Mostrar mensagens com a etiqueta mulher. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta mulher. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 5 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1563: Nunca pensei que também havia as Maria de Portugal (José Teixeira)


Guiné > Empada (Região de Quínara) > 2005 > Antiga caserna agora transformada em escola ... Por aqui passaram homens como o José Teixeira e o Mário da Conceição Caixeiro, da CCAÇ 2381, Os Maiorais (1968/70). Um, o Zé, regressou, são e salvo, a casa... Outro, o Mário, não teve a mesma sorte...

Foto: © José Teixeira (2006). Direitos reservados.


Texto do nosso camarada Zé Teixeira:

Caríssimo Luís: Saúde, paz e felicidade. De vez em quando apareço, para te saudar e saudar todos os camaradas da tertúlia que continua em crescendo, sempre com estórias novas/velhas que nos dão o fio condutor da História por nós vivida numa guerra fraticida, para que fomos empurrados e cujas marcas continuam a reflectir-se no quotidiano das nossas vidas.

Hoje dediquei-me a escrever sobre as Marias de Portugal e reconhecer humildemente que me tinha esquecido delas. Junto mais dois temas, um dos quais extraído de um artigo de jornal enquadrado no mesmo tema (o stresse pós-traumático de guerra que também afecta as mulheres dos ex-combatentes, segundo peça da jornalista Sílvia Maia, da Lusa, publicado no Correio da Manhã, em 27 de Março de 2006).

Fraternal abraço para todos, com votos de que haja saúde física e psíquica.


Sublime atitude de amor
por Zé Teixeira


Equacionar, no tempo, os efeitos nefastos de uma guerra não desejada pelo povo, como todas as guerras o são, mas muito especialmente esta em que fomos envolvidos, era até agora para mim:

a) Os milhares de mortos, na flor da juventude, entre os militares envolvidos de ambas as partes da contenda, arrastados, uns pelo dever patriótico de defender a autodeterminação e independência da sua terra face a um dominador estrangeiro que pelo facto de ocupar há umas centenas de anos pela força do poder, se julgava rei e senhor e os outros, arrastados por uma máquina poderosa do Estado que se alimentava na ideia de não querer perder um território que afirmava ser seu, remando contra ventos e marés que o mundo moderno rejeitava.

b) Os milhares de mortos duplamente inocentes entre as populações que se contabilizam em crianças, mulheres, velhos e população activa, quantas vezes barbaramente assassinados, como eu mesmo pude testemunhar, com raiva. Vítimas que viviam envolvidas entre dois fogos, arrastados e divididos por duas correntes de patriotismo opostas que se degladiavam, sem sentido lógico. A sua pátria era a Guiné, está hoje mais que provado. Quantas famílias divididas, pais para um lado, filhos para outro.

O Kebá, meu ajudante de enfermeiro, recusou-se a entra na milícia e não me acompanhava nas saídas para o mato. Um dia após insistência de minha parte, abriu-se a contar a sua história. Duas das mulheres que tinha estavam do outro lado da guerra, com alguns dos seus filhos. Ele optara por ficar em Empada e um dia fugiu e foi procurá-las com o objectivo de as fazer regressar, correndo o risco de ser apanhado entre dois fogos. Regressou de mãos vazias, pois elas recusaram a ideia. Fixou-se de novo em Empada, onde tinha terceira mulher com seus filhos. Da base do PAICG de onde elas se encontravam, algures nos arredores de Empada, partiam os guerrilheiros que nos atacavam, pelo que mais de uma vez ouvi o seu desabafo, após a refrega. “Hodje minha fidjo ê mudjer di mim vem visita a eu” . O Kebá que tive o prazer de rever em 2005, alegre e feliz, agora com toda a sua família junta.

c) Os estropiados, entre militares e civis que sobreviveram. Vitimados por uma guerra suja de matas ou morres, quer a razão (se é que alguma vez houvesse razões lógicas, que justifiquem uma guerra) pendesse para um ou outro lado em função da noção de patriotismo inculcada pelos ideológicos. Sobretudo os civis que eram apanhados entre dois fogos, numa guerra sangrenta e suja de que procuravam fugir para sobreviver. Hoje quantos deles na extrema miséria por incapacidade física ou mental de se organizarem para ganhar o pão de cada dia, ou então apoiados por familiares que têm de repartir o magro salário, se é que o usufruem, por mais uma boca que pede pão.

Registe-se as vítimas de stress traumático que não são tão poucos como parece, de parte a parte pois quase não se fala deles. Terrível doença que aniquila a personalidade do individuo, tornando mero ser vegetativo, dependente e de sociabilidade complicada, que causam terríveis problemas à família, ou se isolaram e vivem como párias, perdidos sem nexo, numa vida de que perderam o sentido.

d) As viúvas na flor da idade que de um momento para o outro se viram sós, sem o seu amado. Os projectos de vida perderam-se para sempre. O recomeço, se o houve, quão difícil foi.

e) Os pequeninos órfãos que muitos nem chegaram a conhecer o seu pai.

f) Os pais que geraram e criaram com amor e carinho seu filho, para o entregarem à Pátria em holocausto não desejado, nem consentido. Ficou a dor eterna da perda, que fez muitas mães, sobretudo, perderem a alegria de viver.

g) Nós todos, os antigos combatentes, com as marcas, sonhos terríveis que nos atormentaram e continuam a atormentar que nos ficaram em resultado de cenas vividas e não desejadas e muitas vezes não admitidas pelo nosso inconsciente, em resultado de uma educação que nos tinha sido dada, sobretudo pelos pais e pela influência da religião que professávamos. Marcas essas que agora com o envelhecimento estão a vir ao de cima.

No meu caso, sonhava continuamente com a Guiné do arame farpado. Sonhava com um povo tal como o conheci, fechado nas suas tabancas envolvidas em arame farpado, cheio de medos de um inimigo que afinal já não existia, mas que as informações que nos chegaram nos primeiros tempos de independência, quanto a mortes e perseguições a antigos combatentes, nossos companheiros de jornada, alimentavam este meu drama. Só em 2005 quando tive a felicidade de lá voltar numa romagem de saudade, pude fazer as pazes comigo mesmo e afastar fantasmas que me perseguiam.

Ora, nunca pensei que também havia as Marias [que perderam amigos ou namorados, na guerra].

A coragem de uma coragem de uma mulher aparecer no Blogue com o seu testemunho - pese embora o editor o tenha feito circular apenas pela tertúlia e no Blogue tenha querido mantê-la sob anonimato (1) - , arrastou à minha memória tantas jovens raparigas que viram partir os seus amores para o desconhecido de uma guerra num país lá longe, em África, que os mentores da ideologia política reinante afirmavam ser parte da nossa Pátria e que era preciso defender de ambiciosos estrangeiros.

Os contornos e efeitos dessa guerra eram-nos subtraídos, apenas pequenos e lacónicos comunicados com o nome dos mortos e os caixões com falecidos em combate, que as famílias com algumas posses conseguiam resgatar, eram sinais visíveis de que a guerra era a valer. Juntavam-se os discursos inflamados no 10 de Junho, para alimentar a plebe. Feira de vaidades que permitia aos Chefões tirar do guarda-fatos as vestimentas de gala e passeá-las pelo Rossio.

As jovens namoradas sonhavam com os seus amados, pintavam o futuro com os tons mais negros. Agarravam-se à esperança de que o seu ia ter sorte e voltaria são e salvo. Quantas se escondiam do mundo, dos prazeres que o quotidiano da vida lhes podia proporcionar, vestiam-se de escuro. Refugiavam-se no apelo ao seu Santinho predilecto à Virgem de Fátima e aguardavam em silenciosa esperança. O regresso do seu amor que o tempo teimava em manter afastado.

Nem a todas a sorte foi madrinha. Muitas unidas já pelos laços matrimoniais e com filhos, não voltaram a ver o seu amado. Outras transformaram-se em viúvas virgens. Uma bala assassina, enviada não se sabe por quem, um estilhaço de uma granada, roubou-lhes o que de mais belo possuíam, o sonho de construírem uma vida, um futuro em felicidade com aquele a que de alma e coração se entregaram por amor. A vida a que tinham direito.

Eles, ficaram pelo caminho, esmagados por sofrimentos terríveis ou . . . sem saberem de que morreram. Elas, tiveram de ganhar novas forças e recomeçar caminhos novos, passado o choque inicial, o sofrimento da perda que acreditava eu com o tempo se tinha esvaído num passado para esquecer. Anos de vida que se perderam, momentos felizes da vida que teimavam em manter-se no sótão da memória, marcas com muito custo afastadas.

Este e outros casos levantam, para mim, um novo drama, que sinceramente pensava que já tinha sido abafado. A fidelidade, mesmo quando factores da contingência da continuidade da vida obrigam a mudar de rumo, lá dentro fica para sempre a mágoa do amor que se foi de forma tão brutal e inglória. Drama que talvez, muitas outras mulheres mantenham vivo e silenciado, na dor e na raiva pela perda de uma vida a dois que legitimamente sonhavam e perseguiam com esperança e se esfumou num abrupto e seco telegrama a anunciar a morte "ao serviço da Pátria" do seu amado (3).

Às Marias de Portugal eu quero dedicar dois poemas que escrevi em tempos de guerra e que reflectiam o meu estado de alma.


AMOR EM TEMPO DE GUERRA

Ver-te chegar à minha vida, amor,
É sofrer.
Por saber que para a guerra vou.
Dizem que a Pátria me chama.
Já cá não estou para a semana.
Tu que nesta aventura quiseste entrar,
Acreditas no futuro ?
Estranha forma de amar.
Estranha forma de ser.
A razão do meu viver.
De lutar
Para voltar direito,
Escorreito.

Voltarei.
Gritei, na despedida, lembras-te ?
Quando o comboio apitava,
Um corpo morto ele levava,
Ficava contigo o coração.
Sentado no degrau da Estação,
Enquanto me interrogava.
Que mundo vou conhecer ?
Que Pátria vou defender ?
Será que terei de matar
para viver
...E regressar
Direito.
Escorreito.

Estranha forma de ser.
O desafio aceitar.
Dois anos tu vais ficar,
Tu e eu a sofrer.
Ambos vamos sonhar.
Estranha forma de amar.
A razão do meu viver,
De lutar para voltar
Direito.
Escorreito…


A CARTA QUE NÃO ESCREVI
(Dedicado ao camarada Mário da Conceição Caixeiro que morreu sem eu lhe poder valer) (2)

A carta que escrevi,
Não escrevi.
Ao seu destino chegou.
Atrasada.
No avião seguia, quando morri,
Levou-me o sopro de uma granada.
Dizia eu que estava bem. Era verdade.
A guerra estava parada.
À vista o fim da Missão,
Servir a Pátria amada.
Cantava.
Cantava de alegria,
Afastava a solidão,
O medo, a angústia, o desejo de voltar.
E veio a granada para me matar.
A notícia voou rápida,
Para ferir.
Levou à minha amada
A dor de me ver partir,
Sem me despedir.
A carta.
Juro que a escrevi,
Mas não escrevi
Porque morri.
Sei que a leste
Com que fé, amor !
Esperança danada
Que fez esquecer a dor,
Da mensagem levada
Pelo Crocodilo lacrimado,
Com o resto da minha granada,
medalhado.
Eu estava.
Mas não estou.
Quando cantava
A morte me levou
E a minha carta
Para ti, Amor,
Viajava, levando a esperança
Que acabou.


___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

24 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1544: Quem conheceu o Furriel Mil Art Fernando J. G. Ribeiro, morto na picada de Binta-Farim em Julho de 1973 ? (Luís Graça)

25 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1547: O Furriel Ribeiro pertencia à açoriana CCAÇ 3414 e morreu entre Mansabá e Mansoa (A. Marques Lopes)

28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1554: As Marias que ficaram na rectaguarda (Luís Graça /Paulo Raposo / Paulo Salgado / Torcato Mendonça)


(2) Vd. post de 11 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - DXXIV: Estórias do Zé Teixeira (2): o Conceição ou o morrer de morte macaca

Vd. também o belíssimo diário do Zé Teixeira, já publicado em 19 posts > 13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

(3) Caríssimo Zé: Valeu a pena ? Pergunta o poeta, perguntas tu e eu, pergunta a nossa geração... Deixa-me também recordar aqui o magistral Mar Português, que o Fernando Pessoa escreveu na Mensagem (1934), o único livro publicado em vida do poeta e que mereceu um obscuro prémio num concurso de poesia lançado pelo SNI do António Ferro:

X. MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1544: Quem conheceu o Furriel Mil Art Fernando J. G. Ribeiro, morto na picada de Binta-Farim em Julho de 1973? (Luís Graça)



Lisboa > Belém > Monumento aos Mortos do Ultramar > O Furriel Fernando Gaspar Ribeiro é um dos milhares nomes, gravados no mármore, que constam no impressionante memorial afixado nas muralhas do Forte do Bom Sucesso.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem de alguém que foi das relações de amizade de um camarada nosso, morto na Guiné, e que pretende saber mais pormenores sobre a sua vida e morte. Por razões de sigilo, transcrevo apenas uma parte do teor do mail que recebi (e que circulou internamente na nossa tertúlia):

Bom dia, Luís:

Fiquei muito contente por me ter escrito e então vou contar-lhe o que se passou: (....) O Fernando Ribeiro (...) foi para a Guiné, onde esteve 24 meses. Já depois dos 22 meses a que tinha direito, foi buscar mantimentos a algures, pois dizia que estava cansado de estar no mesmo sítio. Sei que no regresso, na picada entre Binta e Farim, uma mina rebentou (...).

(...) Agora com a Internet, eu vou pesquisando coisas de que gosto e esta foi uma delas: a guerra do ultramar (...).

(...) Num dos comentários, feito pelo João Tunes, a descrição dum acontecimento era esta: quando morre um camarada nosso é como se morresse uma parte do nosso coração, então quando um camarada que ia um carro, sentado em cima dum saco de areia ao lado do condutor, foi morto por uma mina, dizendo-nos:
- Estou fodido, foderam-me a vida e eu sei que não me safo, mas digam à Fulana Tal que estou a pensar nela (1).

(...) Tudo o que me possam dizer do Fernando Ribeiro, Furriel Miliciano de artilharia, eu agradecia (...) Faleceu em Julho de 1973 (2). Foi o único da companhia que não veio.

(...) Sei que esteve também em Bafatá, também perto do Rio Cacheu e chegou a estar mesmo na fronteira do Senegal (...) .

Agradeço a sua atenção por este caso (...).


2. Comentário do editor do blogue:

Fico sensibilizado por saber que o nosso blogue já chega a muitas partes e é lido até por muita gente que nunca esteve na Guiné, nem foi tropa: por exemplo, filhos de camaradas nossos que já morreram, outros familiares, ex-namoradas ... E há estórias de partir o coração... Há filhos a querer saber por onde andou o pai na Guiné... Em vida, lá em casa nunca se falava da Guiné... Por pudor, por respeito, por constrangimento... Entretanto, o pai morre precocemente, de doença ou de acidente... Há um pedaço da vida dele que passa a ser um buraco negro na memória de todos e de cada um, a nível da família...

Com culpa e lágrimas nos olhos, vem-me perguntar se os posso ajudar a encontrar um pista, um nome, uma unidade, uma terra, uma camarada.... Aconteceu-me hoje, por exemplo, com uma jovem enfermeira que me procurou, e cuja pai morreu há uns anos, de cancro no estômago... Ela era demasiada nova (15 anos) para puxar a conversa sobre a guerra e a Guiné... A mãe só o conheceu mais tarde, depois da desmobilização... A mala dele perdeu-se na viagem de regresso a casa... Não há fotos, não há aerogramas, não há memórias,traços da passagem do pai pela Guiné...

E agora aparece-me esta mulher a evocar um amigo que morreu na guerra... Confirmei que o Furriel Fernando [José Gaspar] Ribeiro morreu em combate em 15 de Julho de 1973... Dele não não sei mais nada. Mas espero que outros camaradas e amigos possam trazer mais algumas pistas. Ficarei feliz se pudermos ajudar esta e outras mulheres recuperar e a fortalecer as suas recordações de juventude... Não traremos de volta, infelizmente, o Fernando (ou qualquer outro dos nossos camaradas que morreram), mas pode ser que apareça alguém que o tenha conhecido, e nos diga algo mais sobre ele e as circunstâncias em que morreu...

Esta nossa visitante não nos pediu confidencialidade... Pelo contrário, teve a coragem de dar a cara e fazer um pedido (público) de ajuda. Entendi, no entanto, que ela não pode ser exposta, em termos mediáticos, e tem direito ao respeito pela sua privacidade e intimidade... Decido publicar o seu caso, sem a identificar, e recorrer à nossa tertúlia. As nossas melhoras saudações tertulianas para ela. E aqui fica a porta aberta para esta ou outras mulheres passarem também a fazer parte deste nosso grupo de amigos e camaradas da Guiné... Elas foram, afinal, as que ficaram na rectaguarda, amando-nos, rezando por nós, escrevendo-nos, animando-os à distância... (LG) .
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post 21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - CCCI: Morreu um soldado português no Afeganistão... (A. Marques Lopes / Afonso M.F. Sousa / João Tunes)

(2) Fernando José Gaspar Ribeiro, furriel do exército, morto em combate em 15 de Julho de 1973, natural de Condeixa-A-Nova, unidade mobilizadora: BII 17... Vd. Lista disponível, em formato pdf, no sítio do António Pires > Moçambique - Guerra Colonial > José da Silva Marcelino Martins > Militares que Tombaram em Campanha (1961-1974) > Guiné

sábado, 3 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1490: Favores sexuais furtivos em Mampatá (Paulo Santiago)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Fevereiro de 2005 > À noite na Pousada do Saltinho: o Abdu, de gorro vermelho, o Paulo Santiago e Sado (1)

Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.

Texto do Paulo Santiago (ex-Alf Mil do Pel Caç Nat 53, SPM 3948, Satinho, 1970/72):

Luís:

Após ter lido o excelente post do Vitor Junqueira sobre a Fanta Baldé (2), não resisto, tenho de contar o meu primeiro encontro sexual, ocorrido na Guiné.

Estava há seis/sete meses sem saber o que era mulher. Tinha uma lavadeira, mas essa tratava-a com muito respeito, era mulher do meu soldado Fodé Sané, um dos meus
militares condecorados com Cruz de Guerra. Mulheres de soldados do 53 eram minhas irmãs, ninguém lhes tocava (Hei-de contar, um dia destes, um problema grave havido com um militar da CCAÇ 2701,quando tentou violentar uma dessas minhas irmãs).

Uma tarde, o Abdu, mandinga, chefe de tabanca do Saltinho, diz-me, meio em segredo, ter uma bajuda para descarregares baterias (3), nessa noite, na tabanca de Mampatá, onde ele esperaria por mim para me indicar a morança.

Claro,a partir desta conversa, a cabeça,propriamente dita, deixou de funcionar, passando os neurónios para a cabeça da... piça. Mal jantei, dando a desculpa de uma indisposição e de que iria dar uma volta até à tabanca do meu pessoal, que ficava no exterior do arame farpado do quartel.
Mampatá distava uns 2 kms do quartel, percorridos em marcha acelerada, levando como única arma a faca de mato no cinturão. Estava uma escuridão que mal dava para lobrigar a picada.

À entrada da tabanca, estava o Abdu, à minha espera e foi-me conduzindo pelo meio das moranças,até chegar a uma onde me indicou para entrar,tendo-se ele afastado. Entrei, meio encurvado, a porta era baixa, há uma mão que me puxa, não dizemos qualquer palavra, não consigo ver a cara da mulher, se era nova ou velha. Falando portuguesmente foi uma foda à coelho.

Após consumação do coito, dou por mim meio aterrorizado. Puxo as calças para cima, agarro no cinturão e raspo-me dali para fora.Chego ao quartel ofegante.

Andei montes de tempo sem contar esta cena a ninguém, arrepiava-me só de pensar nela. Poderiam ter-me cortado a cabeça, a de cima, a que pensa,ou poderiam apanhar-me à mão. Nenhum outro militar sabia onde tinha ido naquela noite.

Após a independência vim a saber que o Abdu era o homem do PAIGC na zona. Em Fevereiro de 2005, tentei sacar-lhe se a intenção daquele convite não seria para ter outro resultado. Disse já não se lembrar do acontecido.

Putas, só mais tarde, quando estava em Bambadinca e aos Sábados lá ía, com o amigo Vacas de Carvalho, a Bafatá. Histórias para outra altura.

Abraço
Paulo Santiago

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P926: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (3): Saltinho e Contabane

(...) "Vem o Rui, encarregado da pousada, chamar-me pois anda o homem grande à minha procura- era o Abdu, mandinga, chefe de tabanca do Saltinho, negociante de vacas e magarefe de serviço na 2701, e, soubemo-lo mais tarde, homem do PAIGC na zona... Abraçamo-nos fortemente e, penso, que consegue estar mais emocionado que eu própio. Sentamo-nos a lembrar o arroz à Abdu que ele fazia de forma magistral. Pergunta-me por muitos ex-militares da 2701, por alguns dos meus furriéis do 53, falamos de vários assuntos, até sobre canhotos, aqueles cachimbos tradicionais" (...).

(2) Vd. post de 31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação (Vitor Junqueira)

(3) Expressões equivalentes, no nosso jargão porno-militar, machista e sexista, da Guiné: dar uma cambalhota, mudar o óleo, partir catota, dar uma penachada... Não se pense, no entanto, que no nosso tempo nos comportávamos como tropa ocupante: na generalidade dos casos, e pelo menos no consulado de Spínola, as relações com a população que estava do nosso lado pautavam-se por regras (mínimas) de civilidade, de decoro e até de respeito pelas suas tradições e pela sua cultura...

Depois do primeiro choque cultural com comunidades e grupos humanos com valores e práticas sociais muito diferentes da nossa sociedade de origem, o soldado português rapidamente se adaptava e, nalguns casos, até sabia tirar partido das situações - por exemplo, em termos de favores sexuais por parte das mulheres ...

Não se pense que a prostituição - geralmente associada à presença de um ocupante estrangeiro ou de um forte contingente militar, em situação de guerra - estava generalizado a toda a Guiné... Na zona leste, por exemplo, Bafatá, sede de concelho e centro da máquina de guerra, era praticamente o único sítio onde o comércio do sexo funcionava segundo as leis da oferta e da procura... É claro que em Bambadinca (ou em Nova Lamego) também havia mulheres que faziam favores sexuais ou alinhavam em farras, mas o controlo social da comunidade era maior... Em Bafatá bastavam os pesos; em Bambadinca, o tuga tinha que saber também tirar partido da sua capacidade de sedução...

E é bom que se diga que, na Guiné, no nosso tempo, lavadeira não era sinónimo de criada para todo o serviço... A maior parte das mulheres e bajudas da Guiné que trabalhavam para a tropa, nomeadamente na zona leste - como lavadeiras, por exemplo - , deram provas de grande dignidade e humanidade, apesar da sua pobreza e do assédio sexual a que estavam sujeitas...

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

Guiné > Região do Oio > Mansoa > Bajuda Balanta > Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa, s/d nem editor... Colecção do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho (ex-fur mil op esp, CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1973/74).

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.


Um estória do Albano Costa (ex-1º cabo da CCAÇ 4150, Guidaje, 1973/74), que já está em arquivo há uns dois ou três meses... Ele vive e trabalha hoje em Guifões, Matosinhos. Se lá forem perguntem pela FotoGuifões... O Albano é a gentileza em pessoa.

Caro Luís:

Quando cheguei à Guiné, fomos logo directos para o Cumeré. Lembro-me de termos chegado a um sábado de manhã. Tudo era diferente, tudo era estranho. Fomos em coluna militar, mas nada parecido com as que fazíamos no mato. A viagem foi feita numa Berliet, íamos acomodados como os porcos, todos a monte. A população local fez uma grande festa no trajecto de Bissau até Safim, a chamar piu-piu, periquito vai pró mato...Para mim tudo era novidade.

Depois de acomodado no Cumeré, uma das minhas primeiras prioridades era vir à cidade encontrar-me com um colega que tinha a informação de estar na Manutenção Militar. E então, quando me encontrei com o velhinho, meu amigo, pedi-lhe para me levar ao Pilão, às bajudas...

Então lá fomos os dois, e no caminho fui avisado sobre os preços que na altura eram praticados:
- Se for guineense, são 50 pesos; se for caboverdiana, são 100 pesos.

E lá fui eu, cheio de vontade. Quando lá cheguei, o meu amigo foi dar a volta dele e eu fiquei um pouco à deriva, sem saber o que fazer...

É que eu estava há 24 horas na Guiné e num sítio que era sempre preciso ter cuidado e, para mais, dava para perceber que era periquito... Então esperei pelo meu amigo, até que ele entretanto chegou e eu falei do que estava a ver, nenhuma me interessava a não ser aquela com quem ele foi mas essa, eu não a queria naquele momento, por razões óbvias...

Fomos a outro bar e aí eu acabei por escolher uma guineense que parecia mais caboverdiana do guineense, mas como o meu amigo me tinha dito que guinenese era só 50 pesos, eu ao puxar pelo dinheiro, lembro-me que não tinha ainda pesos mas sim escudos... Só que, como o apetite era grande, eu não me importava nada de pagar em escudos, mesmo sabendo que valia mais qualquer coisinha...

Guiné > 1971 > Cópia de nota de 50 escudos (pesos) da Guiné. Frente. Banco emissor: BNU. Imagem gentilmente enviada pelo Sousa de Castro (CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74):
Foto: © Sousa de Castro (2005). Direitos reservados.



Entretanto, a companheira furtiva, ao ver notas de 50 e 100 escudos, vendo que eu era periquito, pede-me 100 escudos... Aí eu disse:
- Não, se quiseres são 50 escudos; se não quiseres, vou-me embora.

Ela disse que não, e aí eu vim embora a seco.O meu amigo. quando chego à beira dele tão rápido ficou admirado, e disse
- Já ?! ... Nem deu tempo para tirar a roupa!...

Então, eu contei-lhe o sucedido e ele disse-me:
- Fizeste bem, vamos a outro bar.

Ora bares era o que não faltava no Pilão ou Cupilon... Eu respondi-lhe:
- Agora já perdi a vontade, amanhã eu venho cá outra vez para saciar o desejo... - E assim aconteceu.

Cambiei os escudos por pesos, a diferença não era assim muito mas era alguma coisa, e lá fui com a caboverdiana por cem pesos.

Depois fui para Guidaje, não havia nada, era como já disse uma terra de ningém, só lá existíamos nós e a população civil quase toda ligada aos militares da CCAÇ 19. Era um pouco difícil, não se passava nada, uma autêntica pasmaceira. Mas eu, como fotógrafo, consegui arranjar uma lavadeira, e para todo o serviço. Nunca lhe paguei propriamente os favores sexuais, embora me tivesse ficado mais cara... Julgo que era também por prazer que ela vinha ter comigo ao meu quarto...

Estava só com um colega, ele já sabia, pelo que quando ela vinha buscar a roupa ele ia dar uma volta. E por isso todo o tempo que estive em Guidaje, foi sempre a mesma. Ela era casada. O marido tinha mais de uma mulher e, por motivos de saúde, esteve um tempo ausente, e aí eu estive sempre à vontade.

Quanto ao pré, sei que, como 1º cabo, recebia 750$00, os outros 500$00 ficavam na metrópole, mas eu tinha mais dinheiro que ganhava a tirar fotografias, e dava para tudo, só não deu foi para trazer para casa, mas isso já é outra estória.

Um abraço, Albano Costa

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1483: Blogoterapia (16): Males de amores ou... Tenho um lenço da minha lavadeira ali guardado na gaveta (David Guimarães)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 > 1973 > O Fur Mil de Operações Especiais Casimiro Carvalho com duas bajudas da tabanca.

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector l1 > Xitole > CART 2716 > 1970 > O Guimarães e a Helena, a sua lavadeira. O Xitole era, tal como Bambadinca, um posto administrativo, pertencente ao concelho de Bafatá. A povoação que lá vivia era, no entanto, menos numerosa do que a de Bambadinca, sede do BART 2917 (1970/72) .
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.

A história das relações das NT com a população em geral, e com as mulheres, em particular, está por contar. Em muitos casos, a presença de centenas de homens, europeus, brancos, jovens, solteiros, combatentes, a milhares quilómetros de casa e com muitos pesos no bolso, terá tido um impacto considerável na desestruturação social de algumas comunidades tradicionais...

"Tenho um lenço da minha lavadeira, ali guardado na gaveta" (DG) podia ser o título de uma bela estória sobre os (im)possíveis amores em tempo de guerra... Ou sobre os nossos males de amores, que era muitas vezes o preço que se passava por uma noite (suada) de sexo...

O post do Vitor Junqueira (1) já obteve vários comentários, do pessoal da tertúlia, a começar pelo Torcato Mendonça (2). Publicam-se a seguir outros, que já nos chegaram. Devo acrescentar que as estórias de homens e de mulheres em tempo de guerra - muito desiguais em termos de estatuto e de poder, e vindos, se não dos antípodas, pelo menos de culturas muito diferentes - não têm abundado no nosso blogue (3)... Amores de soldados e de marinheiros são levados pouco a sério, e rapidamente esquecidos... Evocá-los, décadas depois, é complicado e é preciso talento, além de bom senso e bom gosto... É difícil contá-las, para mais em público, em grupo, na caserna virtual que é o nosso blogue... Por pudor ? Por preconceito ? Por autocensura ? E, no entanto, erotismo, exotismo e guerra andam muitas vezes de mãos dadas... E tudo indica que, como a do Junqueira, há belíssimas estórias por contar... (LG).

1. Amaral Bernardo (CCS / BCAÇ 2930, Catió, 197o/72):

Acabo de ler o escrito por Vitor Junqueira... Impressionante. É belo e envolve-nos a todos, de um modo ou outro, numa mesma cumplicidade. Lindo!!!

2. Fernando Franco (BIG, Bissau, 1973/74):

Para além de fazer meus, os comentários do Amaral Bernardo, tenho a acrescentar que me revi na mesma situação, só que estava na zona nobre de Bissau, o Pilão. Como nós, devem estar centenas, para não dizer milhares, que viveram a mesma situação, ou de maneira diferente. Quero deixar aqui um agradecimento ao Vitor Junqueira, por me relembrar esses momentos e dar-lhe os parabéns pela forma como escreveu ao pormenor essa situação.

3. David Guimarães (CART 2716, Xitole, 1970/72):

Esta, diria eu.... é a verdadeira história de amor que aconteceu com o Junqueira .... E eu que nem sou piegas - só sou velho - até as lágrimas me vieram aos olhos de emocionado ao lê-la....

Tenho um lenço dado pela minha lavadeira, ali guardado na gaveta, mas decerto que quereria ter vivido uma história de amor como o Junqueira.... Porque pelo que ele escreve, houve sim muito para além do sexo. E isso é lindo...

Um abraço e obrigado, Vitor, deste-me uma lição de humanidade.

Nota - Já li várias vezes o post do Vitor. Lerei mais, pois apetece ler e reler, faz-me bem...

4. Sousa de Castro (CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74):

Linda Estória!... Real, verdadeira, estória mais ou menos igual a tantas outras vividas por ex- combatentes, sentimentos de saudade que muitos de nós não conseguimos relatar, passar para o papel o que nos vai na alma, embora pessoalmente não tenha passado pela experiência do Junqueira (quem me dera!...).

Lembro-me, com saudade, da pele macia, aveludada, as mamas apetitosas e o cheiro característico do perfume que elas usavam. Lembro-me em determina altura no Xime uma Badjuda (minha lavadeira) que, a troco de algum pão e marmelada, me agradeceu com um apetitoso beijo nos lábios que me deixou sem fala... e outras recordações.
__________

Notas de L.G.:

(3) Em tempos eu já aqui tinha evocado a Helena de Bafatá, que sucessivas levas de batalhões conheceram, no sentido bíblico do termo... Ela foi, avant la lettre, uma verdadeira profissional do sexo, e eu ainda hoje acho que lhe devíamos ter erigido, por gratdão, uma estátuta na sua terra natal... Vd. post de 12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá (Luís Graça)

(...) "Amorosa Helena, pequena fula dengosa, ‘salva das garras do Islão’ (sic) por zelosos missionários católicos – mas não da faca da fanateca, que te extirpou, na festa do fanado, o clitóris – para se tornar o colchão de todas as camas, a Vénus negra de batalhões inteiros, a iniciadora sexual de mancebos que as sortes vieram arrancar às saias da mamã, a alegre e traquinas companheira de muitas farras de caserna, correndo nua e lasciva do regaço de tropas bêbedos que nem cachos, para o abrigo mais próximo quando às tantas da madrugada soava o canhão sem recuo!...

"Bela Helena de Bafatá que sabias pôr na ordem os arruaceiros paraquedistas de Galomaro que te batiam à porta a pontapé quando eu estava contigo, deitado na tua liteira, e me dispensavas pequenas gentilezas – um ronco de missangas, vermelhas, ou uma talhada de papaia que trazias do mercado – sempre que eu ia a Bafatá e procurava a tua companhia, na melhor das hipóteses, uma vez por mês, no dia de folga dos guerreiros… Tu e as tuas amigas de Bafatá que tanto trabalho deram que fazer ao competentíssimo furriel enfermeiro Martins, que nunca punha os pés fora da sua enfermaria e que eu duvido que alguma vez tenha ido a Bafatá, o nosso querido Pastilhas que vivia 24 horas dentro do arame farpado, trabalhando incansavelmente, de bata branca, em prol de uma Guiné Melhor, que nos aturou mil e um travessuras, partidas de mau gosto, brincadeiras estúpidas, bebedeiras de caixão à cova e sobretudo nos curou de alguns valentes esquentamentos……

"Destes e doutros males de amores, estás perdoada, Helena. Afinal, quem vai à guerra, dá e leva… Tu curavas-nos dos males da alma, o Pastilhas dos males do corpo… Entretanto, quando a guerra acabar, para mim e para os meus camaradas da CCAÇ 12, não terei tido tempo de te devolver a pulseira de missangas vermelhas nem de te dizer um 'Adeus, até sempre', um adeus sem regresso… Guardarei de ti a doce lembrança das tuas estridentes e saudáveis gargalhadas, do cheiro exótico do teu corpo, das tuas sagradas funções de sacerdotiza do amor em tempo de guerra… Imagino que a tua vida não tenha sido fácil depois da independência, se é que lá chegaste com vida e saúde… Nunca mais tive notícias tuas, mas hoje, revendo a minha primeira viagem, por terra, no interior da Guiné, do Xime até Contuboel onde me esperavam os meus queridos 'nharros', ao longo do interminável dia de 2 de Junho de 1969, o teu nome, o teu rosto e as tuas gargalhadas vieram-me à lembrança...

"Lembrei-te de ti em Ponta Coli, frente à vasta bolanha, agora seara inútil de capim alto, com o cadáver do furriel vagomestre nos braços; lembrei-te de ti e das minhas escapadelas a Bafatá… Também foste, à tua maneira, uma heroína daquela guerra, minha impossível amiga, separada pelos papéis que nos obrigaram a representar na tragicomédia da guerra colonial da Guiné… Daí figurares, contra a toda a ortodoxia (do teu povo fula, dos teus missionários católicos, dos 'tugas' que apenas queriam o teu corpo, dos revolucionários do PAIGC que não te terão perdoado o colaboracionismo com os colonialistas, para mais sendo tu conterrâneo do pai da Pátria, o Amílcar Cabral), daí figurares, dizia eu, na minha galeria de heróis e de heroínas… Com todo o direito, com o direito que ganharam as mulheres do teu país, ofendidas e humilhadas, violentadas pelo sistema, pela guerra, pela dominância dos machos, pelo imperativo da sobrevivência… Aceita esta pequena homenagem da minha parte, onde quer que estejas, na terra, no céu ou no inferno!

domingo, 14 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1430: Blogoterapia (14): O testemunho de quem viveu (Anamargens)

Alguém (uma mulher, Anamargens) deixou em tempos este comentário a um dos nossos posts (1):

Eu tive um tio na Guiné, marido e cunhado em Angola, irmão em Moçambique, na(s) Guerra(s).
Nunca vi nada.
Pouco ouvi de relatos.
Não esqueci.
E continuo a achar que não pode ser esquecido.
Aprecio que quem viveu, deixe o seu testemunho.

________

Nota de L..G.

(1) Vd. post de 4 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVIII: Pensando... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) (José Teixeira)

terça-feira, 21 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P71: Antologia (3): Sócio-antropologia da família e da mulher em Geba, nos finais do Séc. XIX (Marques Lopes)

Textos seleccionado e enviados por Marques Lopes (que foi alferes miliciano da CART 1690, em 1967, em Geba):

1. A circuncisão e a família em Geba, por Marcelino Costa Ribeiro (1885)

Há um péssimo costume gentílico inveterado no povo do presídio de Geba, o qual consiste em determinado tempo aplicar a circuncisão a ambos os sexos, operação a que em Geba dão o nome de fanado.

Esta operação, apesar de ser simples, carece de algum cuidado, e não é só empregada pelos selvagens, mas também por muitos da praça de Geba, que infelizmente têm o nome de cristãos e civilizados.

Na actualidade aquele costume está mais em uso entre as supostas donzelas, vulgo bajudas, de 12 a 26 anos, do que entre os mancebos, devido talvez à luz da civilização, que vai pouco a pouco penetrando nas camadas sociais, e que se prega na boa escola confiada ao digno missionário e pároco distinto, o sr. Luiz Baptista do Rosário e Sousa.

Infelizmente as bajudas não têm quem lhes ensine as boas doutrinas, adoptadas na lei de 1809, porque as suas amas, vulgo mestral, passaram pelo mesmo caminho, e deixam que as suas educandas sigam à risca as leis gentílicas, adoptadas pela nobre universidade de Sonaco (1) , aonde vão instruir-se.

Quem conhece Geba a fundo, e está em dia com os péssimos costumes ali adoptados, sente logo a diferença no número da população que reside no presídio, sem que ninguém lhe diga nada; esta diferença é sempre notável nos princípios de Dezembro, época em que as supostas donzelas vão para diferentes povoados perto do presídio, sujeitarem-se à circuncisão.

Algumas a quem os pais impedem a ida, lamentam a sua sorte, metem empenhos, e quando não conseguem a licença de se irem circuncidar, fogem aos pais, e vão para o sítio aonde está constituída a liga, sujeitar-se à operação ; evitando por este modo que amanhã sejam consideradas na alta sociedade de Geba como olmo (não circuncidadas). Eis aí a maneira como são educadas em Geba muitas, a maior parte, das raparigas oriundas daquele presídio, e filhas de pais da classe de grumetes (2).

Agora direi alguma cousa acerca dos mesmos grumetes, explicando a maneira como eles adquirem numerosos filhos e constituem família, sem serem muitos deles verdadeiros pais. É costume e uso inveterado entre os grumetes no presídio de Geba, terem 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 mulheres. A mais antiga em casa é sempre tida como dona da mesma, e poucas vezes se ausenta ; as outras quase nunca param em casa, vão para Fulacunda (3) (pequena povoação dos gentios fulas) fazer negócio, e aí se conservam.

Estas mulheres, chegando a Fulacunda ao mesmo tempo que se ocupam da venda de sal, tabaco e outros artigos que levam para os gentios, vendem-se também a si mesmas. No fim de alguns anos, algumas voltam à praça com 2 filhos, outras com 3, outras com 4, outras com 5, os quais, longe de serem mal recebidos em casa dos supostos pais, são tratados por estes como verdadeiros filhos!

Aqueles pequenos crescendo, começam a apelidar-se com o mesmo apelido; se os supostos pais se chamam Sambú, todos se apelidam Sambú, e se forem tio-Chico, todos seguem o mesmo, etc. No recenseamento que se fez em Geba no ano de 1882, notei na relação dos recenseados alguns grumetes com 15 filhos, outros com 19, outros com 21, etc. Explica-se pela circunstância que acima mencionei.

Marcelino da Costa Ribeiro (Geba—Guiné), in Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. 1885.277-278.


Notas de Marques Lopes:

(1) Será Sonaco na zona de Gabu? É que também há Sonaco, no Senegal, perto de Barro, e de que já vos falei (ML).

(2) Os grumetes eram africanos que, vivendo nas povoações luso-africanas e adoptando com grande liberdade os hábitos cristãos e os modos lusitanizados de ser, operavam como remadores, construtores e pilotos de barcos, carregadores e auxiliares no comércio. Como categoria sociológica, eles desempenhavam um papel chave no frágil compromisso em que a sociedade crioula se fundava, sendo os intermediários que faziam a delicada mediação nos relacionamentos entre a minoria de comerciantes europeus e luso-africanos e os régulos das sociedades tradicionais africanas que produziam bens para exportação (Wilson Trajano Filho, da Universidade de Brasília, in Outros Rumores de Identidade na Guiné-Bissau).

(3) Há uma tabanca Fulacunda, na zona de Geba; há outra Fulacunda na zona de Buba; e há também uma Fulacunda na Casamanse, Senegal (ML).


Observações de L.G.:

Sobre a polémica cerimónia do fanado, vd. o meu post, de 4 de Maio de 2005 >
Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)


2. Beldades de Geba, por Costa Pessoa (1882)

Quando saí de Lisboa em Outubro de 1879 com direcção á Guiné portuguesa, julgava, senão impossível, pelo menos difícil encontrar indivíduos da raça preta que me parecessem bonitos; mas logo que cheguei a Bolama e Bissau desenganei-me e muito mais depois que, navegando no rio Geba, vim parar à povoação deste nome.

É realmente interessante ver chegar a este presídio todos os dias grandes ranchos de fulas, fulas-forras e mandigas (mouras) dentre as quais aparecem tipos tão bonitos e regulares, que muitas damas da nossa terra invejariam (salvo a cor).

Principalmente dentre as fulas-forras, tribo de cor bronzeada, aparecem raparigas de rosto comprido, nariz aquilino, pequeno, lábios delgados, olhos vivos, apresentando um conjunto agradável e simpático.

O seu vestuário é o mais simples possível, consiste unicamente em um pano de algodão de 0,5m de largura, algumas vezes enfeitado com contas, que passam à volta da cintura. No pescoço e tornozelos trazem também muitos fios de contas e nos pulsos quantidade de manilhas. Do cabelo fazem um penteado em forma de barco com a quilha para cima, que vai desde o alto da cabeça até à nuca, deixando áà volta na testa e nas fontes pequenas tranças a que prendem fios de comas com moedas de prata nas extremidades.

Deu-se um dia comigo um caso engraçado : Estando eu sentado à porta de um negociante deste presídio, vi chegar um rancho de fulas que vinham fazer o seu negócio. E entre elas havia uma que sobressaía mais do que qualquer outra por ser mais bela e vir mais enfeitada. Chamei-a : ela aproximou-se e comecei então a examiná-la sem que ela a isso se opusesse; porém uma rapariga cristã, que se achava entre elas, diz-lhe :
— Repara que isto não é homem, é um boneco de molas movido por aquele (designando o negociante).
A fula retorquiu-lhe :
— Não, ele fala, tem olhos e cabelo.
— Tudo é postiço, e não diz coisa que se entenda, respondeu a cristã. Tu percebes alguma cousa do que ele diz ? Já viste homem tão branco ? (Eu era o único europeu que então me adiava em Geba, mas em Portugal não passava por ser dos mais brancos).

A esta última quartada fugiu a rapariga. Não se aproximou mais de mim, e hoje seguem todas aquele exemplo.

Costa Pessoa (Geba — Guiné), in Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. 1882. 27/28