nesse processo, e não são necessariamente empregados da Câmara Municipal. Pelo contrário são pessoas que, fazendo parte de outras organizações se solidarizam com a (s) causa(s) em questão. No caso da nossa história coube às Girl Scouts (Grupo de Escuteiras) a tarefa de recolherem donativos vendendo bolachas, para ajudarem um veterano da guerra do Iraque.

A distribuição de dinheiros públicos é feita de acordo com as leis e regulamentos em vigor. Os dinheiros privados são um suplemento, e são entregues, de uma maneira geral, no fim da recolha, e vão na sua totalidade para a (s) causa (s) para que foram anunciados.

O Exército Americano é hoje, todo ele, baseado no voluntariado. Para além das suas Forças Regulares o Exército precisa, em situações de emergência, dos seus Reservistas. São estes civis que, na sua vida normal do dia a dia, contraíram obrigações de toda a espécie para o normal funcionamento das suas vidas. Muitas dessas obrigações têm que ser satisfeitas, mesmo quando os obrigatoriantes são chamados a cumprir os seus deveres com o Exército e com a nação.

Nós sabemos que o Exército paga, normalmente, menos que aquilo que esses militares auferem na sua vida particular. Perante isso a nossa ajuda para os veteranos, por pequena ou grande que seja, não é nem pode nunca ser constituída como esmola.

Para nós, cidadãos americanos (tenho dupla nacionalidade), é motivo de orgulho nacional e satisfação moral ajudar todos aqueles que, ao serviço da nação põem em risco a sua vida e o bem estar da família, para que todos nós possamos manter a nossa liberdade.

Isto é a América!
José Câmara
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5222: Efemérides (27): O Dia dos Veteranos, 11 de Novembro na Vila de Stoughton (USA) (José da Câmara)

(**) Vd. poste de 10 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5247: Ser solidário (44): A propósito do Dia dos Veteranos em Stoughton - Estados Unidos da América (Alberto Branquinho)

terça-feira, 14 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4684: (Ex)citações (35): Milicianos ou do Quadro Permanente, todos fomos combatentes (Paulo Santiago)

1. No dia 13 de Julho de 2009, Paulo Santiago (*), Ex-Alf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat 53,
Saltinho, 1970/72, fez este comentário no poste Guiné 63/74 - P4672 (**):

Queiram desculpar, estas discussões estéreis, ía dizer, já cheiram mal, mas digo melhor, são uma MERDA...

Será que este blogue passou a ser um espaço para historiadores e doutrinadores?

Milicianos versus QP's, qual o interesse? Houve bons e maus, nos dois campos, mas isto é uma afirmação à La Palisse. Já contei por aí parte da minha vivência na Guiné, e sabem que o pior personagem que encontrei naquele teatro foi precisamente um miliciano (Capitão). Daqui não vou generalizar, que todos os milicianos (eu incluído) eram maus, seria um ultrage. Mas esta generalização(sem Generais, como algures diz o Mexia Alves) está a ser tentada em relação aos militares do QP. Não vou falar de militares do QP que conheci e eram excelentes, vou até Guiledje (só cá faltava, dirão) para lembrar dois mortos, o Cap Tinoco de Faria e o Cap Assunção Silva... eram do QP.

Dirão alguns, "...e quantos Milicianos lá morreram"? Muitos, direi eu, incluindo Soldados. Mas deixemos Guiledje e vamos até Guidaje (já agora!?), penso que foi o meu amigo e conterrâneo, Vitor Tavares, que falou no assunto num poste inserido no blogue, há meses atrás, quando contou a odisseia do socorro dos Páras aquele aquartelamento na fronteira com o Senegal. Contava ele, ficarem impressionados verem um tipo, já não muito novo, quando dos ataques, de pingalim na mão, a coordenar o fogo de morteiros e outras armas, com rebentamentos a toda a volta. Tratava-se do Major Correia de Campos. E para que não esqueçam, relembro o "massacre do Chão Manjaco", morreu um Alf Mil, mas morreram três Majores da nata de Oficiais Superiores do ComChefe.

O nosso camarada Mário Fitas falou, várias vezes, com admiração, no Cap Costa Campos, comandante dos "Lassas", que participava nas Operações, apesar de já andar nos quase 40 anos de idade.

Fui buscar estes exemplos, há mais, porque me chateia esta treta de descarregar as culpas sobre os oficiais do QP. Parece que não andámos todos lá... Parece que o Xime, onde esteve o Pereira da Costa era uma colónia de férias...
Fui miliciano com orgulho, não tenho qualquer ligação familiar com militares do Quadro, mas não tenho qualquer preconceito em relação a eles. Temos alguns aqui no blogue... poderíamos ter mais... acabemos com estas tricas.

Abraço
P.Santiago
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4046: Ainda a atroz dúvida da Cidália, 37 anos depois: O meu marido morreu mesmo na emboscada do Quirafo ? (Paulo Santiago)

(**) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4672: Blogoterapia (114): Quem somos nós? (António J. Pereira da Costa)

Vd. último poste da série de 13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4680: (Ex)citações (34): Resposta ao amigo Pereira da Costa (J. Mexia Alves)

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4423: O poder aéreo no CTIG: uma pesquisa de Matthew M. Hurley, Ten Cor, USAF: Trad. de Miguel Pessoa (2): Parte II

Guiné > Bissalanca > Base Aéreas nº 12 > 1969 > Linha da Frente dos Heli Al III. Foto de António Silva Vieira, Ex-Esp MMA 2ª/67, Guiné (BA12, 1968/70). (O nosso camarada Vieira, de 61 anos, alistou-se na Força Aérea na BA-2, no 2º turno de 1967, como recruta para especialista, jurou bandeira em 25/08/1968, ficou na BA-2 para tirar a especialidade de MMA, foi mobilizado para a Guiné, para prestar serviço na BA-12, embarcou em 02/10/1968, foi integrado na Esquadrilha de manutenção dos Allouette III, teve como Comandante da Base o Cor Tir Pilav Manuel Diogo Neto, ficou no CTIG até 17/05/70, coincidinmdo portanto a sua comissão com o Gen Spínola, enquanto Com-Chefe e Governador Geral).

Foto: Cortesia do blogue do Victor Barata, Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 1965/74


Continuação da publicação das versões, em português e em inglês, do paper que o Matt Hurley, Ten Cor da USAF (na foto, à esquerda), teve a gentileza de nos enviar, com o resumo da sua tese de doutoramento, a decorrer na Universidade do Estado de Ohio, EUA. Tradução do nosso camarada e amigo Miguel Pessoa (na foto, à direita), antigo Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, Guiné (1972/74).

O nosso reconhecimento também aos membros do nosso blogue Alberto Branquinho, João Seabra e Vasco da Gama que puseram à nossa disposição as suas competências linguísticas e deram uma ajudinha ao Miguel, com sugestões de melhoria do texto, em português (*):

Súmula da tese de doutoramento de Matthew M. Hurley,Ten Cor da Força Aérea dos EUA:Departamento de HistóriaUniversidade do Estado de Ohio
Data: 23 de Fevereiro de 2009
Orientador: Prof Guilmartin John F., Jr.

Título do Trabalho:

"O ímpio Grail: O Poder Aéreo do Governo e a Defesa Aérea dos revoltosos na Guiné Portuguesa, 1963-1974". (**)


(...) 4. Questões para orientar a investigação.


A primeira questão que pretendo abordar diz respeito ao valor do Poder Aéreo numa campanha de contra-insurreição. Para atingir este objectivo, irei primeiro analisar os papéis e as missões da FAP na Guiné-Bissau, bem como as provas relativas ao sucesso ou insucesso das operações aéreas.

Talvez mais importante ainda, deve ser considerada a percepção do Poder Aéreo que existia por parte das forças terrestres, especificamente até que ponto elas contavam com o apoio da FAP, e o impacto subsequente, quando esse apoio foi retirado ou reduzido.

Correspondentemente, deve ser também considerada a importância da defesa aérea para os insurrectos. A percepção que o PAIGC tinha do Poder Aéreo Português - e a sua reacção a ele - pode dar-nos a bitola o proporcionar-nos talvez o melhor meio de medir a eficácia das operações da FAP.

Claramente, o PAIGC atribuía uma importância considerável à necessidade de defesa aérea, o que irei esforçar-me por demonstrar na dissertação. A título de exemplo, o PAIGC e o seu líder, Amílcar Cabral, investiram um capital diplomático considerável na aquisição de armas de defesa aérea.

Por conseguinte, também pretendo explorar o impacto do apoio externo aos movimentos insurrectos, bem como as razões que motivaram nações como a União Soviética a fornecer armas cada vez mais sofisticados a grupos de guerrilheiros no território de um membro da NATO.

De uma forma mais crítica, pretendo tentar avaliar a forma como a perda de um punhado de aviões da FAP provocou um impacto tão profundo nas operações aéreas dos portugueses, na guerra na Guiné-Bissau, e em toda a estrutura do império.

Esta questão torna-se ainda mais embaraçosa se se tiver em conta o número muito maior de perdas sofridas pela aviação americana devido ao SA-7, no Vietnam durante o ano de 1972, mas sem qualquer efeito apreciável no seu comportamento global na guerra naquele país.

Algo provocou este impacto diferente nos dois casos, suspeitando eu que envolve uma complexa interacção entre a política nacional, a vontade militar, considerações tácticas, a tecnologia do armamento, a rivalidade das superpotências, a motivação dos insurrectos.

A guerra na Guiné-Bissau, tal como qualquer outra insurreição, foi ricamente complexa, porém cada insurreição é complexa à sua própria maneira. Ao desvendar alguma dessa complexidade, pretendo demonstrar a ligação entre o emprego de um míssil portátil de defesa aérea e o colapso de um império.


5. Esboço dos Capítulos.

Os dois primeiros capítulos de fundo irão explorar as motivações e os objectivos dos antagonistas a um nível global, institucional. No que diz respeito ao lado Português, vou basear-me fortemente na apresentação que escrevi para o mais recente seminário de História 801.2, do Prof Beyerchen, intitulado "A Metáfora do Império: Fazer Identidade, Guerra, e Revolução durante o período do Estado Novo em Portugal".

Este capítulo irá examinar as razões que levaram Portugal a combater para manter o seu Império Africano, com a convicção aparente do Estado Novo de que a futura sobrevivência de uma política portuguesa independente passava pela manutenção da estrutura do império.

Um capítulo idêntico, explorando as motivações do PAIGC, irá analisar o desenvolvimento dos seus programas político e militar, a sua campanha para mobilizar o apoio das populações, e o deliberado desenvolvimento de um nacionalismo inter-étnico para unir etnias antagónicas guineenses contra o inimigo comum colonialista.

Usando o programa do PAIGC como um trampolim, o terceiro capítulo de fundo analisará o início e a condução da guerra a partir de uma perspectiva macro. Em particular, este capítulo analisará as estratégias políticas e militares das forças Portuguesas e do PAIGC, detalhando a forma como as estratégias em conflito se influenciaram mutuamente ao longo do conflito.

O capítulo seguinte irá fazer o mesmo numa perspectiva centrada no campo aéreo. Com base nos trabalhos em curso para o seminário de História 767 do Prof. Mansoor, este capítulo analisará a evolução das operações aéreas da FAP e as actividades de defesa aérea do PAIGC. Requisitos operacionais e estratégicos fluidos, e a resposta do inimigo, todos eles condicionaram as actividades aéreas, com cada lado tentando obter ou manter um controlo suficiente do ar para permitir alcançar os seus objectivos estratégicos mais importantes.

O quinto capítulo irá divergir ligeiramente da narrativa global e examinar a guerra a partir da perspectiva das potências exteriores, sobretudo no que diz respeito ao Poder Aéreo.

Para os portugueses, este foi principalmente um estudo das limitações, dadas as restrições impostas pelos E.U.A. e NATO quanto ao material que a FAP podia desviar para a luta na Guiné.

Para o PAIGC, por outro lado, é essencialmente um avolumar de oportunidades à medida que Amílcar Cabral e os seus sucessores travavam uma cada vez mais bem sucedida campanha pela ajuda militar por parte do bloco comunista.

Este capítulo analisará também o desenvolvimento de sistemas específicos de defesa aérea que foram mais tarde usados na Guiné-Bissau, incidindo sobre a sua adequação à guerra de guerrilha e o seu uso em conflitos anteriores, a fim de fornecer uma perspectiva para o seu posterior emprego pelo PAIGC.

Esta utilização final é objecto do sexto capítulo, que vai analisar a guerra aérea na Guiné-Bissau de 1973 a 1974. Este foi o período em que o PAIGC usou pela primeira vez o míssil portátil soviético ZPRK Strela-2M (Código NATO SA-7 Grail), que inicialmente reduziu a eficácia da FAP; embora as tácticas usadas mais tarde limitassem a eficiência dos mísseis, as perdas sofridas inicialmente e o seu impacto na eficácia da FAP continuaram a limitar as operações aéreas dos portugueses até ao fim da guerra.

Também durante este período, Portugal recebeu relatos de que a União Soviética estaria a treinar pilotos do PAIGC para pilotar MiGs baseados na vizinha Guiné-Conakri, um programa que teria neutralizado definitivamente a superioridade aérea dos portugueses se fosse implementada (a FAP não dispunha de aviões específicos para o combate ar-ar).

O capítulo seguinte, que é o capítulo de fundo final, irá explorar o impacto desses acontecimentos no moral dos militares portugueses, na estabilidade política e no golpe de estado de Abril de 1974 que praticamente trouxe um fim à guerra.

Um capítulo conclusivo tentará retirar lições relevantes para o actuais desafios de insurreição com que se defrontam hoje os Estados Unidos e os seus aliados.

6. Bibliografia corrente.

Por favor, veja o apêndice em anexo, "Bibliografia Provisória."

APROVADO:

O professor John F. Guilmartin, Jr. Professor Alan Beyerchen (...)

[A continuar - Parte III]
______

[Versão original, em inglês. Continuação]

Dissertation Prospectus for Matthew M. Hurley, Department of History, The Ohio State UniversityDate: 23 February 2009. Advisor: Prof. John F. Guilmartin, Jr.

Working Title: The “Unholy GRAIL: Government Airpower and Insurgent Air Defense in Portuguese Guinea, 1963-1974.”

(...) 4. Questions to Guide Research.

The first question I intend to address regards the value of airpower in a counterinsurgency campaign. In order to assess this, I will first examine the FAP’s roles and missions in Guinea-Bissau, as well as evidence pertaining to the success or failure of air operations. Perhaps most importantly, the Portuguese ground forces’ perception of airpower must be considered, specifically the degree to which they relied on FAP support, and the subsequent impact when that support was withdrawn or curtailed. Correspondingly, the importance of air defense to the insurgents must also be considered. The PAIGC’s perception of Portuguese airpower—and their reaction to it—provide perhaps the most persuasive metric by which to measure the effectiveness of FAP operations.

Clearly, the PAIGC attached considerable importance to the requirements of air defense, which I will endeavor to demonstrate in the dissertation. By way of example, the PAIGC and its leader, Amílcar Cabral, invested considerable diplomatic capital in the acquisition of air defense weaponry. Consequently, I also intend to explore the impact of external support to insurgent movements, as well as the factors that motivated nations such as the Soviet Union to provide increasingly-sophisticated arms to guerrilla bands in a NATO member’s territory.

Most critically, I intend to try to assess how the loss of a handful of FAP aircraft exerted such a profound impact on Portuguese air operations, the war in Guinea-Bissau, and the entire imperial enterprise. This question becomes more perplexing in light of the fact that US air arms suffered far more losses to the SA-7 system in Vietnam during 1972, but without any appreciable effect on its overall conduct of the war there. Something accounts for this difference in impact, and I suspect it involves a complex interplay between national policy, military will, tactical considerations, weapons technology, superpower rivalry, and insurgent motivation. The war in Guinea-Bissau, like any other insurgency, was richly complex; however, like Tolstoy’s unhappy families, each insurgency is complex in its own way. By unraveling some of that complexity, I intend to demonstrate the link between the employment of a shoulder-fired air defense missile and the collapse of an empire.

5. Chapter Outline.

The first two substantive chapters will explore the motives and objectives of the antagonists from a macro, institutional level. Regarding the Portuguese side, I will draw heavily from the paper I wrote for Prof. Beyerchen’s latest History 801.2 seminar, entitled “The Empire Metaphor: Making Identity, War, and Rebellion during Portugal’s Estado Novo Era.” This chapter will examine Portugal’s rationale for fighting to maintain its African Empire, including the Estado Novo’s apparent conviction that the future survival of an independent Portuguese polity necessitated the maintenance of imperial stature.

A similar chapter exploring the PAIGC’s motives will examine the development of its political and military programs, its campaign to mobilize peasant support, and its deliberate development of an inter-ethnic nationalism to unite antagonistic Guinean ethnicities against a common colonialist foe.

Using the PAIGC program as a springboard, the third substantive chapter will examine the initiation and conduct of the war from a macro perspective. In particular, this chapter will consider the evolving military and political strategies of the Portuguese forces and the PAIGC, detailing how the contending strategies influenced each other over the course of the conflict.

The following chapter will do much the same from an air-centric perspective. Drawing on work currently in progress for Prof. Mansoor’s History 767 seminar, this chapter will examine the evolution of FAP air operations and PAIGC air defense activities. Available equipment, fluid operational and strategic requirements, and enemy response all conditioned these aerial activities as each side attempted to gain or maintain sufficient control of the air to enable the attainment of their larger strategic aims.

The fifth substantive chapter will diverge slightly from the overall narrative and examine the war from the perspective of outside powers, particularly where airpower was concerned. For the Portuguese, this was largely a study in constraints, given US and NATO restrictions on what the FAP was able to bring to the Guinean fight. For the PAIGC, on the other hand, it is primarily a tale of expanding opportunities as Amílcar Cabral and his successors waged an increasingly successful campaign for military aid from the Communist bloc. This chapter will also examine the development of specific air defense systems that were later used in Guinea-Bissau, focusing on their suitability to guerrilla warfare and their use in earlier conflicts in order to provide context to their later employment by the PAIGC.

That later employment provides the sixth substantive chapter, which will examine the air war in Guinea Bissau from 1973 to 1974. This was the period when the PAIGC first used the Soviet ZPRK Strela-2M (NATO SA-7 GRAIL) shoulder-fired missile, which initially hindered the FAP’s effectiveness; although subsequent Portuguese counter-tactics later curtailed the missile’s efficiency, the initial spate of losses and their impact on FAP effectiveness continued to limit Portuguese air operations for the remainder of the war.

Also during this period, Portugal received reports that the Soviet Union was training PAIGC MiG pilots to be based in neighboring Guinea-Conakry, a program which would have definitively neutralized Portuguese air superiority if implemented (the FAP had no dedicated air-to-air fighters in Guinea-Bissau). The following chapter, the final substantive one, will explore the impact of these events on Portuguese military morale, political stability, and the April 1974 coup d’etat that for all intents and purposes brought the war to an end. A concluding chapter will attempt to distill lessons relevant to the current insurgent challenges facing the United States and its allies today.

6. Current Bibliography.

Please see the attached appendix, “Provisional Bibliography.”

APPROVED:

Professor John F. Guilmartin, Jr. Professor Alan Beyerchen

ADVISOR COMMITTEE MEMBER

[To be continued - Part III]
__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste 26 de Maio de 2009 >Guiné 63/74 - P4418: O poder aéreo no CTIG: uma pesquisa de Matthew M. Hurley, Ten Cor, USAF: Trad. de Miguel Pessoa (1): Parte I

Vd. também poste de 16 de Abril de 2009 >Guiné 63/74 - P4197: FAP (23): O poder aéreo no CTIG, 'case study' numa tese de doutoramento nos EUA (Matt Hurley / Luís Graça)

(**) Em inglês, "unholy Grail" também poderia ser traduzido por "ímpio Graal", por oposição a Santo Graal... O autor faz aqui uso de um trocadilho: Grail, nome de código do Strela soviético no campo da Nato, é também Graal... Nas lendas e na literatura da Idade Média, o Santo Graal pode designar várias coisas, mas normalmente refere-se ao cálice usado na Última Ceia por Jesus Cristo. Nas lendas do Rei Artur, cabe aos Cavaleiros da Távola Redonda encontrar o Santo Graal, talismã que vai permitir devolver a paz às terras do Rei... No caso da Guiné, para os portugueses o Graal (o Strela) não é santo mas ímpio, porque traz com ele não a paz, mas a escalada da guerra...

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4279: Blogoterapia (101): Obrigado, Manuel Maia, emocionaste-me até às lágrimas (José Brás)

1. Mensagem do nosso camarada José Brás, que foi Fur Mil da CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), e é autor do romance Vindimas no Capim, Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura):

Caríssimos

Carlos, Luís e Briote


Não tem nada a ver com a guerra, isto que quero dizer-vos, agora, de lágrimas a rebentar por sob as pálpebras quando leio de voz alta, só e em frente ao monitor, a escrita do Manuel Maia (*).

De voz alta porque quero emocionar-me até ao limite, na oportunidade de não ter quem me chame de maluco.

De lágrimas a rebentar porque, felizmente, continuo a poder emocionar-me perante os sinais do humano quando chegam altos como este rio de palavras engenhosas, talentosas e suadas.

Que maravilha!

Cercados por centrais globais de (des)informação e por um real saído dos noticiários das televisões, o dia-a-dia carrega-nos de pesadas preocupações acerca do futuro do mundo e da humanidade.

Talvez que, no fundo, não seja mais do que a velhíssima tendência para o pessimismo que nos atinge depois de anos de lutas e esperanças.

Gente como o Manuel Maia são a garantia de que não passa disso e de que a comoção e a imagem das mãos dadas por cima de incertezas continuarão a marcar o homem do futuro na sua dualidade divina e na sua multiplicidade de andarilho.

Afinal, já nem sei se foi de guerra ou não que quis falar, porque ninguém fala de guerra senão para falar de paz.

Um abraço (normal) para vocês e outro de agradecimento ao Manuel Maia.

José Brás

_________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 3 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4278: Blogpoesia (44): A história de Portugal em sextilhas (II Parte) (Manuel Maia)

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4179: Agenda Cultural (5): Exposição Testemunhos de Guerra, Museu Municipal - Paços de Ferreira, 25 de Abril a 24 de Maio de 2009

1. Mensagem de Orlando Miguel com data de 9 de Abril de 2009:

O Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Paços de Ferreira, tem o prazer de convidar V.Exa. e família a estar presente na inauguração da exposição temporária "TESTEMUNHOS DE GUERRA", integrada nas comemorações do 35º aniversário do 25 de Abril de 1974, pelas 15 horas, no dia 25 de Abril de 2009 no Museu Municipal Museu do Móvel de Paços de Ferreira.

Contamos com a sua presença





Exposição “Testemunhos de Guerra”

Uma abordagem sobre a presença de Portugal em África, qualquer que seja o prisma dessa observação, é um desafio que tem tanto de aliciante como de arriscado. São inúmeras e diversificadas as fontes de informação disponíveis, são exaustivas as investigações até hoje realizadas. Mas como em qualquer facto que envolve emoções colectivas, as conclusões quanto às razões da nossa presença, à forma humana e social que a revestiu, são divergentes ou até antagónicas.
Se isto é verdade em relação aos acontecimentos distanciados no tempo, a análise do período que decorreu entre 1961 e 1974, ainda recente nas nossas memórias, reveste-se de particular sensibilidade.

Envolvendo cerca de 1.361.596 jovens, e por consequência, todos os seus familiares, afectou um imenso universo humano que, ainda hoje, se questiona sobre as razões de tantos e tão prolongados sacrifícios. O facto é que, de uma forma ou de outra, e por muito que alguns queiram recusá-lo, foram de todos os Portugueses os dias e os longos anos da Guerra Colonial.

A Guerra que Portugal travou durante 13 anos nas nossas ex-colónias – Angola, Guiné e Moçambique, e que teve como desfecho o 25 de Abril de 1974, é o tema que nos propomos tratar nesta exposição.

Este evento é dirigido não só, a todos os que tenham alguma curiosidade em conhecer mais em pormenor o que foi a Guerra do Ultramar, nomeadamente os mais jovens, assim como àqueles que tiveram um papel activo no desenrolar deste acontecimento – os ex-combatentes, permitindo-lhes rever em fotografias alguns locais onde viveram durante a sua permanência em África.

A exposição está dividida em diversos momentos que nos retratam os mais variados aspectos da Guerra, através de uma forte componente fotográfica, apoiada igualmente por armamento e equipamentos militares.

A exposição inicia-se com um painel dedicado aos Antecedentes, onde deparamos com fotos panorâmicas das mais significativas cidades das antigas colónias. A par dessas urbes encontramos imagens em que nos surgem obras públicas de significativa dimensão. A partida das nossas tropas, as condições da viagem e os seus meios de combate perpassam noutras tantas fotos. Num segundo momento da exposição denominado As tropas, seus meios, podemos ver a chegada e o desfile das nossas tropas nas capitais das colónias, bem como a euforia e contentamento da população. Imagens há que nos revelam os meios logísticos utilizados pelos nossos militares ao longo destes 13 anos de Guerra.

O painel A Acção Social, reporta-se à cooperação dos militares com as populações autóctones, com destaque para as relações entre os soldados e as crianças, no âmbito da actividade do psicossocial, constituindo um dado relevante. As iniciativas de carácter social promovidas pelos nossos militares, traduziram-se em contribuições extremamente valiosas nos domínios da acção educativa, económica, sanitária e médica.

Num outro momento da exposição denominado O Inimigo temos a possibilidade de compreender a ideologia e os objectivos dos diferentes líderes e movimentos de libertação existentes em Angola, Moçambique e Guiné. Apresenta-se-nos um conjunto de fotografias da vivência da guerrilha africana, bem como de armamento apreendido pelas nossas tropas. Expostas em vitrines, estão algumas das principais armas usadas pelos guerrilheiros.

Em Os Aquartelamentos, emerge através das fotos o quotidiano da vida dos combatentes, as suas instalações, o seu viver diário, os seus tempos livres, as suas expectativas e os seus trabalhos no decurso de ansiedades e incertezas.

De grande riqueza fotográfica se apresenta o painel Os Combates, com fotografias de situações de combate, de ataques e emboscadas. Imagens dos corpos especiais de combate, com destaque para os Comandos, os Pára-quedistas e os Fuzileiros, têm também lugar nesta exposição. Em exposição podemos observar algumas das principais armas usadas pelas tropas portuguesas neste conflito.

A exposição termina com um sector dedicado Às Consequências desta Guerra, onde se podem apreciar alguns dos tipos de condecorações existentes, como o Colar de Torre e Espada, a Medalha de Valor Militar, a de Cruz de Guerra e a das Campanhas de África.

Também nesta zona da exposição, há lugar para a referência às consequências físicas e psíquicas da Guerra:

Os deficientes e a sua Associação (ADFA);
A listagem dos militares que faleceram: 9.749 mortos;
O 25 de Abril de 1974;
As datas da independência das colónias.
No seu conjunto a exposição “Testemunhos de Guerra” representa com critério uma visão global das fases que marcaram um período recente da história de Portugal.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4093: Agenda Cultural (5): Poetas da guerra colonial em conferência internacional, Coimbra, CES/UC, 30/3/2009 (Cristina Néry)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3921: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (8): Um poema chinês do Séc. VIII com dedicatória à malta de Matosinhos (A. Graça de Abreu)

O nosso camarada António Graça de Abreu, "disfarçado de mandarim", no Palácio Imperial, em Pequim. Ele viveu e trabalhou na China entre 1977 e 1983. É um notável poeta e tradutor de poesia, nomeadamente chinesa clássica. Neste preciso momento, ele está em Pisa, Itália, num encontro internacional de poesia, de onde nos manda um abraço para toda a Tabanca Grande.

O A. Graça de Abreu, "em traje comunista", em Shanghai.

Fotos: © António Graça de Abreu (2009). Direitos reservados

Os Seres, Saberes e Lazeres (8) > Du Fu (712-770), um poeta chinês, e a nossa Guiné (*)

por António Graça de Abreu (**)


Há umas três semanas atrás, quando da apresentação do site da Guerra Colonial, da Associação 25 de Abril, na Academia Militar, disse ao nosso comandante e tertuliano-mor Luís Graça que me diluo pelos dias atarefado, assoberbado com as esplendorosas dificuldades de traduzir mais um dos maiores poetas da China, de nome Du Fu (leia-se Tu Fu).

Esta é a minha quinta tradução, depois dos Poemas de Li Bai (701-762), Poemas de Bai Juyi (774-846), Poemas de Wang Wei (701-761) e Poemas de Han Shan (sec. VIII), todos editados em Macau, excepto o último que aguarda publicação.

Mas o que é que isto ver com a nossa Guiné?

Du Fu, o poeta que agora traduzo, nasceu em 712. A primeira parte da sua vida estendeu-se por uma existência de simples e depurados prazeres, anos requintamente vulgares. Depois, a partir de 750 e até 765 - Portugal então não existia, andávamos às voltas com os visigodos nos espaços que hoje são Aveiro, Santarém, Beja, etc. - o império chinês viveu uma das mais cruentas guerras da sua História. Du Fu testemunhou tudo isso.

A China contava com 56 milhões de almas, e nesse período, as rebeliões, os grandes combates, (chegavam a morrer cem mil homens numa só batalha!), mais a fome e a miséria do povo provocaram 12 milhões de mortos.

Qualquer semelhança com a nossa guerra da Guiné é estulta e insensata, quer dizer, está demasiado longe das realidades que vivemos em África.

Mas, com muitos séculos de permeio, homens made in China ou made in Portugal, todos somos gentes do mundo.

Traduzi o mês passado mais um poema de Du Fu, falecido em 770, e lembrei-me dos nossos camaradas da Guiné, e do álcool que então bebíamos às pázadas, era o nosso modo bem português de, fodidos, refodidos, “dar de beber à dor”.

Fernando Pessoa (1883-1935) dizia: “Boa é a vida, mas melhor é o vinho.” Como a nossa vida não era boa, o álcool era excelente.

Leiam o poema de Du Fu escrito em 754, e digam-me se estas palavras já com treze séculos têm ou não a ver connosco, camaradas da Guiné. E, mais importante do que todas as guerras, têm ou não a ver com a amizade que nos une.

Este (meu) poema de Du Fu (712-770), vai com dedicatória para os camaradas da Tabanca de Matosinhos.

Um forte abraço, meus amigos!
_____________________________


Bêbado, uma canção

Muitos ascenderam ao topo da hierarquia,
tu, meu amigo, continuas a padecer ao frio.
Nas grandes mansões, empanturrados com iguarias,
tu, meu amigo, mal consegues uma malga de arroz.
A tua filosofia, um coração cristalino, pouca ambição,
o teu talento, superior ao dos letrados do passado.
Respeitado pela tua virtude, condenado, sem glória,
a deixar o teu nome para além dos séculos.
És um rústico que não é desta terra,
de cabelos finos, motivo de mofa e zombaria.
Queres arroz, vais ao celeiro imperial,
obténs ainda cinco colheres por dia,
mas se queres abrir o coração,
vem ter comigo, meu amigo.

Quando ganho umas tantas moedas,
cuido de ti, vamos gastá-las em vinho.
Que nos interessa a pompa, o luxo, as cortesias,
somos gente simples, descuidada e livre!...
Meu mestre, enchemos, bebemos as taças até ao fim,
em silêncio na noite da Primavera.
Lá fora, a chuva fina como flores
caindo dos telhados, apagando as lanternas.
Entoamos cânticos, animados, iluminados
por espíritos a montante, a jusante do rio.
Para quê pensar tanto no destino?
Sim, a fome, e por túmulo, uma vala qualquer.
Outrora, um grande poeta lavava canecas de vinho,
um ilustre letrado lançou-se de uma torre.
Quem somos nós, no fim de tudo?
Melhor retirarmo-nos cedo, voltar a lavrar a terra,
cuidar dos telhados de colmo, dos caminhos, do musgo.
Os ensinamentos de Confúcio, afinal para que servem?
Sábio, salteador de estradas, todos regressam ao pó.
Para quê tanta tristeza, tanto queixume?
Estamos vivos, vamos beber umas taças de vinho.



Du Fu (712-770)

(tradução: António Graça de Abreu)

__________


Notas de L.G.:

(*) Vd. últimpo poste da série > 7 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3579: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (7): A Toque de Caixa, com o Abílio Machado, ex-baladeiro de Bambadinca (Luís Graça)

(**) O António Graça de Abreu nasceu no Porto, em 1947, tendo-se licenciado em Filologia Germânica. É também Mestre em História pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.

Entre 1977 e 1983 leccionou Língua e Cultura Portuguesa nas Universidades de Pequim e Shanghai. Investigador da presença portuguesa na China, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e da Fundação Oriente.

Tem uma dúzia de livros publicados na área da Sinologia, da poesia e dos estudos luso-chineses. Vive no Estoril. É actualmente professor, na Escola de Ensino Secundário José Saramago, em Mafra. Disse-me recentemente que ia (ou estava a) tratar da reforma.

Traduziu para português O Pavilhão do Ocidente (1985), teatro clássico chinês, e os Poemas de Li Bai (1990) - Prémio Nacional de Tradução do Pen Club Português e da Associação Pirtuguesa de Tradutores, 1991 - , além dos Poemas de Bai Juyi (1991) e Poemas de Wang Wei (1993). É autor de China de Jade (1997), China de Seda (2001), Terra de Musgo e Alegria (2005) e China de Lótus (2006).

Na área da história, é co-autor de Sinica Lusitana, vol. I e II, (2000 e 2003). Escreveu também a biografia de D. Frei Alexandre de Gouveia, Bispo de Pequim, (1751-1808), Lisboa, Universidade Católica, 2004.

Pertenceu, entre 1996 e 2002, à direcção da European Association of Chinese Studies (Heidelberg e Oxford). Também eccionou Sinologia na Universidade Nova de Lisboa (1986/88) e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (1997/99).

Como alferes miliciano, teve uma visão privilegiada da escalada da guerra da Guiné, entre 1972 a 1974, a partir do CAOP 1 a que pertenceu (Teixeira Pinto ou Canchungo, Mansoa e Cufar). Dessa sua experiência, do seu diário e dos mais de 300 aerogramas que escreveu, resultou o seu 12º livro, Diário da Guiné - Lama, Sangue e Água Pura, lançado em 2007. (Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007. ISBN: 9789898014344. Preço: € 22.

Na resposta a um pergunta sobre os seus heróis, do famoso questionário de Proust, conduzido pelo PEN Clube Português de que é sócio, o António respondeu:
- Os soldados que morreram a meu lado na guerra da Guiné.
(***).

Li Bai, poeta chinês do Séc. VIII (701-762), é um dos seus poetas preferidos, a par de Camões e de Wang Wei.

É casado com uma médica chinesa, de quem tem um filho, hoje estudante universitário. A mulher da sua vida não é, pois, a mesma a quem escreveu centenas de aerogramas quando estava na Guiné.

Tive o grato prazer de conhecer pessoalmente em 28 de Abril de 2007, em Pombal, no 2º encontro da nossa tertúlia. Depois disso, temos já nos encontrámos várias vezes. O António autografou-me e ofereceu-me boa parte dos seus livros, distinção que me honra, como camarada e amigo. Disse-me, na altura em que o conheci, que não desejava voltar à escrita sobre a guerra da Guiné, o que não é inteiramente verdade, já que o António tem sido um atento leitor do nosso blogue e um activo colaborador.

(***) Vd. Pen Clube Português > 30 PERGUNTAS A PARTIR DO QUESTIONÁRIO DE PROUST:


1. O que é para si a felicidade absoluta?
R- Paz, serenidade, amor


2. Qual considera ser o seu maior feito?
R- A minha tradução dos Poemas de Li Bai (701-762), Prémio Nacional de Tradução1990.


3. Qual a sua maior extravagância?
R- Amar.


4. Que palavra ou frase mais utiliza?
R- Não sei.

5. Qual o traço principal do seu carácter?
R- Generosidade, ingenuidade.


6. O seu pior defeito?
R- Teimosia.


7. Qual a sua maior mágoa?
R- Amores desavindos


8. Qual o seu maior sonho?
R- Amores não desavindos.


9. Qual o dia mais feliz da sua vida?
R- Aldeia Branca, início de Junho de 1985.


10. Qual a sua máxima preferida?
R- Se conheces, actua como homem que conhece, se não conheces, reconhece que não conheces. Isso é conhecer. (Confúcio disse!)


11. Onde (e como) gostaria de viver?
R- Canedo, Vila da Feira, numa casa sobranceira a um regato, na floresta com a mulher da minha vida.


12. Qual a sua cor preferida?
R- Verde.


13. Qual a sua flor preferida?
R- Lírios, rosas.


14. O animal que mais simpatia lhe merece?
R- O panda.


15. Que compositores prefere?
R- Beethoven, Mozart, Débussy.


16. Pintores de eleição?
R- Greco, Leonardo, Miguel Ângelo, Goya, Ingres.


17. Quais são os seus escritores favoritos?
R- Eça, Camilo, Cao Xueqin,


18. Quais os poetas da sua eleição?
R- Camões, Li Bai, Du Fu, Wang Wei.


19. O que mais aprecia nos seus amigos?
Honestidade, alegria de viver.


20.Quais são os seus heróis?
R- Os soldados que morreram a meu lado na guerra da Guiné.



21. Quais são os seus heróis predilectos na ficção?
R- Becky, de Tom Sawyer, (Mark Twain), Bao Yu do Sonho do Pavilhão Vermelho de Cao Xueqin (sec. XVIII).


22. Qual a sua personagem histórica favorita?
R- D.João II.


23. E qual é a sua personagem favorita na vida real?
R- Wang Hai Yuan.


24. Que qualidade(s) mais aprecia num homem?
R- A honestidade, a coragem, a lealdade.


25. Que qualidades mais aprecia numa mulher?
R- As mesmas, mais a beleza.


26.Que dom da natureza gostaria de possuir?
R- Uma enorme aptidão para ler e falar bem chinês.


27. Qual é para si a maior virtude?
R- A honestidade.


28. Como gostaria de morrer?
R- Em paz, de repente, concluídos todos os grandes trabalhos.


29. Se pudesse escolher como regressar, quem gostaria de ser?
R- Um grande mandarim chinês do século XVIII.


30. Qual é o seu lema de vida?
R- Amar, trabalhar, descansar.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2911: Poemário do José Manuel (16): Saudades do Douro e do Marão...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "O Fur Mil Simões a refrescar-se no Corubal (1); de costas, o Alf Mil Farinha lia o jornal e alguém se preparava para mergulhar do tronco; ao alto umas pernas de alguém sentado num ramo, roubando o trono ao macaco rei do local".


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "Eu e o Carvalho, Fur MIl Enfermeiro, depois de atingirmos o cume de uma das únicas montanhas que vi na Guiné, os BAGA-BAGA. À falta de melhor, dava para matar saudades do Marão" (1).

Fotos e legendas: ©
José Manuel (2008). Direitos reservados.


2. Mais um dos poemas do dia, escritos pelo José Manuel Lopes, de uma colecção de meia centena que resistiram à fúria do tempo e ao severo exame de auto-crítica do poeta (2).

Recorde-se que ele foi Fur Mil Inf Armas Pesadas, com o curso de Op Esp e a especialidade de Minas e Armadilhas, esteve na CART 6250, em Mampatá, entre 1972 e 1974. Foi mobilizado já com 18 meses de tropa, em rendição individual. Teve conhecimento do nosso blogue, através do programa Câmara Clara, da RTP Dois, da Paula Moura Pinheiro, edição de 24 de Fevereiro de 2004, que foi dedicado à literatura sobre a guerra colonial.

Depois de um longo silêncio, de muitos anos, hoje fala da Guiné com a mesma paixão com que fala do seu Douro e do seu Marão, das suas vinhas e do seu vinho, da sua família e da sua quinta, da sua Régua natal (donde nunca mais saiu, desde que regressou, em Agosto de 1974, com quase quatro anos de tropa) (3)...

Conmheci-o no nosso III Encontro Nacional. Por outro lado, tem aparecido nos almoços de 4ª feira da tertúlia de Matosinhos, na Casa Teresa, e é pessoa de uma grande sensibilidade, generosidade e hospitalidade. Na véspera do feriado do 25 de Abril último, escreveu-me:

"Se vieres neste fim de semana [, cá acima], na Sexta às 8 horas estou a iniciar uma caminhada da Régua ao Marão, com mais 130 caminheiros que acaba num almoço lá na serra, hoje mesmo vou fazer o reconhecimento do percurso, que é duma beleza e paz impressionantes. O resto do fim de semana estou em casa, o meu contacto é 916651640. Um abraço, José Manuel".

Ele autoriza-me que divulgue o seu número de telemóvel, para os camaradas e amigos que passem pela Régua o poderem contactar, conhecerem a sua quinta e provarem os seus vinhos... (LG)


Seria bom esquecer
a nós mesmos perdoar
pelas balas disparadas
pelas minas plantadas
hoje
vejo o mundo pelo avesso
tudo me parece cinzento
oh
que saudades eu tenho
daquele miúdo travesso
pelas vinhas a correr
com os cabelos ao vento
nos carros de bois pendurado
a sair do nosso rio
com o cabelo molhado.

Mampatá 1974
josema

__________

Notas de L.G.:

(1) O Rio Douro e a Serra do Marão eram duas referências constantes do poeta e do combatente, perdido em Mampatá, no sul da Guiné, nas proximidades da margem esquerda do Rio Corubal...

Vd. postes de:

21 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2868: O Nosso III Encontro Nacional, Monte Real, 17 de Maio de 2008 (7): Homenagem a um camarada, poeta e viticultor, o José Manuel

28 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...(...)

(2) Vd. os últimos seis postes desta série >

25 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2884: Poemário do José Manuel (15): Dois anos e alguns meses

17 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2852: Poemário do José Manuel (14): É tempo de regressar às minhas parras coloridas...

15 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2844: Poemário do José Manuel (13): A matança do porco, o Douro, os amigos de infância, os jogos da bola no largo da igreja...

9 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2824: Poemário do José Manuel (12): Ao Zé Teixeira: De sangue e morte é a picada...

2 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2806: Poemário do José Manuel (11): Até um dia, Trindade, até um dia, Fragata

24 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2794: Poemário do José Manuel (10): Ao Albuquerque, morto numa mina antipessoal em Abril de 1973

(3) Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2577: Inquérito online: Uma guerra violenta mas humana (?) (2): A guerra dos pára-quedistas (Manuel Rebocho)

Guiné > Bissau > Pós-25 de Abril de 1974 > Manifestações populares de regozijo mas também de contestação: nesta foto, um manifestante guineense empunha um cartaz onde se lê: "Abaixo a D.G.S." [a PIDE/DGS, a polícia política portuguesa]...

Temos aqui falado muito pouco ou quase nada sobre o o papel da nossa polícia política durante a guerra colonial, na Guiné... Por um lado percebe-se: eles eram aliados dos militares, mas não se misturavam; por outro, a PIDE (mais tarde, DGS, com Marcelo Caetano) existia e até dizem que foi protegida por Spínola, a seguir ao 25 de Abril, em paga dos seus bons serviços na Guiné... Não sei, não estou suficientemente documentado sobre este lado mais sombrio da nossa presença na Guiné... De qualquer modo, os seus métodos mudaram, quando comparamos o consulado de Spínola (1968/73) com o dos seus antecessores... Tal como Deus, a PIDE/DGC era descrita como omnipotente, ominisciente e omnipresente... O que era um mito: o falhanço da Operação Mar Verde é hoje imputado, em grande parte, à incompetência da nossa intelligence que estava, em grande parte, concentrada na PIDE/DGS...

De qualquer modo, o mito funcionava internamente. Eu nunca escrevi um aerograma porque estava intimamenet convencido que a PIDE/DGS os lia todos... Que santa ingenuidade a minha! De qualquer modo, só vi uma única vez agentes da PIDE/DGS... Foi em Bafatá. Fui então testemunha, involuntário, à mesa de café, da estupefacção de um dos agentes perante a nova política de Spínola em relação aos nacionalistas do PAIGC e ao tratamento dos prisioneiros em combate (1).

Foto: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.

Guiné > Região Leste > Bafatá > Soldado ferido em operações... Nenhum combatente nosso, ferido ou morto, ficava para trás...

Foto do João Varanda (ex-Fur Mil, CCAÇ 2636, Có/Pelundo e Teixeira Pinto; Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1969/71).

Foto: © João Varanda (2005). Direitos reservados.


Guiné > Região do Cacheu > CCAÇ 3 > Barro > 1968> Um prisioneiro do PAIGC.

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados.

"Sempre foi minha preocupação não matar população civil (...). Mas era difícil, pois a visão e a filosofia da vida deles [ os meus soldados balantas da CCAÇ 3, ] era diferente. Um dia, por exemplo, foi apanhado no meio de um tiroteio um velho cego.
- Mata! - foi a reacção.
- Não, disse eu - Mas foi complicado.

"Numa das tais operações do COP 3, não sei já qual, um guerrilheiro do PAIGC levou uma rajada no baixo ventre e ficou com os tomates pendurados. Disse para fazerem uma maca para o levarem. Fizeram a maca, mas não o quiseram levar:
- Alfero, deixa estar, vem jagudi e come ele...
- Não!

"Eu e um furriel pegámos na maca e começámos a atravessar uma bolanha com água pelo pescoço. A meio da bolanha, vieram dois e disseram:
-Alfero, a gente pega.

"Chegámos à base de operações, onde estava o tenente-coronel Correia de Campos, um helicóptero e uma enfermeira pára-quedista, e, azar, o homem do PAIGC morreu.

"Em frente destes, formei o grupo de combate e, porque estava furioso, chamei-lhes todos os nomes. O tenente-coronel Correia de Campos estava de boca aberta. É evidente que nós, os ocidentais, temos uma maneira de ver as coisas, a vida e a morte, de uma forma diferente. Assim como outras, por exemplo, a democracia e a política". (A. Marques Lopes)


1. Mensagem, de 21 do corrente, do Manuel Rebocho:

Camaradas

Entendeu o camarada Luís Graça individualizar, de um texto meu, a expressão “a guerra em que eu participei foi violenta, mas humana”. Deixei a frase “à solta”, sem a explicar, o que parece que se impõe agora, face às opiniões, entretanto surgidas (2).

A questão “Guerra Humana” é fracturante, sem dúvida alguma. Contudo, este assunto não fica limitado aos combatentes da Guiné, é extensivo a todo o mundo e a todos os tempos. Sobre ele já foram escritos inúmeros tratados e se debruçaram pensadores, como Chris Argyris, Raymond Aron, T. B. Bottomore, Carl Von Clausewitz, Lewis Coser, Gaston Courtois, Ortega Y Gasset (autor da célebre frase “eu sou eu e as minhas circunstâncias"), Samuel Huntington, Adriano Moreira, Sun Tsu e tantos outros, sem que chegassem a uma posição unânime. Estes ilustres pensadores não conseguiram uma definição que a todos satisfizesse ou enquadrasse todas as situações que uma guerra provoca. Também não vamos nós consegui-lo, seguramente.

Não me querendo, tão-pouco, assemelhar com qualquer destes pensadores, tenho a minha própria definição sobre a matéria.

Guerra violenta:

Corresponde ao que acontece durante os combates, que podem ser mais ou menos frequentes; ter uma maior ou menor duração; as baixas podem ser maiores ou menores; cada combate de per si pode conter uma maior ou menor perigosidade, consoante o número de homens envolvidos, armamento utilizado e distância entre os combatentes, entre outros aspectos (não pretendo escrever nenhum tratado). No que às minas se refere, dou-lhe total equivalência a um combate.

Neste sentido há duas considerações a seguir: uma diz respeito à guerra que cada um de nós enfrentou, que corresponde à componente individual (e eu falei da minha); outra consideração diz respeito à resultante de todas as componentes individuais, a qual define a guerra que travamos.

Guerra humana:

Por guerra humana entendo a maneira como são tratados, pelos vencedores, os inimigos feridos ou aprisionados (3) e a própria população das zonas ocupadas militarmente por forças alheias aos territórios, onde as guerras se desenvolvem.

Um pouco para demonstrar que o meu pensamento não é de hoje, nem foi escrito levianamente, transcrevo, na íntegra, a página 346 da minha tese de doutoramento:

“A 1 de Maio desse ano de 1973, no decurso da operação Tabica Texuga [relembro que tenho os relatórios das operações em meu poder], em Caboxanque, empenhando o 2.º e 3.º Pelotões (da CCP 123), Sousa Bernardes revelou mais uma vez a sua capacidade criativa, quando detectou, atravessando uma bolanha, um grupo de 10 Guerrilheiros e, numa inteligente manobra táctica, surpreendeu-os no seu aquartelamento. Do contacto resultou a morte de três dos Guerrilheiros, vários feridos e a captura de diverso material e armamento.

"Mulheres e crianças que estavam misturadas com os Guerrilheiros fugiram dos combates para a bolanha. Os Pára-Quedistas, em mais uma manobra de rigor, preferiram deixar fugir alguns Guerrilheiros a matar inocentes e nenhuma mulher ou criança foi atingida. Uma idosa doente, que não conseguiu fugir, foi tratada pelo Enfermeiro Aguiar e foi deixada no seu tabancal. As nossas tropas não sofreram qualquer consequência.

"Se entre o grupo dos Sargentos havia um que já se distinguira e diferenciava dos restantes, Sousa Bernardes, com mais esta atitude, mostrava que os Oficiais também se diferenciavam pela sua criatividade. Neste ponto, não se pode deixar de fazer uma referência. Houve, durante a Guerra, quem conseguisse grandes êxitos militares, mas à custa de consideráveis baixas para as nossas tropas, a esses não os apelido de criativos, mas de aventureiros que arriscam a vida dos seus homens, mas sem consciência do que estão fazendo. Sousa Bernardes não foi assim, arriscou com prudência, cautela e autoridade, concebendo criativamente as manobras, pelo que pode afirmar que as estrelas que usa são «suas», ninguém lhas deu.

"No relatório do Comando sobre esta operação consta a seguinte passagem: 'por informações dadas pela população a identificação de 2 dos mortos é a seguinte: Ancanha, Comandante de bigrupo, natural de Fabrate, e Bunhé, natural de Flaque Injã', ambos reputados combatentes nas hostes inimigas. Sousa Bernardes não se tinha enfrentado com milícia vulgar, o que deixa evidente que a qualificação do combatente depende do valor humano e da experiência. Os conhecimentos adquiridos na Academia Militar eram iguais aos de todos os outros Oficiais de carreira e nenhum, dos que me comandaram e fui comandado por 6 Capitães, 4 na Guiné e 2 em Angola, era como ele.

"Esta mesma opinião teve o Comandante do Batalhão, quando escreveu no seu relatório acerca de Sousa Bernardes: '...A sua posição na primeira linha incutiu confiança e galvanizou os seus subordinados... É aqui que os combatentes se diferenciam: no fazer, porque no mandar são todos iguais. Recorrendo a uma afirmação que circula nos meios militares de uma frase atribuída a Napoleão - Os exércitos ou se puxam ou se empurram - , julgo que se puxam pela competência, pelo exemplo e pela liderança, e se empurram pela autoridade repressiva".

Nesta 346.ª página, que foi escrita há anos e pode ser consultada na dezena de locais onde as teses são disponibilizadas, observam-se as duas situações: a guerra violenta reflectida no combate que se travou entre um bigrupo de Pára-Quedistas e um bigrupo de forças do PAIGC; e a guerra humana reflectida no risco que se correu, ao deixar-se fugir guerrilheiros para não atingir nem mulheres nem crianças e, mesmo depois, ao tratar-se a idosa doente.

Diferentemente seria se o ataque tivesse sido indiscriminado e se tivessem matado as mulheres, as crianças e a idosa. Neste caso estaríamos perante uma guerra desumana.

Admito que nem todos vejamos as diferenças, e que haja quem considere que guerra é guerra, mas também penso que tenho o direito de pensar e descrever a guerra em que eu participei. Que foi esta. No campo do individual, cada um de nós fala da guerra em que participou.

A este propósito recebi uma carta do Padre Pinho, Capelão dos Pára-Quedistas, durante o tempo da Guerra, na qual me manifesta a sua concordância pela abordagem que eu faço à guerra humana, referindo-me que os Pára-Quedistas tinham efectivamente esta doutrina.

Um abraço

Manuel Rebocho [ ex-sargento pára-quedista da CCP 123 / BCP 12 (Guiné, Maio de 1972/Julho de 1974), hoje Sargento-Mor Pára-quedista, na Reserva, e doutorado pela Universidade de Évora em Sociologia da Paz e dos Conflitos (tese de doutoramento: "A formação das elites militares portuguesas entre 1900 e 1975")]
______________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 29 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLVIII: Comerciantes de Bafatá: turras ou pides ? (Manuel Mata)


"(...) Comentário de L.G.:

"Manuel Mata: Estes elementos são preciosos... Eu nunca insinuei que o Teófilo fosse da PIDE/DGS... Pelo contrário, ele deveria ser contra a situação (o regime político então vigente desde 1926), só assim se explica que ele tivesse sido deportado para a Guiné no princípio dos anos 30... Nalguns sítios (como Bambadinca, que eu conheci melhor) havia a suspeita de os comerciantes locais serem também informadores da PIDE ou jogarem com um pau de dois bicos... Eu penso que, aos olhos da tropa, isso devia acontecer em todos os os postos administrativos e localidades de menor importância onde houvesse comerciantes (portugueses, caboverdianos ou libaneses)...

Essa estória do PIDE que levou porrada numa tabanca (iam-lhe cortando o nariz, à dentada) ouvia-a eu ao próprio, em Bafatá, creio que na Transmontana... Hei-de contá-la aqui, um dia destes. Lembro-me que de ouvir a conversa dele (eu, incomodado, com a presença deles, numa mesa de alferes e furriéis milicianos de Bambadinca)...O fulano - que, se bem me lembro, falava alemão, por ter sido emigrante, com os pais, na Alemanha - estava lixado com o Spínola, por que na época (c. 1970) já não se podia fazer justiça pelas mãos próprias como nos bons velhos tempos do colonialismo...

"Uma última pergunta: alguma vez vistes os pides locais frequentarem o café do Teófilo ? Pelo que me contas, ele não gostava mesmo deles, o que vem confirmar a minha teoria de ser o Teófilo um velho antifascista... (ou do reviralho, como diriam os pides). Infelizmente não tive com ele a mesma intimidade que tu tiveste!" (...).


Já publicámos, na 1ª Série do nosso blogue, alguns postes sobre a colaboração da PIDE/DGS com as Forças Armadas e vice-versa, no TO da Guiné, mas ficámos mais pela opinião do que pela apresentção e discussão de factos, de situações concretas, vividas ou testemunhadas, o que se enquadra bem no espírito do nosso blogue:

30 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVI: Guerra limpa, guerra suja (1)

"O João Tunes acaba de publicar, no seu blogue, um post com o título Guerra limpa, guerra suja, em relação ao qual pede o feedback da nossa tertúlia. Com a devida vénia, passo a transcrever aqui o seu conteúdo, aguardando que este suscite os comentários dos nossos tertulianos. O assunto é delicado mas não podemos ignorá-lo ou escamoteá-lo. Um dia teríamos que falar disto, mesmo que fosse incómodo ou doloroso... L.G" (...).

30 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVII: Guerra limpa, guerra suja (2)

"Resposta do Marques Lopes ao João Tunes:

" (...) É verdade que a PIDE tinha esse principal papel, e eu assisti, em Bafatá, ao início da tortura de um prisioneiro por essa polícia e por um capitão de informações. Revoltei-me e fui-me embora, quando vi meter o homem num bidão de água até ele gorgolejar.

"Em Geba, os alferes que estávamos tivemos que nos afastar um dia (o Maçarico viu e que conte, o Luís Graça conhece-o) quando o capitão (que até morreu lá) e o primeiro-sargento deram tal enxerto de porrada a outro prisioneiro que este se borrou todo e se mijou.

"Em Barro, sei de um alferes que, duma só vez, matou dez elementos da população civil controlada pelo PAIGC" (...).

(2) Vd. poste de 20 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2563: Sondagem: Uma guerra violenta mas humana ? (1): Nem santa nem suja (Francisco Palma / Virgínio Briote / Carlos Vinhal)

(2) Vd. postes de:

10 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

"(...) Já nem sequer se pode tocar no cabelo de um preto (Capitão P.)

A propósito, como os tempos mudam, meu caro!.. Em conversa com um sargento de cavalaria que teve o Velho como comandante de batalhão no Norte de Angola – conversa a que ocasionalmente assisti -, o Capitão P. (que eu não sei, nem me interessa saber, se é miliciano, ou se é do quadro, ça c'est m´égale!), mostrava-se vexado (o termo é dele) pelo facto do então tenente coronel [Spínola] ameaçar executar, in loco, sumariamente os guias nativos que mostrassem a mais pequena hesitação na escolha dos trilhos ou os carregadores que deliberadamente deitassem fora a água dos jericãs...

- E agora, como Com-Chefe na Guiné, não permitir sequer que se toque no cabelo de um preto!

"Bissau, enfim, porto de fuga e salvação!... Embora não se possa exactamente prever até onde tudo isto irá parar, com a actual escalada da guerra, de parte a parte, aqui tu tens ao menos a reconfortante sensação de teres as malas sempre feitas, pronto a partir em qualquer altura… Mas nada te garante que embarques a tempo: é que estamos todos metidos num atoleiro e em vias de perder o último avião!...Make love, not war. Um abraço. Até mais logo. Talvez apanhe o barco da Gouveia, amanhã. Já estou farto desta merda" (...).


(3) Sobre prisioneiros feitos pelas NT, vd. postes de:

20 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2564: Prisioneiros: Havia um tratamento decente, no meu tempo (António Santos, Nova Lamego, Pel Mort 4574, 1972/74)

20 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2560: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (10) - Parte IX: A prisioneira é violada...

18 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2552: Estórias de Guileje (8): Como feri, capturei e evacuei o comandante Malan Camará no Cantanhez (Manuel Rebocho, CCP 123 / BCP 12)

16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2443: Pami Na Dono, a Guerrilheira, de Mário Vicente (8) - Parte VII: O prisioneiro Malan é usado como guia (Mário Fitas)

1 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2396: Estórias (secretas) dos nossos criptos (1): Braimadicô, o prisioneiro (Albano Gomes)

30 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2391: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (7) - Parte VI: Malan é entregue à PIDE de Catió (Mário Fitas)

10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)

15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça)

25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)