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segunda-feira, 24 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19916: Notas de leitura (1190): "Memórias de África, Angola e Guiné", pelo General José de Figueiredo Valente; Âncora Editora, 2016 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
O que é verdadeiramente impressivo na singeleza dos relatos do General José de Figueiredo Valente é a compreensão do outro, o sentido do cuidado, o saber tirar partido de um episódio burlesco, contá-lo a preceito e remetê-lo para as dádivas da cultura. São relatos serenos, não escondendo a saudade pelo feitiço africano e o seu espírito de missão junto das populações.
Convido o leitor para uma leitura muito atenta do que ele nos diz sobre o Grupo Especial de Milícias Balantas e aos acontecimentos que levaram à morte heróica do Capitão João Bacar Djaló.

Um abraço do
Mário


No Quínara, 1970-1972, pelo General José de Figueiredo Valente

Beja Santos

Em mais um volume de Programa Fim do Império, a Âncora Editora publicou recentemente "Memórias de África, Angola e Guiné", pelo general José de Figueiredo Valente. Algo nos toca nos seus dados biográficos. Cumpriu duas missões em Angola e comandou um Batalhão na Guiné; entre outros desempenhos relevantes esteve à frente do Comando da Zona Militar da Madeira e foi Director do Colégio Militar. Após a sua comissão na Guiné, acolheu no seio familiar dois irmãos Balantas e educou o filho de um chefe Fula, hoje Capitão do Regimento de Comandos. Durante cerca de 10 anos, foi voluntário junto de duas instituições, uma de cegos e outra de pacientes de paralisia cerebral.

As suas memórias timbram por isso mesmo: pelo sentido da compaixão, uma intensa vontade em compreender e lançar as pontes para o diálogo entre as culturas, a ponderação e flexibilidade na liderança, o sentido da reflexão nas encruzilhadas do destino, uma rara capacidade de aceitação.

Primeiro em Angola entre 1962 e 1964, no BART 2346, em Uíge, viagem um tanto tormentosa no Niassa. A descoberta de África, aquelas formigas devoradoras e construtoras, invasoras como a marabunta, mas também as cobras e as gazelas. Aponta certos ridículos do mando, inebria-se com as paisagens angolanas, com a beleza do Cuango, ironiza com o espírito de certos oficiais farristas, capazes de se desenvencilhar com a burocracia dos relatórios; recorda com saudade Ambrizete, era aqui que estava instalado o Comando de Agrupamento, tinha a responsabilidade uma enorme região com 30 mil quilómetros quadrados, a atividade operacional era orientada com prioridade para o interior da região e para o Norte, junto ao rio Zaire. Registou mais descobertas como as tartarugas que vinham aqui nidificar, bem como os caranguejos que, numa derradeira viagem, atravessavam as ruas da povoação para se dirigirem para o interior, a fim de alcançarem umas lagoas, lagoas essas onde pousavam centenas de flamingos. Recorda perdas e situações embaraçosas como uma médica a quem levou um mulatinho doente tê-lo criticado pelo mau estado da criança, pensava que se tratava do pai.

E assim chegamos a Quínara, é agora Segundo Comandante do BART 2924, a partir de Dezembro de 1970. Apanha problemas graúdos, o de apaziguar uma situação de grande tensão entre elementos da população civil e a milícia de Tite. As jovens mulheres Balantas que tinham sido vendidas a maridos velhos sentiam forte atração por aquela rapaziada que lhes falava mais ao coração, ele teve que presidir a “julgamentos” de casos delicados de velhos maridos que exigiam ressarcimento pelas suas jovens mulheres que os repudiavam. Quínara significava atividade constante como a guerrilha omnipresente: Nova Sintra, S. João, Tite e Fulacunda. Mas não resiste a tirar partido do sal da vida desde roubos de galinhas a pratos de morteiro engolidos pelos canais feitos pelas formigas. Formou milícias, um grupo especial de milícias só com Balantas, que foram organizados, fardados e equipados com armamento capturado à guerrilha. Há a guerra e a contingência de diferentes acidentes. Foi o caso de um incêndio no destacamento do Enxudé, que servia essencialmente de testa-de-ponte da guarnição militar de Tite e era igualmente o eixo de ligação fluvial com Bissau e Jabadá. Aqui permanecia uma guarnição de 25 homens. Em dia e hora em que se iria iniciar um espetáculo em Tite chega uma mensagem de que no Enxudé se tinha declarado um incêndio. Coisas que quem viveu a guerra sabe não ser fantasia:
“As causas do incêndio foram descritas desta forma: um dos rapazes da tabanca que ali trabalhava tinha ido ao recinto dos bidões de combustível para atestar um candeeiro Petromax. Por casas desconhecidas mas talvez por ter querido fazê-lo sem apagar o candeeiro, ao procurar enchê-lo derramou combustível que entretanto se incendiou, ardendo à volta dos bidões dando origem ao incêndio com risco de fazer explodir os bidões. Cansados e sujos lá regressaram a Tite e não puderam assistir ao espetáculo do “Conjunto Musical do QG”…

José de Figueiredo Valente conheceu o Capitão João Bacar Djaló, que comandou a 1.ª Companhia de Comandos Africanos, que foi atribuída em reforço ao seu batalhão para ali realizar o seu treino operacional. Relata a morte do Capitão João Bacar Djaló que ocorreu em circunstância que puseram em evidência a sua coragem e dedicação. E assim relata:
“Após o início da ação de fogo IN, o Capitão João Bacar retirou a cavilha de segurança de uma das granadas de mão que transportava e preparava-se para a lançar quando um dos seus homens caiu ferido. Procurou trazê-lo para o abrigo de um morro de bagabaga e nesse esforço e talvez devido a uma explosão mais próxima, soltou a granada descavilhada que ao explodir iria atingir os seus homens. Para os proteger, procurou ainda agarrá-la para a lançar para longe quando a sua explosão o matou".

O grupo especial de milícias deu-lhe imprevistos trabalhos; estava organizado em dez equipas de cinco homens, devidamente comandadas, o que permitia uma grande flexibilidade no seu emprego tático. As missões atribuídas ao grupo incluíam a realização de diversas ações contra objetivos identificados ou a montagem de emboscadas nos itinerários de acesso. Foi exatamente numa dessas emboscadas que na manhã do dia seguinte foi procurado por um soldado intérprete Beafada dizendo que estavam lá fora uma rapariga e a sua tia para apresentar queixa, a bajuda tinha sido violada naquela noite por vários elementos da milícia, que ela afirmava terem sido dez, dos quais poderia até identificar os dois primeiros. É uma descrição extraordinária, o oficial faz interrogatório em privado ao primeiro que havia sido apontado pela bajuda, a negação é perentória. O comandante do grupo pede autorização para interrogar o homem e recorre a uma grossa palmatória de madeira, ao fim de muita palmatoada o acusado admitiu que fora ele o primeiro, o primeiro indiciou o segundo e assim sucessivamente. Houve que fazer uma sessão pública a que compareceu o chefe Beafada noivo da bajuda.

O último relato refere-se a um soldado maqueiro, José da Purificação dos Santos, o Zequinha. O Zequinha era irmão do palhaço Quinito e o Zequinha possuía uma certa veia artística como o irmão, com a sua viola e as suas canções era um franco animador. Mas era instável e muito suscetível, com manifestações agressivas. Quando ia a Bissau para a consulta médica de psiquiatria, desaparecia, e este procedimento irresponsável repetiu-se. Conversando com o Zequinha, apurou tratar-se de filho de pai incógnito e de uma artista de circo mais prostituta que artista, vivera uma infância errante, desregrada e sem padrões morais. Pendiam sobre o Zequinha dois autos por deserção e um auto de insubordinação, Figueiredo Valente procurou remediar e atenuar a gravidade das consequências. Apanhou uma pena de prisão muito limitada e regressou à Metrópole. Voltaram a encontrar-se, esporadicamente. Em 1986, já Diretor do Colégio Militar, é procurado, o Zequinha estava muito doente e internado no Hospital de Santa Maria, queria vê-lo. Estava já numa fase terminal, com um cancro nos pulmões. “A sua alegria em me ver e o conforto que a minha presença e as minhas palavras lhe deram nos últimos dias da sua vida evidenciaram a sua gratidão pelo que eu por ele fizera. E num dia em que de novo fui visitar, soube que já ali não estava. Partira mais uma vez, já não como vagabundo errante, mas para num lugar onde permaneceria finalmente em paz”.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19907: Notas de leitura (1189): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (11) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22529: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (69): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
É com a maior satisfação que me socorro do livro Postais Antigos da Guiné, escolhidos por João Loureiro. Conheci este distinto advogado no Conselho de Publicidade, ele representava as agências e eu os interesses do consumidor. Sobrou uma consideração mútua e um dia pude escrever que o levantamento de património coligido pelo Dr. João Loureiro era inultrapassável, ele sistematizou uma invulgar coleção de quase dez mil postais fotográficos, sem dúvida uma imprescindível fonte iconográfica não só da presença portuguesa em África e no Oriente como também de um período que marcou os sinais da colonização portuguesa e a alvorada das nações lusófonas. A ele dedico hoje este despretensioso texto.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (69): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette mon adorée, presque à arriver à Lisbonne, não sei se é só o meu coração que te aguarda com a maior expetativa, em breve virás tomar conta da nossa casa, és tu que lhe dás vida e que me embalas o destino. Já que te estás a divertir com as peripécias da minha passagem pela Neuropsiquiatria do Hospital Militar nº 241, e que me pedes ainda mais aspetos caricaturais, episódios de pequeníssima história, sobre tudo o que tem sido a minha comissão, aqui vai um punhado avulso de rememorações. Na noite em que desembarcámos do Uíge para uma lancha que nos levou ao cais do Pidjiquiti, já era 29 de julho de 1968, alguns soldados com o olhar furibundo pela estafa que lhes estava a dar, foram arrastando os meus malões de madeira para um estranho portaló, sempre a imprecar, eis senão solta-se uma pega e aquele malão em forma de urna foi disparado para a barcaça, podia ter havido acidentes graves, alguém deu um grito estridente, quem ia dentro da barcaça afastou-se rapidamente, o malão acabou por assentar em cima de uma superfície mole, não tugiu nem mugiu, eu bem corria o risco de ver umas centenas de livros e discos a afundarem-se no Geba. Se achares interessante, adicionas ao tempo a que cheguei a Bissau. Como parti a 2 de agosto para Bambadinca, tive praticamente o último dia de julho e primeiro de agosto por minha conta, e andei a vaguear exatamente pelos mesmos pontos que agora referencio, em abril de 1970.

Penso nas pessoas que conheci e que já partiram, caso do Pedro e da Luísa Abranches, casal muito amigo da minha irmã Manuela, do Cruz Filipe, médico como o Pedro, e que sempre me acolheu tão calorosamente em casa, do Botelho de Melo, passo junto ao edifício do Comando da Defesa Marítima e logo sinto saudades do comandante Teixeira da Mota. Quando trabalhei uns fartos meses em 1991 na Guiné procurei saber o que era feito daquele tão delicado e dedicado funcionário do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, o que me facilitava a descoberta de literatura que me permitiu ir conhecendo um pouco a Guiné. E automaticamente lembro-me dos sargentos e das praças que me deram tão profícua colaboração e que desapareceram da minha vida, caso do Zacarias Saiegh, do Luís Casanova, do Jolá Indjai, soldado que tuberculizou mal cheguei ao Cuor, tratou-se dois anos em Lisboa, e no exato momento em que embarco no Carvalho Araújo em Bissau, ele me apareceu curado e lembrando-me o carinho com que tinha sido tratado pelos meus familiares. Lembro o Paulo Semedo e o Fodé Dahaba. Sentado na esplanada da 5ª REP remexo nas guias que tenho para os médicos: ortopedia, para ver como tenho o joelho direito, fui operado a uma exostose em abril do ano passado; arrepio-me quando vejo a guia para o estomatologista, já visitei o carniceiro, no banco cá fora eu e muitos mais estremecemos a ouvir a gritaria ou os gemidos de quem está sentado na cadeira, só penso naquela broca que está sempre a zunir; e tenho o otorrino e o oftalmologista e depois a neuropsiquiatria, dou comigo a falar em voz alta e quando remexo nesta papelada, fui impedido de passar férias com os meus entes queridos, tenho agora férias de saúde a vários níveis de recauchutagem. Nisto olho em frente, sou tentado pela Casa Gouveia, entro aqui sempre e fico embasbacado com o estanco monumental, conheço o Rendeiro e o Zé Maria em Bambadinca, ali pode-se comprar deste o nastro ao petromax, aqui o festival fia mais fino, há pratas e porcelanas dispendiosas, estes importadores aproveitam uma alforria da pauta aduaneira e põem à disposição do público artigos de luxo de pouca probabilidade em Lisboa.

Adorada Annette, tomo as refeições na messe de oficiais e descobri um passatempo formidável, sentar-me num cadeirão e ouvir as conversas de militares e famílias, vale um dinheirão, os oficiais indignadíssimos com esta ou aquela postura deste ao daquele superior, as senhoras avaliando o trabalho das empregadas, comentando quem chega e quem parte, observo as gesticulações de uns e outros naquele aquário muito especial em que os militares andam enfurecidos com aspetos burocráticos e as senhoras com as ninharias do quotidiano, para eles o teatro de guerra é inexistente.

Alguém me recomendou que fosse conhecer uma instituição muito especial, a Pensão Central, gerida por uma figura lendária da cidade, Dona Berta. Subi umas escadas em ferro, entrei numa sala cheia de mesas, um empregado veio solícito perguntar se eu queria almoçar, pedi para conversar com a Dona Berta, a senhora apareceu, trazia a candura no sorriso, perguntou-me se fora colocado em Bissau e se queria ser comensal, ainda não tivera tempo para responder e já me dera o teor dos menus diários e o respetivo preço, quando lhe respondi que viera conhecer a distinta senhora ela logo me disse que almoçaria na sua mesa. Perguntou-me qual o prato que eu mais apreciava, não havia que enganar, a canja de ostra, Pitche-Patche. “Hoje não há, amanhã sim, é novamente meu convidado”. Será na Pensão Central que almoçarei e jantarei em 1991, naquele tempo não havia problemas de segurança, metia-me ao caminho para o meu dormitório, a CICER, o pior eram as noites escuras, tinha que andar cauteloso para não me espalhar, felizmente recebia muitas vezes a boleia do Delfim da Silva, colaborador do presidente Nino, que não morava longe.

Tive sorte em encontrar colegas de curso de Mafra, agora colocados em Bissau. Recordo algum turismo de fim de tarde, passeios até Quinhamel e Nhacra. Todas as consultas correram bem, chegou a hora de ir ao neuropsiquiatra, o David Payne disse-me que eu não podia demorar mais. Entrei na consulta, leu o diagnóstico do Payne, comentou em voz alta os sinais de desgaste, as insónias, os comportamentos agressivos, que eu não me apoquentasse, a viver com aquela enorme pressão era imprescindível repousar muito, ia preparar o esquema da terapêutica, amanhã de manhã ele dava entrada na enfermaria, conversaríamos uma semana depois.

Minha adorada, já vesti o pijama e sou conduzido pelo 1º cabo Morais para um quarto de três camas. Este 1º cabo é um homem de conversa económica mas disse-me um dia à queima-roupa: “Sou maqueiro por acidente, no que gosto de fazer é proteger algumas meninas coristas do Parque Mayer”. Mudei de universo, onde me encontro a hierarquia tem outro significado, quem aqui comanda é o 1º cabo Morais, ele pede para não ter que se irritar, quer ver tudo cumprido dentro desta rotina com horas para levantar e deitar, tomar a pica no rabo, engolir comprimidos, tomar banho, almoçar, voltar aos comprimidos, ter uma hora livre para visitar os outros doentes ou receber visitas, se houver condições ler ou escrever, jantar, engorgitar mais comprimidos e depois tudo muito pianinho, a noite e o sono são integralmente para respeitar com aquela luz de azul fosco que nos vigia sem cessar. Cabe-te agora pedires os esclarecimentos que precisas sobre a tragicomédia que vivi durante os nove dias que ali passei. Não achas melhor conversarmos sobre este assunto, dentro de dias, quando chegares a Lisboa? Estou impaciente por te ver, prometo tudo fazer para que o Jules passe uma semana muito agradável na nossa companhia. Bisous et à tantôt, Paulo.


Barbearia no Bissau Velho
Estamos no tempo da divulgação do exotismo. O editor foi a Neogravura de Lisboa, cerca de 1945. Os ocidentais, apanhados de surpresa, são confrontados com danças tribais, tatuagens, um mundo arabizante, um pedaço do continente perdido sob a nossa custódia. A imagem é poderosa, destaca o vigor físico de alguém que nos encara, orgulhoso de quem é.
Pescadora Papel do Biombo. O editor foi a Foto Serra, cerca de 1966. Quantos de nós não enviaram esta imagem para a terra? Mesmo com prudência, não era coisa que se mandasse à namorada (insinuações à parte)...
Mercado, edição da Casa Gouveia, cerca de 1970. Senti-me transportado para Bambadinca ou Bafatá, mercados mais pequenos do que os de Bissau. Não acredito que as cores tenham perdido vivacidade. Como eu gostava de deambular, comprar especiarias, sentir-me penetrado por esta atmosfera de vozes, movimentos, odores.
Morros de baga-baga, edição da Foto Iris, cerca de 1969. Que idades terão estes meninos hoje, que sonhos, que venturas? Despeço-me do álbum de João Loureiro com a nostalgia do futuro. Os meninos merecem sempre mais, em sonho e em esperança. O postal pode não ser muito bom mas gosto muito da linha do horizonte e da pureza das nuvens. E os meninos são sempre os meninos.
Pensão Central ou da Dona Berta, muito próxima da Catedral de Bissau
Avenida Marginal, Bissau
Monumento ao Esforço da Raça, com a Associação Industrial e Comercial ao fundo
Grande Hotel, Bissau, já conhecera dias melhores, galeria de fotos do Didinho, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22508: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (68): A funda que arremessa para o fundo da memória

sábado, 5 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4898: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (6): Os amores do Soldado Valença

1. Neste episódio de Gavetas da Memória, Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, conta-nos uma bonita história de amor.



Os amores do soldado Valença

Chamava-se Luís António Rodrigues, mas era mais conhecido por Valença, por ser natural daquela vila nortenha, onde ajudava o pai numa bomba de abastecimento de gasolina. Quando atingiu a idade do serviço militar, deram-lhe uma farda especial camuflada, uma espingarda metralhadora e enfiaram-no num navio que mais lembrava um barco de negreiros navegando agora em sentido contrário. Em vez de sair de África era para lá que se dirigia.

Primeiro foram os patrulhamentos, depois as emboscadas, as operações de vários dias, debaixo de um sol inclemente, chafurdando em pântanos tenebrosos, comido por hordas de mosquitos insaciáveis que suportava com uma incrível paciência. A tudo resistia, taciturno e a tudo ia sobrevivendo.
Nos poucos momentos livres, sentado à porta da caserna, distraía-se brincando com uma pequena cadelita de pêlo amarelo que um dia lhe apareceu por ali e logo correu a lamber-lhe as mãos.
Sempre tinha tido jeito para lidar com os animais. Por onde passava encaminhavam-se logo para ele como se atendessem ao chamado do dono. Era uma atracção que ele tinha, diziam os colegas, que até se serviam disso para fazerem chacota.

- Eh, pá, contenta-te com a cadela, pois com as mulheres és capaz de não teres tanta sorte!

O Valença não dizia nada, mas entre dentes lá ia murmurando:

- Cambada de burros! Não têm respeito por nada!

Até que um belo dia, as canseiras pelos arredores de Bissau terminaram e a Companhia foi enviada para o interior da Guiné encarregada de outras missões.
Sem abandonar a pequenina cadela, a Dourada, o nosso Valença lá chegou às novas paragens, feliz como quem vai emigrando para o Paraíso.
Quando se achou por fim livre entre o céu e as sombras profundas dos grandes mangueiros, corria pela pequena pista de aviação, perseguido pela cadela, dando largas à sua ânsia de liberdade.
Brincavam como duas crianças.

Os dias foram passando, veio a monotonia dos largos meses sempre iguais e um certo dia a Dourada desapareceu.
Logo ao alvorecer, o soldado Valença estranhou ela não estar debaixo da cama, onde sempre ficava. Veio cá fora, deu uma olhadela pela parada, pela cozinha, inspeccionou até os abrigos das sentinelas um por um, e nem rasto da Dourada. Assobiou várias vezes por ela, mas nada.
Ninguém a tinha visto e apesar de todos se disponibilizarem para a procurar, indo mesmo com o Unimog até à bolanha, onde as raparigas da aldeia lavavam a roupa, nada, nem sombras da cadela.

Durante vários dias, mas cada vez mais desanimado, o Valença não descansou. Todos os dias vagueava pelos arredores do aquartelamento sempre com a esperança que, de um momento para o outro, se ouvissem os latidos alegres da sua amiga. Mas nada.
E os dias iam passando, sempre cada vez mais iguais, e nada de novidades da Dourada. Alguém, ou alguma coisa, a tinha feito desaparecer de vez, com certeza.

Veio a época das chuvas e os soldados passavam o tempo abrigados debaixo do telheiro da caserna, no pequeno bar da cantina a jogar as cartas ou num pequeno casebre mesmo em frente do arame farpado que rodeava o quartel. Aí, um mestiço, tinha um estabelecimento tipo super mercado do mato, onde havia sempre tudo o que se precisava para uma emergência ou para o mais trivial, um arame, uma corda, uma lata de petróleo ou um Petromax, arroz, pneus de bicicleta, uma aspirina, mas principalmente, e também, a aguardente de cana, sofregamente bebericada pelos bêbados do costume, determinados em esquecer ali aquela pasmaceira, aquela opressão de um sol que desde que nascia até que se deitava, pesava como chumbo derretido.

Atrás do balcão, duas adolescentes, lindas e misteriosas como só as cabo-verdianas sabem ser, a Ermelinda e a Argentina, que com o tio vieram para aquele fim do mundo, quando ficaram sós, após a morte da mãe em Bissau, vítima de tuberculose. Restou-lhes então aquele tio, irmão da mãe, que logo as tinha ido visitar assim que soubera do óbito. No regresso, não hesitou e trouxe-as também com ele, pois até estava a precisar de uma ajuda lá na venda.

As meninas, habituadas já a todo o tipo de trabalho duro nem estranharam, mas conservaram aquele ar de desenvoltura da cidade grande, do falar bonito, sem espantos nem gritos, como gente mais instruída.
Eram, sem dúvida, o principal e o mais interessante atractivo da venda do velho Passarinhas que desde logo soube tirar rendoso proveito dessa novidade, mantendo-as sempre em bom recato, como um valioso tesouro.

O pobre do Valença, inevitavelmente, não tardou a que lá fosse cair. Quando o serviço no quartel terminava, era ali que o podiam encontrar, sentado cá fora, debaixo do alpendre, bebericando uma cerveja, com os olhos postos na estrada, sempre na esperança de ver surgir a Dourada, a companhia que tinha lhe sido roubada, por algum malandro, dizia ele.

Aos poucos e poucos a Ermelinda, a mais velha das duas irmãs, habituou-se à sua presença e quando ele não aparecia, era ela que vinha cá fora, olhar para os barracões do aquartelamento. E ajeitando o cabelo, soltava de vez em quando um profundo suspiro.
Mas nos dias em que ele aparecia, corria logo a servir-lhe uma cerveja bem gelada. O Valença de inicio, não lhe ligava grande importância, mas aos poucos e poucos, foi começando a reparar e a demorar mais o olhar naquela negrinha que lhe sorria sempre. Passados tempos também ele lhe correspondia, agradecido. E de repente começaram a trocar confidências, perguntas sobre a família, a terra natal, o futuro. Como quase um namoro, sem que ambos dessem por isso.

O Tio Passarinhas, de princípio não gostou nada da brincadeira. Dizia que a sobrinha se estava a enredar de mais com aquele branco portuga, que isso só poderia trazer manga de chatice. Mas com o passar do tempo e perante a mansidão do Valença e da sua conversa mole, até ele começou a ficar enredado na situação. Apesar de, lá no fundo, não acreditar muito no futuro daquele romance.

Agora era o Valença que lhe dava sugestões para melhorar o negócio, ajudando em tudo que era preciso, e a coisa até resultava!
E não foi ele também que, num belo dia, começou a dizer que havia de se juntar com a Ermelinda, casar mesmo com ela, abandonar a tropa, não voltar para a terra e ficar por ali a viver com eles?
Não era mesmo uma coisa de maluco? Só podia ser!

Mas o Valença insistia, contando como é que iria pedir autorização ao Capitão para no fim da comissão não regressar a Portugal e ficar a viver na Guiné para sempre. Que não tinha para onde ir (o pai, entretanto, tinha falecido de repente), agora era aqui a sua nova terra. Que aqui é que ele se sentia bem. E não arredava pé, convencendo-se cada vez mais a si, e aos que o ouviam.

O Alferes, do Pelotão do Valença, nem queria acreditar quando lhe foram contar o que ele andava a tramar. Ainda tentou ter uma conversa de homem para homem, à porta da taberna, mas perante o olhar apaixonado dos futuros noivos, nem teve palavras.

Finalmente como sempre acontece, chegou o momento fatal. Enquanto os colegas davam saltos de alegria e cantavam abraçados, bêbados de felicidade pelo bendito dia do regresso ter enfim aparecido, o nosso Valença, no escuro do casebre do Tio Passarinhas, estreitava contra si a chorosa Ermelinda, prometendo-lhe que logo que tivesse tratado de todos os papéis para deixar a tropa, voltaria a correr para os braços da sua amada.

No alvorecer do dia fantástico, uma desconjuntada coluna de camiões carregados como se fossem carroças de mudanças, abandonou a aldeia, deixando para trás tantos sonhos tantos medos, tantas bebedeiras e tantas promessas deitadas ao vento, tudo condenado a ficar coberto pela poeira vermelha daquela terra de que agora já se iam esquecendo. A pouco e pouco foram-se deixando de ouvir os gritos doidos dos soldados que nem para trás quiseram olhar quando desapareceram na curva da bolanha.

E quando a coluna de camiões chegou finalmente a Bissau, foi um lufa-lufa para descarregar as bagagens para à velha caserna que já os tinha acolhido no primeiro dia. Ali ficaram alojados até ao embarque, de novo no mesmo navio negreiro, transformado agora pela mirífica imaginação de todos, em paquete de luxo. Ao fim da tarde desse mesmo dia passearam pela Baixa, com um sorriso estampado no rosto, maior que o mundo, exibindo a fitinha verde e rubra que o Coronel do Batalhão numa arremedo de homenagem para heróicos combatentes (?), lhes tinha espetado no peito. Era a medalha dos feitos cometidos na guerra, o reconhecimento pela dádiva de dois anos da sua juventude, do passado que passou, que nem era bom lembrar. Agora ninguém mais os segurava!

Mas inesperadamente, o nosso soldado Valença debatia-se num dilema. Largar tudo e todos, fugir e voltar para trás, ou deixar-se levar com a carneirada, até ao lúgubre quartel que os aguardava lá na Metrópole, onde iriam depositar tudo o que traziam, os farrapos das fardas, as velhas armas, as botas rotas, as mantas, os colchões, os tachos e as panelas ainda com restos da picante gordura africana?

Todos lhe diziam que era isso mesmo que deveria fazer. Que esquecesse a companhia da pretinha que, por muito apetitosa que fosse, não era modo de vida para ele. Era à terra natal, à velha Metrópole que pertencia e estava tudo dito.
Mas o soldado Valença revolvia-se na cama, incapaz de se esquecer do sorriso de Ermelinda, daquele jeito tímido de lhe afagar o ombro quando trazia a cerveja gelada.
Os longos fins de tarde, contemplando juntos a silenciosa agonia do sol, que caía lá para trás dos grandes mangueiros da velha aldeia.

E tanto batalhou, tanto procurou e tanto massacrou a cabeça do Primeiro-Sargento da Secretaria que este, só para se ver livre dele, tratou de lhe fazer a vontade.
Ali mesmo se procedeu à entrega do material que o estado lhe tinha emprestado, quando o mandara para a guerra, e num abrir e fechar de olhos ficou livre como um passarinho.

Vestido com a pouca roupa civil que ainda possuía, com resto das suas coisas metida numa decrépita mala de cartão e acariciando no bolso uma meia dúzia de notas em dinheiro guineense, correu, ligeiro como um gamo, fugindo pela porta de armas em direcção à cidade, para procurar um transporte qualquer que o levasse de volta ao Paraíso, ao regaço da sua Ermelinda que nunca deveria ter abandonado.

Lá longe, no interior desconhecido de uma África ignorada, num mundo perdido, era aí que morava o destino que desejava e que, se calhar, lhe fora por isso traçado.

Foi o culminar da uma existência, desaparecendo como um rio que, sinuosamente, percorre as terras rasas em busca de um final feliz, numa reunião de amor com o mar oceano das nossas lágrimas.

Nunca mais se soube dele.

Viana, 23 Junho de 2009
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4879: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (5): A CART 676 chega a Pirada

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12734: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - Contrastes do mesmo cenário [parte III] (Jorge Araújo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 9 de Fevereiro de 2014:

Caríssimos Camaradas Editores:
Luís Graça, Carlos Vinhal e Eduardo Magalhães. 
Os meus melhores cumprimentos.
O presente texto, ainda que continue a ter por panorâmica histórica o cenário do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, e o modus vivendi de quem por lá passou [1973], a sua introdução foge um pouco do que tem sido meu hábito em situações anteriores.
Este desvio, enquanto espaço de liberdade, foi influenciado por algumas reflexões surgidas recentemente neste espaço plural de partilha e, daí, deu este resultado.

Obrigado pela vossa compreensão!
Um abraço.
Jorge Araújo.
09Fev2014


O DESTACAMENTO DA PONTE DO RIO UDUNDUMA 
(XIME-BAMBADINCA)

- Contrastes do mesmo cenário [parte III] -

1. Introdução

De acordo com a intensão expressa nos textos anteriores [P12565 e P12586], volto hoje à vossa presença com o mesmo propósito de sempre: o de relatar, na primeira pessoa, os factos mais relevantes que marcaram a vida de um miliciano na sua passagem pelo CTIGuiné.

Assim, continuaremos a aprofundar o tema relacionado com o Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, onde estivemos o segundo semestre do ano de 1973 [já fez quarenta anos!], decisão confortada com as palavras solidárias do camarada António Rosinha ao defender que “cada um deve ter a coragem de dizer aquilo que na realidade presenciou e aprendeu”.

Mas, antes do mais, é justo endereçar aos camaradas, grã-tabanqueiros desta Tabanca que não pára de crescer, os meus sinceros agradecimentos pelos diferentes contributos/comentários produzidos neste âmbito, adicionando-lhe mais valor reflexivo e histórico, por efeito de aí terem passado uma parcela do seu precioso tempo, ainda que em momentos diferentes, em obediência à missão militar que lhes foi confiada/imposta.

Estão nesse caso os camaradas: Carlos Marques Santos [CArt 2339], Luís Graça, António (Tony) Levezinho e Humberto Reis [CCaç 2590/CCaç 12], Jorge Cabral [PCN 63], Paulo Santiago [PCN 53], Beja Santos [PCN 52] e Joaquim Mexia Alves [CArt 3492 e PCN 52], com especial deferência para o Carlos Marques Santos, por ter sido o primeiro a assentar arraial naquele espaço, no longínquo dia 29Mai1969, com tendas de três panos da 2.ª Guerra Mundial, e daí considerar-se, simbólica e carinhosamente, como o DINOSSAURO… da Ponte.
Estou de acordo!

No alinhamento deste texto, entendi incluir e apreciar a pertinência da reflexão do nosso amigo e camarada Pereira da Costa [que foi, durante cinco meses, CMDT da CART 3494, tempo suficiente para ter estado envolvido, entre outros, no episódio estúpido do Rio Geba] ao colocar a problemática do conflito militar a partir de duas perguntas filosóficas; porquê e para quê?

Com efeito, estas são, pela intemporalidade da sua pertinência, duas das principais questões em que nos deveríamos deter ao longo das diferentes fases da nossa vida [unindo o presente ao passado e aprendendo com ele, encontrando novos rumos para a dignificação do Homem], sendo o como e o quando, outras tantas a considerar de igual modo, pois sabemos que tudo é efémero neste nosso cosmos: tem princípio, meio e fim.

Mas, de facto, não tenho uma resposta assertiva e convincente, por ausência de dados, quiçá mais importantes do que aqueles que possuo, na medida em que a nossa ignorância se evidencia e cresce com o saber, em resultado do número de questões ser sempre superior ao das respostas, e daí não haver explicações definitivas.

Retenho-me, por ora, num simples mas importante detalhe que influenciou o nosso comportamento naquele contexto. Quando, dando cumprimento ao programa de treino multidisciplinar de preparação para a guerra, me diziam: “Ranger-Araújo: tu-vais-ser-chefe!” [futuro], omitiam em que condições e com que recursos materiais e humanos tal ia acontecer, para logo a seguir afirmarem: “tu-és-carne-para-canhão!”, expressão [massificada] que viria a ser repetida manga de vezes ao longo da comissão, em particular quando o psicológico dava sinais de algum desânimo, deixando, assim, ao livre arbítrio a construção/reconstrução de um conceito ideológico temperado pela prática concreta do dia-a-dia.

Pelo exposto, e como ficou demonstrado ao longo do tempo, nunca me conseguiram explicar o porquê e para quê, uma vez que a explicação pressupõe antes uma compreensão, que é um processo incompleto e equivocado, e daí haver um deficit dessa compreensão em cadeia. Ou seja, primeiro será necessário compreender para, depois, tentar explicar, pelo que este é um processo que ainda não se encontra encerrado.

Num cosmos onde tudo muda: as pessoas, a sociedade e o mundo, e em que só a mudança é imutável; depois duma ordem, vem a desordem para dar lugar a uma nova ordem [sociologia da ordem e do progresso], por influência da tríade [tróica] TER-PODER-SABER – eis, então, a fórmula que nos comandou… e continua…!

Ainda assim avanço com um elemento mais desta fenomenologia, para prosseguir a reflexão.

Pode ler-se na brochura editada sobre a História do BART 3873 [de autor(es) desconhecido(s)] que “A sede do BArt 3873, decorridos já 5 meses, não teve qualquer ataque ou flagelação o que se percebe pelo cordão protector que a rodeia a dificultar, ou a impedir mesmo, a retirada da força atacante” [p.70].

Da interpretação deste parágrafo nasceu em nós uma outra dúvida: será que o efectivo reduzido a doze unidades, existente no Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, no âmbito da missão de fazer segurança a duas Pontes, era também parte desse cordão?

Do ponto de vista do significado/significante, o conceito “Segurança” significa acto ou efeito de segurar; afastamento de todo o perigo; condição do que está seguro; garantia; confiança; tranquilidade de espírito por não haver perigo [Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Texto Editora. Abril/2004; p.1339].

Será que esta era a questão principal da nossa missão?

Importa salientar, todavia, que nenhum fenómeno sociocultural, no qual se inclui o socio-militar, é neutral, na justa medida em que não há nenhum sistema totalmente fechado em si, nem é plenamente autónomo. Isto significa que qualquer que seja o seu objecto [de estudo] este emerge de um processo construído pela filosofia da época, a partir do funcionamento sistémico entre todos os elementos que o constituem, como foi referido anteriormente.

Daí julgar que se devem aceitar estas pequenas histórias, com a sua independência e cronologia específica, mais que não seja para se identificarem os contrastes ocorridos nos mesmos cenários [diferenças/semelhanças], e ainda como legado particular de um tempo de vida, que foi o meu, em que, felizmente, saí vitorioso em todos os “contextos”, o mesmo não acontecendo com outros meus semelhantes que não tiveram, lamentavelmente, direito a “bilhete de volta” [expressão do camarada Tony Levezinho], aos quais presto, neste espaço, uma sentida homenagem.

Deste modo, o porquê e o para quê continuará a fazer todo o sentido se antes das decisões a tomar, eles contribuírem para esclarecer as consequências de cada uma delas, numa dupla dimensão: qualitativa e quantitativa. Como teriam feito todo o sentido se tivessem sido colocadas a Winston Churchill (1874-1965), enquanto primeiro-ministro britânico, após o discurso proferido no âmbito de uma Moção de Confiança ao seu governo, em 13Mai1940, a propósito da sua visão futurista no conflito militar emergente da 2.ª Guerra Mundial, quando afirmou: “não dou pré, nem quartéis, nem provisões. Dou fama, sede, marchas forçadas, batalhas e morte”, plagiando a ideia expressa anteriormente pelo general italiano Giuseppe Garibaldi (1807-1882).

Curiosamente, estávamos, então, na época da adolescência dos nossos pais e/ou nos primeiros anos de vida daqueles que foram os pioneiros da Guerra Ultramarina. Eis como os factos históricos continuam a ser cruéis para a humanidade.

Daquela expressão brutal, nasceu uma outra mais reduzida: “Sangue, suor e lágrimas”, e que, entre tantas apropriações, deu nome ao poema “Fado Sangue, suor e lágrimas” [P9122] do camarada Manuel V. Moreira, da CArt 1746, nosso antepassado nas lides da Ponta do Inglês e do Xime - 1967/69, e escrito, segundo creio, em 20Dez1968, no Xime.

Em suma, com o decorrer dos anos, o Poder [pois é ele que decide sobre estas e outras matérias] continua a ser cego, surdo [ou faz de conta!]… e é teimoso, até que o “cordão”… se parte e se desfaz.

Dito isto, avancemos para o ponto seguinte, apresentando mais algumas imagens referentes ao enquadramento geográfico onde nasceu o “Destacamento da Ponte…” e o modo de vida de um tempo organizado em interface com outros tempos, onde a natureza de cada tempo influenciava o outro que vinha a seguir.


2. O Contexto do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma

Foto 27 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma] – imagem aérea dos espaços circunvolventes às duas Pontes: a velha danificada em 28/29Mai1969, a cima, e a nova construída pela empresa TECNIL e inaugurada no início do ano de 1972, paralela, a baixo.

O rectângulo a vermelho corresponde à área onde foram construídas as primeiras instalações de apoio aos sucessivos contingentes militares para ali enviados, vulgo abrigos, concebidos a partir de buracos abertos no chão e alinhados entre si, virados para a mata/o mato.

É de referir, em nome da verdade, que o camarada Carlos Marques Santos e o efectivo do seu Gr Comb (o 3.º), da CArt 2339, sediada em Mansambo, e que liderou, foram os primeiros habitantes daquele território.

A imagem de fundo é de Humberto Reis [P12647], com a devida vénia.

Foto 28 – Estrada Xime-Bambadinca [Pontes do Rio Udunduma - 1973] – As duas pontes vistas de frente e o Rio Udunduma. Bambadinca fica para a esquerda e o Xime para a direita.

Foto 29 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – Imagem longitudinal da estrada nova, à esquerda, e a velha, à direita. Ao fundo fica Bambadinca, a quatro quilómetros, e à esquerda a estrada termina no Cais do Xime, localizado a sete quilómetros, em cujo Aquartelamento, à data, esta instalada a CCAÇ 12.

Foto 30 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – Imagem da estrutura da nova ponte.

Imagens [postal] dos contrastes no roteiro triangular: Bambadinca – Xime – Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, entre 1972/1973. 

Bambadinca, sede de Batalhão, era o local identificado do “ar condicionado”, onde tudo estava muito limpinho e arranjadinho… O Xime foi o destino inicial da CART 3494, onde permanecemos treze meses: de finais de Janeiro/1972 a início de Março/1973 e onde vivemos muitas emoções… O Destacamento da Ponte foi um tempo e um espaço, e um modo de vida… pouco/nada digno, mas que acabou por ser superado com alguma criatividade.

Foto 31 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – Imagem de um plano de água do Rio Udunduma, procurando-se identificar potenciais locais de “armadilhas” e outros de risco efectivo…

Foto 32 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – População do Aldeamento A/D de Amedalai que ali se deslocava diariamente para lavar roupa e fazer a sua higiene pessoal. Ficava a 1 km [+/-], na direcção do Xime. Estávamos, com efeito, na Estação das Chuvas… o caudal do rio era, naturalmente, maior.

Foto 33 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - 1973] – O mesmo da legenda anterior, reforçada com a presença do camarada Joaquim Cerqueira, para compor o enquadramento.

O Cerqueira, como era conhecido, foi o militar da CArt 3494 que nas saídas para o mato, no Xime, era quase sempre o último a transpor o arame farpado e, naturalmente, o último a chegar ao Aquartelamento. Por isso, vastas foram as vezes que lhe dissemos para ter cuidado, pois um dia poderia ser apanhado à mão. Felizmente que não lhe aconteceu nada. Um abraço para ele.


3. O Tempo de novas Emoções versus Tensões

O dia 13 de Setembro de 1973, 5.ª feira, estava a ser semelhante à grande maioria dos já contabilizados, até então, no Destacamento da Ponte. Porém, deixou de o ser quando no exterior dos buracos, aos quais se chamavam “abrigos”, o pessoal se organizava para superar mais uma noite, depois de ter ingerido a terceira refeição da jornada: o jantar.

O sol já se tinha escondido no horizonte e a claridade do dia diminuía a cada minuto. O equipamento que nos auxiliava na visão de proximidade [petromax] estava a ser preparado. E eis senão quando a nossa atenção mudou de sentido por efeito de mais um “festival pirotécnico”, pleno de luz e som, que se apresentava à nossa frente. Rebentamentos e rajadas de kalashnikov, também conhecidas por “costureirinhas”, entravam pelos nossos ouvidos, provocando um natural aumento do ritmo cardíaco. Não vinham na nossa direcção [por enquanto!], mas não estavam muito longe. Quem estaria, naquele momento, a “embrulhar”? Era a pergunta mais banal naqueles momentos dramáticos.

Como o som dos rebentamentos tinham níveis diferentes, muito provavelmente estaríamos perante vários ataques em simultâneo na direcção do Xime. E nós…? O que fazer naquelas circunstâncias…? Iríamos, também, ser contemplados com uma visita relâmpago…? Estas e outras interrogações nos surgiram no pensamento… E agora o que devo fazer… na qualidade de líder [chefe] do Grupo… com apenas doze elementos.

Lidar com ele, entre emoções e tensões, aliás como acontece com todos os Humanos que estão em situações complexas, como foi o nosso caso no CTIG… e como serão certamente em todas as guerras, independentemente dos lugares.

Sei/sabemos hoje, no quadro teórico das neurociências, por exemplo, que o conceito emoção traz à mente uma taxonomia de seis emoções ditas primárias ou universais; alegria, tristeza, medo, cólera, surpresa ou aversão. O rótulo emoção também tem sido aplicado por impulsos e motivações e a estados de dor e prazer.

Como já tinha estado em situações francamente mais difíceis, como já dei conta nas narrativas sobre as duas emboscadas na “Ponta Coli” [P9698; P9802 e P12232] e a do “Naufrágio no Rio Geba”, em 10Ago1972 [P10246], ou ainda nas várias flagelações sofridas pelo colectivo da CART 3494, no Aquartelamento do Xime, durante os treze meses que aí permanecemos, procurei/procurámos, em função do quadro que estávamos a observar, manter o melhor autocontrolo possível.

Para saber algo mais concreto, recorremos ao único instrumento de comunicação aí existente – um rádio emissor/receptor AVP1 – mas sem sucesso. Ruídos e interferências… e mais ruídos… e mais interferências… até que desistimos. E os rebentamentos continuavam ali tão perto ajudando a iluminar a noite… que já o era.

Largos minutos depois surgiram, ao longe, as primeiras viaturas militares vindas do lado de Bambadinca, o que nos permitiu entender o contexto com mais tranquilidade. Mas, como elas não pararam na Ponte… que “cena” estaria a acontecer, na medida em que a duração do[s] ataque[s] levava já um tempo francamente excessivo em relação a situações anteriores?

Por exclusão de partes, chegámos a conclusão de que o ataque mais próximo de nós seria no Aldeamento em Auto-Defesa [A/D] de Amedalai, situado a escassos mil metros [+/-]. O outro, muito provavelmente, seria no Aquartelamento do Xime, onde estava agora a CCAÇ 12. E bateu certo!

Essa noite foi, como seria de esperar, passada ao relento e mais uma em “branco” num cenário de Lua Nova; escura como breu. Porque não abandonámos o nosso contexto, os relatos acima correspondem, tão só e apenas, ao que sentimos e vivemos naquela noite. Porém, para completar esta ocorrência histórica, recorremos ao que se encontra expresso na publicação sobre a História do BART 3873. Eis a sua transcrição na íntegra:

“Em 131835SET73 [a hora não corresponde aos meus registos; seria mais tarde!], o Xime e Amedalai são flagelados simultaneamente durante 15 e 45 minutos respectivamente, por numeroso grupo IN. Sobre o 1.º, o inimigo utilizou R.P.G, Morteiro 82 e Canhão s/Recuo. Sobre o 2.º, R.P.G. e armas automáticas. 1 GrComb da CCS/BART 3873 e 2 viaturas do Pel. Rec. Daimler 8681, acorreram em socorro da A/D de Amedalai, sofrendo uma emboscada na Estrada Xime/Bambadinca. NT e Pel Mil. 241 (Amedalai) sem consequências, bem como os civis. Houve apenas a registar o incêndio de 2 moranças daquela A/D.

O inimigo deu mostras de maior agressividade nas referidas flagelações, ao prolongar a sua acção contra a A/D por três quartos de hora, sabendo que o acesso das NT a Amedalai seria facilitado pela estrada asfaltada e proximidade de Bambadinca e Destacamento da Ponte do Rio Udunduma. As forças IN, provenientes do Poindon/Ponta do Inglês, vinham reforçadas pelo grupo de Artilharia do Quinara” [pp 119/120].

Termino esta terceira narrativa sobre o “Destacamento da Ponte…” dando conta de um facto omisso na História da Unidade relacionado com a imagem abaixo.

Foto 34 – Estrada Xime-Bambadinca [Aldeamento A/D de Amedalai a 1 km do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma] – Estado em que ficou uma Daimler na sequência do ataque.

Porque pertenço à última geração de ex-combatentes que viveu, conviveu e sobreviveu no contexto do Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, tenciono voltar a este tema, numa próxima oportunidade, dando continuidade ao seu aprofundamento histórico, divulgando outras peripécias enquadradas por novas imagens.

Estes meus relatos históricos poderão ser, de facto, os últimos, na medida em que, se a memória não me atraiçoa, o contingente da CART 3494 ali destacado, foi substituído, em Fevereiro/74, por um PCN, como, aliás, acontecera em situações anteriores.

Não é crível, por isso, saber-se o que, entretanto, aí aconteceu até ao 25 de Abril.

Obrigado pela atenção!
Um forte abraço para todos.
Jorge Araújo.
09.Fev/2014.
____________

Nota do editor

Vd. Postes anteriores da série de:

10 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12565: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte I) (Jorge Araújo)
e
15 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12586: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte II) (Jorge Araújo)

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4699: Histórias de José Marques Ferreira (3): Um fado no silêncio da madrugada


1. Mensagem de José Marques Ferreira, que foi Soldado Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, com data de 15 de Julho de 2009, com mais uma curiosa e divertida (para o envolvido não o deve ter sido muito) estória passada na sua companhia:


Camaradas;

Ingoré, ambiente de guerra.



Já aqui disse que a minha guerra na Guiné foi mais turismo e pó, que se entranhava nas narinas, na pele, na roupa e em tudo quanto era sítio, do que bombardeamentos, emboscadas (salvo uma “brincadeira” de que não sabemos as origens e que um dia, se se justificar, contarei) e tiros, que, felizmente, nos passaram ao lado. Nem sequer ouvimos tiros (os do IN claro).

Vá-se lá saber porquê. Estávamos lá e não fomos “incomodados”, ao passo que outros camaradas, não podem, absolutamente, dizer o mesmo.

Mas, mesmo assim a Guiné, como por aqui se diz, também foi sentida, vivida, com paixão, pelas coisas boas, porquanto também a nossa companhia, sem tiros, esteve na terreno a ajudar a construir a paz…

Parece conveniente justificar é que as populações – mais uma vez as populações – foram sempre a nossa preocupação, respeitando as suas vidas, os seus modos de viver e as suas necessidades, sem intromissões no que genuinamente lhes pertencia… os seus hábitos, costumes, crenças, etc., etc.

Sempre houve, aquilo que se convencionou chamar, na altura, a acção psico-social.

Isto quer dizer que, aquela gente, necessitava de nós, nos momentos maus porque passaram, e nós necessitávamos dela para o nosso equilíbrio psíquico, isto é, permitir-nos ter sempre presente a abismal diferença entre a guerra e a paz, entre a vida e a morte.

Enfim, desviei-me um pouco da história de hoje. Vamos a ela.

UM FADO NO SILÊNCIO DA MADRUGADA

Aquilo a que se chamava “aquartelamento”, em Ingoré, nem iluminação eléctrica tinha, luz só a dos petromax. Chegou a haver electricidade durante um ou dois meses, até os geradores “pifarem”, de tal modo fatalmente (desconheço os motivos dos “pifos”), que nunca mais tivemos iluminação eléctrica.

Havia segurança montada, sob uns cibes espetados no chão e com os quais se fez uma torre de vigia, não sei para quê, pois um bazucada prostrava aquela treta e o respectivo pessoal num instante (apesar disto dava algum jeito e alguma imagem de segurança).


De acordo com o local havia um esquema de segurança, que incluía um posto de vigia, situado mesmo nas traseiras do edifício, onde dormia o nosso comandante da companhia (façam-me o favor de não serem maliciosos).

Certo dia, o camarada que ali cumpria a seu turno de serviço, às tantas da madrugada (que bonita canção alentejana dava esta cena na madrugada de Ingoré) resolveu, àquela hora imprópria, cantar um fado.

O que eu pensei de imediato, quando me contaram o sucedido, foi que o “desgraçado” recorrera a este subterfúgio, para “camuflar” o alívio de algum sonoro “flato”, que o estaria a incomodar.

O que é certo, é que o “artista” pôs-se a cantar, já não sei que fado, mesmo sem acompanhamento à viola ou à guitarra. Imaginei os gestos, dedilhando a G3, em substituição dos ditos instrumentos. Não sei se foi assim, mas calculo que pouco menos terá sido...

O que eu sei é que a sua voz, melodiosa ou não, acordou o nosso comandante.

Este, não gostou mesmo nada de ouvir cantar o fado àquela hora da matina, pelo que, não esteve com meios ajustes e toca de, na Ordem de Serviço que se seguiu, sentenciar, sem apelo nem agravo, uns dias de detenção para o rapaz (é verdade detenção na Guiné, meus amigos!), como prémio para o tom “afinado” com que acordou o capitão da companhia!

Aqui sim, é caso para dizer: Triste fado, triste sina…

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira


Foto: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

sábado, 28 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P28: Um ataque a Sare Banda (1968) (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, coronel (DFA) na situação de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967):

Sare Banda, como podem ver pelo mapa que já vos enviei da zona, estava perto de Sinchã Jobel (importante base do PAIGC, e muito bem equipada, como é claro pelo material que deixaram), e é natural que fosse atacada.

O alferes morto foi o Carlos Alberto Trindade Peixoto. O outro morto foi o Furriel Raul Canadas Ferreira. Mas as circunstâncias da morte deles não estão devidamente relatadas.

Foi assim: este, como todos os destacamentos da CART 1690, não tinha luz eléctrica, nem mesmo um miserável gerador. Eles estavam os dois numa tenda a jogar às cartas, com um petromax aceso (depreende-se, aliás, do relatório as péssimas condições de instalação). Para os guerrilheiros foi muito simples, foi só apontar o RPG2… e, mais uma vez, como vêem, a tentativa de entrar no destacamento. Não vos mando fotografias de Sare Banda porque não tenho.


"Um ataque a Sare Banda. 8 de Setembro de 1968:


"Desenrolar da acção:

"1. Acção inicial do IN: a 8, pelas 21h00, um numeroso grupo IN, estimado em cerca de 100 elementos instalados em semicírculo nas direcções NE-SW e SE-NW, atacou o destacamento de Sare Banda com o seguinte armamento:

-Canhão s/recuo

-Morteiro 82

-Lança granadas RPG-2

-Lança granadas P-27 Pancerovka

-Metralhadoras pesadas

-Metralhadoras ligeiras

-Armas automáticas

-Armas semi-automáticas


"O ataque foi iniciado com um tiro ao canhão sem recuo e dois Lança Granadas Foguete, dirigidos contra a cantina e depósitos de géneros que atingiram mortalmente o Alferes Comandante do Destacamento e um furriel e provocaram ferimentos numa praça. Estes tiros iniciais do IN atingiram e destruíram ainda o mastro da antena horizontal do rádio, ficando assim o destacamento de comunicações cortadas com toda a rede de Geba.

"No seguimento da acção, o IN atingiu com uma granada incendiária uma barraca coberta por 2 panos de lona de viaturas pesadas, onde costumavam dormir vários elementos das NT por não caberem todos nos abrigos, o que provocou a destruição de todo o material lá existente e iluminação das posições das NT.

"2. Reacção das NT:

"2.1. Das forças do destacamento:

"Apôs a surpresa inicial dos elementos que se encontravam fora dos abrigos, estes correram para os mesmos e reagiram imediatamente ao ataque IN. Não obstante terem ficado sem o seu Comandante e sem comunicações logo aos tiros iniciais, nunca perderam a calma e o moral, opondo tenaz resistência aos intentos do IN.

"Refira-se que logo no início da reacção as NT atingiram com tiros de morteiro a guarnição IN do canhão s/recuo, calando-o definitivamente e, em determinada altura do ataque, repeliram energicamente uma tentativa de penetração de elementos IN ao destacamento, que para o efeito haviam conseguido chegar junto da rede do arame farpado.

"Essa reacção, feita só à base de tiros de espingarda G-3 e granadas de mão em virtude de se ter avariado o Lança Granadas Foguete, foi verdadeiramente eficaz e decisiva para o desenrolar dos acontecimentos, pois o IN foi obrigado a recuar deixando no terreno 3 mortos além de armamento e arrastado consigo outros elementos feridos e mortos.

"O IN, sempre perseguido pelo fogo das NT, recuou cerca de 200 metros instalando-se entre Sare Banda e Sinchã Sutu donde continuou a flagelar o destacamento até cerca das 22H30 (1 hora e 30 minutos depois do início do ataque, após o que desistiu dos seus intentos, retirando definitivamente.

"2.2. Das forças de Geba (CART 1690):

"Em virtude das péssimas condições atmosféricas não foram ouvidos em Geba os rebentamentos de forma a poderem ter sido localizados.

"Refira-se ainda que o facto do destacamento de Sare Banda ter ficado sem comunicações logo no início do ataque, só permitiu que em Geba se tivesse conhecimento do sucedido cerca das 09H02 do dia 9 de Setembro de 1968, através de dois praças do destacamento que haviam vindo a pé voluntariamente comunicar a ocorrência.

"Prontamente saiu de Geba uma coluna de socorro que, ao atingir Sare Banda, às 05H45, fez um reconhecimento nos arredores, seguido de batida de madrugada, mas já não conseguindo contactar com o IN, que havia retirado na direcção de Darsalame e dirigindo-se para Sincã Jobel.

"Resultados obtidos:

"Baixas sofridas pelo IN; 8 mortos confirmados; muitos feridos sendo possível que hajam mais mortos devido aos rastos de sangue encontrados no carreiro de retirada do IN.

"Material capturado ao IN:


-1 Espingarda semi-automádica Simonov cal.7,62mm

- 1 Espingarda automática G-3 7,62mm

- 1 Granada de canhão s/recuo

- 2 Granadas de lança-granadas foguete

- 1 Granadas de morteiro 82

- 2 Granadas de mão ofensivas RG-4

- 8 Carregadores de Met. Lig.

- 2 Fitas de Met. Lig.

- 2 Facas de mato

- 2 Bolsas p/transporte de munições

- 2 Cantis

- Diversas munições de armas aut.

- Bolsa de medicamentos com o seguinte: Streptomycin. Sulphite-ampolas de 5.000.000 (3 Frascos); éter ( 1frasco; mercúrio cromo (1 frasco); bálsamo (1 frasco); Injecções (desconhecidas) (10 ampolas); Aspirinas em comprimidos (178 carteiras):; madexposte em comprimidos (96); Chinim Sulfur (comp) (6 embalagens de 5); Codemel (carteiras de 10) (5 Comprimidos); adesivo (1 rolo); algodão cardado (1 maço; 1 garrote; 20 mLigaduras de gase de 10 cm x 5cm; 1 seringa de plástico c/agulha". l

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15576: Notas de leitura (793): "Testemunhos de Guerra, Angola, Guiné e Moçambique, 1961-1974", publicação que acompanhou uma exposição que se realizou no Museu Militar do Porto entre Abril de 2000 e Março de 2001 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Temos os muitos livros, artigos em jornais e outras publicações, as conferências, as sessões solenes, os debates evocativos.
Com esta extensão e detalhe, não conhecia uma exposição tão abrangente das três frentes na nossa guerra. O Eduardo Magalhães Ribeiro forneceu material alusivo sobre a Guiné, entre outros. Já lá vão quase 15 anos, os estudos evoluíram muito e é questão para perguntar se essas exposições não deviam continuar, pensadas sobretudo na população geral que vive arredada de um conflito de que não se fala em casa e de que não se tem eco na comunicação social, com honrosas exceções.

Um abraço do
Mário


Testemunhos de Guerra, Angola, Guiné e Moçambique, 1961-1974

Beja Santos

“Testemunhos de Guerra” foi o título da publicação que acompanhou uma exposição que se realizou no Museu Militar do Porto entre Abril de 2000 e Março de 2001. A publicação continua à venda no Museu e custa 20 euros. Inclui: tábua cronológica com os momentos mais marcantes dos treze anos da guerra, questionamento do Colonial e do Ultramar e das atividades do respetivo ministério; apresenta diferentes protagonistas, como Kaúlza de Arriga, Marcello Caetano, Costa Gomes, Adriano Moreira, Bethencourt Rodrigues, Oliveira Salazar e António de Spínola; o Coronel David Martelo escreve sobre os antecedentes da guerra colonial, seguem-se imagens das três colónias onde houve conflito; destaca-se o massacre de 15 de Março, em Angola; o Coronel José Santa Clara Gomes apresenta as nossas tropas e os nossos meios, reproduzem-se os guiões das unidades; seguem-se testemunhos sobre a vida em aquartelamento, reproduzem-se imagens de Fulacunda; apresentam-se os movimentos de libertação e os líderes, temos um conjunto avultado de imagens com os seus equipamentos e dispositivos.

O Coronel Arnaldo Costeira escreve a anteceder o capítulo dedicado aos combates um texto sobre o exército português e o seu comportamento na guerra, reproduzem-se alguns parágrafos:
“Talvez se escamoteie sistematicamente a verdade sobre a responsabilidade dessa intervenção e se atribuam culpas a quem as não tem, de facto. E o que é ainda mais grave é que se esqueçam as centenas de milhares de homens que, no cumprimento constitucional do dever, marcharam para a frente onde viveram sacrifícios inauditos, privilegiando-se a heroicidade de escassas centenas de cidadãos que fugiram aos seus deveres, entre as quais se contavam sem dúvida alguns resistentes políticos, e que mais tarde se misturariam com os verdadeiros resistentes.
Nenhum país até então conseguira quaisquer resultados numa guerra subversiva. Nem franceses nem norte-americanos deixaram de ser derrotados na Indochina, com potencial de combate poderosíssimo, embora com forças apoiadas por países importantes como eram a União Soviética e a China. Portugal, num território vastíssimo, com meios limitados pelo bloqueio dos países amigos, superou as dificuldades pela grandeza dos seus homens, pela dedicação e espírito de sacrifício que o português sempre patenteou em toda a sua história.
Foram anos de sofrimento e luta sem quartel. Os militares do Exército estabeleceram uma quadrícula invejável, erguendo desde os alicerces as parcas estruturas onde viveriam durante meses que pareciam não ter mais fim. Viveram como toupeiras durante meses a fio, uns após outros, passando meses sem conta, nos primeiros aos de guerra, apenas com o petromax aguardando que o escuro das noites os não surpreendessem. Passaram sede e contactaram com esse tipo de alimentação desidratada que deveria fazer inveja aos milhões que nem sequer sabem que isso existe porque morrem de fome diariamente”.

Temos depois uma sucessão de imagens com viaturas em progressão em bolanhas, em picadas, colunas de jipes, reações em emboscadas, levantamento de minas, imagem de armas. As tropas especiais mereceram destaque nesta exposição: rangers, fuzileiros e paraquedistas.

Igualmente se destacam as condecorações, as cerimónias de homenagem aos mortos, telegramas a informar a família da morte de militares, a criação da ADFA e a lista daqueles que tombaram pela pátria.


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Nota do editor

Último poste da série de 30 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15554: Notas de leitura (792): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: III (e última) parte

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21157: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (10): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Temos aqui mais uma porção dos primeiros meses no Cuor, Annette Cantinaux insiste em saber mais pormenores, chegará mesmo ao requinte de pedir informações sobre a fauna e a flora, pede informações sobre Malam Soncó, aquele régulo do Cuor que não se deixou intimidar pelas ameaças do PAIGC, pede ao jovem alferes que lhe descreva o quotidiano, as obrigações, como subsiste a população, não hesita em perguntar a natureza da guerra, faz comentários em função do mapa do Cuor, das movimentações do autor daquelas linhas que ela recebe regularmente na Rua do Eclipse.
Da curiosidade em saber mais, a correspondência já não esconde que aquelas duas figuras da ficção que se acordara num almoço de cantina, na Rue Froissart, meses atrás, estão numa rota de aproximação, não há carta, não há telefonema que mate a sede de um reencontro em Bruxelas, e quanto mais cedo melhor.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (10): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette, fiquei felicíssimo quando ontem à noite me disse que está a pôr num caderno estes primeiros meses da minha vida na Guiné. Já que pretende um registo pormenorizado do que a minha memória alcança, recapitulo e continuo, a todas as dúvidas que subsistirem, a minha querida amada belga de romance pede esclarecimento, que haja toda a transparência na Rua do Eclipse…
Entrei no Cuor em 4 de agosto de 1968, já contei a profunda inquietação de ter dois destacamentos com segurança precária, tanto Finete como Missirá, abrigos apodrecidos, infraestruturas como o refeitório ou o balneário num estado deplorável, não havia gerador de eletricidade, trabalhávamos com petromax para garantir uma curta visibilidade à volta dos aquartelamentos. O régulo do Cuor ofereceu-me uma morança de piso térreo, pôs-se brita, pintaram-se os ferros da cama que tinha pertencido a um eminente cartógrafo que por ali andara a trabalhar em plantações de palmeiras de Samatra, vi o fruto do seu trabalho dias depois de chegar a Missirá, patrulhámos a região de Gambiel e eu vi um palmar paradisíaco, árvores altíssimas, quase justapostas, uma natureza frondosa atravessada pelas águas murmurantes do rio Gambiel, nesse mesmo dia vi uma linda ponte de madeira destruída pelos guerrilheiros, assim se impedindo a possibilidade de circular entre Bafatá, Geba, Missirá, Enxalé, Porto Gole, até Bissau. Foram dias, semanas, direi sem hesitação que foi um período de adaptação que durou cerca de três meses até conhecer o Cuor, ficando a uma escassa dezena de quilómetros de Madina/Belel, região onde vivia um grupo significativo da população civil e, supunha-se, um contingente militar de pequena dimensão, 60 homens com espingardas metralhadoras, bazucas e morteiros. Ninguém me informava sobre itinerários percorridos pelas gentes do PAIGC, demorei esse tempo a encontrar provas que havia circulação para lá do Geba, para localidades que davam pelo nome de Mero e Nhabijões, encontrei trilhos, granadas e carregadores de armas perdidas, e a partir destas provas iria começar um sangrento confronto, com perdas para ambas as partes.

A Annette pergunta-me como é que eu me dava com a população e com os meus soldados. Começo por lhe falar do relacionamento com os meus militares. Como se recordará, o meu Pelotão de Caçadores Nativos e a responsabilidade pelos dois pelotões de milícias estava a cargo de um furriel, com muito boas provas dadas no campo militar, vim a verificar no terreno. Mas entre nós houve imediatamente uma grande tensão.
Zacarias Saiegh
Logo na primeira noite, Zacarias Saiegh convidou-me a visitar o seu abrigo, queria oferecer-me um uísque, eu estava com o estômago praticamente vazio, tinha simulado à hora de jantar uma indisposição, pura mentira, repugnara-me a galinha quase crua e o arroz espapaçado, comera avidamente uma papaia e comprara uma lata de leite achocolatado e um pacote de bolachas. No abrigo de Saiegh deparei-me com uns frascos que me lembraram os nossos laboratórios escolares de Ciências Naturais e de Física, e com o ar mais calmo deste mundo Saiegh explicou-me que gostava de trazer relíquias quando nas operações ficavam guerrilheiros mortos, trazia um dedo, uma orelha… Sem erguer a voz, mas falando-lhe com firmeza, dei-lhe conta que tais práticas tinham acabado neste dia, viera para comandar e combater segundo normas civilizadas, em circunstância alguma consentiria em comportamentos de barbárie. Iniciava-se aqui um estado de afrontamento, passámos a ter relações respeitosas e pouco mais. No final do ano, Saiegh pediu o fim da sua comissão, voltou para Bissau, confessou-me mais tarde que não se adaptara à vida civil, assim que soube que o Comandante-Chefe, Spínola, estava a preparar a criação de uma primeira Companhia de Comandos Africana ofereceu-se como voluntário, foi promovido a alferes, encontrámo-nos várias vezes em Bambadinca, em 1969, essa Companhia de Comandos estagiava em Fá.
A despeito de tudo o que nos separava, chorei amargamente a sua morte, quando soube que tinha sido fuzilado em Porto Gole, creio que em novembro de 1977.

Deslocação na bolanha de Finete, dia de abastecimento, Zacarias Saiegh sentado no capô do burrinho

Durante este período de adaptação, fora das obrigações inquestionáveis, quis conversar com todos os militares, fossem elementos dos caçadores nativos ou das milícias. Chamara-me a atenção alguém dizer que Paulo Semedo, considerado um exímio apontador de dilagrama, era cristão de Geba. Mordido pela curiosidade, chamei-o à minha morança e conversámos. O seu português era perfeitíssimo, era estudioso, revelava uma calma inquebrantável, uma voz ciciante, um olhar direto, alguém cheio de autoconfiança.

Eu quero que saiba, agora que a nossa intimidade vai crescendo, e dado o dever que assumi com a Annette que deve estar completamente informada de tudo quanto se passou, que jamais esquecerei o dia em que o Paulo Ribeiro Semedo se acidentou. A fotografia que tem aí presente é de alguém a quem a cirurgia plástica escondeu horríveis destruições, o que mais avulta na imagem é o olhar do Paulo, houve um milagre da Oftalmologia, um dos olhos perdeu-se irremediavelmente, é aquele olho de vidro que nos olha fixamente, o outro foi sendo recuperado, daquele globo ocular saíram até pedaços de metal. Então o que se passou para ter havido tão tremendo acidente?

1.º Cabo Paulo Ribeiro Semedo
Um dia, durante um patrulhamento de reconhecimento, na região de Chicri, pode ver no mapa que entreguei, não está muito longe de Mato de Cão, ainda por cima num outro local frondoso que lembra Gambiel, com um palmar parece caminhar para o rio Geba e mais à frente uma mata densíssima. Percorríamos um terreno alcantilado quando o meu guia, o Soldado Cibo Indjai, detetou um trilho, começámos a percorrê-lo, a mata a adensar-se, pouquíssima luz entrava naquela floresta de galeria, caminhámos cautelosamente, procurando sinais de vida, ouvir vozes, mas a quietude era total, nem pássaros, nem javalis, parecia mundo abandonado, e subitamente avisto um grupo que caminha em passo estugado, à frente alguém que traz cofió na cabeça e espingarda a tiracolo, fixei a imagem de alguém que veste uma djilaba amarelada, Cibo Indjai e José Jamanca, que seguiam à minha frente, atiram-se para o lado, eu e aquele homem puxamos pela arma, inicio a fuzilaria, outros elementos atrás de mim avançam prontamente, é um tiroteio atordoador, o grupo que viera porventura de Madina dispersou, deixou o chão cheio de esteiras e sacos de alimentos, procurei iniciar uma perseguição, apanhou-se a arma daquele homem que deve ter conseguido fugir, deixou poças de sangue, aguentou os seus ferimentos e é quando estamos a tentar capturar esse e outros feridos que houve um estrondo medonho, seguida de uma enorme algazarra. Paulo Ribeiro Semedo terá cometido a negligência de ter misturado no seu carregador balas reais com balas fulminantes, ao disparar com bala real o dilagrama, não teve morte instantânea por milagre. Não lhe vou contar por carta os momentos horríveis que se seguiram, deu para perceber o ódio visceral entre guineenses e cabo-verdianos, o que é importante agora contar-lhe é que se salvou a vida do Paulo, chegou todo retalhado, crivado de estilhaços a Bissau, perdeu os músculos do braço esquerdo, braço inerte, em Lisboa salvaram-lhe um olho, recompuseram-lhe os traços da face, iremo-nos encontrar muitas vezes, nunca, repito, nunca, iremos falar do que se passou naquela manhã em Chicri. Talvez porque quando atravessamos aquela linha vermelha entre cá e lá, emerge uma atitude de pudor e profundo respeito sobre a vitória à morte, deixou de ter razão debater os comos e os porquês.

José Jamanca
Uma palavra sobre um amigo muito querido, José Jamanca, um jovem ávido de ler, vinha-me pedir livros, queria conversar, aspirava ser professor, prometi-lhe enviar uma carta para Bissau para ele ser chamado para um curso do Magistério Primário, demorou bastante tempo a resposta, o que permitiu cimentarmos uma estima mútua. Com a independência, perdi o rasto das minhas gentes, mais tarde contarei à Annette o meu regresso, vinte anos depois. Concluídos os meus estudos em Lisboa, ingressei no Ministério da Economia e um dia tive a grata surpresa de ser chamado à entrada, o contínuo anunciava que um senhor chamado José Jamanca me queria ver. Que alegria este reencontro! Depois da independência, o Zé conseguira uma bolsa para tirar em Leninegrado um curso de eletricista, era a sua profissão, na Guiné tinha um baixíssimo rendimento, viera para Lisboa, agora emprego não lhe faltava. Visitava-me com regularidade, e um dia desapareceu. Falando deste meu desapontamento a um outro querido amigo que a Annette irá ouvir falar muitas vezes, Cherno Suane, que fora meu guarda-costas por decisão dele, com o ar mais natural do mundo ele disse-me que o Zé morrera tuberculoso no Hospital da Ajuda. Continuo a contemplar esta fotografia que está no meu escritório e só vejo um homem bom, afável, belíssimo conversador, falando comigo de igual para igual, que desejava singrar, estudando afincadamente, era tão pedagógico que me dava detalhes sobre a montagem de uma instalação elétrica de um prédio que estava em construção no fundo da Calçada de Carriche. Todos os nossos amigos são insubstituíveis, é um lugar comum, é por isso que dói muito esta perda de alguém que pausada mas entusiasticamente queria que eu soubesse como é que a eletricidade se instala nos nossos prédios.

Gostava que a Annette fixasse estas duas fotografias que agora deixo. Este homem que sobraça uma bazuca dos tempos da II Guerra Mundial chama-se Adulai Djaló, mas é conhecido por Campino, faz questão de passear nas horas vagas em Missirá com um barrete de campino que alguém lhe ofereceu. A cobiça por um sem-número de objetos extravasa tudo o que a Annette puser na sua imaginação. Um dia bateu-me à porta o Soldado Mamadu Camará que me disse placidamente que gostava muito de uns sapatos que eu ali tinha, já que eu tinha dois pares de sapatos e só usava botas de lona ou botas de cabedal, perguntava se me podia comprar o par de sapatos a prestações, via-se à légua que ambos tínhamos uma patorra enorme. Desatei a rir, levou o par de sapatos de borla.

Quanto à última fotografia, vou a caminho do Xime, não chega o que faço no Cuor, temos que participar em operações. Neste dia, partimos para chegar a um local que dá pelo nome de Burontoni, uma boa estopada, o guia perdeu-se, andámos meio dia debaixo de uma chuva diluviana, a meio da tarde lá da avioneta recebemos instruções para voltar à base. Pela primeira vez na minha vida, subi para a caixa de um Unimog, e mesmo com a viatura aos saltos dormi uma boa soneca.

Minha querida Annette, não sabe a felicidade que me dá perceber que me entende, me quer acompanhar e que tem muitas saudades minhas, em breve estarei aí, permita-me que não lhe diga quanta alegria sinto em estar consigo. Bien à toi, chère Annette, Paulo Guilherme

 Adulai Djaló, bazuqueiro e grande destroçador de corações das bajudas de Missirá

A caminho de uma operação na região do Xime

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21133: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (9): A funda que arremessa para o fundo da memória