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sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22455: Passatempos de verão (27): Humor negro: "Coitadinho de quem morre, morre e para a glória vai; quem cá fica, come e bebe e o pesar logo se vai"... Epitáfios para todos os gostos e feitios...


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Cemitério de Paredes de Viadores > 1 de novembro de 2017 > O mais sumptuoso jazigo, da família dos "fidalgos da Casa da Igreja", como lhes chamam as gentes locais; grandes proprietários rurais da região, donos de muitas quintas, outrora exploradas por pobres  rendeiros... (nos tempos da agricultura pré -capitalista em que só havia quatro classes sociais: fidalgos, pequenos lavradores proprietários, rendeiros e cabaneiros).   É um jazigo capela, em mármore, em estilo revivalista, neogótico, com a seginte inscrição em latim: "Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris" (Lembra-te, ó homem, que és pó e que em pó te hás-de tornar) (*)....

Até na morte os homens tentam reproduzir as desigualdades sociais que existiam em vida: esta capela, dos "fidalgos da Casa da Igreja"  é a única que existe, para além da de outra família não fidalga, neste pequeno cemitério rural, cuja construção remonta a 1894... Logo nos finais do séc. XIX, os ricos e poderosos procuraram contornar a aplicação lei liberal do enterramento público (que proibia o enterramento em espaço privado: palácios, conventos, igrejas, ermidas, capelas...) erigindo no espaço do cemitério público uma "jazigo capela", uma espécie de minicasa de Deus, reservada aos seus mortos queridos...

Há algo de patético neste encarniçamento em manter, na morte, a segregação socioespacial que existia em vida... Mas, na realidade, os cemitérios públicos, que só surgem no séc. XIX, com o liberalismo, são (ou deviam ser) verdadeiros "campos da igualdade", já que metaforicamente falando, a "gadanha da morte" ceifa tudo e todos, ceifa rente a vida, e não poupa tanto a espiga de trigo como a erva do campo, o rico e o pobre, o herói e o cobarde, o novo e o velho, o são e o doente, o amigo e o inimigo... Afinal, "na morte ninguém finge nem é pobre"...

Foto: © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Dizem que não se deve brincar com a morte, porque dá azar... O ser humano é um animal supersticioso. E na verdade lidamos mal com a morte... Não conseguimos rir dela. Porque a nossa cultura baseia-se, afinal, na negação e na ocultação da morte, que é parte integrante da vida.

Quando andámos na guerra, não falávamos da morte, tínhamos "vinte anos e a vida toda à nossa frente" (sic)...mas aprendemos a avaliar o risco de morrer ou de ficar para sempre "deficiente", sem uma perna, sem um braço, cegos, surdos, mudos, paraplégicos, tetraplégicos... 

Afinal, "temer a morte é morrer duas vezes"... Pelo que, caros leitores,  em boa verdade não há aqui "humor negro", há apenas humor, puro e duro, humor de caserna:  rindo de nós e da nossa condição mortal, estamos a exorcizar os nossos medos, fantasmas, pesadelos... que esta pandemia (e a morbimortalidade a ela associada) veio reavivar.

Quando dizemos que "o temor da morte é a sentinela da vida", no fundo estamos a querer dizer que "o humor faz bem à nossa saúde mental"....É também um forma de resiliência contra a doença e a morte, no fim da picada da vida, já de si tão cheia de "minas e amadilhas"... 

Os provérbios populares ajudam-nos nessa tarefa, enfatizando a inevitabilidade da morte mas também a igualdade no morrer (e, para os crentes, "a honra e a glória" da eternidade):

"A vida é um sono de que a morte nos desperta"
"Hora de morrer não tem retardo"
"Mais vale andar neste mundo em muletas do que no outro em carretas"
"Muita saúde e pouca vida, que Deus não dá tudo!"
"Nada mais certo do que a morte; nada mais incerto do que a hora da morte"
"Quem de novo não morre de velho não escapa"
"Só uma porta a vida tem, enquanto a morte tem cem".

Passei praticamente todo o tempo desta pandemia, desde março de 2020, na Lourinhã... No adro da igreja matriz local, junto à estátua do papa João XXIII, há um placar onde se afixam as notícias necrológicas, 

Houve semanas em que o placar estava cheio. Em tempos surpreendi um fulano, meu conhecido, a comentar: "Ainda não foi desta!"... Perguntei-lhe, intrigado: "Ó fulano, não foi desta... o quê ?!"... Resposta pronta: "Não foi festa que li, em primeira mão, a notícia da minha própria morte"... 

E o fulano ainda lá anda, sempre com medo de ser "co(n)vidado", usando dupla máscara, e espreitanto de soslaio as últimas novidades necrológicas... E eu adivinho o que ele diz entre dentes: "Bolas, ainda não foi desta!"...

A pandemia também tem os seus "apanhados do clima" como o fulano da Lourinhã... Mas, mais do que isso, marcou-nos  a todos e matou alguns dos nossos amigos, camaradas, conhecidos, vizinhos e parentes... Falando só dos membros da Tabanca Grande que faleceram  (107, no total, em 17 anos): um em cada quatro morreu em 2020 e 2021, ou seja, em apenas ano e meio...

2. Reproduzo, abaixo, uma lista de epitáfios ou lápides funerárias, de A a Z, uns da minha lavra (a maior parte), outros recolhidos da Net, e depois livremente adaptados ou reformulados ... Alguns leitores poderão não achar muita graça... sobretudo para aqueles para quem a morte é do domínio do sagrado... 

Mas este poste é um mero (e inocente) passatempo (de verão). Às vezes é preciso "tapar buracos" para o que o blogue cumpra a meta dos 3 ou 4 postes diários em média... (**).

Se tiverem tempo, pachorra, saúde e boa disposição (tudo coisas de difícil combinação na nossa idade...), "entrem no jogo" e "façam vocês mesmos o vosso próprio epitáfio"... Há coisas que não podemos deixar para o último dia e muito menos para o último minuto, "à portuguesa"... 

E não deixem essa tarefa aos vivos, que são capazes de maltratar a vossa memória, sabendo nós quão verdadeiro é o provérbio, "Coitadinho de quem morre, morre e para a glória vai; quem cá fica, come e bebe e o pesar logo se vai"... (LG)


Epitáfios ou lápides funerárias, de A a Z:


Almirante: O grande naufrágio!...


Amigo do Peito: À volta... cá te espero!


Antigo combatente: A última batalha!


Astronauta: Bolas, chego por fim ao fim... do mundo!


Ateu: Mas porquê eu, o escolhido, meu Deus, se eu nem sequer acredito em Ti ?!


Barqueiro de Caronte: Última viagem, uma moeda para o ceguinho.


Bombista suicida, anarquista: Abaixo o Estado! Viva o Nada!


Bombista suicida, islamista radical: Virgens, cheguei!


Budista: Transmigro, logo existo!


Calceteiro: Erros meus e do meu médico... a terra os cobre!


Caloteiro: Que Deus te pague, que eu estou liso!


Capitalista:  Esqueci-me da taxa de depreciação do meu corpo enquanto forma de capital!


Catastrofista: Que pior me há de acontecer ?!...


Católico: Obrigado, Pai, vou por fim conhecer-Te, ao vivo e a cores!


Cemitério Judaico, Ilha de São Miguel, Açores: ”Campo da Igualdade”


Chef: Minhas estrelas Michelin!... Trocava-as por uns jaquinzinhos fritos!... Que no Céu não há disto!


Claustrobófico: Por favor, tirem-me daqui!


Cobrador de impostos: Afinal, não é só o fisco, também a morte não perdoa!


Comerciante: Liquidação Total. Preços de saldo. Motivo: força maior.


Comodista: O último a morrer que feche... a tampa do caixão!


Contabilista: Fiz mal... as contas!


Contador de histórias: Era uma vez...


Coveiro: De pés para a cova!... Não se aceitam mais encomendas!


Diabo: Tinham-me prometido a eternidade... antes das alterações climáticas!


Ecologista: Espécie extinta!


Epicurista: Morro  de papo cheio, gozei em vida


Fadista: "Com que voz chorarei meu triste fado" ?!...


Filósofo: Ser ou não ser ?!... Era... a questão!


General: Bolas, lerpei!


Gourmet: Acabou-se o que era doce!


Herói: Saltei para o lado errado da barricada!


Historiador: Desempregado. Motivo: fim da História.


Humorista: Ói, pessoal, afinal onde é que está a piada ?


Informático "covidado": Vítima do pior vírus do mundo!


Jogador de Futebol: Arrumei as botas!


Latinista: Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris! (Lembra-te, ó homem, que és pó e que em pó te tornarás!)


Marido Fiel: Até que a morte, por fim, nos separou!


Marido Infiel: Agora foi "ela" que me pôs...os cornos!


Médico: O cangalheiro e o coveiro são sempre os últimos... a rir!


Metereologista: No inferno deve estar... um frio de rachar!


Negacionista: Não acredito!...Recuso-me a acreditar!


O (E)terno Apaixonado: Voltaria a morrer por ti, meu amor!


O Caçador: A última armadilha!


O Corrupto: Incorruptível!


O Crente: O melhor ainda está por vir!


O Dorminhoco: Descanso eterno!


O Hipocondríaco: Eu bem avisei que... estava doente!


O Homem Mais Velho do Mundo: Arre, custou mas foi, o sacana do... velho!


O Malcriado: A vida... é uma merda!


O Optimista: É só um momentinho, por favor!


O Pessimista: Nunca mais vou sair daqui!


O Politicamente Correcto: Tudo acaba!


Padre: Porquê, meu Deus, meu Pai, entre tantos os chamados, fui logo eu o escolhido ? E porque não antes o sacristão ou o Papa ?


Paleontologista: De fóssil em fóssil... até à jazida final!


Papa: Porquê, meu Deus, meu Pai, entre tantos os chamados, fui logo eu o escolhido ? E porque não antes o bispo da minha terra ?


Pedófilo: Meus queridos anjinhos, meus fofos... cheguei!


Perfeccionista: A repetição leva à perfeição... exceto na roleta russa!


Predador: Agora a presa... sou eu!


Poeta: Saudade eterna!


Poeta Bocage 1: Já Bocage não sou!... À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em vento...


Poeta Bocage 2: (...) Ah! Se me creste, gente ímpia, / Rasga meus versos, crê na eternidade!


Poeta Camões: Lembrem-se de mim, ao menos, quando eu morrer no 10 de junho!


Poeta Fernando Pessoa: O eterno desassossego!


Poeta Ruy Belo: Adeus, Terra da Alegria!


Portuga (Pobre): Nunca mais vejo a tal luz... ao fundo do túnel!


Portuga (Rico): Uma suite...para a eternidade!


Racista branco: A coisa está preta!


Racista negro: Branco... como a cal da parede!


Rambo: Sempre me avisaram, em Lamego, no curso de "rangers", que não se pode abusar da sorte!


Rei: Destronado e... desterrado!


Retornado: Bom filho...  a casa torna


Revolucionário: Os vermes ao poder! A terra a quem... a trabalha!


Romancista: Ponto final parágrafo. The End.


Suicida Arrependido: Porra, esqueci-me de comprar bilhete de ida e volta!


Último habitante da terra:  Tenho pena de não ter sido o primeiro


Soldado Desconhecido: Levantado do chão!


Toxicodependente: Enfim, meu, é só pó!...


Velho militante comunista: Até sempre, camaradas!


Viciado na raspadinha: Não jogo mais ?!...


Viciado no jogo: Bingo!


Virgem (Resistente): Maldita terra que por fim me hás de... comer!


Virologista: "Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega"


Zarolho: Se no céu for tudo cego, quem tiver um olho será rei.


3. Camarada, acrescenta aqui (, em baixo, na caixa de comentários...) uma lápide da tua lavra (do latim lapis, -idis, pedra). 

 Afinal, à morte ninguém escapa nem o rei nem o papa... E, a menos que queiras ser cremado, alguém vai pôr uma pedra, uma lápide, em cima do teu caixão...


Pelo sim, pelo não, é melhor deixar as tuas instruções pessoais em vida, com antecedência... Para o que der e vier... Mete o teu epitáfio no testamento vital.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13833: Manuscrito(s) (Luís Graça) (41): Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris

(**) Último poste da série > 10 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22446: Passatempos de Verão (26): A cabra Joana de Nhacobá e o cão Tigre do Cumbijã, uma fábula que pode ser entendida como uma metáfora das relações coloniais do passado (Lucinda Aranha)

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)


Lourinhã > 6/12/1942 > Nazaré, Maria Adelaide e Ascensão, três vizinhas e amigas do Luís Henriques (1920-2012),  fotografadas na ponte sobre o Rio Grande, na altura à saída da Lourinhã, a norte -  Foto enviada para o amigo e vizinho, expedicionário em Cabo Verde, com "votos de verdadeira e sincera amizade".

A primeira parte da legenda é ilegível. A Maria Adelaide já morreu. Da Ascensão perdeu-se-lhe o rasto. A Nazaré era a tia da Mariete, a família toda emigrou para a América, em meados dos anos 50. E por lá terá casado a Nazaré... Era "ajuntadeira" (costureira de calçado), e trabalhava muito para o Luís Henriques,  sapateiro, que dava trabalho a muita gente na Lourinhã. 

O autor ainda se lembra  bem da ti Ad'lina, mãe da Nazaré, sua vizinha, e que era uma  espécie de curandeira lá do bairro... O poeta , quando jovem, morava na rua dos Valados, ou do Castelo, e elas na rua, paralela, a do Clube, na parte antiga da vila... Quando puto, e quando doente, ela - a ti Ad'lina - aplicava-lhe as suas mezinhas, receitas da medicina popular com séculos de eficácia simbólica e terapêutica... Lembra-se, com ternura e repulsa, das suas "unturas & benzeduras": uma em especial era aplicada na garganta, era feita com merda e gordura de galinha, para tratar da papeira... 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados.



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]


Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.



(Continuação)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)


[...] 31. Jogava-se à bola, domingo à tarde, no campo de futebol, pelado, por detrás da igreja do convento, enquanto um cão uivava na vinha vindimada pelo Senhor, jogavam à bola os graúdos, os solteiros contra os casados, os vivos contra os mortos, os pobres contra os pedintes, os idiotas contra os felizardos, os esperançados da vida contra os da vida já cansados, os novos contra os da velha guarda…

A bola, as disputas entre aldeias vizinhas, o alvoroço do povo, o cabo chefe, o bufo, o louco, o beato, o lobisomem, o analfabeto contra o esperto, o feitor e o caseiro, o porco no estertor da morte, o regedor, o provedor da Santa Casa da Misericórdia, o rico contra o remediado, o pobre e o indigente, mais o cão que já não guardava a vinha vindimada do Senhor, velho, escanzelado, tinhoso, sarnento, doente, vira-latas.

Vieram depois dizer-te que era o medo que guardava a vinha do Senhor, quando tu e os da tua rua iam apanhar o rabisco!... 


E todos os ricos, que viviam em Lisboa, tinham um feitor ou um caseiro ou um criado tão mau como o "Brutamontes". Afinal, "ao  cabo de um ano tem  o criado as manhas do amo"...

Tinham medos deles,  os meninos da tua rua, quando iam roubar uvas ou pêras. Nem todos: alguns não tinham medo de nada, e já diziam muitas asneiras, como o "Frasco do Veneno", o "Brutamontes"  ou os filhos da "Bruxa" da tua rua.


32. Soletravas à noite, à luz do candeeiro a petróleo, a lição onde terra rimava com chão. T e um E, TE… ERR e um A, CHÃOOOOO!!!… 


E Deus Pai achava-te graça, era paciente, condescendente e até bonacheirão. E falava em verso quando estava com os amigos e conhecidos.

33. Não, ainda não havia televisão, nem a série Bonanza 
[1], havia o hino, na rádio, que era um luxo, havia Deus, a Pátria e a Família, e pouco mais, mas chegava, essa sagrada tríade, onde cabia todo o teu pequeno universo. E não se discutia Deus nem a Pátria nem a Família!...

E quando a série Bonanza aparecer, de quem mais vais gostar será do Hoss e do Joe Pequeno, lá do rancho da Ponderosa!





Tabanca de Candoz > c. 1980 >  Ainda se matava o porco em casa, no Norte do País, como na Lourinhã nos anos 50: "uma cena que Bruxelas quis banir definitivamente dos nossos campos e aldeias em nome de uma concepção fundamentalista da saúde pública e de uma Europa globalizada, normalizada e tecnocrática, matando a etnodiversidade"... 

Foto (e legenda): Blogue A Nossa Quinta de Candoz (com a devida vénia).


34. E no Natal ?!... Lembras-te do Natal, quando ainda o Pai Natal não tinha morto o Menino Jesus, e não havia luzinhas, a não ser as das velas ou do candeeiro a petróleo ?!… 

Ia-se à missa do Galo, à meia noite em ponto, na igreja do Castelo, tumular, tudo escuro como breu, e só depois, a tiritar de frio, de regresso a casa, é que se bebia o cacau quente e se comiam os coscorões, o arroz doce e as filhós de sangue de galinha!...

E só de manhã, cedo, é que te levantavas, em alvoroço, para saber a prenda que o Menino Jesus te deixara, no sapatinho, na chaminé: um lenço, umas peúgas, um chupa-chupa, um brinquedo de chocolate, embrulhado em tosco papel de prata!

Parca prenda para quem fora todo o ano um rapazinho bem comportado, temente a Deus, amigo dos seus pais e manas, diligente, obediente e inteligente! 



35. Havia os funcionários do grémio da lavoura, e os do comércio, das pescas, da indústria e artes correlativas, que recebiam, ao fim do mês, vencimento e chapelada, opa e pálio na procissão, e cartão de eleitor dos deputados e do supremo magistrado da Nação. Mais os da câmara e das finanças, dos correios, do tribunal e das conservatórias, a pequena burguesia engravatada da tua aldeia.


Chamavam-lhes os "mangas de alpaca"… por causa da manga postiça que usavam, desde os punhos até um pouco acima dos cotovelos, e que era apertada nas extremidades com um elástico; assim não estragavam ou sujavam o casaco, quando escreviam à mão, no tempo em que ainda não havia esferográficas e até a tinta das canetas era permanente; tudo era permanente, na tua aldeia, no teu tempo.   E até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja, enquanto um cão uivava  na vinha vindimada do Senhor.

Havia ainda os comerciantes e os proprietários, que animavam o clube 14 de julho, que era o dia, não da tomada da Bastilha, como virás a saber mais tarde, mas do aniversário da Viscondezinha, uma das grandes proprietárias rurais da tua terra, que se casara com alguém importante, que veio de fora, e que, se não fora o príncipe encantado, só poderia ser um bacharel em leis ou em medicina, de Coimbra.

Não, nunca chegaste a conhecer a Viscondezinha, como lhe chamavam, temerosas e  ternurentas, as mulheres da tua aldeia.


36. Na tua aldeia, todas as meninas prendadas eram exogâmicas, casavam com alguém de fora e tinham direito a genuflexório, almofadado, na primeira fila da missa de domingo na igreja matriz. 


Vermelho, não, carmesim, emendava o sacristão que era bimbo, das terras do Demo, falava "atchim", era a favor da "situação", e atravessara meio país até arribar a esta terra que já fora de romanos, visigodos, mouros, judeus, moçárabes e francos.
Já não eram meninas, eram senhoras donas, de peruca, mumificadas, os rostos cobertos de pó de arroz, e tinham casarões com capelas e brasões, comprados em hasta pública, bens de mão morta dos espoliados do Liberalismo. 

37
. Havia um carcereiro e um coveiro, com que te metiam medo quando não querias comer a sopa... Fugia-se do coveiro, como do empestado ou do leproso: ninguém o cumprimentava de mão estendida, nem tinha amigos ou conhecidos... Ninguém queria ser coveiro na tua terra, era sempre alguém que vinha de fora.

O resto era moleiro, sapateiro, cavador de enxada ou criado, com direito a uma garrafão de cinco litros de água-pé podre, cocheiro, almocreve,trolha da construção civil, ferrador, marceneiro, caboqueiro, latoeiro ou funileiro, jornaleiro, pescador, homem do campo ou do mar, trabalhador, cansado, do vinho e da vinha do Senhor, ou então marçano, ou criada de servir nas avenidas novas da Lisboa, menina e moça, dos Antónios (o Santo, o Salazar, o Ferro, que povo, esse, chamava-se Zé!).

38. Não ia à escola a filha da camponesa, ia para a vila ou para a cidade, onde no máximo tirava a 3ª classe em professora particular, e depois aprendia a cultivar as boas maneiras e a fazer rissóis e pastéis de massa tenra e coscorões e arroz doce e a tricotar as teias da pobreza e a fazer as contas do merceeiro em papel de embrulho!... "Ah!, Senhora, como a vida está cara, os ladrões açambarcaram o açúcar, o café e o azeite!"... 


Casavam depois com os rapazes da vila, tinham filhos e filhas, e a estas havia a moda de as batizar com nomes afrancesados: bernardetes, elisabetes, gracietes, marietes, miletes, suzetes... Era mais chique que Francisca, Joana, Joaquina, Maria ou Manela.


39. Da janela do teu quarto, contavas, um a um, os cinquenta homens que em fila, de enxada em riste, cavavam a vinha do Senhor, encosta a cima, até ao alto onde se erguia um moinho de vento.

Do outro lado, encosta abaixo, outros tantos cinquenta homens, de enxada em punho, cavavam outra vinha do Senhor, que tinha muitas vinhas e fazia muitas pipas de vinho!...

Nessa época a riqueza media-se em pipas de vinho e  carros de bois de trigo e jeiras (que era a medida da terra). E não havia ainda motocultivadores e tratores.


40. Havia cães, isso sim, muitos cães, vadios. E tu tinhas fobia aos cães. Fugias dos cães e do "Brutamontes" e do seu bando, como o diabo fugia da cruz. Não, nunca tinhas visto o diabo em figura de gente, mas que ele existia, existia, tal como as bruxas. E seria ainda muito pior que o "Brutamontes".

Havia dois ou três médicos, e chegavam para todo o concelho, que a gente da tua aldeia só os chamava no estertor ou no pavor da morte, a eles e aos padres, às parteiras, às carpideiras, aos testamenteiros e aos gatos-pingados. Mal por mal, antes cadeia que hospital.

Havia duas boticas e chegavam, que o arsenal terapêutico cabia no malote do facultativo municipal. Com malvas e água fria, fazia-se um boticário numa dia.

Havia os cortejos de oferendas (cada um dava o que podia e calhava: uma abóbora, um chouriço, um galo ou um saco de batatas!), para se construir um hospital novo para a velha misericórdia do séc. XVI, onde os catres para os doentes pobres não chegavam, que os ricos e os remediados, esses, morriam em casa, confortados com a extrema unção, que fazia parte do arsenal da arte de bem morrer cedo e quanto mais depressa melhor, porque este mundo era um vale de lágrimas.

(Continua)
____________


[1] A série começou a ser exibida a RTP em 1961

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Nota do editor:

Vd. último poste da série > 14 de agosto de 2019  > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

Postes anteriores:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)


sexta-feira, 7 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19866: Manuscrito(s) (Luís Graça (155): (i) "as noites" (2010), de Teresa Klut, "que mora numa ilha"... poemas escolhidos; (ii) fotomontagem: para o Rui, a Cristina e a Sara,que moram na mesma ilha


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3

Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7



Foto nº 8

Foto nº 9


Foto nº 10


Foto nº 11


Foto nº 12


Foto nº 13


Foto nº 14


Foto nº 15


Foto nº 16


Foto nº 17


Foto nº 18


Foto nº 19

Algures numa ilha... Talvez o leitor queira pôr-lhe um nome...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição:: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Alice e Teresa. Foto: Luís Graça (2019)
1. Seleção de alguns poemas de "as noites"(2010, 85 pp. ), cortesia da autora, Teresa Klut, "que mora  numa ilha" e vai ser avó da nossa neta:

fui-me afastando da casa
seguindo um odor que conhecia
cheguei ao mar doce e longe
da casa que não partia

(p. 11)


r/c a

Revolvo a terra das minhas flores cansadas.

A Terra é a profunda alma de todas as coisas.
Apenas um breve intervalo separa os corpos:
a terra que suporta os vivos
é a terra que guarda os mortos.

(p. 23)

4º b

Ando pela cidade demorada. Deixei-me ficar
para trás perdida na esquina que me perdeu
sou notícia de mim.

suave, muito bela e muito bela
corro para os sapatos cor-de-rosa carmim.

(p. 39)


1º a

Não me olhas.
Tens medo
deste lugar
onde te irias perder.
Um dia, de noite
vais-te lembrar de um gesto meu.

Foi pena, dirás.

Pois foi.

(p. 57)


águas.furtadas
tudo serve para guardar segredos

(p. 65)

Como esperas pela resposta se nem sabes a pergunta ? (...)

(p. 82)


Rui  Silva, Cristina Silva e Sara. Foto: Alice Carneiro (2019)
2.  Para o Rui, a Cristina e a Sara que também moram na mesma ilha:

a felicidade está  onde a gente a põe
mas a gente nunca a põe onde  está

se estás numa ilha procuras terra firme
se estás em terra avias-te no mar

é bom que exista o céu
para quando se está num beco sem saída

na água de mares,
não procures cabelos para te agarrares

sonhar alto trabalhar no duro e nunca morrer na praia
quem disse que os provérbios populares eram o ópio do povo ?

a ferrugem gasta o ferro
e o cuidado o coração

a amizade não tem contabilidade organizada
mas tem deve-e-haver

muita saúde e pouca vida
porque Deus não dá tudo

muita saúde e longa vida
porque os amigos... merecem tudo

luís e alice
______________

Nota do editor:

Último poste da série >  22 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19708: Manuscrito(s) (Luís Graça) (154): Viva o compasso pascal em visita à Tabanca de Candoz

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18640: (Ex)citações (337): A propósito das deserções nas fileiras do PAIGC, há um provérbio africano que diz "Todos os cães podem ser bravos, mas são mais bravos dentro das suas moranças", o mesmo quer dizer, dentro dos seus "chãos" (Cherno Baldé, Bissau)

1. Comentário do nosso colaborador permanente, Cherno Baldé, especialista em questões etnolinguísticas da Guiné-Bissau (*)

Caro amigo Jorge Araújo,

Sobre as restantes localidades, cujas regiões não puderam ser identificadas, aqui deixo a minha contribuição para o efeito, baseada no cruzamento do nome dos combatentes e dos locais de nascimento com a sua identidade e chão de provável pertença étnica:

Nome / Localidade / Sector / Região

Bala Bodjam - Bessadjari -Morés/Mansaba - Óio
Bala Turé - Caur-ba -Quebo - Tombali
Mamadu Mané - Cauale/Can-Wal -Cacine - Tombali
N’tuntum N’codé - N’ghansonhe -Binar/Bissorã - Óio
Malam Cissé - N’gharu -Morés/Mansaba -Óio
Queba N’beghan - N’ghneghan -Bissora - Óio
N’dindin Turé - Nhanbra -Morés/Mansaba - Óio
N’yado Turé - Sansanghoté -Morés/Mansaba - Óio

Assim, feitas as devidas correcções, para o Óio,  teríamos (17+6) 74%; para Tombali (1+2) 10%; e o Cacheu mantem-se inalterável. Constatamos que,  mesmo com essas correcções, o balanço entre
as três regiões não se altera, mas Tombali aumenta um pouco e ultrapassa Cacheu.

E, em face dos dados assim obtidos,  e tendo em conta que a maior parte dos desertores, de acordo com as informações, eram originários de (ou dirigiram-se a) o sul, neste caso  a região de Tombali, a conclusão que talvez se pode tirar, na minha opiniao, é a de que havia maior probabilidade de que estas deserçoes tenham acontecido no Bigrupo de Cambano Mané onde a percentagem de combatentes originários desta região é superior a 26%, enquanto o Bigrupo de Ansu Bodjam era formado maioritariamente por naturais de Óio (74% com a correcçãoo que fiz do primeiro quadro de análise).

Em leituras que fiz em tempos das obras de Amílcar  Cabral e relacionadas com o flagelo das deserções (do norte para o sul), parece que existia no seio dos combatentes o sentimento de maior segurança quando lutavam nas suas regiões  de origem ("chãos") e, inversamente, alguma insegurança e fragilidade quando eram obrigados a combater noutras regiões e o caso mais paradigmático aconteceu com os Balantas do Sul (Tombali) que, tudo leva a pensar, não se sentiam muito à vontade nas outras frentes da luta. o que o partido tentava contrariar com medidas duras como era seu apanágio.

Não sei se chegou a haver fuzilamentos mas, pelo menos, falava-se em tomar medidas duras e, sabe-se hoje o que é que, na linguagem da guerrilha e do PAIGC em particular, isso podia dar.

Por outro lado e reportando-nos ao acontecimento aqui relatado com os elementos da companhia dos Manjacos no Óio (Mansabá?), parece que a situação não era muito diferente do lado dos elementos nativos do Exército português. 

Há um provérbio africano que diz que "todos os cães podem ser bravos, mas são mais bravos dentro das suas moranças", o mesmo que dizer, dentro dos seus "chãos"...

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

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Nota do editor:

terça-feira, 4 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17207: O nosso livro de estilo (10): proverbíário da Tabanca Grande, edição revista e aumentada


Guiné > Região de Cacheu > Bula > Pel Rec Panhard 1106, "Os Cavaleiros Blindados" (1966/68) > "Os bravos não se medem aos palmos", parece querer dizer o fur mil cav António Barbosa (na foto à direita)... Natural de Gondomar, hoje reformado da Polícia Judiciária ("Judite"), é um dos nossos 739 grã-tabanqueiros que sabe  cultivar o sentido de humor... Pertence também à Tabanca Pequena de Matosinhos.

Foto: © António Barbosa  (Gondomar) (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



A escassas semanas do  13º aniversário do nosso blogue (23/4/2017) e da realização do XII Encontro Nacional da Tabanca Grande (29/4/2017), está na altura de reeditar os nossos provérbios (e outros lugares comuns do nosso humor de caserna), agora em lista revista e aumentada... Esta lista, aberta,  é património de toda a Tabanca Grande.

A última edição era de 9/7/2015 (*). E muitos dos nossos "periquitos" ainda não a conheciam... Na altura eramos 693 grã-tabanqueiros, hoje somos já 739, entre vivos (686) e mortos (53).



O NOSSO PROVERBIÁRIO

A blogar é a que a gente se entende.

A 'roupa suja' lava-se na caserna, não na parada.

Ainda pior do que o inferno da guerra, é o inverno do esquecimento dos combatentes.

Amigo do seu amigo, camarada do seu camarada. 

Amigo traz amigo e amigo fica.

As nossas queridas enfermeiras paraquedistas: os anjos que desciam do céu.

Até aos cem, ainda se aguenta, depois dos cem, só com água benta. 

Até aos cem é sempre em frente!... E depois dos cem, é só para quem for resistente e resiliente...




'Bazuca': o que fazia mal ao fígado, fazia bem à alma.

Beber a água do Geba.

Boa continuação da viagem pela picada da vida!... Cuidado com as minas e armadilhas!


Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum.

Camarada e amigo... é camarigo!

Camarada não tem que ser amigo: é o que dorme no mesmo buraco, na mesma cama, no mesmo abrigo.

Camarada, que a terra da tua Pátria te seja leve!

Combatente um vez, combatente para sempre!

Dão-se lições de artilharia para infantes.

Desaparecidos: aqueles que nem no caixão regressaram.

Desarmados, jubilados, reformados, aposentados mas não... arrumados.

É proibido fazer juízos de valor sobre o comportamento de um camarada (do ponto de vista operacional, disciplinar, ético, moral, social).

E quem não bebeu a água do Geba, nunca poderá entender a vida, o conteúdo e o continente das estórias cabralianas.

E também lá vamos facebook...ando e andando.

Encontro Nacional da Tabanca Grande: orar, comer.. e amar em Monte Real!

Entra e senta-te à sombra do nosso poilão. 

Estás com o bioxene. [Estás com os copos.]

Estás porreiro ou vais p'ró carreiro !?...

Estorninhos e pardais, aqui somos todos iguais.

Exorcizar os nossos fantasmas.

'For the Portugese Armed Forces from Scotland with love'... [Da Escócia com amor, para as Forças Armadas Portuguesas.]

Guerra do Ultramar, guerra de África, guerra colonial (, como se queira).

Guerra ganha, guerra perdida ? Camarada, não percas tempo com a discussão do sexo dos anjos...

Guiné, de floresta verde e de chão vermelho.

Guiné ? ... Não era pior nem melhor, era diferente. 

Há comentadores e comentadores: alguns são como o peixe e o hóspede, ao fim de três dias fedem...

Havia os desertores, os refratários, os faltosos... e nós.

Humor com humor se (a)paga.

In Memoriam: para que não fiques, pobre camarada, na vala comum do esquecimento.

Lá vamos blogando, recordando, (sor)rindo, e às vezes cantando, gemendo e chorando!

Lá vamos contando (e cantando) os quilómetros pela picada da vida fora!

Lembra-te, ó português: bandeira dos cinco pagodes, é na loja... do chinês!

Luso-lapão só há um, o Zé Belo, e mais nenhum.

Mais morto de alma do que vivo de corpo.

Mais vale andar neste mundo em muletas, do que no outro em carretas.

Mais vale um camarada vivo do que um herói...morto!

Melhor que as bajudas, era a 'água de Lisboa' que nos fazia esquecer as bajudas.

Meu pai, meu velho, meu camarada. 

Miguel & Giselda, o casal mais 'strelado' do mundo.

Muita saúde e longa vida, porque tu, camarada, mereces tudo.

Não deixes que o teu espólio de memórias vá parar à Feira da Ladra.

Não deixes que sejam os outros a contar a tua história por ti.

Não é o Panteão Nacional, é melhor, é... a Tabanca Grande. 

Não fazemos a História com H grande, mas a História não se fará sem a nossa... pequena história.

Nem medalhas ao peito nem cicatrizes nas costas.

Ninguém leva a mal: em cima o camarada, em baixo o general.

O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!

O nosso maior inimigo: o Alzheimer (de que Deus nos livre!)...

O seu a seu dono: respeita os direitos de autor.

Ó Sitafá, deixa lá, cabeças e rabos de sardinha não são bem a mesma coisa.

O último a morrer, que feche a tampa... do caixão.

Olhe que não, sr. ministro!, olhe que não.

Os bravos não se medem aos palmos.

Os camaradas tratam-se por tu.

Os camaradas da Guiné dão a cara, não se escondem por detrás do bagabaga.

Os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são.

Os nossos queridos 'nharros'...

Para que os teus filhos e netos não digam, desprezando o teu sacrifício: "Guiné ? Guerra do Ultramar ? Guerra Colonial ? Não, nunca ouvi falar!"...

Partilhamos memórias e afetos.

Patrício Ribeiro, o "pai dos tugas" em Bissau.

'Periquito' salta pró blogue, que a 'velhice' já cá está!

P'rós insultos, não há contemplações nem indultos.

Que Deus, Alá e os bons irãs te protejam! 

Quem não faz 69, não chega... aos 100!

Rapa o fundo ao teu baú da memória.

Recorda os sítios por onde passaste, viveste, combateste, amaste, sofreste, viste morrer e matar, mataste, e perdeste, eventualmente, um parte do teu corpo e da tua alma...

Saber resolver os nossos diferendos, os nossos conflitos... sem puxar da G3!

Sempre presentes, aqueles que da lei da morte já se foram libertando.

Siga a Marinha!

Só há três coisas de que aqui não falamos: futebol, política e religião.

Somos uma espécie em vias de extinção.

Soubemos fazer a guerra e a paz.

Tabanca Grande: a mãe de todas as tabancas.

Tabanca Grande: onde todos cabemos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos separa.

Tabanca Grande: onde não há portas nem janelas nem arame farpado nem cavalos de frisa

Treze anos a blogar, pois é!, são seis comissões na Guiné! 

Tuga, que Deus te livre da doença do... alemão.


'Um blogue de veteranos, nostálgicos da sua juventude' (René Pélissier dixit).

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Nota do editor:

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16744: Em bom português nos entendemos (15): Comer macaco, não obrigado... "Santchu bai fika na matu"... E cão ("kakur") fica com o dono, no restaurante em Bissau... Ajudemos a salvar os primatas da Guiné... O "santchu", o "dari"..., ao todo são 10 primatas que correm o risco de extinção se os hominídeos continuarem a destruir o seu habitat e a fazer deles um petisco...



Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > 1972 > O macaco ("santchu") e o cão ("kakur")... Ou mais exatamente um babuíno, "macaco-cão" (em cativeiro) (e que é produto "gourmet"  em Bissau),  e um cão (animal que os hominídeos domesticaram há cerca de 12 mil anos). 

Foto: © Herlânder Simões (2008). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Ainda na sequência do inquérito "on line" da passada semana sobre quem come(u) ou não come(u) carne de macaco, lembrámo-nos de que há vários provérbios sobre o nosso "sancu" (ou "santchu", é assim que se pronuncia) tanto na Guiné-Bissau como em Cabo Verde... 

É uma delícia poder lê-los,  em voz alta, em crioulo,  e entendê-los em português...  Aqui vai uma mão cheia de provérbios, recolhidos por aí,  na Net (. baseados no trabalho do ecolinguista brasileiro Hildo Honório do Couto), e uma fábula, que diz tudo sobre a necessidade (urgente) de salvar o "santchu" (macaco) e o "dari" (chimpanzé)...

Por muitas razões, incluindo os vorazes apetites gastronómicos de alguns hominídeos, as 10 espécies de primatas que existem na Guiné-Bissau (inckuindo o "dari", o chimpanzé) estão em perigo de extinção, a médio ou a longo prazo...

Seria uma tragédia que os bisnetos de Amílcar Cabral tenham, um dia, que vir a Lisboa ao Jardim Zoológico para verem "ao vivo" o "santchu" e o "dari"... O mesmo podemos dizer nós de espécies ameaçadas ou quase extintas, em Portugal, na Península Ibérica ou na Europa como o lobo ou a águia real...

Enfim, este poste é um pequeno contributo para reforçar a nossa sensibilidade e consciência ecológicas... O planeta não tem fronteiras, a terra é só uma, homens e (outros) bichos vão ter cada vez mais que saber partilhá-la... e defendê-la!




2. Quanto à fábula do macaco e do cão...  

Comece-se por dizer que  as fábulas são pequenas narrativas, contos ou histórias, em forma oral ou escrita, em verso ou em prosa,  em que as personagens são animais (dos mamíferos às aves, dos répteis aos peixes), podendo apresentar características antropomórficas (, ou sejam, semelhantes aos seres humanos) e que fazem parte da cultura de todos ou de quase todos os povos, com ou sem escrita. Em geral, destinam-se a um público infantil e têm um propósito pedagógico, didático ou educativo, ao estabelecerem uma analogia entre o mundo da experiência dos seres humanos e as "falas" dos animais. Acabam sempre ou quase sempre, com uma "lição moral". Nas fábulas africanas, por exemplo, o mais fraco tende a triunfar sobre o mais forte, graças à sua honestidade, inteligência, capacidade de cooperação, aliança ou entreajuda... Podem também ser vistas como formas de crítica social ao poder (dominante), ao "statu quo".

 Esta "Storia di sancu ku kacur" (história do macaco e do cão) pode resumir-se em duas linhas: o macaco e o cão representam os mais fracos, sujeitos à violência, arbitrariedade e prepotência dos mais fortes (aqui respresentados pela onça, "onsa", um felino predador, que obriga  o cão a desempenhar o papel de carrasco ou torcionário, sendo o macaco a vítima...   O cão ("kacur"), humilhado e ofendido,  procura sucessivamente a ajuda de outros companheiros, mais fortes do que ele, para com eles se aliar contra a tirania da onça... Mas todos os grandalhões e valentões, da vaca ("baka") ao búfalo ("boka-branku") fogem quando chega a hora do confronto, a hora da verdade...

Acaba por um ser destemido e esperto carneiro ("kamel") quem enfrenta a onça. A luta acaba com a vitória do bem sobre o mal. E o cão e o macaco, aliados mas não necessariamente amigos,  seguem, cada um o seu caminho e o seu destino... O do macaco ("santchu") é o do mato, onde é verdadeiramente a sua casa...E o cão vai para a cidade, para o pé do seu dono, que tem um restaurante em Bissau... e que vai prometer nunca mais fazer grelhados... de carne de macaco.

Enfim, é uma uma leitura, ecológica, otimista, minha,  da velha fábula... que os guineenses vão contando de geração em geração. Espero que ainda haja macacos, na Guiné-Bissau, daqui a cinquenta anos, para as crianças de hoje possam contar aos seus netos esta e outras fábulas do tempo em que os animais falavam e eram  mais sábios do que  o bicho homem... 








3. O estudo e a divulgação do crioulo da Guiné-Bissau devem muito aos escritores e académicos guineenses, mas também a outros, especialistas lusófonos, de Portugal, de Cabo Verde e do Brasil...  

Deste último país é justo destacar o nome do especialista em ecolinguística Hildo Honório do Couto, professor titular aposentado e pesquisador associado da UnB [Universidade de Brasília]. Doutorou-se em Fonologia na Alemanha, tendo-se dedicado ao estudo do(s) crioulo(s) durante duas décadas. A ecolinguística no Brasil deve-lhe muito, sendo um pioneiro neste domínio.

È autor, entre outros títulos, de "O crioulo português da Guiné-Bissau" (Hamburg: Helmut Buske Verlag, 1994,  80 pp.).

Dessa obra consultei excertos, disponíveis aqui, incluindo a fábula que se publica (com adaptações da tradução para o português europeu; também revi o texto em crioulo, de modo a aproximá-lo da oralidade corrente: por exemplo, "santchu" em vez de "sancu", ou "tchiga" em vez de "ciga", "djuntu" em vez de "juntu"...).

A fábula do macaco e do cão também está, entre outras, reproduzida aqui (em crioulo e versão portuguesa do Brasil).

Ainda não há um a verdadeira normalização do crioulo da Guiné-Bissau ou do "guineense": há várias grafias, uma mais oficiosa (Direção-Geral da Cultura, Bissau, 1987) e outra mais académica (por ex., Luigi Scantamburlo, 1999)... O padre italiano Luigi Scantamburlo, doutorado em línguística, e há muito radicado na Guiné-Bissau (, no arquipélago dos Bijagós, desde 1975), é o autor do primeiro dicionário de guineense-português. É também direitor da ONG guineense, FASPEBI,

Para ele, "a escolha do termo guineense para designar a língua crioula é fundamental para promover melhor o estatuto nacional, veicular e inter-étnico desta língua, evitando a conotação negativa que o termo crioulo tem no país e no mundo".

Por exemplo, "sancu" (norma de 1987) é grafada como "santcu" (lê-se "santchu") no dicionário de Scantamburlo (1999); outros exemplos: bulaña (1987) e bulanha (1999)... Mas atenção: nós não somos "especialistas" do guineense, nem muito menos falantes, mas apenas "curiosos" (**)... (LG)
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Notas do editor:

(*) Sobre o crioulo da Guiné-Bissau:

Guiné-Bissau Kriol Docs

Grupu Kriol Papia Skirbi (Facenook, grupo fechado)

Dicionário Guineense-Português, de Luigi Scantamburlo, de I a XXXVIII pp.

Dicionário Guineense-Português, de Luigi Scantamburlo, de 1 a 636 pp.

Gramática de Crioulo, de Luigi Scantamburlo.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13461: Notas de leitura (619): Revista África - Literatura e Cultura - “Três provérbios em crioulo, uma aproximação à universalidade dos ditos” da autoria de Teresa Montenegro e Carlos Morais (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2014:

Queridos amigos,
É inteiramente impossível estudar a cultura crioula, penetrar na sua filosofia, sem atender à riqueza dos seus provérbios.
O erudito e padre Marcelino Marques de Barros, o guineense que primeiro estudou o crioulo e repertoriou o seu dicionário elementar, recorreu frequentemente aos provérbios. Na sua tese de doutoramento na Sorbonne, Benjamim Pinto Bull também se apoiou na riqueza dos provérbios. E os estudiosos portugueses, como o divulgador Manuel Belchior, também se sentiu atraído por esta memória das experiências que confluem para a tradição oral e que são o espelho da experiência, dos valores e dos princípios de um poderoso compromisso cultural das etnias que deixam fundir a sua história e transmiti-la na língua veicular, o crioulo.

Um abraço do
Mário


A riqueza dos provérbios guineenses

Beja Santos

A saudosa revista “África”, um acontecimento cultural de grande significado entre os anos 1970 e 1978, dirigida pelo escritor Manuel Ferreira, publicou com regularidade alguns materiais da cultura guineense. No seu número 11, de janeiro a junho de 1978, apareceu um artigo intitulado “Três provérbios em crioulo, uma aproximação à universalidade dos ditos” da autoria de Teresa Montenegro e Carlos Morais, que vale a pena aqui enunciar.

Em primeiro lugar, os autores debruçam-se sobre a sapiência da cultura crioula a partir da tradição oral. É do conhecimento geral que a tradição oral é uma das pedras angulares de qualquer cultura africana. Os autores referem o facto de em 1941, Amadeu Uadé, um letrado de Dogam, no Senegal, ditou em wolof uma crónica do reino do Oualo com uma lista de 52 soberanos que permitia uma reconstituição até às origens dos wolofos, no princípio do século XIII, versão esta que permitiu o seu confronto com os relatos da viagem de Cadamosto, no século XV.

Passando aos três provérbios, temos que no primeiro a mensagem é a seguinte: “Por muito velho que sejas, não assististe à juventude da tua mãe”. O que obriga também a uma explicação. Uma pessoa pode ser mais velha do que o “pai” – recorde-se que é costume designar-se por “pai” o marido da mãe, que pode ser mais novo que os filhos desta – mas não pode ser mais velho do que o seu irmão mais velho. Uma pessoa velha presenciou muita coisa, os muitos mais anos dão hipóteses de assistir a muitos acontecimentos. Mas há coisas que são manifestamente impossíveis, é o caso de alguém ter assistido a acontecimentos que precederam a sua própria existência – a juventude da sua própria mãe, a “bajudeza” de quem nos dá a vida. Procurando interpretar o provérbio, observam os autores: não tens experiência que chegue para afirmares o que afirmas ou para provar o que dizes; eu, que te conheço, sei que isso para ti é tão impossível como teres assistido à “bajudeza” da tua mãe. É frequente usar-se este provérbio quando se trata de sobrelevar a nossa experiência em qualquer campo, tem a vertente moralizante de pôr termo à prosápia de quem procura dar-se ares de eficiente e sabedor.

Reza o segundo provérbio: “Os gafanhotos a arder dão pontapés uns aos outros”, o que tem subjacente um dado elementar, que os autores comentam. Quando se queimam gafanhotos (dentro ou fora da panela) ressalta o movimento das suas patas. É como se estivessem continuamente a dar pontapés uns aos outros até morrerem. Os gafanhotos andam sempre juntos e pega-se-lhes fogo para proteger as culturas dos estragos provocados pelas pragas. Ardem do mesmo modo quando se faz uma queimada num sítio onde haja gafanhotos. Temos agora a aplicação do provérbio à sabedoria guineense.

Indissociável de grande parte das coisas que comemos, a panela é um dos nossos lugares mais comuns. O mundo é igualmente o lugar onde todos temos que comer. E quando acontece o caldeirão aquecer e nós estamos lá dentro, a situação afeta-nos a todos por igual. Reagir como os gafanhotos, agredindo-nos mutuamente, não será a forma mais indicada de melhorar a situação: não é dando pontapés uns aos outros que conseguimos apagar o fogo ou sair da panela. O provérbio ilustra uma situação condenável, se bem que corrente, que consiste em reagirmos a uma violência de qualquer tipo de que somos vítimas com agressividades laterais e desviadas da sua verdadeira origem. Moral da história: quando partilhamos a mesma má sorte o melhor é encontrarmos juntos a melhor saída.

E passamos para o terceiro provérbio: “A galinha ao colo não se apercebe da distância nem das agruras do caminho”. Recorde-se que as galinhas são uma riqueza, uma moeda. Nos Bijagós o preço de uma vaca era há pouco tempo 100 galinhas e o de uma cabra apenas 10. Na viagem, as galinhas são transportadas dentro de uma gaiola feita de tara. Se as gaiolas foram mais do que uma, podem ir atadas nos extremos de um pau, e este carregado ao ombro. Em qualquer dos casos, a galinha percorre o caminho sempre pendurada. É este o contexto para se perceber a moralidade implícita. Quem não percorre o caminho pelos seus próprios pés, como é o caso das galinhas, não se cansa porque não despende esforço nenhum, e não tem ideia das canseiras que uma longa viagem representa. É como as pessoas quando fruem benefícios de certas situações para as quais não tiveram que contribuir, limitaram-se a receber e não têm ideia dos custos. Estão a leste das dificuldades e nunca sabem o trabalho que cada coisa pode exigir porque a eles não lhes custa nada.

Os autores debruçam-se sobre o crioulo guineense encarando-o como produto da interação secular de diferentes grupos culturais, a língua espelha a diversidade da origem dos sinais e a sua originalidade, é, pois, o espaço síntese de comunidades culturais que não deixaram de existir e faz com que nem tudo o que se exprime em português, Mandinga, Fula, Manjaco, Balanta, etc. encontre a sua formulação correspondente em crioulo. A língua crioula acolhe e fixa o que há de mais fértil nesse encontro.

Se quisermos partir de referentes culturais portugueses, não será arriscado supor que um provérbio transmontano do estilo “em tempo nevado um alho vale um cavalo” não tivesse grandes hipóteses de se fixar em crioulo formulado em termos idênticos. O proverbio crioulo é isso mesmo: instrumento de comunicação dos diversos grupos culturais que têm este aspeto surpreendente de que um proverbio longínquo que na aparência nos é alheio – e o é de facto, na forma – é objeto de reconhecimento profundo, porque o tema somos nós, sabemos que é de nós próprios que também se pode estar a falar.

Usamos duas xilogravuras do artista guineense Uri Sissé, de rara beleza.


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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13453: Notas de leitura (618): “Guiné-Bissau - Páginas de História Política, Rumos da Democracia", por F. Delfim da Silva (2) (Mário Beja Santos)