Mostrar mensagens com a etiqueta massacres. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta massacres. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20150: Notas de leitura (1218): “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
Quem pretenda conhecer os rumos da historiografia atual, os modos de investigar e comunicar ao grande público algo que permanece enevoado e numa teia de contradições, este livro é de leitura obrigatória. Nenhum de nós desconhece o que se passou na manhã de 16 de Dezembro de 1972, num pequeno local do Tete, tem vindo a ser referido em artigos, reportagens, filmes e romances. A 6.ª Companhia de Comandos recebeu ordens de "limpar" aquele local, e o morticínio atingiu quatro povoações vizinhas ao longo do rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabué, a Zâmbia e o Malawi. O historiador pega nos dados conhecidos e desconhecidos e desce ao local, conversa com os sobreviventes de diferente ordem: as vítimas, os missionários, os dirigentes políticos nacionalistas, os militares portugueses. O resultado é um documento prodigioso, que pode ser exemplo para outras vias da historiografia do período colonial. De leitura compulsiva, este massacre há de permanecer como um problema de consciência a aguardar apaziguamento, com a explicação e pedido de perdão.

Um abraço do
Mário


O massacre português de Wiriamu: uma extraordinária investigação

Beja Santos

Mustafah Dhada é um historiador moçambicano doutorado em Oxford e professor na Universidade da Califórnia. A historiografia da Guiné deve-lhe um importantíssimo trabalho, infelizmente nunca traduzido em língua portuguesa, Warriores at Work: How Guinea was really set free (Niwot: University of Colorado Press, 1993).

“O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada, Tinta-da-China, 2016, é uma peça da melhor filigrana dos métodos historiográficos atuais: mostrar o que é dado como consabido, pôr a nu omissões e contradições, gerar envolvimento levando os protagonistas ao local dos acontecimentos, contextualizar o que motivou o massacre e quais as suas consequências, do particular ao geral.

Na manhã de 16 de Dezembro de 1972, tropas coloniais portuguesas reuniram os habitantes da pequena aldeia de Wiriamu, perto de Tete, em Moçambique, na Praça Central e ordenaram-lhes que batessem adeus e que cantassem para se despedirem da vida. Em seguida, militares da 6.ª Companhia de Comandos abriram fogo e lançaram granadas. Incitados pelo brado “matem-nos todos”, os militares levaram a mortandade a quatro povoações vizinhas ao longo do rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabué (Rodésia, à data dos acontecimentos), a Zâmbia e o Malawi – uma região designada pelos missionários católicos como ‘a terra esquecida por Deus’. No final do dia, perto de 400 aldeões tinha sido mortos e os seus corpos eram lentamente consumidos pelas chamas em piras funerárias pelos soldados com o capim que cobria as palhotas. Peter Pringle, um jornalista inglês que procurou apurar a verdade ao tempo, e que foi expulso pelas autoridades coloniais, descreve estes factos no prefácio da obra.

Quem conseguiu escapar relatou os acontecimentos aos missionários locais, a informação chegou a Espanha e ao Reino Unido. Sensivelmente meio ano mais tarde, a 10 de Julho de 1973, em vésperas da visita de Marcelo Caetano a Londres, o jornal inglês The London Times denunciava na primeira página o massacre. As autoridades portuguesas repudiaram a notícia, chegando mesmo a negar a própria existência do lugar. Seria por via deste artigo que Mustafah Dhada, então um jovem moçambicano em Londres, teria contacto com os acontecimentos que marcariam a sua vida académica. Ao longo da sua carreira de investigador, Dhada foi publicando diversos artigos sobre esta matéria, obteve depois uma bolsa que lhe permitiu trabalho no terreno, e foi assim que ele consolidou uma investigação de décadas.

A grande surpresa, observa Peter Pringle, é que cerca de 40 anos depois do massacre, muita bruma e desconhecimento continuada a rodear a verdade daquilo que se passou, di-lo claramente: “Ao longo dos anos – em artigos, livros, revistas académicas, dois romances e um documentário, diversos autores procuraram reconstituir o que de facto aconteceu. Todavia, não tem sido fácil recompor a história de Wiriamu. Os relatos são escassos. Documentos oficiais importantes perderam-se, foram deliberadamente destruídos ou nunca existiram. Os arquivos do movimento de libertação, a FRELIMO, são incompletos. O contacto com testemunhas foi e continua a ser problemático".

O que torna este documento uma obra ímpar, de leitura obrigatória, é a metodologia e o primor da escrita, com um pendor para a reportagem (que a tem) e uma análise rigorosa no trabalho do terreno, tudo estruturado como deve ser: quem era quem na luta nacionalista e como se processava a guerra, o leitor não iniciado ficará a aperceber-se de que a história da FRELIMO incluiu rancores, assassinatos e turbulência ideológica interna; apercebemo-nos da crescente importância de Tete na evolução da guerra e como a ameaça era pressentida pelas autoridades coloniais e militares, ali se viveu, como em muitos outros confrontos, o papel dramático das autoridades locais metidas entre dois focos, como escreve Dhada: “Wiriamu e o seu régulo estavam condicionados pelos imperativos da sobrevivência e da defesa do interesse colectivo. Não lhes restava outra alternativa senão permitir o acesso da FRELIMO aos seus desfiladeiros para transporte de armas, e autorizá-las a recrutar homens na região do triângulo para ingressarem nas suas fileiras”; é relevado o papel da igreja de Tete, também ela obrigada a respeitar a autoridade portuguesa e a dar cuidados aos seus fiéis, Dhada ilustra atos de violência anteriores e outros que se seguiram a Wiriamu e qual o comportamentos dos missionários; Dhada devolve humanidade a Wiriamu, conta a sua história, mas antes, mostra-nos o que logo constou da informação e se tornou público sobre o massacre e como aos poucos as próprias autoridades portuguesas tiveram que explicar que tinha havido excessos, mas nunca dizendo quais, na Operação Marosca; são páginas muito belas as que Dhada escreve sobre o triângulo de Wiriamu, será porventura a voz do sangue que o leva a narrativa tão primorosa que mete riachos, rios e charcos e mesmo feitiçaria, como era a vida a aldeia, como este microcosmo funcionou até que tudo se extinguiu em cinzas; temos depois a anatomia do massacre, a chegada dos Comandos comandados por Antonino Melo, é um texto horripilante onde até um sentimento de compaixão comparece:  
“Em Wiriamu, as execuções correram de forma expedita. Enquanto alguns militares incendiavam palhotas cheias de pessoas, Antonino Melo encaminhava, pessoalmente, outros habitantes para a palhota dos Tenente Valete, uma das maiores da povoação. Foi uma tarefa fácil, pois muita gente já se encontrava ali devido às festividades. Em determinado momento, Antonino Melo sentiu um puxão na perna. Baixou a cabeça e os seus olhos cruzaram-se com os dela. Uma menina com menos de dez anos agarrava-se a ele com força e recusava-se a avançar. Não conseguiu libertar-se. Melo ordenou, então, aos seus homens, que retirassem a mãe da criança do interior da palhota e disse a ambas para fugir dali. 23 anos mais tarde, ao ser informada que Antonino Melo seria entrevistado no âmbito do projecto, a menina, então uma mulher adulta, pediu que lhe fosse transmitido o seu agradecimento por lhe ter salvado a vida”.

A conclusão da obra é um monumento de síntese, por ali desfilam a lógica colonial, os constrangimentos da Igreja e os seus conflitos com o poder político e militar, a importância daquele local, o branqueamento que se pretendeu depois do massacre, o que era a vida e a identidade daquelas gentes de Wiriamu. Do lado português, permanece o silêncio. E assim termina o documento histórico: “A única resposta que oiço é o som ensurdecedor de um silêncio que me gela o sangue. De facto, diante de massacres como este, quem precisa de uma consciência?”.

É um livro magnífico, e até me apetece perdoar a Mustafah Dhada o incompreensível dislate de dizer que Amílcar Lopes Cabral era um engenheiro agrónomo natural de Cabo Verde.

Mustafah Dhada
Foto: Jornal Público, com a devida vénia

____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20140: Controvérsias (135): as duas noites de terror, em Farim, as de 1 e 2 de novembro de 1965, para as vítímas (mais de uma centena) do atentado terrorista, e para os indivíduos (mais de sessenta, o grosso da elite económica local) detidos e interrogados pela tropa pela PIDE, por "suspeita de cumplicidade"...


Cabeçalho do jornal "O Democrata", Guiné-Bissau, edição de 13 de novembro de 2014




Guiné > Região do Oio > Mapa de Farim (1954) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Farim, Nema e Morocunda, bairros de Farim, e Bricama.

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)


1.  Reproduzimos, agora em texto,  excertos  da História da Unidade - BART 733 (Farim,  1964/66), págs. 116/118, relativos ao massacre da noite do dia 1 de novembro de 1965, em Morocunda, à evacuação imediata dos feridos graves, por um Dakota (que aterrou em Farim em plena noite, à luz de archotes e de faróis de viaturas automóveis,  facto então inédito no CTIG), bem como à subsequente detenção e interrogatório pela PIDE e pelos militares de mais de 60 indivíduos da população local, suspeitos de envolvimento no atentado, representando o grosso da "elite económica" de Farim, na época: nada menos do que 8 comerciantes,  4 industriais,  4 escriturários da administração local,   3 enfermeiros, 2 gerentes,  2 empregados comerciais e 2 empregados dos CTT, entre outros (*)

(...) Período de 1 a 30 de novembro [de 1965}:

Secções da CART 731 [mais]  secções da CCS do BART 733] transportaram feridos e mortos devido ao rebentamento de um engenho explosivo lançado por elementos subversivos durante um batuque, que se realizava no bairro da Morocunda [, no original, Morucunda,] pelas 21h30

O rebentamento do engenho causou a morte de 27 indivíduos, 70 feridos graves e vários feridos ligeiros, todos civis.

As NT sofreram um ferido grave que assistia ao evento, o qual foi evacuado com os civis mais graves num Dakota no dia [ seguinte,] 2 [ de novembro,] pelas 1h30 para Bissau e 3 feridos ligeiros, sendo dois da CART 731 e um da CCS.

Em virtude deste atentado, foram logo detidos pelas NT 12 indivíduos considerados suspeitos.

(…) O atentado no bairro de Morocunda [, no original, Murucunda,] em Farim, de características inéditas na Província, foi puro acto de terrorismo visando a população civil a fim de suster o regresso da população refugiada no Senegal e fazendo debandar a já existente, ferindo a economia da Província e tornando difícil a vida às NT nas quais se espelharia um estado de confusão que, convenientemente explorado, espalharia o ódio e a desconfiança entre a população que permanecesse em Farim e as NT.

A pequena percentagem de baixas sofridas pelas NT reside no facto de, [na véspera,] no dia 31 de outubro [ de 1965,] se ter realizado a “Operação Canhão” e a maioria do pessoal já estar recolhido na hora do atentado.

Das primeiras averiguações efectuadas pode concluir-se o seguinte: foram lançadas duas granadas de mão, acopladas com duas cargas explosivas, constituindo um único bloco ao qual tinha[m] sido adicionado[s] pregos e lâminas.

O engenho foi fabricado com o fim de ser lançado num batuque ou ajuntamento festivo por um nativo que prestava serviço na Companhia de Milícias [nº 5] [, o soldado Issufe Mané], e que se prontificou a fazer tal trabalho a troco de 14.000$00 [,o equivalente hoje a 5.485,20 €, ou tratando-se de escudos da Guiné, 4936,68 €, dado a diferença cambial real de 10% entre o escudo da metrópole e o "peso" local].

O planeamento para o lançamento do engenho teve lugar na primeira quinzena de setembro [de 1965], quando esteve em Farim, vindo de Conacri, um emissário do Partido, transmitindo então ao Júlio Lopes Pereira, gerente da sucursal da Casa Ultramarina em Farim, instruções para o seu lançamento.

Duas granadas vieram de Conacri, na segunda quinzena de outubro [de 1965], com destino a Bricama, e trouxe-as Paulo Cabral, preso a 28 de outubro na sua canoa com um carregamento de coconote. O mesmo Paulo Cabral deveria trazer, mais tarde, outras duas, para continuar a série de atentados.

O autor da manufatura e composição do engenho foi [o] Júlio Lopes Pereira, chefe na zona, que, juntamente com Jorge João Campos Duarte, dirigia e concentrava as atividades do PAIGC, re que se encontrava diretamente dependente do diretório do PAIGC em Conacri, donde recebia instruções e para onde enviava os seus relatórios.

Foram apreendidos pela PIDE 18500$00, destinados ao PAIGC, donde sairiam os 14000$00 para o autor do lançamento que não [os] chegou a receber porque após o incidente [sic] foram as prisões dos indivíduos suspeitos.

Há muito que o Comando do Batalhão vinha insistindo superiormente para a substituição, a casa Ultramarina, do autor moral do crime, Júlio Lopes Pereira, em virtude de factos ocorridos e relatados que o tornavam fortemente suspeito. Os factos presentes vieram confirmar que a opinão , várias vezes expressa pelo Comando, a respeito do indivíduo referido, não era produto de facciosismo ou animosidade injustificada para com este.

No dia 2(…), um 1 Gr Comb da CART 731 patrulhou a vila de Farim. Na manhã deste dia encontravam-se já detidos 60 indivíduos [, no aquartelamento de Nema] , na sua maioria já de há muito referenciados como colaboradores do IN. Na prisão dos referidos indivíduos colaborou com as NT o agente da PIDE [, de apelido Prosídio (?), e que não era "bafa meigo", segundo o nosso camarada António Bastos, do Pelotão de Caçadores 953, que o conheceu, e que estava em Farim nessa noite, em trânsito para Canjambari], numa atuação rápida e eficiente digna de registo. 

De salientar o facto de a maioria dos presos serem civilizados (sic: leia-se, gente de origem europeia e cabo-verdiana), servindo-se das suas atividades normais para propagar a subversão do meio da população nativa (sic). (...)


2. Nas páginas 117/118, vem a lista dos indivíduos detidos, por nome e profissão… Não era "normal" as histórias de unidade, no CTIG, trazerem listas nominais de civis, "suspeitos de atividades subversivas" (**)...

Do total dos 64 detidos, listados, apuramos o seguinte, por  profissão e género: 

(i) A grande maioria eram homens (91%), mas havia 6 mulheres, 4 domésticas, 1 costureira, e uma Maria da Conceição dos Reis Cabral (, pelo apelido, seria eventualmente esposa de Paulo Cabral, já preso dias antes, em 28 e outubro de 1965);

(ii) a maioria dos detidos eram lavradores (14), comerciantes (8), industriais (4), escriturários da administração de Farim (4) enfermeiros (3), gerentes (2), empregados comerciais (2), empregados dos CTT (2), gente "civilizada" (sic), uma boa parte talvez de origem metropolitana ou cabo-verdiano, como o José Maria Jonet, com exceção dos "lavradores", que tinham nomes "nativos"… [os gerentes eram de duas das casas comerciais mais importantes do território: a Casa Ultramarina, o Júlio  Lopes Pereira, e a Casa Gouveia, o Henrique Morais Silva Lopes Ribeiro];

(iii) mas também havia nativos, maioritariamente de etnia mandinga, a avaliar pelos nomes: além dos lavradores (14), foram detidos gilas (4), furadores (2), sapateiros (2) e carpinteiros (2);

(iv) e ainda outros, de diversas profissões: além do soldado milícia (, de seu nome Issufe Mané, acusado de ser o autor material do atentado), um tingidor de panos, um auxiliar de mecânico, um ajudante de motorista, um pintor, um bailarino, um pescador, e ainda um cidadão estrangeiro, senegalês, ou residente em território do Senegal, de nome Iussufe Sané.

Tudo indica que, para estes civis, o dia seguinte, 2 de novembro de 1965 também terá sido de pesadelo. A vida económica de Farim deve trer ficado seriamente afetada por uns tempos. E, muito provavelmente, as  vidas destes homens e mulheres não terão sido  mais as mesmas. Conseguimos apurar alguns elementos informativos sobre alguns destes detidos... Alguns seriam nacionalistas, simpatizantes ou até militantes, de 2ª ou 3ª linha,  do PAIGC. Mas a maioria terá sido a "apanhada a jeito e a eito"... Qual terá sido o seu destino ? Há rumores de que alguns terão sido torturados até à morte ou simplesmente executados pela tropa ou pela PIDE:

(i) José Maria Jonet,  comerciante: 

Nascido em São João Baptista, Ilha Brava, Cabo Verde, em 26 de dezembro de 1906: falecido em outubro de 1966, em Bissau, com 59 anos de idade [, repare-se: menos de um ano depois da sua prisão, em Farim]: era casado com Georgina do Livramento Quejas, deste 1937. 

Fonte: página de Barros Brito, "Genealogia dos cabo-verdianos com ligações de parentesco a Jorge e Garda Brito, a seus familiares e às famílias dos seus descendentes"

(ii) Dionísio Dias Monteiro, comerciante:

(...) "Amílcar Cabral nos dizia que devíamos trabalhar como uma pirâmide. Isto é, o núcleo principal e de contactos permanentes seria pequeno, mas cada um devia ter a sua "Célula". Eu, por exemplo, tendo como Célula a Zona Velha da Cidade de Bissau (pois morava nessa zona), nunca tive contacto com Rafael Barbosa. Só mais tarde vim a saber dele, como sendo um dos principais activistas políticos desde anos 40 e um dos mentores da criação do Partido.

Para além das Células, estabeleceram-se pontos focais, ou seja elos de ligação no interior do País. Por exemplo, o elo de ligação em Farim era o Dionísio Dias Monteiro; em Bolama era Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai); em Catió era Manuel da Silva" (...)

Fonte: Depoimento de Elisée Turpin, cofundador do PAIG.

  
(iii) Pedro Tertuliano Ramos Salomão, comerciante: encontrámos um nome igual, a única informação disponível é de que terá morrido na Amadora, por volta de 2009; em 2014, constava, em aviso da CM da Amadora, o seu nome, indo-se proceder à exumação dos seus mortais, uma vez ultrapassado o prazo legal da inumação. Fonte: CM da Amadora

(iv) Júlio Lopes Pereira, gerente da Casa Ultramarina, sucursal de Farim, considerado o "autor moral" do atentado, e que terá morrido em novembro de 1965, às mãos da PIDE de Farim:

(...) "Desaparece uma jornalista em Angola, desde Junho de 2012, chamada Milocas Pereira e até hoje, ninguém sabe do seu paradeiro. Tudo indica que o seu desaparecimento esteja estritamente ligada a questões políticas e ligações entre o governo de Angola e governo então deposto na Guiné-Bissau. Desde o seu desaparecimento existiu, um silêncio total por parte das duas entidades, e nunca nenhum deles se pronunciou sobre o desaparecimento desta figura, docente numa Universidade em Luanda, analista de assuntos políticos e filha de um activo militante da luta contra o regime colonial português, morto em Farim nas celas da DGS/PIDE em Novembro de 1965. Os dados sobre a morte de Júlio Lopes Pereira, seu combate e desaparecimento, constam dos arquivos da Torre do Tombo em Portugal" (...). 

Fonte: blogue de Paté Cabral Djob, "Conosaba do Porto" > 22 de maio de 2014 > Celina Tavares: "Onde está adra. Milocas Pereira?"]

3. Este será um dos mais tristes e negros episódios da história da guerra do ultramar, da guerra colonial, ou da "guerra de libertação" , como se queira (conforme o  "lado da barricada"). Não nos honra como seres humanos, não honra ninguém que tenha estado envolvido nos acontecimentos. Passados mais de 50 anos, ainda é um acontecimento que ninguém quer lembrar. Raramente é referido pelas "cronologias" da guerra, e pelos historiógrafos, de um lado e do outro. Do lado do PAIGC, há um estranho silêncio sobre esse episódio. Do lado do exército português, também há pudor em evocá-lo. O horror ficou, indelevelmente marcado na memória das vítimas, na altura crianças, que lhe sobreviveram. "Mártires do terrorismo": há um monumento e um largo, hoje em Farim, que nos deixam apagar a memória...

Cite-se, por exemplo, o testemunho do sobrevivente e vítima do "ataque terrorista" (sic), Carlos Malam Sani [ou Sané ?], recolhido ainda há três anos atrás pelo jornal de Bissau, 'O Democrata':

(..:) "Um dos momentos marcantes da referida sessão foi quando o velho Carlos Malam Sani, um dos sobreviventes e vítima “do ataque terrorista” de Morkunda de 1 de Novembro de 1965, na altura com doze anos de idade, com uma voz trémula e emocionado, começou a narrar para os estudantes [da Universidade Lusófona de Bissau], na primeira pessoa, como tudo acontecera há 51 anos durante uma manifestação cultural da etnia mandinga “festa de Djambadon”, que decorria no coração de Farim, provocando mais de trinta mortos e vários feridos 
graves. (...). 

Fonte: O Democrata, Guiné-Bissau > Sene Camará > 2/5/2016 > Universidade Lusófona da Guiné resgata história de Farim.

Algo misterioso (mas abrindo pistas para outras leituras do que se  terá passado nessa trágica noite de 1 de novembro de 1965, em Farim), é o comentário, em crioulo, o único de resto até agora,  deixado por um tal  Romaru, em 16/11/2014 às 00:05, na caixa de comentários à supracitada reportagem de Filomeno Sambú, em 'O Democrata', de 13/11/2014: 

(...) lamento, e foi bom para relembrar d mumentos d trestes, ataque saiu d farim bedju a 3 a 4 klrs de morucunda para kem conhese farim sabe aonde fika farim bedju, ataki foi grande inganu, i ponto final cabu aqui ponto final. storia verdadeira; homem sorou quando splicou me mais sorou mesmo foi unico e grande ero que ele cometeu e nunca vai squeser, diz o homem com plavra dele que ele sorou mais e criancas e irmaos civils que tva n este tarde d disgaca" (...)

Este "Romaru" [, pseudónimo de alguém que, cinquenta anos depois (!) ainda não quis dar a  cara...] insinua que o autor material do crime (, o soldado milícia da Companhia de Milícia nº 5, um tal Issufe Mané, a crer na versão das autoridades militares, o comando do BART 733), terá agido por engano, ou ter-se-á precipitado, que o alvo não era a população civil mas os militares portugueses, de acordo com as instruções do(s) mandante(s) do crime: "o homem chorou quando me explicou, mas chorou mesmo, foi o único e grande erro que ele cometeu, e que nunca vai esquecer, disse o  homem com palavras dele, o que ele chorou mais foram as crianças e os irmãos civis que estavam lá nessa tarde [noite] de desgraça"...

Estranha-se, em todo o caso, que este antigo milícia (, que terá "confessado tudo" à PIDE e aos militares) tenha "sobrevivido aos acontecimentos", admitindo-se que o clima em Farim,  de dor, revolta e luto, nessa altura, fosse mais propício ao linchamento do que à justiça...

Enfim, não podemos também ignorar o comentário (, ao poste P 20130),  do nosso camarada Manuel Luís Lomba, contemporâneo dos acontecimentos (ex-fur mil, CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66).

(...) "Na altura encontrava-me em Nova Lamego em 'consulta externa' e na messe dizia-se que os dois fornilhos foram mandados lançar por dois comerciantes brancos, que a tropa os liquidou e até se dizia o nome dum sargento do QP que rachou um deles com o machado da sua loja. "
____________


Notas do editor:

(*) Último poste da série > 9 de setembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20135: Controvérsias (134): os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, em 1 de novembro de 1965: a memória das vítimas e o risco de falsificação da história... Excertos de reportagem do jornal "O Democrata", Bissau, 13/11/2014

(**) Vd. também postes de:

7 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20130: Controvérsias (133): Os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, de 1 de novembro de 1965, um brutal ato de terrorismo, cuja responsabilidade material e moral nunca foi apurada por entidade independente: causou sobretudo vítímas civis, que estavam num batuque: 27 mortos e 70 feridos graves

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19860: Bibliografia de uma guerra (95): Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC, por António Duarte Silva em Cadernos de Estudos Africanos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Agosto de 2018:

Queridos amigos,

Este ensaio rigoroso e muito bem elaborado de António Duarte Silva será posteriormente reelaborado por este autor e plasmado no livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", uma obra admirável que ainda é possível adquirir.

Traça a conceção da Guiné como colónia-modelo, na visão de Marcello Caetano, refere as cautelas do poder português face à atmosfera anticolonial não só à escala mundial como à volta da região guineense e disseca a fundação do PAI, o massacre de 3 de agosto de 1959 e as decisões da reunião de 19 de setembro desse ano, em Bissau.

Pela sua coesão e objetividade, é um documento de referência, até pelas dúvidas que levanta quanto à reunião de 1956.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC

Beja Santos

Na publicação Cadernos de Estudos Africanos, n.º 9/10, dedicada às Memórias Coloniais, o historiador António E. Duarte Silva, de quem temos feito várias referências aos seus livros, designadamente ao mais recente, publicação da Almedina, “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, 2011, que ainda é possível encontrar no mercado, publicou um artigo cujas ideias centrais me parece da maior utilidade aqui reproduzir. É o que se segue.

O autor chama a atenção para a escolha da Guiné como primeiro campo de ensaio da política de Marcello Caetano enquanto Ministro das Colónias, baseada tal política numa progressiva autonomia administrativa com desenvolvimento económico e social e com olhar atento à conjuntura internacional do pós-guerra e ao sentimento anticolonialista. Marcello pretendia uma equipa que saneasse a política colonial do “ambiente de depressão e intriga”. A escolha recaiu em Sarmento Rodrigues, a sua governação ficará inesquecível: reforço da administração colonial, construção de uma rede de infraestruturas, lançamento de uma investigação cultural e científica que ainda hoje é referência. O seu sucessor será Raimundo Serrão, traz novas instruções do novo Ministro, Teófilo Duarte, as preocupações agora centram-se na economia, sobretudo na cultura do arroz e em produtos de exportação. O novo governador não tem a aura do anterior, inaugurou muito e interessou-se verdadeiramente pelo incremento agrícola.

A colónia reposicionava-se com a mudança da capital em 1941. O Subsecretário de Estado Raul Ventura percorre a Província em 1953, visita inclusivamente a Granja do Pessubé “na companhia dos Engenheiros Agrónomos Nobre da Veiga e Amílcar Cabral”. O novo Governador será o Capitão-de-Fragata Diogo Mello e Alvim, então Governador da Zambézia. É Ministro das Colónias Sarmento Rodrigues. Mello e Alvim escreve ao Ministro que a Guiné estava muito diferente daquela que Sarmento Rodrigues deixara em 1948: “todos mandavam e ninguém se entendia. A pouco e pouco, tenho chamado os comandos ao Governo que posso assegurar-lhe que, presentemente, já voltou a haver mais um bocadinho de ordem e tudo; nas despesas, na disciplina e até, perdoe-me o desabafo, na justiça. Os indígenas vêm em mim um continuador da sua obra".


Rafael Barbosa e Amílcar Cabral na Granja de Pessubé, 1952.
Imagem retirada de Casa Comum, Fundação Mário Soares, com a devida vénia.

A PIDE demora a instalar-se, a sua rede só será completada em junho de 1958, mediante a criação de cinco postos em S. Domingos, Catió, Bafatá, Farim e Gabu, todos dependentes da sede em Bissau. É à Polícia de Segurança Pública que devemos as primeiras notas sobre movimentações subversivas em Bissau. A PSP, com data de 3 de maio de 1955, registou as reuniões dirigidas por Amílcar Cabral visando a constituição de uma associação desportiva e recreativa. Os estatutos da associação não foram aprovados e a PSP registava que “o engenheiro Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de atividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade dos direitos dos nativos". Há igualmente referências de várias fontes que terá sido criado em Bissau um Movimento para a Independência Nacional da Guiné, mas não há qualquer prova da atividade nacionalista deste grupo.

Há uma greve dos descarregadores africanos em 6 de março de 1956, a polícia não utiliza a força, Mello e Alvim foi à esquadra libertar os detidos. Em setembro desse ano, Amílcar Cabral chega a Bissau para visitar a família. Chega o momento de referir a reunião de 19 de setembro de 1956 em que Amílcar Cabral interveio num círculo de amigos para propor a constituição de um partido político com o objetivo de alcançar a independência da Guiné e Cabo Verde, o Partido Africano da Independência (PAI).

Há bastante nevoeiro sobre esta reunião: não há qualquer documento comprovativo, há testemunhos postos em causa, não há sequer consenso quanto ao número de fundadores nem quanto ao alcance efetivo da reunião, para além da intenção de formar um partido político. Para o autor, esta reunião de 19 de setembro e a intervenção de Amílcar Cabral terão sido apenas o momento do lançamento do PAIGC como ideia e organização nacionalista. Anos mais tarde, no seu trabalho de doutoramento, Julião Soares Sousa dirá que era totalmente impossível nesta data Amílcar Cabral estar em Bissau.

Em novembro de 1957, Amílcar Cabral e Viriato da Cruz convocaram a recente “diáspora parisiense” (Mário Pinto de Andrade, Guilherme Espírito Santo e Marcelino dos Santos) para uma reunião de consulta e estudo para o desenvolvimento da luta nas colónias portuguesas. Serão provados princípios e resoluções e fez-se o lançamento do MAC – Movimento Anti-Colonialista.

Em agosto de 1958, uma dezena de quadros forma em Bissau um Movimento de Libertação da Guiné (MLG). Diz o autor que era um movimento nacionalista que se pretendia continuador da republicana “Liga Guineense” e defendia que a Guiné se deveria tornar num Estado Federado da República Portuguesa.

Nesse mesmo ano chega à Guiné a “Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África”, chefiada por Silva Cunha, aproveito para lembrar ao leitor que se fez uma ampla recensão dos trabalhos desta missão. Silva Cunha não acreditava num perigo imediato de “efeitos de reação antiportuguesa”, mas podia “surgir, de um momento para o outro, em resultado de influências externas”, atendia naturalmente ao que se estava a passar na nova República da Guiné.

O Capitão-Tenente Peixoto Correia é designado Governador da Guiné em outubro de 1958, chegará a Bissau no final do ano. E o autor recorda que também em meados desse ano visitara a Guiné Armando de Castro, estava a preparar um estudo destinado ao Partido Comunista Português, escreveu que se desenvolvia entre os guinéus uma “resistência surda à exploração, e havia repressão policial, comprovada com a recente instalação da PIDE".

António Duarte Silva é dos historiadores que tem mais apurada investigação sobre o chamado Massacre do Pindjiguiti, tive oportunidade de lhe enviar o relatório confidencial do gerente do BNU da época, confirmou-me que as informações batem certo com os elementos de que dispõe e que constam dos seus trabalhos. As consequências serão múltiplas, os acontecimentos serão aproveitados pelo Movimento de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas. Logo em 7 de agosto, em carta a Ruth Lara, escrita em Kano (Nigéria), Amílcar Cabral informava-a, de modo telegráfico, que na Guiné houvera “há dias 7 mortos e 5 feridos”. Em carta de 24 de setembro, resume aos seus amigos do MAC a sua ida a Bissau e dá mais pormenores sobre o balanço de mortos, teriam sido 24, mais 35 feridos, alguns muito graves.

Durante a sua estada de uma semana em Bissau, Amílcar Cabral realizara “a mais decisiva reunião” da história do PAIGC, nessa reunião de 19 de setembro o movimento nacionalista adotara várias medidas que se irão revelar estratégicas, tais como: evitar manifestações urbanas e deslocar a ação para o campo, mobilizando e organizando os camponeses; preparar-se o recurso à luta armada; transferir parte da direção para o exterior, indo Amílcar Cabral instalar-se em Conacri.

De acordo com o autor, três documentos testemunham esta importante reunião: um relatório confidencial da autoria de Cabral onde são compulsadas as medidas tomadas e as conclusões; a “Carta da Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde”, também assinada por Amílcar Cabral; uma expressiva carta enviada de Conacri, em 16 de junho de 1960, assinada por Cabral onde conclui com incitamentos e pedidos de notícias, identificando-se como Secretário-Geral do PAI. Como diz o autor, o PAI só vai afirmar-se publicamente aquando das intervenções dos representantes do MAC na II Conferência Pan-Africana, realizada em Tunes, em fins de janeiro de 1960. Numa outra conferência realizada em Dacar, em outubro de 1960, o PAI altera definitivamente a sigla para PAIGC.

Perto da conclusão, o autor observa que o massacre do Pindjiguiti se tinha convertido no símbolo da libertação na Guiné-Bissau. O “3 de agosto” passou mesmo a ser o dia da solidariedade internacional com os povos das colónias portuguesas e o dia da proclamação da ação direta, na Guiné, em 1961. A subversão não veio do exterior da Guiné nem foi desencadeada por associações influenciadas pelo Islão. Começou em Bissau, liderada por uma elite política urbana e crioula.

No período subsequente, após as resoluções sobre a descolonização aprovadas pela ONU em dezembro de 1960, os movimentos nacionalistas privilegiarão a defesa da nova legalidade internacional. Esta linha predominará na Guiné-Bissau até aos princípios de 1963, tudo mudará com a luta armada. E assim conclui António Duarte Silva: “O PAIGC ainda sobrevive como sigla. Tudo aquilo por que lutou e chegou a alcançar – libertação nacional, paz, progresso, independência, melhoria das condições de vida, unidade Guiné-Cabo Verde, um Estado, uma Constituição – falhou, está em ruínas, desapareceu. Se a libertação viera do campo, Bissau, a cidade, tudo devorou.”
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19110: Bibliografia de uma guerra (94): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P18988: Blogues da nossa blogosfera (103): "Memórias de Jolmete", de Manuel Resende: Cajan Seidi, o atual régulo de Jolmete, neto de Cambanque Seidi, o régulo de Jol que, em 1964, foi uma das cerca de 20 vítimas de represálias das NT (Manuel Resende / Eduardo Moutinho Santos)


Guiné-Bissau > 2017 > Moutinho dos Santos com Cajan Seidi, a quem convidou para  ir almoçar em Canchungo (ex-Teixeira Pinto).


Guiné-Bissau > 2017 > Moutinho dos Santos e o Fernandino Leite  com a Amélia,  a 3ª mulher de Cajan Seidi, e com os seus filhos,  em Jolmete.

Fotos (e legendas): © Eduardo Moutinho Santos / Manuel Resende (2018) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Blogue Memórias de Jomete > 30 de agosto de 2018 > Post nº 76 - Cajan, Régulo de Jolmete (*)

Manuel [Cármine] Resende [Ferreira] [, foto à direita,]
ex-alf mil art,  CCAÇ 2585 / BCAÇ 2884,
Jolmete, Pelundo, Teixeira Pinto
(, maio 69/mar 71)

Nota informativa para quem não se lembra: 

Moutinho dos Santos era alferes da Companhia que esteve antes de nós em Jolmete, a CCAÇ 2366. Era a Companhia do sr. capitão Barbeites. Depois de sair de Jolmete em 28 de maio de 1969 (, dia em que ficámos por nossa conta, e logo com um grave acidente com a bazuca do 1º cabo Brotas), tal como mais tarde o nosso alferes Almendra, foi graduado em capitão pelo sr. general Spínola e a Companhia foi para Quinhamel, gozar “férias”, mas ele, como capitão, teve que ir comandar outra Companhia no Sul [, CCAÇ 2381]. Presentemente exerce advocacia no Porto e é um excelente elemento [, um dos régulos,] da Tabanca Pequena de Matosinhos, com várias idas à Guiné para entrega de bens.


[Eduardo Moutinho Santos, ex-alf mil, CCAÇ 2366 (Jolmete e Quinhámel) e cap mil grad. cmdt da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada); foto à esquerda]


Pergunto eu a Moutinho dos Santos:

“Amigo Moutinho Santos, recentemente estive com o Marques Pereira, alferes da minha Companhia, a 2585,  que vos sucedeu. Presentemente vive em Moçambique, e veio cá. Mostrei-lhe fotos do Cajan e disse-lhe que o Cajan tem um filho médico no Hospital de Santo António, creio que foste tu que me deste essa informação. Sabes quem é a mãe? perguntou ele, será a Maria Sábado, do nosso tempo ?.... Sabes alguma coisa dele, ou contactos... “ (*)


Resposta de Moutinho dos Santos:

Olá, Resende.

De facto, o Cajan Seidi, soldado milícia do Pelotão de Milícias de Djolmete, que "alinhou" connosco, e convosco, nas matas do Djol, tem em Portugal, mais especificamente no Porto, um "filho" médico, o dr. Jorge Seidi (conhecido entre os amigos por Jorgito). Ele faz parte das equipas de Urgências do Hospital de Santo António, penso que como contratado de uma empresa de "manpower" que presta serviços aos hospitais do Porto. Pus a palavra filho entre aspas, pois, na verdade ele não é filho biológico do Cajan, mas sim sobrinho.

Como sabes, segundo as "leis" da etnia manjaca, e de outras etnias da Guiné, em que os sobrinhos e primos também são considerados "filhos" quando vivem todos na mesma morança, o irmão que herda a "posição" (sucede no cargo) de outro irmão mais velho, também "herda" a mulher e os filhos do irmão. Com o Cajan sucedeu isso.

O avô do Cajan, de nome Cambanque Seidi, régulo do Djol, tinha vários filhos, sendo um deles o pai do Cajan, de nome Domingos, que foi morto pelo PAIGC logo no início da luta pela independência. O avô, ao tempo régulo, foi um dos mortos na "chacina" praticada em 1964 pelas NT contra os homens grandes da tabanca de Djolmete e outras do regulado.

Este "assunto" consta de um Post do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, ali colocado por um Furriel [, António Medina,] de uma companhia [, CART  527,] da guarnição de Bula / Teixeira Pinto em 1964, antigo combatente que emigrou para os USA (**)... O Cajan teria nesta data 15/16 anos...

[Foto à esquerda: Antonio Medina, ex-fur mil inf, CART 527, Teixeira Pinto, Bachile, CalequisseCacheu,Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65; natural de Santo Antão, Cabo Verde, foi funcionário do BNU, Bissau, de 1967 a 1974; vive hoje nos EUA desde 1980; tem dupla nacionalidade, portuguesa e norte-americana; é nosso grã-tabanqueiro desde 1/2/2014]

Este "assunto", a que ninguém se referia quando estivemos em Djolmete, e também nunca falado anteriormente quer pelo nosso Exército quer mesmo pelo PAIGC, foi-me confirmado pelo Cajan e por dois dos seus "filhos" que, inclusive, na última visita (2017) que fiz a Djolmete,  quiseram indicar-me o local onde foram enterrados, em "vala comum", muito perto do sítio onde os nossos 3 majores foram mortos em 1970...

Como o Cajan era o neto sobrevivo mais velho do régulo, veio a "herdar" o cargo do avô, pois o irmão/primo a quem tal cargo pertenceria já tinha falecido, deixando viúva a Quinta e o filho Jorge que - na altura em que estivemos em Djolmete - estaria à guarda de um tio em Dakar (Senegal) e internado numa Missão Católica. Oficialmente ninguém se referiu - que eu saiba - ao cargo do Cajan durante a nossa estadia em Djolmete.

Assim, o Cajan com o cargo de régulo do Djol, herdou como 1ª mulher a cunhada, de nome Quinta - que vivia em Djolmete ao tempo em que nós por lá estivemos -, de quem veio a ter mais 3 filhos (Joãozinho, falecido, Minguito e Melita, médica em Bissau). Actualmente está em Portugal com o filho,  dr. Jorge. O Cajan tem mais 4 mulheres... e 25 filhos ao todo...

A segunda mulher do Cajan é a Maria Sábado - nossa conhecida - de quem o Cajan tem vários filhos (um deles o Fidalgo que é professor e director da Escola E/B de Canchungo, ex-Teixeira Pinto).

A terceira mulher do Cajan é a nossa conhecida Amélia, de quem o Cajan tem 6 filhos (vários deles a viver em Bissau).

A quarta mulher do Cajan é a Emília de quem o Cajan tem vários filhos. 

Por fim, a quinta mulher, ainda muito nova, de nome Maria, também tem já filhos...

Para o ano, se tudo correr bem, se houver "patacão"  e a saúde ajudar, tenciono voltar à Guiné-Bissau e a Djolmete para, com a Tabanca Pequena de Matosinhos, fazermos a instalação de um poço artesiano, pois, os poços tradicionais que a ACNUR abriu na Tabanca de Djolmete, quando serviu de Campo de Refugiados dos independentistas do Casamance, secaram todos e a população (3.000 habitantes), que só tem uma hora de água por dia do poço do Centro de Saúde, voltou a ter de ir buscar a água à bolanha...

Depois falamos sobre este assunto.

Um abraço,
Eduardo Moutinho Santos

[Reproduzido com a devida vénia. Revisão  e fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camarads da Guiné] 
_____________

Notas do editor:

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17202: Notas de leitura (943): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
É uma boa oportunidade de conhecer os acontecimentos angolanos entre 1961 e 1975. É um romance histórico, Vasco Luís Curado não se atém exclusivamente à narrativa dos factos, forja personagens-tipo, desde o funcionário colonial que descobre, desde jovem, qual a dimensão das relações colonialistas naquela próspera colónia, passando pelo delinquente que percorre os três partidos da luta de libertação, até o alferes que depois de duas comissões descobriu o fascínio angolano e pôs uma fazenda a prosperar.
E assistimos à hecatombe da guerra civil, Vasco Luís Curado usa com mestria as cores de que se veste o horror nas colunas em fuga, as cidades reduzidas a escombros por onde revolteiam saqueadores. É uma outra dimensão do fim do Império, e que deixou mazelas que durante anos dava pelo nome de retornados.

Um abraço do
Mário


O país fantasma, por Vasco Luís Curado (2)

Beja Santos

“O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015, é um soberbo romance histórico que se inicia com os massacres de 1961 e culmina com a ponte aérea de 1975 e a chegada dos retornados a Portugal.

Há muitos lugares para esta trama, mas o tempo histórico mais influente passa-se na Gabela, onde dois casais partem com milhares de fugitivos à procura de segurança entre o fogo cruzado dos movimentos de libertação já enfronhados na guerra civil.

Havia muita expectativa com os Acordos de Alvor, formou-se um governo de transição com membros dos três movimentos independentistas, previam-se eleições para uma Assembleia Constituinte e a independência estava marcada para o dia 11 de Novembro. Angola encheu-se de rumores e também de ódios. Falava-se num golpe contra independentista, contava-se com a ajuda sobretudo dos mercenários sul-africanos e rodesianos. Assistimos à degradação das relações entre pretos e brancos na Gabela, os três movimentos abriram aqui delegações e preconizam a paz para todos. Mas as tensões cresceram imediatamente, definiram-se zonas de influência para os três movimentos, agravaram-se as discórdias, ao princípio os brancos não eram hostilizados. Alexandre é oportunista que muda facilmente de partido, cobiça a fazenda gerida pelo cunhado, vai instilando os seus ódios. Os três movimentos continuam a emitir mensagens de um futuro de concórdia para Angola:
“Só os brancos que tivessem cometido crimes contra os africanos teriam problemas. Ninguém perguntou como se iriam apurar essas culpas nem o que iria acontecer aos culpados. Os delegados manifestaram que os soldados estavam bem disciplinados pelos comandantes e acrescentaram que não se vingariam de tantos anos de opressão, que os brancos poderiam estar descansados”.
As reuniões entre brancos são muito acaloradas, um deles desabafa:
“Eu não vou perder a minha indústria para os colonistas. Piro-me daqui antes. A coisa piora para o meu lado se descobrem que estive no Exército e combati a guerrilha”.
Um jovem demente, cunhado de Capelo, julga-se em contacto com Jesus Cristo, será assassinado. Quando Capelo leva o cunhado a Luanda, assiste ao estrondo das batalhas entre os guerrilheiros do MPLA e da FNLA, acabaram-se as promessas de concórdia:
“Havia fogo de armas ligeiras em Luanda. Os movimentos emancipalistas erguiam barreiras em avenidas e ruas importantes para exigirem a identificação dos condutores; assim detetavam os militantes rivais e faziam ajustes de contas. Bandos de delinquentes faziam surtidas nos bairros brancos, roubavam casas, escolas, repartições públicas. Sem obedecer aos seus chefes, grupos de guerrilheiros agiam por conta própria e espalhavam o terror”.

Chegara a guerra civil, primeiro nos musseques, depois avançando para o asfalto. Na Gabela, instalou-se a polvorosa, uma coluna de milhares de brancos põem-se em fuga, numa altura em que Porto Amboim e em Novo Redondo já havia combates entre a FNLA e o MPLA. A guerra chegara à Gabela no dia 31 de Julho, nunca mais houve descanso, a toda a hora se ouviam os tiros da artilharia pesada. Ao fim de uns dias de tiroteio, muitos tentaram uma saída coletiva, tiveram que retroceder. Chegou então uma força militar para escoltar a população e, após conciliábulos com os movimentos de libertação, os brancos puseram-se em fuga. Numa atmosfera dantesca em que há roubos das casas comerciais, em que a dona da farmácia oferecia biberons e fraldas, em que Gabela é pasto do saque, a coluna põe-se em marcha, a população das sanzalas assiste, depois irá participar no saque:
“A cidade ainda ali estava, suja, ferida, aguardando os golpes que derrubariam as paredes e os tetos. Uma parte da cidade branca estava metida nos caixotes deixados nas casas. Outra eram as próprias pessoas que fugiam, os seus carros e bagagens. A última era tudo o que não podia ser encaixotado, enfiado num carro ou num avião: as casas, os prédios, os muros, os postes de iluminação pública, os bancos dos jardins, as pedras da calçada e o asfalto das estradas que, cobrindo a terra, era o próprio símbolo da cidade branca, onde pés sempre calçados não tocavam o pé ou a lama. A cidade fragmentava-se em três grandes parcelas, mas estas iam fragmentar-se mais, quando os carros fossem largados junto dos portos e aeroportos e as bagagens se perdessem ou se fossem confiscadas, ou à medida que os refugiados, confluindo na sua maioria para Lisboa, se dispersassem nas regiões e cidades familiares ou por obra de colocações provisórias. O trabalho de fragmentação era infinito”.

A coluna dirigiu-se para a Quibala, vão na coluna 13 mil pessoas, circulam entre os 5 e os 10 quilómetros por hora. Surgem barreiras, é preciso parlamentar, chegaram a Nova Lisboa. Mas nem tudo correu bem:
“Houve pessoas que não tiveram a mesma sorte na estrada Quibala-Nova Lisboa. Uma família parou para fazer alguma necessidade e surgiram guerrilheiros que mandaram todos sair do carro. Uma miúda de 10 anos assustou-se, desatou a correr e foi abatida. Os pais tiveram de seguir viagem com o cadáver. Contaram-se variantes desta história. Alguns elementos da FNLA que integraram a coluna, disfarçados de mulheres ou escondidos em sacos de batatas, foram apanhados e mortos a tiro de metralhadora por elementos do MPLA”.

Em Malange, também se vive no Inferno. Quando Célia, a namorada e Alexandre, aqui chega, já se improvisam posições de defesa, o aeroporto está fechado:
“De todas as partes da cidade chegavam refugiados. O quartel, que tinha espaço para 300 pessoas, acolhia umas 10 mil. A tropa servia esparguete e salsichas. O ar estava empestado com o fumo dos incêndios e do cheiro a putrefação. Como noutros prontos atingidos pela guerra civil, organizaram caravanas de carros, com escolta militar, para levar a população para Nova Lisboa, cujo aeroporto estava a escoar milhares de refugiados para Portugal”.
Célia aproveitou a escolta até Nova Lisboa, dali seguiriam para Sá da Bandeira. O panorama é desolador: carros incendiados na berma da estrada. Numa dessas barragens em que os fugitivos eram obrigados a parlamentar, muitos perdem a cabeça, depois de assistir à brutalidade que exercem sobre as suas famílias, puxam das armas e atiram a matar. Nova Lisboa é igualmente um pandemónio.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 31 de Março de 2017 > Guiné 61/74 - P17190: Notas de leitura (942): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 31 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17190: Notas de leitura (942): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
Percebe-se como a literatura pós-colonial passou a ter um lugar cativo na imaginação romanesca e ocupar cada vez mais os escaparates das livrarias. Sobretudo em Angola, mas igualmente em Moçambique, houve colonos que ali viveram ao longo de gerações e que tomaram como seu lugar de pretensa aqueles rincões onde labutaram. Vasco Luís Curado escreve na dedicatória: "Para os meus pais e os meus irmãos, que há vários anos desenham o mapa de um país fantasma".
Com rigor e coragem ele não desenha um mapa, ele tece um romance épico e trágico. A ação inicia-se no Norte de Angola, naquele período convulsivo de Março de 1961. Um alferes irá afeiçoar-se àquele bocado de África, casa-se e as vidas vão-se cruzar com outro casal de funcionários coloniais, em Gabela. Essa coragem está patente no modo como ele desvela, de cima a baixo, as relações coloniais. A guerra prolonga-se e parece estar distante, é nisto que chega o 25 de Abril e Gabela vai experimentar um horror diferente: os movimentos de libertação desencadeiam a guerra civil, e a minoria branca vai ser posta em causa.
Temos aqui o retrato dantesco do caos em Luanda.
Por muito boas razões, recomendo este livro.

Um abraço do
Mário


O país fantasma, por Vasco Luís Curado (1)

Beja Santos

É patente na literatura do período pós-colonial que uma das alavancas que põem em funcionamento uma arquitetura literária que ganha crescente procura passa pela apresentação de famílias nos tempos e nos lugares em que soprou a guerrilha, com a sua maré apocalítica, e o caos que acompanhou os acontecimentos da independência, em 1975, nos casos específicos de Angola e Moçambique.

“O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015, engrena neste tipo de romance histórico: duas famílias, juntas pelo acaso, o alferes Capelo que assistiu em cheio ao massacre de centenas de brancos, e que ao fim de duas comissões já não descobre qualquer razão para regressar, casa com uma menina de Gabela e torna-se proprietário de plantações de café; e Mateus, a iniciar-se na administração colonial, em Moçâmedes, e que assiste à prisão e tortura de rebeldes e guerrilheiros, vai com a família para Gabela, chega o 25 de Abril e revela-se um novo caos, três movimentos independentistas semeiam o terror, é uma guerra civil que espalha o caos e muitos ajustes de contas pessoais. Não assistamos só ao fim do período colonial, Vasco Luís Curado dá-nos com mestria a riqueza de pormenores sobre as relações entre brancos e negros, e muito antes de 1961.

Mas é em 1961 que começa o romance histórico, Capelo vai nos primeiros contingentes que avançam para as plantações do distrito do Uíge. O cenário é dantesco, civis armados, uma atmosfera de raiva e exaltação, vão depois de Carmona ao Negage e daqui até Quicangulo, as gentes andam em fuga, as sanzalas ou destruídas ou abandonadas, é um quadro de desolação indescritível. Quicangulo foi destruída, algumas dezenas de civis estão ali entrincheirados, a resistência é épica, só uma vaga de bombardeamentos aéreos consegue repelir os homens da UPA. Mas a partir de Quicangulo, o desastre ainda é maior, há sinais de depredação por toda a parte. E descreve-se brutalmente o terror:
“Perto da estrada que continuava, e que ia ter a Damba, a Maquela do Zombo e à fronteira, a companhia encontrou, na fazenda Felicidade os primeiros mortos. Logo à entrada, o portão estava encimado por cabeças de bailundos espetadas em varas. No terreiro da secagem do café, viram porcos a foçar em cadáveres. Dava para reconhecer, apesar de desfigurados, aqueles que deviam ser o pai, a mãe, os filhos. Mais afastados, os criados. Adultos e crianças tinham a carne retalhada e os ossos dos braços e das pernas partidos por golpes de catanas”.
O escritor, vê-se desde as primeiras linhas, está altamente documentado, todo este horror vivido no Norte de Angola,em Março de 1961, consta de inúmera documentação: os civis tresloucados, as fugas para o mato, nem sempre bem-sucedidas, os interrogatórios bárbaros, o estado de pavor das populações, sempre à espera das multidões ululantes, de catana em riste. Ouve-se falar em feitiçaria, em canibalismo, cabeças cortadas.

Em Moçâmedes, anos antes de se desencadear este terror, Vítor Mateus é aspirante da administração colonial. Na construção da obra, cabe a este funcionário desvelar uma das imagens mais trágicas do colonialismo: a ferocidade com que eram tratados os negros, a palmatória e o chicote, a indiferença das autoridades com o trabalho forçado:
“Vi, na parada da Administração, doze negros a receberam, um a um, palmatoadas que um cabo de cipaios assentava na mão que lhe estava submetida, com uma palmatória grossa de madeira. O batido gritava a cada palmatoada, contorcia-se, recuava como quem queria fugir, entalava a mão entre o braço e o corpo para aliviar a dor, mas era obrigado a reaproximar-se para as palmatoadas seguintes”.
Mateus não se sente entusiasmado por caçar, é um apaixonado pelo jogo de xadrez. Dá passeios, num deles o velho Saraiva dá-lhe uma lição sobre a presença portuguesa em África:  
“O preto não gosta de trabalhar. Há que castigar como um pai castiga um filho. É isso que se exige de nós, é essa a nossa missão: civilizar, ensinar, conduzir. Queremos tirar esta gente da barbárie”.
Novos personagens vão entrando no enredo, caso de Beatriz, a mulher de Mateus. Capelo finda a comissão, vem a Portugal, sente-se desenquadrado, volta para Angola. Estamos agora no aquartelamento de Quipedro, os guerrilheiros do MPLA fazem um golpe de mão, Mateus fica ferido, mais tarde é desmobilizado. Chegou o momento de Capelo conhecer Mateus, na Gabela, em plena zona cafezeira do Cuanza Sul, “estava a mil metros de altitude e espreitava os vales onde se produzia uma das melhores variedades de café do mundo. Do alto dos morros avistavam-se, em dias limpos, as montanhas que Paulo Dias de Novais, no século XVI, julgava que tinham minas de prata. Em cem fazendas, ricas e modelares, o café em flor trepava as encostas, entre casas brancas e terreiros de secagem. Daqui, de comboio, escoavam-se milhares de toneladas de mercadoria para os navios em Porto Amboim. O mar estava a menos de cem quilómetros”. Capelo apaixona-se por Mariana, uma das filhas do fazendeiro Mourão, empolga-se com a beleza dos vales, com o café e os palmares. Ficamos com um quadro elucidativo da vida em Gabela, a relação entre fazendeiros, a descriminação racial. Um dos filhos de Mourão, Alexandre, é um biltre, negoceia em droga, foi parar ao campo de S. Nicolau, caber-lhe-á, no decurso da guerra civil, ser a imagem viva do oportunismo. A guerra já vai demorada, os brancos falam na independência, há quem acredite que Angola será um Estado onde as relações entre brancos e pretos melhorarão profundamente, há imensas discussões e prognósticos sobre a Angola independente.

Com o 25 de Abril, muita coisa começa a mudar em Angola, até aos acordos de Alvor. Estala a violência entre movimentos independentistas, aquele mundo semiadormecida na Gabela entra em convulsão:
“A instalação das delegações dos movimentos de libertação e dos quartéis de guerrilheiros mudara a Gabela. A população negra estava mais confiante, enquanto a população branca observava com expetativa. Já não havia clubes exclusivos. Para este baile de fim de ano, onde a participação alargada aos negros era a nota dominante, muitos brancos sentiam-se coagidos a comparecer, com medo de passarem por reacionários se não o fizessem".

Estamos agora em Luanda, ao princípio falava-se muito na concórdia entre todos os angolanos. O futuro da minoria branca parecia depender das boas relações com a etnia dominante. É então que o conflito ganha uma dimensão medonha, vamos assistir às convulsões que a guerra civil irá gerar na capital angolana.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17182: Notas de leitura (941): Cocaína e golpe de Estado, fantasmas de uma nação amordaçada na revista Reporters sans fronteires, Paris, número de Novembro de 2007 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 17 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16101: Efemérides (226): Dia 20 de Abril de 2016, triste aniversário; 46 anos se passaram sobre o assassinato do Chão Manjaco (Manuel Resende, ex-Alf Mil da CCAÇ 2585)



Pelundo - Major Osório em primeiro plano


Pelundo - Major Passos Ramos, o primeiro à esquerda; Major Osório,
último à direita e de costas



Alferes Mosca em primeiro plano ajudando na preparação da ceia de Natal de 1969

Fotos (e legendas): © Manuel Resende (Ferreira) (2016).


1. Mensagem do nosso camarada Manuel Resende (ex-alf mil da CCaç 2585/BCaç 2884, Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/71), com data de 20 de Abril de 2016, a propósito da passagem do 46.º aniversário do assassinato dos Majores PASSOS RAMOS, MAGALHÃES OSÓRIO, PEREIRA DA SILVA; Alferes Miliciano JOÃO MOSCA; dois condutores e um tradutor, no Chão Manjaco, no dia 20 de Abril de 1970.




Triste Aniversário

Caros amigos e camaradas
Hoje é o dia 20 de Abril. Por acaso alguém se lembra do que aconteceu no dia 20 de Abril de 1970 em Jolmete, precisamente há 46 anos?

Neste dia não houve saída para o mato, não saímos do quartel nem para caçar. Achámos estranho, mas o nosso Capitão Almendra disse aos Oficiais, não sei se a mais alguém, talvez ao Dandi, depois do almoço, que se estava a passar algo de anormal.

Nesse dia iria acontecer uma reunião (a última) para a pacificação do “Chão Manjaco”, entre os chefes do PAIGC e os OFICIAIS do CAOP, num local junto à primeira bolanha a contar do Pelundo para Jolmete, a cerca de 4-5 Kms do Pelundo.
Essa reunião destinava-se a integrar todo o pessoal do PAIGC pelos aquartelamentos da zona, como já estava combinado em reuniões anteriores.

No dia anterior, Domingo 19, o CAOP esteve em Bula, e ao jantar, o Sr. Major Pereira da Silva recebeu um telefonema, presume-se de Bissau, dizendo que um tal “LUIS” iria estar presente na reunião no dia seguinte. Segundo o que me lembro dos comentários da altura, diziam que ele ficou cabisbaixo, mudo e pensativo, ... devido à presença inesperada dessa pessoa.

Estavam previstos 5 jipes (isto é o que me lembro da altura dos acontecimentos), mas ficaram reduzidos a três, pois o Sr. Major Pereira da Silva, que superintendia o assunto, não autorizou os outros a serem “martirizados”. Lembro-me de ouvir dizer que o nosso Capelão, Padre António Gameiro queria ir, mas não foi autorizado. Eu tinha a impressão que o nosso médico Dr. Diniz Calado, também queria ir, mas ainda há poucos meses estive com ele, abordei o assunto e o próprio disse-me “que nunca essa hipótese foi colocada, não queria participar em aventuras dessas”.

Bom, o local foi alterado para a segunda bolanha, a 5 Kms de Jolmete. Porquê? Como lá foram parar, cerca de 8 Kms mais a norte, mais próximos de Jolmete?

Devo confirmar que ouvi alguns tiros por volta das 3 da tarde (e muitas outras pessoas também ouviram). Foi muito comentado, pois nesse dia estávamos proibidos de “fazer fogo”, nem a caçar.

Foram barbaramente assassinados pois estavam desarmados:

Major PASSOS RAMOS
Major MAGALHÃES OSÓRIO
Major PEREIRA DA SILVA
Alferes JOÃO MOSCA
Nativo MAMADÚ LAMINE 
Nativo ALIÚ SISSÉ 
Nativo PATRÃO DA COSTA 

OBS: Os nativos eram dois condutores dos jipes e um tradutor.

Não é meu interesse aqui entrar em pormenores, pois apenas quero lembrar a memória destes Oficiais, que devem figurar em todos os escritos com letra maiúscula.

Junto algumas fotos tiradas por mim, lamento não ter nenhuma do Sr. Major Pereira da Silva.

Manuel Cármine Resende Ferreira
Alf. Mil. Art. em Jolmete (Pelundo – Teixeira Pinto)
CCAÇ 2585 – BCAÇ 2884

************

2. Comentário do co-editor CV

São devidas desculpas ao Manuel Resende por só hoje estarmos a dar conta desta triste efeméride mas, como este assunto é por demais marcante na história da guerra da Guiné, qualquer dia é próprio para se falar dele.

Quanto a mim, não esqueço esta data porque foi o dia em que nos apresentámos, na Parada do Depósito de Adidos, ao General Spínola. A 21 seguiríamos para Mansabá para uma longa estadia, ali, que só terminaria a 23 de Fevereiro de 1972.

Temos mais de meia centenas de referência a este trágico episódio; Três majores | Alferes Mosca | Chão manjaco
____________

Nota do editor

domingo, 31 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15691: Notas de leitura (802): "Genocídio Contra Portugal", edição SNI, Lisboa, 1961 (Manuel Luís R. Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa, Sargento-Ajudante Reformado da GNR (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74), com data de 14 de Janeiro de 2016:

Amigo Carlos Vinhal:

Recentemente evoluía eu na escrita do meu livro, descrevendo em pormenor imagens que me marcaram profundamente na minha adolescência, ao ter acesso a imagens arrepiantes associadas ao massacre de Quitexe no Norte de Angola, decorria o ano de 1961.

Ao escrever, depois de já ter feito a descrição física da pequena publicação que continha essas imagens, mesmo não tendo dúvidas do aspecto daquele documento, embora na altura em que o vi ainda fosse muito novo, experimentei em fazer uma pequena pesquisa na Net, com o objectivo de encontrar algo associado àquelas minhas memórias. Para minha surpresa, tantos anos depois, encontrei mesmo a fotografia do pequeno livro, exactamente como eu o tinha descrito.

Assim, por entender que o assunto tem algum interesse em ser divulgado no nosso blogue, envio-te em anexo um pequeno excerto do livro que melhor descreve o que acabei de referir, e mando-te a fotografia visada para ilustração.

Um abraço deste teu companheiro e amigo
Manuel Sousa


"...Recuando alguns anos, tinha eu cerca de onze anos de idade, com a mesma tarefa de guardar o milho dos ataques do texugo, ia com o meu irmão Fernando dormir à nossa "Cabreira". Os mesmos receios da noite como atrás mencionei, embora este período coincidisse com as festividades da Nossa Senhora da Saúde na aldeia de Mogo de Malta, Carrazeda de Ansiães, em finais de Julho, cujo santuário se apresentava iluminado à nossa frente, lá no alto da encosta nascente do vale da Cabreira, que, de algum modo, tornava a noite menos tenebrosa. Porém, como criança que era, numa dessas noites, senti-me particularmente amedrontado com imagens horripilantes que se afiguravam de uma forma constante na minha mente.

Decorria o ano de 1961, estávamos em Julho ou Agosto, portanto, e aquele meu irmão tinha arranjado, não sei onde, uma pequena brochura com capas negras sarapintadas, graficamente, com manchas vermelhas, representando gotas de sangue. "Genocídio contra Portugal". Estava assim escrito na capa a letras vermelhas, configurando terem sido gravadas com sangue. Eram indescritíveis as imagens de terror que o interior daquele pequeno livro continha! Melhor teria sido se as não tivesse visto. Noite arrepiante aquela que eu passei! Para onde quer que olhasse no escuro que nos envolvia ou mesmo com os olhos fechados debaixo da manta que nos cobria, aquele espectáculo aterrador perseguia-me. Só alguns anos mais tarde tive a capacidade de ligar e associar estas imagens às primeiras investidas dos movimentos de libertação das colónias portuguesas de então. Tratava-se do massacre do Quitexe no norte de Angola que tinha ocorrido no mês de Março desse ano, por parte da UPA (União Popular de Angola).

Levado pela curiosidade, hoje fiz uma pesquisa na Internet e encontrei esse mesmo livro, exactamente com a forma que acabei de descrever, que alguém quer vender por 50 euros como documento histórico, cuja fotografia, pela crueldade que ela representa, não vou publicar neste livro".

Eis a apresentação da fotografia, para venda:


"GENOCÍDIO CONTRA PORTUGAL"
Edição SNI, Lisboa 1961
Livro com 16 páginas e muito ilustrado.
Em muito bom estado de conservação.
De muito, muito difícil localização.
MUITO RARO.

Documento editado pelo SNI (Serviço Nacional de Informação), de denúncia dos massacres efectuados pelos guerrilheiros da UPA, liderada então por Holden Roberto, no norte da ex-colónia portuguesa de Angola, a partir de 15 de Março de 1961, onde foram mortos centenas ou milhares de civis, homens, mulheres, velhos e crianças, brancos, negros e mulatos, com requintes de malvadez, conforme atestam as fotografias.
Trata-se pois de um documento histórico daqueles acontecimentos.
Preço: 50,00€

Com a devida vénia a Livros Ultramar - Guerra Colonial


 Manuel Sousa
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15685: Notas de leitura (801): "Catarse", da autoria do Pe. Abel Gonçalves (Major-Capelão do BCAÇ 1911 e do BCAV 1905), edição de autor, 2007 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15122: Da Suécia com saudade (50): A propósito do 'massacre de Sangonhá' (ou Sanconhá), de 6/1/1969... Contrariamente ao que escreve o gen pilav ref José Nico no poste P15038, não encontrei, até agora, nos arquivos do reino da Suécia, qualquer referência à eventual presença, nesse dia e local, de uma equipa cinematográfica sueca...


Guiné-Bissau > Bissau > ONG AD - Acção para o Desenvolvimento > 12 de dezembro de 2013 > Atelier ambiental transfronteiriço em Sanconhá (sic). Foto: cortesia da página da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, cofundada e dirigida, até à sua morte, pelo nosso saudoso amigo Pepito (1949-2014).

 "De 6 a 7 de dezembro de 2013, realizou-se em Sanconhá, junto à fronteira com a Republica da Guiné, o 2º atelier transfronteiriço, o qual tomou decisões muito importantes. Salienta-se a criação do 'Parque Comunitário Para a Paz, de N’Compá', a primeira área transfronteiriça dos dois países, a partir do qual se estabelecerá um processo de cooperação para o desenvolvimento das populações de ambos os lados da fronteira."

Foto (e legenda): © AD - Acção para o Desenvolvimento (2013). Todos os direitos reservados



1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia...

[ foto atual à esquerda: José Belo, ex-alf mil inf, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); atualmente é cap inf ref e vive na Suécia há quase 40 anos]

Data: 17 de setembro de 2015 às 17:36
Assunto: O poste 15038 e..."Os olhos azuis"


"Romanceamentos"


Os antigos combatentes continuam,e continuarão,a sentir profundo orgulho no seu serviço prestado na Guiné.

Existem dificuldades, mais do que compreensíveis,  em esquecer que algumas das ajudas humanitárias e económicas dadas por outros países aos movimentos de libertação que nos combatiam,  acabavam por, indirectamente, aumentar as suas capacidades militares e o número de mortos e feridos que nos iam causando.

Independentemente das ideias políticas de cada um, não o reconhecer seria mais do que falacioso na injustiça para com os camaradas que directamente vieram a sofrer as consequências destes auxílios.

Uma política nacional de apoio económico e social aos movimentos de libertação em África, América Central e do Sul, assim como ao Vietname, foi a dominante sueca nos anos sessenta e inícios de setenta.

Mas terá alguma vez havido "amizades" entre as políticas nacionais dos diversos países europeus, independentemente de o facto aparentamente poder "chocar" alguns militares com altos postos?

Assim como o governo português, no que julgava ser uma política colonial de defesa dos interesses nacionais, näo foi pedir sugestões aos suecos, não se pode estranhar que estes também o não tenham feito quanto aos seus interesses.

A Força Aérea de que todos nos devemos orgulhar

O sr. general José Nico apresentou de forma interessante, e profissional, a actuação da nossa Forçaa Aérea aquando das operações em Sangonhá [ou Sanconhá, para os guineenses, antes e depois da independência].

Mais uma vez se pode verificar com profundo orgulho a coragem, voluntarismo, eficácia e dedicação demonstradas pelos profissionais que faziam os possíveis, e os "impossíveis", para obterem o melhor rendimento e resultados do material de que dispunham, arriscando muitas vezes a vida ao procurar contornar muitas das limitações enfrentadas diariamente.

O mesmo näo o posso fazer quando o sr. general começa a divagar em análises político-sociais que de tudo um pouco envolvem no respeitante à Suécia, suas gentes, realidades económicas. Não menos, por leituras aparentemente fáceis sobre o luteranismo e suas influências histórico-actuais.

O sr. general terá, obviamente, todo o direito de ter as opiniöes que achar por boas.

Ao ponderar sobre assuntos técnico-operacionais da sua Arma e Especialidade há que humildemente saber ouvir.

No entanto, ao entrar por divagações políticas, alguns de nós, com a mesma humildade e respeito anteriormente referido, pdoerão... discordar.

Toda a divagação pós-operacional se situa na hipótese de que o nosso sucesso em Sangonhá [ou Sanconhá] se tornou possível pelo facto de os guerrilheiros do PAIGC estarem a participar ,como figurantes, em filme sueco de propaganda quanto às suas capacidades militares.

Tal conclusão é unicamente baseada num relatório apresentado pela polícia política da ditadura, que o sr. general cita de memória, pois acaba por admitir não ter até à data podido provar a [sua] existência por... [ter] desaparecido.

Basear täo "nuanceadas" conclusões em relatório único da polícia política, envolvida na guerra de propaganda e contra-propaganda, será, pelo menos, um pouco limitado nas fontes.

Muitas e díspares opiniões se poderão ter sobre a Direção Geral de Seguranca [, DGS],mas será pouco admissível acreditar-se serem os mesmos ingénuos e incompetentes na contra-propaganda da zona de guerra na Guiné.

Nem a nível oficial, nem a níveis pessoais, existe qualquer referência a tal filme entre as gentes do PAIGC,

Sabendo-se o gosto pelo "ronco" por parte da maioria dos locais, ou mesmo a lógica utilização de tão grande desastre militar como arma de arremesso (então ou posterior) entre as inúmeras facções políticas guineenses, este não documentado desastre é, pelo menos, estranho.

As [escrutinadíssimas] fontes suecas

Decidi então procurar na Suécia respostas.

Primeiro junto do Partido do Governo na data da ocorrência (socialistas), não encontrando nos arquivos qualquer referência a filmagens em Sangonhá [ou Sanconhá].

Forneceram-me contactos quanto aos arquivos do Departamento Estatal que trata dos assuntos relacionados com os apoios aos países em desenvolvimento e, tanto referido à Guiné como ao PAIGC em particular,  nada está referenciado quanto a tal ocorrência.

Para acalmar o nosso gosto mórbido quanto a possíveis "conspirações do silêncio" acabei por também contactar os sindicatos dos cineastas, fotógrafos e jornalistas na busca de participantes vivos, mortos ou feridos nas pessoas dos profissionais neles registados.

Nada quanto ao filme, participações, e muito menos quanto a mortos ou feridos.

Quanto aos últimos, numa sociedade totalmente aberta ao escrutínio dos cidadãos como é a sueca, mortos e feridos em África sem terem surgido nos jornais,TV, rádio, ou em discussões inter-parlamentares, é algo de impossível.

Temos portanto até hoje o tal relatório da Direção Geral de Segurança misteriosamente desaparecido em Portugal.

A não ter uma das tais suecas de olhos azuis ido aí para o destruir,  restam-nos sentimentos de fé, certamente muito válidos quanto aos Arquivos do Vaticano mas...quanto à política da ditadura e seus agentes?

Não tendo qualquer procuração jurídica, necessidade ideológica ou desejo pessoal de defender as políticas do reino da Suécia ( e quem sou eu para o fazer?), ficamos à espera que alguém encontre referências documentadas sobre o assunto, e deste modo, evitando intrepretações subjectivas,  passíveis de debates mais ou menos... romanceados.

Um grande abraço, desde Estocolmo,
do José Belo.

____________


(...) Segunda parte do trabalho da autoria do General PilAv José Francisco Fernando Nico, versando a ajuda da Suécia aos Movimentos de Libertação africanos, durante a guerra colonial, enviado ao Blogue pelo nosso camarada Miguel Pessoa, Cor PilAv Ref (ex-Ten PilAv, BA 12, Bissalanca, 1972/74) em 22 de Agosto de 2015.

(...) A razão para o suicídio do PAIGC em Sangonhá

(...) Por acaso tudo se aclarou alguns dias mais tarde ao ler um relatório da DGS que chegou ao gabinete do Comandante do Grupo Operacional 1201. Para mim foi uma espécie de relâmpago que tudo iluminou e desvendou, num instante, a lógica daquele comportamento estranho do PAIGC. Não consegui agora encontrar nenhum registo desse documento mas o facto é que me marcou tanto que nunca mais esqueci o essencial do que li. Resumidamente, a DGS dava conta de que o ataque se tinha enquadrado numa acção de propaganda promovida pela Suécia. Na minha opinião, muito provavelmente a pedido do próprio Amílcar Cabral, resolveram aproveitar o abandono de Sangonhá para simular a tomada do aquartelamento pela guerrilha. O cenário não podia ser mais perfeito. Antes de abandonar a posição, as instalações do aquartelamento tinham sido destruídas pelo Exército e essa imagem podia ser facilmente mostrada em fotografia e filme como sendo consequência dos ataques do PAIGC. Depois, a posição “acabada de conquistar” podia ser utilizada para mostrar o poder de fogo do PAIGC contra as posições que se preparavam para conquistar a seguir: Ganturé e Gadamael. Uma equipa de repórteres, incluindo fotógrafos e cineastas,  deslocou-se para esse efeito à Guiné-Conacri onde se juntou aos guerrilheiros. Um total de 400 pessoas terão estado envolvidas em toda a operação,  segundo as informações do régulo Abibo,  de Ganturé.

Ficou assim explicado porque razão o PAIGC se tinha exposto em pleno dia a levar com as bombas da aviação. É que não era possível fotografar nem filmar sem luz. Também não fazia sentido estarem escondidos quando tinham acabado de derrotar e afugentar o inimigo. Tinham, é claro, a noção de que iam correr um grande risco e por isso o terem levado a ZPU-4 para se defenderem. Mas cometeram um segundo erro, este gravíssimo. Foram detectados e,  em vez de embalarem a trouxa e rumarem novamente à Guiné-Conacri, deixaram-se ficar. Pessoalmente penso que, como os dois primeiros aviões não abriram fogo, assumiram que, ou os tinham atingido, ou os tinham dissuadido e resolveram continuar a fazer a “fita”.

Faltava explicar a utilização das peças anti-carro porque, como já foi dito, não eram, nem armas de guerrilha, nem adequadas às flagelações aos aquartelamentos. Não há mesmo conhecimento de terem sido utilizadas em qualquer outra ocasião.

Uma explicação muito credível ocorreu-me quando descobri algumas fotos dessas armas no arquivo Amílcar Cabral da Fundação Mário Soares. Fiquei até convencido que respeitam à acção do dia 6 de Janeiro de 1969. Passo a explicar.

O objectivo da operação era produzir propaganda, como referiu a DGS no seu relatório. Havia, por isso, necessidade de mostrar grande capacidade militar e poder de fogo, factores esses que estariam a determinar avanços do PAIGC no terreno nomeadamente a conquista de posições ocupadas pelos portugueses. Acontecia que aquelas peças anti-carro tinham um reparo longo, tinham rodas e um cano comprido. As eventuais audiências alvo da propaganda ficariam certamente muito mais impressionadas se o ataque fosse feito com estas peças de artilharia em vez dos tradicionais morteiros ou dos canhões sem recuo que eram armas relativamente pequenas. Só uma razão desta natureza os poderá ter levado a não utilizar o armamento tradicional nesta flagelação a Ganturé: nenhuma granada rebentou no perímetro do destacamento. (...)

(...) Concluindo, ironicamente pelo menos desta vez, a bondosa ajuda humanitária sueca cujo objectivo foi soprar “os ventos da história”,  contribuindo para a derrota militar dos portugueses,  não conseguiu infligir baixas às nossas forças. Ao invés, provocou um número substancial de mortos, feridos e incapacitados entre os guerrilheiros e, muito provavelmente, também entre os apoiantes cubanos, repórteres, fotógrafos e cineastas suecos. Que foram encontrados diversos despojos de pele branca é um facto,  mas nunca se conseguiu saber a quem teriam pertencido. O PAIGC e o governo sueco, em escrupulosa obediência às regras da propaganda nunca revelaram, nem durante a guerra, nem depois, este desastroso embate. (...)