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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5713: Blogoterapia (139): Vencer os Traumas de Guerra (Joaquim Mexia Alves) / Recordar é viver (António Rosinha)



1. Mensagem de hoje, remetida pelo Joaquim Mexia Alves:

Caros camarigos editores

Mando link sobre notícia do jornal i, que nos diz respeito, antigos combatentes.


Estou tentado a dizer que a gente faz este tratamento virtual bem mais barato, completo e real na nossa Tabanca Grande, e digo-o por experiência própria!

Abraço camarigo para todos
Joaquim Mexia Alves



2. Comentário do António Rosinha ao poste de  26 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5712: Os nossos médicos (14): José Madeira da Silva, hoje otorrino, professor universitário, ex-Alf Mil Med, BART 6521, Pelundo, 1973/74)

Não tenho dúvidas que este blog da Guiné serve de terapia para quem já é reformado ou para lá caminha.


Com a idade, (eu, 71 anos),  exceptuando os almoços anuais da incorporação militar, ou da área profissional, já poucos amigos se encontram.

Recordar é viver.

Sem dúvida que pode ser um processo de evitar traumas de guerra e outros, acompanhar blogues como este do Luis Graça.

Antº Rosinha
_____________

Nota de L.G.:

(*) Excerto (com a devida vénia):

(...) Depois do Ultramar, José Esteves Cabaço [, Angola, 1969/71,] nunca teve o mesmo emprego durante mais de três anos. Tem 62 anos, as paredes de casa com quadros que pintou nos últimos 10 anos - um deles uma tela comprida, com castanhos acobreados e cor de vinho, estilhaços de explosões e crânios. Não tem título, "é uma batalha". São memórias, "mas não é o que eu sinto". A frase resume: viveu quase 40 anos com stress pós-traumático de guerra, sem tratamento até que, há dois anos e meio, procurou ajuda.

O psiquiatra aconselhou-o a experimentar um programa de realidade virtual, parte de um projecto ainda experimental que está a ser desenvolvido pelo laboratório de psicologia computacional da Universidade Lusófona, em Lisboa. Aceitou, e dos 25 mil veteranos de guerra com stress de pós-traumático que se imagina haver em Portugal, está entre os poucos que sabem o que é melhorar da doença.

Os resultados científicos do projecto liderado pelo investigador Pedro Gamito começam agora a sair. Num artigo publicado no final do ano na revista "CyberPsychology & Behavior" demonstram que, num pequeno estudo-piloto - em que participou José Esteves Cabaço - a realidade virtual reduz os sintomas de ansiedade e depressão associados ao stress pós-traumático.

Regressar à guerra . A psicoterapia é considerada o tratamento mais eficaz das perturbações ansiosas e pressupõe que os doentes possam reviver as situações de trauma. Dentro dela, a realidade virtual permite uma exposição artificial às raízes do medo. (...)

Esta experiência conta com a olaboração  da APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...

Bilhete Postal > Guiné Portuguesa > 118 – Vista aérea de Bissau. Fotografia verdadeira – Reprodução proibida. Edição Foto Serra. C.P. 239 – Bissau… Impresso em Portugal. Sem data. Bilhete postal gentilmente cedido pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (*). 

 Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


  1. Mensagem de Joana Beja Santos: Ao cuidado de Luís Graça: A pedido da minha mãe, Cristina Allen, remeto o texto "Em Bissau, controlado desespero", destinado à "Tabanca Grande", se achar oportuno. Cumprimentos, Joana Beja Santos 2. Os meus 53 dias brasa em Bissau (1) > Controlado desespero (I) por Cristina Allen (*) [Título da série e subtítulos a negrito no texto, da responsabilidade do editor L.G.]

Caro Luís Graça, seus co-editores, e ainda Torcato Mendonça e Hélder Sousa, Um agradecimento comovido pelos comentários que o meu texto suscitou (*). 

Que é isso, meus bravos? Uma mulher anónima diz: “Afinal, a nossa geração viu muitas coisas”. E Torcato Mendonça escreve um poema belíssimo (nunca ninguém se lembrou de me trazer à vida em poesia), o Luís Graça cita V. Briote em “As nossas mulheres (…)” e surgem, no Blogue, a fotografia da pequena catedral e mais uma fotografia minha, já olheirenta e profundamente angustiada, para além de mais um endereço de aerograma (**). 

Para os que coleccionarem informações soltas e, sobretudo, para os camaradas deste blogue que nasceram no Alto Alentejo e conheçam bem Évora, o arquitecto daquela igreja foi o alentejano José Pedro Cordovil, nascido no belíssimo palácio Cordovil (Rua da Mesquita n.º 7). Num imenso jantar de família, deu-me a sua direita e falou-me dessa obra de juventude, que não ficara muito a seu gosto… aos dezoito anos, nada me faria pensar que viria a casar ali. 

O mundo é redondo, dá muitas voltas, mas quer o acaso que, num ponto inimaginável do tempo, nos encontremos, fisicamente ou nos recônditos obscuros da memória, prontos a saltar em vivíssimos vislumbres. Como neste blogue. E também para os gulosos de azeitonas (grandes, verdes, retalhadas à mão!), que estiveram na Guiné e viram a Praça da Senhora da Candelária, em Bissau, aqui vai um errático e estimulante percurso – “Tigre de Missirá” – Cristina - Catedral – “azeitonas cordovil”. Espetem um palito, levem à boca este petisco e vereis o casal mais mal emparelhado que Bissau tão brevemente viu. E brindem aos vossos amores! Passados, presentes e… futuros. 

   Chegar a 15 de Abril, casar a 16...

Luís Graça, temos um problema (que não é seu). Ao fazer a citação de uma passagem que, creio, ser do segundo volume da obra do camarada Mário Beja Santos (distraído historiador) li: “A Cristina chegou a 18 de Abril (…). Durante os praticamente vinte dias que ela aqui viveu (…)”. 

Li e pasmei. É que eu não vivi só vinte dias em Bissau. Nem cheguei a 18 de Abril. Se estou certa, na tarde de 18 de Abril de 1970, estaria a assistir a um batuque em nossa honra, e recordo um incidente: nesse magnífico batuque, um dos dançarinos, com uma camisola às riscas verdes e brancas, atirou para o meu colo um grande trapo sujo e o Cherno atacou-o, fazendo-o desaparecer de imediato. 

 Quer mais provas? Reza assim a minha certidão de casamento, que tenho à frente: “Certifico que (…) às dezoito horas do dia dezasseis de Abril do ano de mil novecentos e setenta (…) perante mim, Padre José Afonso Lopes (…) compareceram os nubentes (…)”, etc. 

 Cheguei a Bissau a 15 de Abril, casei a 16, parti para Lisboa a 8 de Junho. Cinquenta e três dias. Se achar interesse a isto que escrevo, pode editar, pois já esclareci com o Mário esta questão. Terá havido uma semana e poucos dias de alegria e em todos os restantes, a quotidiana eternidade de desespero controlado. O meu marido sofria do que hoje chamamos, sem complexos, “stress de guerra”. E um súbito muro se atravessava entre nós. Não sei se o escreveu, mas, de olhos desmesuradamente abertos, mandava-me embora e dizia que queria morrer e ser enterrado em Missirá. Pior ainda, eu obrigara-o a casar e o nosso casamento não era válido porque não estava consciente. Doença de guerra, pura e dura. 

 Levei-o ao Padre. Experiente conhecedor de almas, o Padre Afonso, muito calmo, tinha ali o livro de registos e foi dizendo que, se ele queria ir morrer a Missirá, que fosse. E, quanto ao casamento, abrira uma folha nova nos assentos, bastava arrancá-la… o nosso “Tigre” deu um salto, eu temi pelo Padre, mas tudo se acalmou. “Vão lá almoçar”, disse. Porém, discretamente, fez-me um gesto e percebi que ia telefonar. 

No dia seguinte, e de acordo com o que fora anteriormente combinado, o meu marido vadio ingressaria na ala de Neuropsiquiatria do Hospital Militar. Durante dois dias, eu não poderia vê-lo, já que o David Payne iria tentar pô-lo a dormir. Discretamente, o David passou-me para as mãos um frasco hospitalar de “Vesparax” (quem não dormia era eu…). 

Dançando o tango com o Caco Baldé 

 Começaram as tardes das visitas. Havia um autocarro, sempre cheio de pessoas, cabritos e cobiçadas galinhas. Acabei por arranjar um táxi, cujo motorista, João Carlos, me levava e, pontualmente, me aguardava para o regresso. Tínhamos feito um trato – em Bissau quase tudo se negociava. Apressava-me, na saída, não fosse encontrar Spínola, que, diariamente, visitava os seus doentes. Atrasei-me três vezes e três vezes me aconteceu encontrá-lo à porta de armas (chamava-se assim?) do hospital. Andávamos, ao que parecia, cronometrados… 

 Havia um toque (A recolher? Por causa dele? Nunca perguntei). Mas via aquele homem passar para a mão esquerda o pingalim, encostá-lo firmemente à perna, pôr-se em sentido, crescer, enchendo o peito de ar, o ventre liso, o braço direito, o cotovelo, a mão, na mais perfeita continência que jamais vi. Ficava desmesuradamente imenso, desmesuradamente rígido, só o monóculo coruscava. 

 Estarrecida, não sabia que fazer dos pés, das mãos, da mala, da mini-saia, parava, cruzava as mãos, endireitava-me (postura por postura, não baixaria a cabeça, olhava-o nos olhos, ou, melhor dizendo, no olho e no monóculo). Acudiam-me ideias bizarras – que o meu avô materno fora lanceiro e, certamente, teria sabido fazer aquilo mesmo; que ele, Spínola, escorregara em Missirá, numas cascas de batata e fora ao chão, pose, pingalim, monóculo e tudo, soltando palavrões… que aquele homem era o… “Caco Baldé”! Apertava os lábios para não me rir: este é o Caco, Caco Baldé… 

 Mas este era apenas o primeiro acto desta farsa. O segundo, começava com a questão “Passas tu ou passo eu?”. No terceiro, resolvia eu recuar, só então ele passava e, perfeito cavalheiro, punha-se de lado e cumprimentava: “Muito boas tardes, minha senhora”. E eu respondia-lhe: “Muito boas tardes, Senhor Governador”. Afinal de contas, era fácil dançar o tango com Spínola. Dobrado contra singelo, diria que, em seus tempos, o teria dançado na perfeição, sem pisar os pés do par… 

Deixemos, por ora, o Mário na sua cama, entre dois outros perturbados, que, continuamente, discutiam… Quando, escassos anos volvidos, leria atentamente Portugal e o Futuro, fecharia o livro, e, olhos cerrados, para mim mesma o interpelava: “Então, meu Caco, só agora?!” Para todas as coisas há o seu tempo. Nos anos de brasa que decorreriam, e, mais ainda, nos outros que vieram, ele seria, talvez, uma das mais contraditórias e inquietantes personagens. Recordo, hoje, os quatro majores que, num gravíssimo erro de cálculo – ou num quase infantil erro de cálculo – ele enviou para o martírio e penso em tantos jovens anónimos que perderam suas desgraçadas vidas. Nos estropiados, nos cegos, nos perturbados, nas nossas lágrimas. E, todavia, ele, feito Marechal António de Spínola, será sempre, para mim, a mais trágica figura do braseiro que outros atearam, sem ele, com ele, ou em seu nome. Que Deus e a História sejam clementes para com este homem. 

Em paz, na nossa 'Tabanca Grande'...Inch’ Allah!, amigos. 

 E agora nós, Luís Graça e Camaradas da Guiné, se a nossa geração viu tantas coisas, certamente teremos mais para ver. Estamos prontos? Vejamos, então. Todos nós temos televisão e esse meio, quer queiramos, quer não, de todos nós faz cidadãos do mundo. 

O Inferno anda à solta em Gaza, em Jerusalém, nos túneis que se abrem no Egipto e, ao que consta, no Irão. O epicentro deste horror situa-se numa terra que foi berço dos três mais velhos credos monoteístas deste mundo, raízes das nossas crenças, nossas lendas, nossos hábitos, superstições, pequenos gestos. No nosso sangue correm, misturados, laivos do sangue dessa gente que se bate. Quem são, de que lado se batem esses “turras”? Os nossos “irmãozinhos”, diriam os muçulmanos, os nossos “irmãos”, dizem judeus e cristãos. 

Algures na Alemanha, o mais jovem dos meus primos (33 anos!), piloto da Nato, já fez Kosovo, Afeganistão, Iraque e está em “estado de prontidão”. Idade suficiente para ser um filho nosso. Lembrai-vos desse menino alentejano, que, aos comandos, vai ir para qualquer sítio, atravessando os ares carregados. Estamos em paz na nossa “Tabanca Grande”. E, acima de nós, escreveu Kant, “o céu estrelado (…)”. “Inch’ Allah!”, não só “talvez”; literalmente é “Queira Deus!” “Inch’ Allah!”, amigos. Cristina Allen 

 _____ 

Nota: esqueci-me de que deixei o meu ex-marido em “banho de maria” no hospital. Há mais, ainda mais para vos contar. Lisboa ainda está longe de Bissalanca. Nem vi, sequer, do alto, a quase poética brancura de Dakar.

____________ 

 Notas de L.G.: 



segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2523: Estórias de Guileje (7): Um capitão, cacimbado, e um médico, periquito, aos tiros um ao outro... (Rui Ferreira)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > O Gen Spínola em visita de inspecção à peça de artilharia 11,4 cm. O então Cap Jorge Parracho (hoje, coronel na reforma) deve ser o primeiro da esquerda. Possivelmente, o oficial que está de costas, seria o comandante do Pelotão de Artilharia... E, quanto ao que está à civil, não sabemos...

Fotos: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.


1. Reproduzo aqui, com muito gosto (e naturalmente também com a devida vénia), mais uma das deliciosas estórias que o nosso querido amigo e camarada Rui Ferreira nos conta no seu livro Rumo a Fulacunda (pp. 322-324), cuja 1ª edição remonta a 1999. Aproveito também para lhe mandar um abraço de toda a nossa Tabanca Grande, do tamanho de Lisboa a Viseu (que é a sua segunda terra).

Sem querer adiantar pormenores que tirariam toda a graça ao surreal episódio aqui relatado, devo contudo acrescentar que estas brincadeiras, estas praxes, eram habituais na recepção aos médicos periquitos, sobretudo nas unidades de quadrícula mais isoladas... Poder-se-ia imputar este comportamento de bravata (mas perigoso...) a um pulsão sadomasoquista dos operacionais em relação aos não-operacionais, como era o caso do alferes médico ou do alferes de transmissões ?...

Enfim, talvez algum deles, dos nossos oficiais milicianos, médicos ou especialistas de transmissões (daqueles que fazem parte da nossa Tabanca Grande), nos possa dar o seu testemunho ou dizer mais alguma coisa, confirmando ou desmentindo estas brincadeiras perigosas à chegada dos médicos... (LG)


O ataque ao Guileje (1)
por Rui Ferreira

Revisão e fixação de texto: LG


Mobilizado para a Guiné, em rendição individual, poucos dias após ter abandonado Lisboa, um jovem e recém-formado médico dava entrada, com toda a pompa e circunstância, na guarnição do Guileje, ínfima «ilha» perdida na imensa mata do Cantanhez, no extremo Sul da província que constituiu durante anos, a par de mais umas quantas, um dos alvos privilegiados de ataques do inimigo.

Autor: Rui Alexandrino Ferreira (2)
Título: Rumo a Fulacunda. 2ª ed.
Editora: Palimage Editores.
Local: Viseu.
Ano: 2003.[1ª ed., 2000].
Colecção: Imagens de Hoje.
Nº pp.: 415.
Preço: c. 20€.

Fortemente entrincheirada, dotada de abrigos construídos à base de palmeira de cibe - dura como corno - decidiu, o Capitão Comandante, já um pouco cacimbado, dar as boas vindas ao ilustre clínico, com o ensaio geral, ao entardecer do dia da sua chegada, da reaccão a um violento ataque (3).

Facto que não só se revelou absolutamente desajustado mas perfeitamente dispensável pois, mais dia menos dia, os próprios turras lhe poupariam não somente o trabalho que teve mas o mal aproveitado dispêndio de energias.

Levada, no entanto, a sua por diante, lá decorreu o ataque, entremeados rebentamentos de granadas com tiros de metralhadoras, das armas individuais e colectivas, com a mais viva gritaria, pantominas de toda a espécie, simulacro de feridos, em resumo um verdadeiro pandemónio, unida a Companhia naquela estranha recepcão ao periquito.

Este, profundamente traumatizado e completamente desnorteado, passou la viver dentro do abrigo que lhe fora destinado, ai tomando as refeições, dando consultas, suportando o dia-a-dia, arrastando-se em angustiante depressão agravada com o correr do tempo.

Dias passados, empenhada a Companhia em acção operacional ofensiva no seu efectivo máximo, ficaram no aquartelamento, destinados a sua defesa, os poucos soldados especialistas não combatentes, sob o Comando do 1.° Sargento e em última instância do Alferes-médico.

No regresso e já nas suas imediações, mais uma vez, pela cabeça do Capitão passou brilhante ideia:
-Vamos atacar o quartel para pregar um susto ao doutor!

E se bem o pensou, melhor o executou, com umas quantas rajadas por cima deste. Aí, dado o alarme, com tão pouco pessoal para a sua defesa, como é que aquilo ia ser?
E vá de perguntar ao médico:
- Oh, Dr.! o que é que fazemos?
- Fogo!!! Foooo...go!!! - comandou o médico.

E contra tudo o que seria de esperar, pressionado, sob o peso da responsabilidade, abandonou o abrigo e, em pessoa, passou a dirigir a reacção.
- Fogo? - com quê??
- Com tudo. Fogo com todas! Com tudo! Foooo...go!

E assim os nossos bravos atacantes começaram a ficar em maus lençóis, com elas, a cair por perto, pelo que já de aflitos, bem rápido, desataram na gritaria:
- Alto ao fogo! Somos nós! Soooo....mos nós!

Pois sim! No meio daquele chavascal com tiros por tudo quanto era lado, quem é que os ouvia!?... Valeu, possivelmente evitando o que poderia ter sido uma verdadeira catástrofe, a experiência do pessoal de transmissões.

O elemento de serviço mal se desencadeara o ataque tinha solicitado a intervenção da Força Aérea que, pouco tempo depois sobrevoava a guarnição, graças à qual se conseguiu desfazer o equívoco (?) visto serem todos do mesmo clube.

O pior é que, bem mais rápido do que se poderia pensar, se propagou o acontecido e nessa mesma tarde, no rescaldo da chegada dos rumores que, nem se sabe como, já corriam por Bissau, estes captados pelos ouvidos do próprio Governador, fizeram com que, pouco depois, pousasse no Guileje o heli com o próprio General Spínola. Onde, face às atabalhoadas explicações do ilustre Capitão, na tentativa frustrada de, aligeirando a versão, contar unicamente quanto a loucura do acontecido aconselhava, tivesse levado Sua Excelência a determinar o apuramento do gasto das granadas e munições consumidas que mandou debitar na conta pessoal daquele, promovendo a imediata evacuação do médico para a psiquiatria.

Em beleza…

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série: 31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2493: Estórias de Guileje (6): Eurico de Deus Corvacho, meu capitão (Zé Neto † , CART 1613, 1966/68)

(2) Por curiosidade, com quem e em que altura se terá passado esta estória ? O Rui Ferreira, por sua vez, esteve em Quebo (Aldeia Formosa), entre 1970 e 1972, sendo portanto vizinho de Guileje... A ter sido passada esta cena no tempo de Spínola, ela terá ocorrida entre 1968 e 1973, envolvendo o pessoal de uma destas seguintes unidades (entre parênteses, indica-se o nome o contacto que temos)

CCAÇ 2316 (Mai 1968/Jun 1969) (contacto: Cap Vasconcelos)
CART 2410 (Jun 1969/Mar 1970) (contacto: Armindo Batata)
CCAÇ 2617 ( Mar 1970/Fev 1971) > Os Magriços (contacto: Abílio)
CCAÇ 3325 (Jan 1971/Dez 1971) (contacto: Jorge Parracho)
CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972) > Os Gringos de Guileje (contacto: Amaro Munhoz Samúdio)
CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973) > Os Piratas de Guileje (contacto: José Casimiro Carvalho )

(3) O Rui Alexandrino Ferreira, que foi homenageado em 2007, por ocasião dos seus 64 anos, em Viseu, terra onde vive, é natural de Angola (Lubango, 1943). Fez o COM em Mafra em 1964. Tem duas comissões na Guiné, primeiro como Alferes Miliciano (CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67) e depois como Capitão Miliciano (CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72). Fez ainda uma comissão em Angola, como capitão. Publicou em 2001 a sua primeira obra literária, Rumo a Fulacunda. É hoje coronel, na reforma.

Vd. postes de:

4 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2026: Antologia (61): Rumo a Fulacunda: uma estória que ficou por contar ou a tragédia das CCAÇ 1420 e 1423 (Rui Ferreira)

3 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1810: Convívios (14): CCAÇ 816 (Oio, 1965/67), em Joane, Famalicão, em 5 de Maio de 2007 (Rui Silva)

30 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1800: Álbum das Glórias (14): De Alferes (CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67) a Capitão (CCAÇ 18, Quebo, 1970/72) (Rui Ferreira)

30 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1797: Convívios (13): Viseu: Homenagem ao Rui Ferreira e apresentação do último livro do Gertrurdes da Silva (Paulo Santiago)

15 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1761: A floresta-galeria na escrita de Rui Ferreira

1 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1718: Lendo de um fôlego o livro do Rui Ferreira, Rumo a Fulacunda (Virgínio Briote)

14 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1661: Tertúlia: Notícias de Lafões, do Rui Ferreira, do Carlos Santos e da nossa gloriosa FAP (Victor Barata)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

20 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1448: Os quatro comandantes da CCAÇ 2586 (A. Santos)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1285: Bibliografia de uma guerra (14): Rumo a Fulacunda, um best seller, de Rui Alexandrino Ferreira (Luís Graça)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1967 > CART 1613 (1967/68) > Um DO 27 na pista, de terra batida, do aquartelamento. Foto do saudoso Cap Ref José Neto (1927-2006) (1).

Guiné > Região de Tombali > 1967 > CART 1613 (1967/68) > Foto aérea do aquartelamento e tabanca, vendo-se ao lado direito o heliporto. Foto do saudoso Cap Ref José Neto (1927-2006).

Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). (Reeditadas por Albano Costa). Direitos reservados.



Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1970 > "Junto foto do meu arquivo referente a uma das alturas em que estive em Guileje, datada de Maio de 1970 [ao tempo da CART 2410]. Em primeiro plano, a rede de protecção em arame farpado. Atrás, abrigos e porta de armas. Vêm-se ainda os telhados, da esquerda para a direita, da caserna, do refeitório e do posto de transmissões".

Foto e legenda: © João Tunes (2006). Direitos reservados


1. Na expectativa do Simpósio Internacional Guiledje na Rota da Independência da Guiné-Bissau (Bissau, 1-7 de Março de 2008), que será também o da celebração da amizade entre os nossos dois povos e entre os antigos combatentes de um lado e do outro, damos início à publicação de histórias/estórias tendo como sujeito/objecto o aquartelamento e a tabanca de Guileje, as NT que os defenderam e, eventualmente, os guerrilheiros do PAIGC que nos combateram até ao abandono daquela posição militar no sul da Guiné, em 22 de Maio de 1973.
Vamos recuperar alguns textos já publicados na 1ª série do nosso blogue (Abril de 2005/Maio de 2006) que já estão esquecidos ou na altyra foram lidos por menos gente do que a que temos hoje a visitar as nossas páginas. Vamos também incentivar a produção de novos textos, desafiando a criatividade e a memória dos nossos camaradas que andaram por aquelas paragens.

E, para começar, nada melhor do que uma estória do nosso amigo e camarada João Tunes, que conheceu Guileje quando foi tranferido para Catió, vindo do chão manjaco... Como Alferes Miliciano de Transmissões, da CCS do Batalhão sedeado em Catió, ele tinha que ir mensalemente, em serviço, a Guileje, como ele nos explicou em poste anterior, publicado em 6 de Outubro de 2005:

"Vivi uma pequena parte (mas marcante e bem) da odisseia de Guileje. Como o quartel estava sob a jurisdição do batalhão sedeado em Catió (assim como Gadamael e Cacine), eu tinha de lá ir uma vez por mês (ficando lá,uma semana) para ver como estavam as transmissões e mudar as cifras das mensagens e esperar por transporte de regresso a Catió. Porque, é claro que só lá chegava e de lá vinha por via aérea. E enquanto lá estava era 'sempre a assoar'. E julgo que em nenhum outro lugar da Guiné se sofreu tanto a intensidade e a impotência da guerra" (...) (2).

Obrigado, João. E desculpa o abuso desta re-republicação... A tua estória merece maior visibilidade. É também uma homenagem à tua pessoa, à tua frontalidade, à tua camaradagem. E, já agora: sabes o que é, hoje, feito deles ? Do Aparício e do Gouveia ? A história do concurso de pesca em Guileje é fabulosa: contava-se à boca cheia no meu/nosso tempo, em Missau, mas é bom lê-la nos teus escritos, contada pelas tuas palavras... Essa e outras cenas dos "sitiados de Guileje" merecem figurar no futuro Núcleo Museológico de Guiledje, com uma leitura sócio-antropológica do Suplício de Sísifo que foi, para muitos de nós, a guerra colonial na Guiné... (LG).

2. Estórias de Gulieje > Um voo com muita valentia
por João Tunes (2)
Subtítulos e notas da responsabilidade do editor L.G.



(i) O Tenente Aparício, o único piloto-aviador de DO que aterrava em Guileje


O Tenente Aviador Aparício, lenço azul ao pescoço e ar de quem está meio cá meio lá, entre a terra e o céu, aterra a Dornier (3) na pista de terra batida de Catió. Quando encontra o primeiro militar que o foi receber, diz-lhe, rindo-se:
- Então, aqui come-se e bebe-se? - Claro que havia. Havia sempre para o Tenente Aparício.

O aviador é levado, de jipe, ao bar de oficiais e são-lhe servidas as melhores iguarias disponíveis, acompanhadas de cervejas bem geladas. Sabia-se do voo que já era, aliás, aguardado ansiosamente há vários dias. Os aviadores eram sempre recebidos como VIPs na messe de oficiais do batalhão de Catió, lugar que, na maior parte do ano, só tinha ligações com o exterior pelo ar. O aterrar de um avião ou de um heli era sempre motivo especial e que comportava a emoção de confirmar que Catió existia no mapa.

Entre todos os aviadores em serviço na Guiné, o marado do Tenente Aparício era o mais festejado e o mais bem-vindo. Não por ser marado mas por ser o mais marado de todos, tanto que era o único que se dispunha a aterrar de Dornier em Guileje. E Guileje era a posição mais martirizada e mais isolada da área de intervenção do batalhão e em toda a Guiné. Por causa disso, a tropa encaixava bem as risadas sem motivo e uma ou outra frase desconexa que ia largando, pelo valor único que ele representava para o batalhão e para o pessoal de Guileje.

Após meia hora a descansar, a comer e a beber, o Tenente Aparício ajeitou o lenço azul e levantou-se:
- Vamos a isto -, disse com os olhos a brilharem. Se era o único que aterrava em Guileje, aquele era o sítio onde ele mais gostava de ir. Cada viagem era uma aventura. E o Aparício adorava aventuras.

Carregado o correio, medicamentos, algumas peças e acessórios, tudo em quantidade limitada por causa do pouco peso que a aeronave podia transportar, o Tenente Aparício despediu-se. E mandou-me subir. Naquele dia eu ia ser seu companheiro de viagem até Guileje.
- Vamos a isto -, repetiu, repetindo também uma nova risada.

Ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, daquela vez, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, com o aviador mais marado da Guiné.

(ii) Voando sobre um ninho de cucos...


O aviador conduziu a aeronave com os jeitos e o ar de condutor habituado a uma estrada de todos os dias. E ia sempre a rir. De repente, a janela da Dornier do meu lado salta e desaparece. O ar entra em turbilhão e faz esvoaçar toda a papelada solta. O aviador riu-se ainda mais. Como tendo achado que aquele incidente só ia tornar mais insólita e mais típica aquela viagem e ainda dava para gozar com a cara azulada da preocupação do seu companheiro inquieto e que duvidava que, sem janela, aquela geringonça se pudesse aguentar no ar. O aviador comentou, contendo o riso:
- Eu bem disse na Base que essa merda estava mal apertada, mas não faz mal, o avião não cai, ficamos é com as ideias mais frescas.

A viagem decorreu, num regalo de vista sobre as matas luxuriantes de verde intenso como era típico do sul da Guiné, permanentemente atravessadas por enormes e serpenteantes cursos de água. Sempre a sobrevoar uma zona controlada pelo PAIGC. É que, no sul, tirando os quartéis isolados e sitiados de Catió, Guileje, Gadamael e Cacine, todos sob o comando militar de Catió, a zona era inteiramente controlada por guerrilheiros. Estes, só eram contrariados no seu domínio pelo exército português através de bombardeamentos aéreos, fogo de artilharia e surtidas temporárias das forças especiais. E isto durou até o PAIGC receber os mísseis dos soviéticos, porque, a partir daí, todos os aviadores se recusaram a voar no sul. Mas isso foi mais tarde, já o Aparício de lá tinha saído. Voar, naquela zona, era um desafio permanente às clássicas antiaéreas e havia que confiar na divina providência ou coisa do género. Naquela viagem, o risco era o costume, a beleza da paisagem idem, só a ventania dentro da cabine estava fora da rotina.

(iii) Aterrando numa espécie de campo de futebol de terra batida

As palmeiras da periferia do quartel de Guileje perfilaram-se na frente da Dornier. À frente delas, distinguia-se o que parecia ser um quartel em estado degradado e meio despedaçado com uma bandeira portuguesa comida pelo sol e rota nos cantos, içada no meio dos casinhotos. O avião fez uma rápida volta de reconhecimento, rasou as copas das palmeiras, baixou repentinamente de altitude na clareira entre o palmeiral e o quartel, apontou o nariz direito a uma espécie de campo de futebol em terra batida, aterrou num movimento brusco e parou a poucos metros de uma carcaça de outra antiga Dornier que, antes, não tinha conseguido parar a tempo e se espatifara contra o muro do quartel. Era este risco permanente de as aeronaves imitarem a sua irmã espatifada que levava a que todos os camaradas do Aparício se recusassem a aterrar em Guileje. Mas ele preferia aquela viagem sobre todas as coisas na vida. Há homens para tudo, é o que vale aos abandonados pela sorte.

Indolentemente, alguns soldados montaram segurança à Dornier. Sem dirigirem palavra aos recém-chegados. Rostos fechados, olhares distantes e desinteresse ostensivo. O Tenente Aparício não queria sair do avião pois tinha de regressar a Bissau enquanto era dia. Só deu tempo para descer e tirar a carga destinada a Guileje. A guarda estava montada, G3 carregadas ao ombro, nada mais. Nenhum oficial ou graduado apareceu e os soldados da guarda não falavam. Disse alto e com bom som:
- Então não descarregam as vossas coisas? Porra, pelo menos, tirem o vosso correio.

Nada de reacção. Tivemos de ser, eu e o Aparício, que resolvemos o impasse mandando com os embrulhos e o saco do correio para o chão da pista, para que a Dornier pudesse regressar vazia.

(iv) O famoso concurso de pesca de Guileje

Os militares em Guileje queriam lá saber das peças e dos acessórios. Inclusive, não mostravam qualquer interesse em ler as cartas dos familiares. Queriam lá saber da família. Ali, naquele sítio, nada interessava. Se calhar, já nem estavam interessados em sair dali. Talvez porque achassem que já não eram pessoas mas ratos metidos dentro de uma ratoeira, destinados a apanhar porrada, só apanhar porrada.

O Tenente Aviador Aparício regressou a Bissau sem a janela do lado direito. Que se lixasse o raio da janela.
- Talvez tenha acertado na cabeça do Nino -, disse com voz sumida.

E levantou voo rumo a Bissau. Sem se rir. Talvez porque achasse que tinha visto, não uma companhia de militares portugueses, mas sim um bando de humanóides sem vontade de viver.

Enclausurados dentro do quartel, morteirada todos os dias em cima, com baixas quando iam buscar água a um quilómetro, comendo com uma perna fora da mesa para se atirarem para uma vala quando a primeira granada caísse, os militares de Guileje sentiam-se mais perto de outra vida que da vida vivida.

Os que não estavam malucos por lá andavam perto. Saudável, mesmo saudável, não havia quem servisse de amostra. O único divertimento era juntarem-se à volta de um bidão cheio de água do pântano que trazia meia dúzia de peixes minúsculos, dobrarem alfinetes, amarrá-los a uma linha, meterem uma côdea de pão em cada alfinete e tentarem pescar os ínfimos peixes. Cada um que apanhava um peixito, contava alto o seu score de pescador e voltava a deitar o peixe para dentro do bidão antes que morresse e o jogo tivesse de acabar por falta de motivo. E ali estavam horas naquilo, só se ouvindo, uma vez por outra, uma voz dizer oito, ou cinco, ou dez. No fim, nem o campeão se interessava por dizer que tinha sido ele a ganhar o concurso de pescaria. Em Guileje, ninguém se atrevia a dizer que ganhava o quer que fosse. Ali, a sensação era que só se perdia.


(v) Um alferes médico, maluco, que deu baixa psiquiátrica a uma companhia inteira


Perguntei pelo Alferes Médico Gouveia, pândego como poucos e meu companheiro inseparável na viagem de vinda no Niassa.
- Já cá não mora-, foi a resposta seca que obtive.

Só muito mais tarde me explicaram a sorte do meu amigo médico. O Alferes Médico Gouveia, quando foi destacado para Guileje, declarou toda a companhia em baixa psiquiátrica e requereu a sua substituição imediata.
- Está tudo maluco -, afirmou com a sua autoridade de médico.

Ninguém lhe passou cartão. Ao fim de estar três meses em Guileje, o Alferes Médico teve autorização para ir passar férias a Portugal. Quando chegou a Bissau, exigiu que uma auto-metralhadora fosse disponibilizada para o levar à pista para embarcar no avião da TAP. Oficiais amigos conseguiram arranjar maneira de lhe fazer a vontade. E foi dentro de um blindado ligeiro que o Alferes Médico Gouveia se aproximou da escada de acesso ao avião pousado na pista civil de Bissau. Saiu do blindado, subiu a escada do avião, no cimo voltou-se, fez uma continência para a linha do horizonte e embarcou. Não regressou. Durante as férias, foi visto por uma junta médica e considerado inapto para o serviço militar. E safou-se de mais Guileje e de mais Guiné. Estava mais maluco que os malucos que ele não conseguira evacuar.

Muitas vezes mais haveria de fazer companhia ao Tenente Aviador Aparício, nos seus voos aventureiros pelos céus da Guiné. Mas a sensação de voar sem janela, essa nunca se repetiu. Repetia-se, isso sim, o resto: o aviador ria-se, sem jeito nem propósito, até chegar a Guileje, voltava sempre calado e de rosto fechado. Mas, continuava a ser o único que aterrava uma Dornier na pista de Guileje. Enquanto esteve na Guiné, ninguém quis disputar o título de aviador mais marado que pertencia, com todo o direito, ao Tenente Aviador Aparício.

João Tunes

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

(2) Originalmente publicado num dos blogues do autor, o Bota Acima, 7 de Abril de 2004. Depois retomado, por nós, na 1ª série do nosso blogue:
6 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXII: Os sitiados de Guileje (João Tunes).

(3) Dornier DO-27. Segundo a página do João Gil, dedicada a "algumas aeronaves militares usadas na Guerra Colonial em Moçambique" (T-6, Do-27, Fiat g-91, Noratlas, etc.), a Dornier DO-27 "foi o primeiro avião feito na Alemanha (Oeste) depois da Grande Guerra, seguindo o mesmo conceito do Fieseller Storch. Foram manufacturados 628, e tanto teve uso civil como militar". Citando como fonte a FAP, o autor diz que "os aviões Do 27, de que a Força Aérea teve 133 exemplares nas versões A3 e A4, começaram a ser recebidos em 1961", tendo sido "adquiridos para operação no Ultramar, em missões de transporte ligeiro, evacuação sanitária e reconhecimento armado, para o que eram equipados com lança foguetes".

Ainda segundo a mesma fonte, eis algumas das especificações do Dornier DO-27:

Motor: 270 hp;Envergadura: 12,00 m; Comprimento; 9,54 m; Altura: 3,28 m; Superfície Alar: 19,40 m2; Peso vazio: 983 Kg; Peso equipado: 1570 Kg; Velocidade máxima: 250 km/h; Raio de acção; 870 km; Razão de subida: 198 m/min; Tecto de serviço: 5500 m; Tripulação: 1 + 5. Ver ainda página, em inglês, dedicada ao DO27.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1961: António Pedro, meu amigo e irmão, cruz de guerra ao peito, morreu de stresse, a 12 de Agosto de 2003 (Mário Fitas)

PTSD (como dizem os americanos) ou Stresse pós-traumático de guerra (como dizemos nós) é um problema de saúde mental que continua a afectar os antigos combatentes, do Vietname à Guiné, muitos anos depois do seu regresso a casa. (vb)


Foto: © Virgínio Briote (2005). Direitos reservados


1. Mensagem do Mário Vicente:

Caro Briote, as tuas sábias palavras, são a súmula em que se revela a existência deste país. Não deve ser minha a frase, mas eu escrevia: "Quem entra numa Guerra jamais sairá dela". E é verdade!

Só que nós que, por qualquer motivo, resistimos ou não fomos tocados por essa psicótica bactéria, temos a força e talvez o saber de ajudar esses nossos queridos abandonados camaradas. Queridos!... Sim... porque só nós sabemos conviver e falar com eles. Agradecidos e reconhecidos aos pioneiros que levantaram o problema do stresse.

Permite-me que te faça uma narração de um nosso Camarada, meu amigo irmão. Não irei revelar algumas pessoas intervenientes,como é óbvio, mas se for necessário fá-lo-ei para ver como esses incógnitos trezentos mil foram abandonados.

António Pedro foi mobilizado para servir o seu País, nas bolanhas, matas e pântanos da Guiné. Com os seus vinte e um anos era já um homem impecável, respeitado e respeitador, era um rapaz a que nós vulgarmente chamamos de "Exemplar". Agora, aquilo que o vi fazer: rastejar debaixo de fogo e ir buscar camaradas feridos à zona de morte em emboscadas. Natural pois, no seu peito foi colocado um símbolo (Cruz de Guerra).

Voltou á sua terra e tornou-se um homem de valor. Mas!... próximo dos cinquenta anos apareceram os problemas!

24 de Dezembro de 2000, pelas 00H30, o meu telefone toca. Do outro lado reconheço a voz:
- Mário, perdi o cinturão, os carregadores e não sei dos meus homens!
Senti que tinha de voltar à MERDA.

Falei com ele como se estivesse enterrado nas matas que cheiravam a morte. Passados vinte minutos, uma voz feminina e delicada agradeceu. Calmamente o António Pedro tinha ido para a cama.

Pouco sei do que esta senhora e filhos teriam sofrido. A mim doeu-me quando, em 12 de Agosto de 2003, o telefone tocou, e a mesma voz feminina e de dor me informou:
-O António Pedro morreu hoje! Tirou o carro da garagem, subiu as escadas para se despedir de mim e dos filhos, e caiu na minha frente.

A sua Pátria nem uma flor depôs na urna daquele PORTUGUÊS.

Amigo se quiseres podes publicar porque infelizmente não é caso único.

Mário Fitas

2. Comentário do co-editor Virgínio Briote:

De facto, parece não haver uma regra para o aparecimento dos sintomas do PTSD (como ficou designado, oficialmente, pela Associação Norte-Americana de Psiquiatria, e stresse pós-traumático, entre nós).

Todos nós conhecemos casos de camaradas que conseguiram resolver os pesadelos, ainda nos primeiros tempos após a comissão e, hoje, convivem saudavelmente com o seu passado, com os problemas bem arrumados, pelo menos aparentemente.

Outros casos vieram já definidos e estruturados, que evoluiram para a cronicidade alternando uma vez ou outra com episódios agudos. Famílias, amigos, colegas da actividade profissional, viveram largos anos ou ainda sentem diariamente quanto custa conviver com a doença. Nalguns casos, provavelmente, acabaram por ficar também com perturbações, com tantos anos de exposição. Parece pertencer a este grupo a maior percentagem dos actuais nossos camaradas que frequentam ainda grupos de ajuda.

Parabéns, Mário Vicente ("Pami Na Dondo"), pela tua contribuição. O stresse pós-traumático afectou e afecta ainda a vida dos nossos veteranos da guerra colonial, mas eles não viveram estes 30 ou 40 anos sozinhos. Constituiram família, tiveram filhos que cresceram, alguns sem se lembrarem de alguma vez o Pai ter pegado neles ao colo.
vb
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Nota de v.b.:

(1) Vd. 15 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1955: 300 mil, vítimas de stresse pós-traumático de guerra: estude-nos depressa, doutora (Virgínio Briote)