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sexta-feira, 11 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22273: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (56): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Decididamente, aquele início de ano de 1970 começou muito mal, aquele desastre estúpido que vitimou Uam Sambu. Como Paulo recorda Annette, a memória é capaz de reter ao segundo a atmosfera, o ambiente do lugar, a movimentação das pessoas que precede uma inusitada tragédia, e essa mesma memória atira para o abismo acontecimentos de quase tudo o que se passou entre o Natal e o fim do ano. Houve um almoço de Natal com os soldados, a memória aí reteve muito, a negociação com o tendeiro dos frangos assados e da tachada de arroz, sobremesa e bebidas, a alegria esfuziante por todos partilhada. O Pelotão de Caçadores Nativos Nº 52 fora transformado numa agência de entregas, de biscates, de patrulhamentos e emboscadas, é o que hoje se chama um contrato zero, com o telemóvel sempre ao dispor da entidade patronal. Estranhos são os desvãos da memória, que conseguem reter uma oração da capela de Bambadinca a suplicar paz e destreza para evitar mais perdas e danos, umas boas horas antes daquele estúpido acidente em que até um tiro, entre todos aqueles que mataram Uam Sambu, me furou a camisa e que levou o supersticioso Cherno Suane a vender o mito urbano de que eu era digno de ser chamado o N'Baké, o guerreiro que nenhuma bala consegue matar. Assim se forjam as lendas.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (56): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon amour, Aqui vão as últimas notícias, dentro de dois dias aí estou na minha visita de médico para fazer a tal comunicação sobre a presença portuguesa na Bélgica, como já te disse ao telefone será no anfiteatro do belo Espaço Senghor, aderiram sete organizações que se dedicam ao relacionamento entre povos europeus, pedi licença para só ir uma hora antes, exatamente para estar contigo todo este curto período, no dia seguinte ao fim da tarde regresso a Lisboa. Passada esta exultação, a pensar na alegria de te ver, correspondo ao teu pedido de reproduzir o que foi o Natal de 1969 e os acontecimentos funestos passados ao amanhecer de 1 de janeiro seguinte. Não te posso esconder que ainda há uma dor reminiscente, é bem estranho como se praticamente apagou tudo na memória entre o dia 25 de dezembro e os acontecimentos do primeiro dia do ano, já te acostumaste certamente àquela estranha rotina em que eu e dois furriéis andamos a percorrer regulados como se fôssemos uma agência de entregas, em casos excecionais há a previsão de colunas ao Xitole, uma ou outra operação, patrulhamentos em Samba Silate e Nhabijões, ao tempo eram atividades que não matavam mas moía.

Como no ano precedente, chegaram vitualhas natalícias, de novo transportadas por quem vinha de férias e imperativamente tinha de regressar até ao dia 15 de dezembro. Como foram vistas por muita gente em Bambadinca, tive que repartir entre aquelas que se iriam comer na Consoada, a ter lugar na messe de oficiais e aquelas que foram devoradas no almoço com os meus soldados, no tal destacamento infecto da ponte do rio Undunduma.

Aí por 23, arranjei uma nesga de tempo para ir conversar com o Zé Maria da tasca e organizar um almoço com a gente do pelotão e alguns adventícios (caso dos motoristas, de um reparador de viaturas que ia regularmente a Missirá, os maqueiros), era simbolicamente um almoço em família, foi negociação áspera, uma certa quantidade de frangos, uma bruta tachada de arroz, um prato de papaia para cada um, vinho para uns e muita laranjada Fanta para os islamizados. Negociação áspera que o Zé Maria começou por me pedir o couro e o cabelo, tive de me comportar como um negociante árabe. Tudo decorreu numa atmosfera cordial, lembro-me de lhes ter agradecido a companhia e esperava em Deus que os até nove meses que tinha pela frente não nos trouxessem mais infortúnios (e não me atrevi a falar em mortos e feridos), não só lhes agradeci a companhia como lhes louvei a capacidade de sacrifício, a abnegação, o heroísmo. À tarde trabalhou-se, a noite de 24 foi calma, fomos dispensados de emboscadas ou patrulhamentos noturnos, jantei na messe com os meus camaradas, foi noite de tréguas. Por esta altura já estou informado que virá mais um furriel, o Vitorino Ocante e alguns meses mais tarde o sargento Manuel Cascalheira, revelou-se um operacional de primeira água. Vou-me deitar sabendo que tenho quatro dias de suplício na ponte do rio Undunduma, tu já tens aí a fotografia que alguém nos tirou pouco antes do almoço de Natal. Todas as minhas propostas para dar sentido à nossa presença naquele ponto e que passavam por patrulhamentos que se estenderiam até ao fim da tarde foram categoricamente inviabilizados pelo major de operações. Desculpa, querida Annette, não tenho mais histórias sobre aqueles quatro dias na ponte, voltámos, num desses dias que precedeu o fim do ano apareceu por lá o general Spínola, arengou com o comandante, prometeu voltar para ver se estavam a ser cumpridas as suas instruções sobre medidas de segurança. Retive na mente que nesta altura estávamos sem capelão e que na noite de 31, antes de partir para irmos emboscar no Bambadincazinho fui rezar à capela.

Dou-te alguns pormenores sobre o local, ficávamos ao lado da antiga Missão do Sono, o destacamento de engenharia tinha dado material para fazermos um farto U com bidons cheios de terra, era no seu interior que ficávamos em vigilância, a escassos quilómetros do aquartelamento de Bambadinca, assim se considerava que se dava a proteção a partir da estrada de Mansambo. Havia um transporte por Unimog por causa das munições, mas muitos de nós preferiam ir a pé para desentorpecer, já que se passava a noite em cima de uns panos, encostados uns aos outros, onde duas sentinelas em permanência, levávamos rações de combate. Íamos no lusco-fusco, era um entretém ver gente a chegar e a partir para Bambadinca e as tabancas limítrofes de Água Verde, Iero Nhapa, Aliu Jai, Saré Nhado e Queroane. E logo mergulhávamos num silêncio total, pontuado pelo piar das aves e o restolhar dos animais, lá longe a luz esfumada os holofotes. Era nesta inatividade e num quadro de alguma dormência, como eu dizia com bom humor, fazia despacho, era ali no sussurro da noite que eu ouvia pedidos de empréstimo de dinheiro, falava-se no paizinho ou mãezinha doente, choros e mezinhos, dar dinheiro ao irmãozinho que ia para Bolama, pedir dinheiro emprestado ou adiantado é uma constante, com o furriel Pires abordávamos a burocracia que nos esperava na secretaria do batalhão, e assim chegava a prostração e o dormitar. Só que o inesperado soou mais forte. Já estávamos a cabecear quando aí pela meia-noite rebentou um medonho foguetório, pusemo-nos de pé e rapidamente Queta Baldé falou-me ao ouvido: “É o Xime, nosso alfero, estão a embrulhar!”. O pior é que dos lados do Enxalé também se levantou uma tempestade de fogo, manifestações estranhíssimas, fogo para os céus, lembrava pirotecnia. Usei o telefone de campanha, Bambadinca tranquilizou-me, era fogo festivo, tudo para celebrar a mudança de calendário.

Mais umas horas de repouso e despontou o amanhecer. Agora sim, minha adorada companheira, sou capaz de recuperar milimetricamente o nosso levantar entorpecido, a ida atrás de uma árvore para satisfazer uma necessidade, o roncar, a princípio longínquo e depois mais perto, do Unimog conduzido pelo Xabregas (de seu verdadeiro nome Mário Dias Perdigão), vamos arrumando as mantas, os faróis do Unimog aproximam-se, dispõem-se as caixas das munições por baixo dos bancos, a viatura é um Unimog 411, vulgo burrinho, só dá para dez militares sentados, os outros regressam a pé. Subo para o banco ao lado do Xabregas, há quem se encavalite no cimo da caixa, é Uam Sambu que diz a Quebá Sissé, o nosso cozinheiro de Missirá, de andar peculiar, desengonçado, costas abauladas e mãos estranhamente descidas, mas sempre sorridente: “Sobe Doutor, dá cá a mão!”. Quebá Sissé sorri, é menos uns quilómetros que vai fazer a pé, e o sossego do amanhecer é violado pelo estrondo de uma rajada de G3, atabalhoado procuro pôr-me de pé, ouvem-se gritos e imprecações, um coro desorientado de protestos, e com todo o seu peso Uam arrasta-me para o fundo do banco, enterro-me no assento com um homem que golfa sangue, camisa encharcada, sinto que todo este líquido se me cola ao peito, Uam é a máscara do sofrimento, os lábios num esgar de dor, o olhar a esmorecer, não há que hesitar, o burrinho corre à desfilada, passamos por grupos de soldados atónitos, vou a correr tirar da cama o Vidal Saraiva, ele olha-me perplexo, pensa que o ferido sou eu, tenho sangue do pescoço à cintura, vamos a correr para a enfermaria. Já deu para perceber como se dera o mais estúpido dos acidentes: o infeliz Doutor ao subir metera o dedo no gatilho, que estava em posição de fogo. Enquanto o Vidal Saraiva tenta desesperadamente salvar Uam, chama à parte o Domingos Silva, temo que haja retaliações ao Doutor, ser mais pacífico não conheci na Guiné, ninguém lhe vira um azedume, pedi ao Domingos para ir imediatamente explicar a toda a gente o que se passara, queria o Doutor fora de perigo, que o levasse imediatamente para casa do Sr. Rendeiro, a meu pedido, que este o mantivesse resguardado e escondido qualquer curioso. Quando regressa à enfermaria, o Vidal Saraiva, com o seu bem vincado acento nortenho deu-me conta da gravidade da situação, Uam só escaparia por milagre, tinha órgãos vitais atingidos, pulmões e rins bem lesionados, já tinha sido pedida uma evacuação Y, chegou felizmente com rapidez uma avioneta DO, o pelotão inteiro acompanha o nosso mansoanque várias vezes sinistrado, na maca Uam estará inconsciente, ter-lhe-ão dado morfina, não deixo de lhe ir falando, que se restabeleça rápido e bem, é amigo que nos faz falta. E recordo, minha adorada Annette, os gritos dementados da mulher de Uam, Binta, a minha lavadeira de Missirá, trouxe coro, ouve-se um alto carpir, procuro tranquilizar Binta, há que ter esperança. Pedi ao segundo comandante para nos pôr rapidamente em movimento, passámos a tarde em Galomaro, levámos depois traquitana para Madina Bonco, e exigi que nessa noite voltássemos à Missão do Sono.

Sim, começava muito mal 1970. E na tarde do dia seguinte chegou-nos a notícia de Bissau: Uam finara-se no bloco operatório. Na lamechice, fui para o meu quarto e garatujei um poema que começava assim: “Canhoto (cachimbo) chupado, preto mansoanque,/ Manto de Navarra (Uam, nas horas vagas, punha um manto garrido, com as cores daquela região de Espanha), um gamo antigo…”. Não te quero aborrecer mais com este lirismo pindérico. É muito tarde, tenho amanhã um dia cheio, passará rapidamente, só pensar em ti. Nem penses em alterar a tua vida para me ires buscar ao aeroporto, vou direito à Rua do Eclipse. É assim a nossa vida, e não me canso de agradecer o amor que me dás e a constância da felicidade que me acompanha a toda a hora. Bisous, bisous mil, Paulo

(continua)

Mon amoureuse, dizes-me com insistência que as imagens que te envio te dão vida, enchem-te a casa, são uma das consolações da minha ausência. Esta pode parecer-te um tanto inexpressiva, mas tem a ver com um passeio que deste em Lisboa, tínhamos visitado o Museu Nacional do Azulejo, tu estavas surpreendida quando te disse que Portugal era a principal potência mundial do azulejo, confirmaste. Depois passeámos pela velha Lisboa Oriental. E em Marvila apontaste para o alto da igreja, com admiração, por tão belos azulejos que mal se podem ver. Tirei fotografia, espero que te lembres do dia tão feliz que vivemos

É a escultura que mais me fascina de toda a arte da Guiné. Tu viste em casa uma muito parecida, chama-se Ninte Kamatchol, é obra-prima da escultura nalu, diz-se que afugenta os maus espíritos, pois eu espero que a nós os dois só traga grandes venturas

Mon adorée, comecei a fazer programas de televisão em 1978, a televisão portuguesa facultou-me um estágio na TV e rádio da BBC, aprendi muito, sobretudo a aperceber-me que o consumo é um indicador de civilização e cultura, o que é importante num país pode ser irrelevante noutro, e naquele tempo alastrava penúria, havia que falar direto ao exercício da cidadania. O meu primeiro programa era dedicado exatamente à realidade britânica e indiciadas situações que podíamos adaptar. Em Saint James Park houve uma curta filmagem, alguém fotografou. Meses depois começava o meu primeiro programa de televisão, 10 milhões de consumidores, entre as 19h30 e as 20h

Uma noite, em 1994, fui ao velho Teatro Municipal de Almada ver a peça de Samuel Beckett "Os Dias Felizes". Dizem que é o maior quebra-cabeças para qualquer encenador, este gigante da literatura, como escreveu o encenador Roger Blin, “constrói frequentemente frases sem verbo, muito curtas, com uma única palavra seguida de um ponto, depois de uma palavra que contradiz a precedente, ou a confirma, ou acrescenta uma nuance”. Adorei o desempenho da atriz Teresa Gafeira, dentro de um montículo de areia, interpretação sublime. Tinha acabado de preparar um livro para a Bertrand, pedi à atriz licença para usar a sua imagem, licença concedida. Pode comparar as duas fotografias, gosto muito delas

Falei-te do John Yong, aquele jovem engenheiro de mármores que encontrei à porta do Museu Vaticano, na antevéspera no Natal de 1985, tudo rocambolesco, o jovem foi roubado duas vezes, lá andámos pela companhia aérea e pela embaixada a arranjar os papéis indispensáveis para ele regressar antes do Natal a Selangor. Quando me escreveu a devolver o dinheiro mandou-me esta fotografia que me tirou na Praça do Vaticano. Como tu gostas muito de recordações minhas e de tempos em que não me conhecias, aqui vai
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22252: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (55): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 19 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22018: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (44): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Tudo leva a crer que os cinquentões enamorados tiveram umas férias da Páscoa a preceito. Houve mau tempo durante dois dias, mas não foi suficiente para os desmoralizar, foram ver exposições, andaram à cata de surpresas em alfarrabistas e adelos. Aqui não se fala numa reunião de trabalho onde houve discussão acalorada entre os diretores da associação, mais adiante se explicará porquê. Annette anda mordida pela curiosidade, pede imagens antigas, talvez seja uma forma de ela se querer identificar com coisas do passado neste amor transbordante. É ciosa em querer compreender tudo quanto está a pôr em ordem na comissão do Paulo, houve que remexer numa ferida, as dolorosas recordações de uma tragédia que ocorreu em Canturé, no regulado do Cuor, em 15 de outubro de 1969, tudo tão doloroso que ainda havia a mágoa de não ter agido com a devida solicitude em saber da sorte dos seus sinistrados depois da guerra, Paulo sente que falhou aos cânones da camaradagem, nunca nos largámos nas horas amargas, Paulo seguiu para a frente, e hoje continua a sofrer pela incúria praticada.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (44): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette adorée, a viagem para Lisboa correu lindamente e no horário previsto, vim diretamente para o trabalho, comi uma sopa e dois pães, não tive mãos a medir na elaboração de papelada e na organização da agenda para as próximas semanas. Por muito que te tenha agradecido as férias encantadoras que vivi a teu lado, quero deixar por escrito todo o meu sentimento de gratidão, o dia de Páscoa foi inesquecível, os teus filhos muito afáveis e adorei conhecer a tua irmã por adoção, os esclarecimentos que ela me deu sobre a tua infância e juventude enterneceram-me, bebi-lhe todas as palavras, assim se desenhou no meu espírito uma Annette voluntariosa, a lutar pela sua autonomia, conhecedora de um dom especial para as línguas e pelo gosto de viajar, algo que é obrigatório para ter sucesso na vida de intérprete internacional.

Cinjo-me, tão-só nesta carta, ao que tu me pediste quanto a fotografias espúrias do que era a minha vida profissional, que tipo de recordações te podia enviar sobre as minhas estadias em Bruxelas e mais adiante lembraste a necessidade de criar uma atmosfera para tudo quanto se passou depois da mina anticarro de Canturé, em 15 de outubro de 1969.

Vou tentar sumular os meus procedimentos de viagens a Bruxelas antes de te conhecer. Estive em Bruxelas pela primeira vez em 1978, Portugal batera à porta das Comunidades Europeias, logo estabeleceu que os diferentes ministérios enviariam peritos para ações de sensibilização. O ministro António Barreto, titular do Comércio e Turismo, que criara no ano anterior uma lei orgânica contemplando um departamento do consumidor, escolheu-me para o programa respetivo. Visitei os serviços da Comissão Europeia, então a funcionar na Rue Guimard, num local aprazível entre o Parque Real e a área do Parlamento Europeu. Depois de uma ensaboadela, fui lançado em serviços convergentes com política do consumidor, nomeadamente na área da Saúde e Ambiente. Tive reuniões de trabalho com as quatro associações europeias do tempo, e imediatamente encontrei afinidades com o dirigente das cooperativas europeias, Albrecht Schöne, e dos sindicatos socialistas, André Cornerotte, hoje uma amizade inquebrantável. Visitei igualmente organizações não-governamentais ligadas à defesa de direitos de cidadania e a vários lobbies empresariais acreditados pela Comissão Europeia, entre eles o da indústria farmacêutica.

Tive um dia de folga, de carta na mão palmilhei Bruxelas e comecei a interiorizá-la. Graças aos programas de televisão, entre 1979 e 1984, aqui vim a reuniões de autores e apresentadores de programas televisivos de consumidores, sempre à minha custa reservei um dia para curtas viagens na Flandres e na Valónia, aliás duas destas reuniões irão ocorrer em Paris e Veneza. Depois chegamos à adesão e com ela a participação em reuniões quer como funcionário público quer como membro da Confederação Europeia dos Sindicatos. Se na primeira condição a ajuda de custo era satisfatória, na segunda era quase simbólica e tive que me adaptar à escolha de modestos hotéis e mesmo de albergues, almoçava nas cantinas, havia por vezes jantares de trabalho e senti-me na obrigação de propor jantares com colegas, designadamente quando tínhamos tarefas em comum. Envio-te hoje um pequeno rol de papéis avulsos que falam de Bruxelas ou das reuniões em estações televisivas portuguesas, até descobri a imagem de um encontro internacional de educação do consumidor, que se realizou em Lisboa, meses antes de eu elaborara documentação para professores, este encontro servia igualmente para testar da validade na área de ensino, fiquei feliz com os elogios recebidos. Eu penso é que tu queres fotografias com o quarentão, encontrei uma de um colóquio em que participei com um investigador que admiro profundamente, o arquiteto paisagista Gonçalo Ribeiro Teles, o programa não era fácil nem para ele nem para mim, tínhamos que discretear sobre os imbricamentos entre as políticas ambientais e as medidas de consumo, as formas de agir comum. O trabalho que tive nessa ocasião preparou-me para uma reflexão que mantenho em continuidade: como ultrapassar os compartimentos estanques das análises de ambientalistas e defensores de consumidores, os primeiros projetam o seu trabalho na produção e param no mercado, enquanto os defensores dos consumidores começam no mercado e dissecam a problemática do consumo, desde os direitos de informar e formar até às leis de proteção nesta vertente da cidadania no consumo.

Junto duas imagens referentes a duas recrutas que dei no regresso da guerra da Guiné, em Mafra, a futuros oficiais milicianos. Antes de partir para a guerra eu tinha como profissão a mecanografia, era devoradora de tempo, não podia imaginar ter meios para tirar rapidamente primeiro o bacharelato e depois a licenciatura, encontrei um expediente que foi um contrato até cinco anos com o Ministério do Exército, teria que dar recrutas durante um período e depois seria colocado em Lisboa, tive muitíssima sorte, depois de dar instrução fui colocado numa entidade chamada Agência Militar, um autêntico banco, era o oficial que ia buscar dinheiro aos milhões ao Banco de Portugal. Passei a ter tempo para estudar na biblioteca e voltar cedo para casa para continuar a estudar. Em cerca de três anos, e tendo repetido cadeiras para melhoria de nota, estava licenciado e fui mesmo colocado como professor na variante de História de Arte, veio o 25 de Abril e a minha vida mudou de rumo, o rumo em que nos descobrimos naquele acaso feliz da reunião na Rue Froissart, que mudou as nossas vidas, por sua vez.

Vamos agora para o que me pedes sobre a tragédia da mina anticarro, procurei dar-te elementos no dia em que almoçámos em Antuérpia, tive que amenizar o discurso quando vi muita mágoa no teu rosto enquanto te contava as peripécias vividas. Depois da explosão, verifiquei o caos à volta, havia um ferido grave, o condutor, e mais seis feridos, não era fácil avaliar o que era uma mera contusão de ferimentos graves. Senti angústia e perplexidade em quase todos os meus camaradas, recorri ao que estava mais sereno, Mamadu Djau, dei-lhe a incumbência de ir procurando tratar com primeiros-socorros quem deles necessitava e havendo condições arrumar os bidons de combustível, os sacos de arroz, as caixas, tudo quanto saltara da viatura com o impacto da explosão. Retirei-me sozinho e trouxe atrás de mim três crianças, na marcha senti dores excruciantes no joelho direito e pressenti que tinha perdido a visão do olho esquerdo, levara com uma lufada de terra e ácido ou talvez mesmo de explosivo, sentia tudo em carne viva. E assim chegámos a Finete onde Bacari Soncó me ajudou a lavar o rosto e percebi que não tinha perdido a visão completa do olho esquerdo. Formou-se um contingente para ir buscar os feridos, e lá fui aos tombos pela bolanha de Finete, o canoeiro atravessou o Geba, o comerciante José Maria andava ali perto e levou-me à sede do batalhão. Jantavam e conversavam acaloradamente na messe dos oficiais, quando me viram sentiram que tinha havido uma desgraça, quando se entra chamuscado e a coxear algo de sinistro aconteceu. O segundo comandante dirigiu logo as diligências necessárias para chegar rapidamente apoio a Finete, o médico levantou-se da mesa, mandou chamar o enfermeiro e dois maqueiros, em minutos estavam todos de mochila às costas. Este mesmo segundo comandante teve com os sinistrados uma afabilidade inesquecível: mandou recolher pedaços de bifes e meter em pães, arranjou-se um saco de fruta, achocolatados e outras atenções. E regressámos a Finete, o principal desvelo foi para o condutor, de nome Manuel Guerreiro Jorge, o estado era deplorável, não eram só as fraturas expostas, entrara em falência, cerca de uma hora depois de chegarmos a Finete o médico fechou-lhe os olhos. Havia soldados marcados por estilhaços, o estado de Cherno Suane era muito grave, um duplo traumatismo craniano, ele seguia no guincho e foi disparado para cima de um morro de bagabaga. O cabo Alcino Barbosa coxeava, veio-se a apurar que era uma fratura de calcâneo. Minha adorada Annette, quando tudo isto te contei naquele pequeno restaurante não longe da Catedral de Nossa Senhora em Antuérpia, envolvidos por uma temperatura amena, procurei não te incomodar muito, voltei a Missirá, conversei com o régulo em particular, e tive a única crise de choro convulsivo, limpei ao rosto e disse ao régulo que não se atormentasse, a vida recomeçaria, houvera um revés, mas eu continuava pronto para me manter no posto, ele iria ver em breve, só precisava de ir a Bissau tratar dos olhos e comprar óculos novos, viria rapidamente, muito antes de, a contragosto, partir de Missirá para Bambadinca.

Annette, por razões de pudor eu sou muito sumário nesta descrição, podia falar-te numa emboscada que aconteceu e muito mais. Como companheira que me estás destinada até ao fim dos meus dias quero que saibas do meu remorso em não ter acompanhado, como era meu dever, quando regressei a Portugal, os meus camaradas feridos, à semelhança do que pude fazer com os guineenses mutilados. É amargor que guardo e que te confesso.

Vou ter uns dias atribulados pela frente, mas prometo continuar à noite a juntar mais papéis para te enviar rapidamente. E quero falar das férias, pois claro, e terminar dizendo-te como me sinto muitíssimo bem na tua Bruxelas, se acaso for essa a decisão que tomarmos nos próximos anos. Bien à toi, Paulo.

(continua)

Não resisti a comprar este bilhete-postal de um jovem numa banheira com desentupidor na mão, em plena Feira da Ladra, indiferente ao bulício que por ali vai. Pena de não ter ido lá neste dia para ter sido eu a tirar esta imagem…
Quando olho estas imagens pergunto-me o que a vida trouxe de muito bom às suas vidas depois das guerras em que participaram. Só muito raramente encontro um ou outro dos meus instruendos. Um deles é o Dr. João Nabais, homem de museus, outro tem o nome épico de Vasco da Gama, homem da Figueira da Foz que já visitei. É mais uma lição da vida: a muito nos aproxima e com a mesma força nos afasta.
Estava feliz neste tempo, o meu livro sobre educação do consumidor custara-me os olhos da cara, mas ainda hoje é uma referência. Annette se olhares para o ano ali está escrito 1998, conheci-te no ano seguinte, só pasmo como a fotografia esconde os já inúmeros cabelos brancos

Referências de alojamentos pobretanas que me davam condições de trazer lembranças para os filhos
Os debates televisivos sobre consumo e qualidade de vida eram então frequentes. Fiz sempre o possível para nunca dizer não a quem me convidava
Gonçalo Ribeiro Telles tinha um dom muito especial na comunicação, era um encanto poder conversar com ele em colóquios ou sessões de trabalho. Era o exemplo vivo de que os sábios são intrinsecamente simples
Annette, pode ser que aconteça na nossa vida, irmos aos Bijagós, aqui te deixo uma recordação e um bilhete-postal de um pôr-do-sol na Ilha de Bubaque, com infinito amor
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21997: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (43): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 12 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21997: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (43): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2021:

Queridos amigos,
O homem põe e Deus dispõe, vai estar mau tempo nas férias da Páscoa, ir para as praias do Mar do Norte com aquela borrasca não é boa sina, o melhor será ficarem-se pelos passeios da proximidade, e Annette dá sugestões, conhecedora dos gostos e preferências do seu amado português. Não lhe disse, mas está a preparar um Domingo de Páscoa muito especial, virão os filhos e respetivas companhias, uma irmã, filha de sangue dos seus pais adotivos, Angelique Roubaix, está ansiosa por conhecer Paulo. Annette sofre com o que está a escrever na comissão da Guiné, muito estremeceu com toda aquela história no dia 15 de outubro de 1969, que culminou numa pequena desgraça, houve negligência e a fatura é muito pesada. Os problemas de visão são preocupantes, o médico e querido amigo David Payne manda-o ao hospital militar, em Bissau. Ainda ninguém sabe, mas vai nascer uma grande amizade com esse oftalmologista micaelense, José Luís Bettencourt Botelho de Melo, recentemente falecido.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (43): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon inoubliable Paulo, escrevo-te para te dar conta de que temos as férias na zona costeira e na ilha dos Países Baixos altamente comprometidas. Segundo a meteorologia, teremos borrasca, neblina, pesados aguaceiros quinta e sexta-feira. Sábado e domingo o tempo estará um pouco cinzento, temperatura amena, a chuva regressará domingo à noite e não dará descanso à Bélgica até tu partires. Na circunstância, acho que podíamos aproveitar a quinta-feira para visitarmos duas exposições, tu disseste que gostarias muito de haver os simbolistas belgas e franceses no Museu de Ixelles, podíamos aproveitar para ir ao Museu da Banda-Desenhada, está lá igualmente uma exposição que tem a ver com a banda-desenhada belga no período que precedeu a II Guerra Mundial. Como sempre faço, preparo um dossiê, e tu defines a ementa…

Para sábado, em que há uma certa movimentação cultural e nem todos os museus fecham, tudo depende da tua vontade de espreitarmos o mercado da Praça do Jeu de Balle, e haverá uma visita-guiada ao circuito da Muralha Medieval de Bruxelas, é evidente que tu conheces de vista os principais vestígios mas lembrei-me de que apreciarias os comentários de um perito, aquelas torres que restam, até mesmo as construções da 2ª muralha do século XIV temos vestígios, poucos, em Bruxelas, no sábado também se pode visitar a Porte de Hal. O circuito começa na Torre Anneessens, percorre várias muralhas, há depois a Torre Negra e esta pequena viagem termina na Torre do Palácio das Belas-Artes. Ou seja, podíamos começar de manhã cedo por ir ao Petit Sablon e fazer depois o circuito da muralha medieval. Descobri na Rue Montagne aux Herbes Potagères um pequeno restaurante que serve aos sábados a sopa tradicional flamenga, galinhola e tem uma receita especial de mexilhões, com estragão. Achas bem? Na edição do Mad (suplemento do Le Soir, que tu conheces bem) refere que sábado à tarde há uma digressão a Ixelles, também com guia para visitar os edifícios Arte-Nova, que tu tanto aprecias. Esqueci-me de te dizer que no Parque do Cinquentenário decorre uma exposição intitulada “Arte-Nova e Design 1830-1958”, é outra possibilidade. Tu conheces muito bem o Museu Horta, estará aberto no sábado, mas eu lembrei-me de certas casas como a Maison Cauchie ou o Hôtel Hannon. Não te rias, disseste-me que aprecias imenso os cemitérios ingleses pela sua envolvência serena, tens um cemitério cheio de Arte-Nova, o da comuna de Uccle, o cemitério do Dieweg, vê se te interessa. Se fossemos ao Parque do Cinquentenário, podíamos voltar ao Pavilhão das Paixões Humanas e ver a escultura de Jeff Lambeaux, pessoalmente gosto muito, aprecio aquela sensualidade sobre o pretexto da felicidade e dos pecados humanos. Tu escolhes.

Li todos os documentos que me mandaste. Já estamos em outubro de 1969. Ainda não te refizeste da dor que foi a perda do teu colaborador Luís Casanova, o médico de Bambadinca avisou-me de que será uma recuperação lenta. É admirável o aerograma que te enviou o comandante Teixeira da Mota, de Bissau, tudo a propósito de uma brochura que te ofereceu quando lá estiveste e tu me enviaste com a dedicatória dele, a obra intitula-se A Primeira Visita de um Governador das Ilhas de Cabo Verde à Guiné, António Velho Tinoco, 1575. Que bonito texto que ele te enviou:
“António Velho Tinoco foi o corregedor que condenou à morte o piloto açoriano trânsfuga Bartolomeu Baião, o qual lhe foi levado preso para a Ilha de Santiago por um lançado da Guiné. Sobre o Baião tenho reunidas dezenas de documentos em Lisboa, Madrid e Londres e que permitem reconstituir uma vida aventurosa, tipo capa e espada, de um piloto português – um entre muitos – que se valeu da sua arte náutica para roubar navios e intrujar ingleses e espanhóis (fugiu de uma prisão de Sevilha pelo telhado e depois andou a ludibriar em Londres o embaixador de Espanha). Um colaborador em Sevilha acaba de me enviar mais uma boa dose de documentos sobre o mesmo, catados no Arquivo das Índias, e onde se explica como, quando comandava uma frota de corsários ingleses que andava à caça de navios ingleses, foi apanhado pelo rei da ilha de Jeta, que depois o entregou ao lançado que levou à justiça de António Velho Tinoco”.
Obviamente que li esta viagem de Tinoco, é um texto belíssimo.

Arrumei já o episódio da destruição das embarcações do rio Geba e achei inacreditável aquele depoimento do teu amigo Queta Baldé sobre as cumplicidades familiares entre gente que estava no PAIGC e gente que se pôs do lado dos Portugueses. Apercebi-me que este período chamado da época das chuvas provoca imensa doença, tu falas de um soldado milícia, de nome Samba Embaló, vitimado pela malária, reduzido a pele e osso, houve que pedir uma evacuação de helicóptero, tal o depauperamento em que se encontrava. Falas numa folha à parte dos preparativos da presumível partida para Bambadinca, afinal tudo me parece complicado, com conferências de material, as limpezas, os chamados abates de coisas deterioradas, pacientemente tudo se foi arranjando para o ato da transferência.

E brutalmente segue-se a descrição da mina anticarro num sítio chamado Canturé, tu alegas que nesse período o cansaço era imenso, tinhas baixado as guardas, que sofrias muito pela falta de efetivos subtraídos para outras missões, foi um dia azafamado, foste buscar arroz a uma população qualquer, atrasaste-te, o próprio condutor pediu para ficar em Finete, que não, que tinhas no dia seguinte imenso que fazer. Não sei como consegues fazer este documento que tanto me arrepiou, o teu amigo Cherno Suane vai no guincho da viatura, a caixa desse Unimog 404 vai carregada de bidons e sacos de arroz, lá no alto o bazuqueiro Mamadu Djau. E tu explicas-me como viveste esse anoitecer, o fragor da explosão, os fios elétricos a morrerem, os urros do condutor, a tua saída em voo, felizmente com a espingarda na mão, uma emboscada que durou pouco, tu explicas que a noite não é boa companheira para ninguém, todo aquele fogo iria provocar matança entre companheiros. E como é possível que tu te sentisses agradecido só porque julgavas ter perdido o olho direito enquanto vais até Finete pedir auxílio, além de um moribundo há vários feridos, Paulo, Paulo adorado, lacrimejei enquanto via a fotografia e a interpretação que tu fizeste. Foste escrever tudo sobre a tua ida a Bambadinca e os apoios que tiveste, as dores físicas e as dores morais. Como os dias seguintes não foram fáceis, o olho a arder, a face queimada, o joelho direito inchadíssimo. Paro aqui, foi um dia exaustivo, e quanto me custa reproduzir-te o que escrevi e como me rendo ao teu argumento de que a misericórdia de Deus te enlaçou para a vida naquele que até à altura foi o momento mais dramático por que passaras. O que me alivia é que tu chegas amanhã à noite, haja trovoadas, céus plúmbeos, repentinas neblinas, chega a luz que me dá força, um amor chamado presente e futuro, impante pela confiança que me traz, por todos os prazeres que uma mulher sonha de ter a seu lado o perfeito e fiel companheiro. Bien à toi, Annette
A Torre Anneessens, restos da muralha medieval de Bruxelas
A Torre Negra, Bruxelas
Maison Ciamberlani Hankar, Rue Defacqz, Bruxelles
Hotel Hannon, Saint-Gilles, Bruxelles
Em pleno sofrimento, escultura no Cemitério de Dieweg, Uccle, Bruxelas
Pavilhão das Paixões Humanas, de Victor Horta, Parque do Cinquentenário
Emboscada de Canturé, Humberto Reis olha surpreso para os destroços: “Como é que ele saiu vivo disto?”
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21972: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (42): A funda que arremessa para o fundo da memória

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21873: In Memoriam (389): Mamadu Camará, a "Onça Vigilante" do Pel Caç Nat 52 (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2021:

Meu caro Luís,
 
Junto texto evocativo de mais uma perda dolorosa. Bom seria que não passasse de uma atoarda, de uma daquelas confusões em que já me vi envolvido, caso do Braima Galissá.
 
Como qualquer um de nós, dou comigo a refletir sobre comportamentos valorosos ligados à fidelidade e à camaradagem que ficaram sem o devido reconhecimento. Mamadu Camará era um Futa-Fula que sabia bem o que valia, tanto não se negou às práticas da valentia que foi um dos meus soldados que avançou para os Comandos, posso dizer com mágoa que tenho fuzilados, presos e espancados e fugitivos, gente que atravessou países a pé e à boleia até encontrar paz e auxílio para vir para Portugal.
 
Como gravemente ferido em combate, em 1972, Mamadu ficou em Portugal e aqui recompôs a sua vida, num turbilhão afetivo que não se deseja a ninguém. Viveu nos últimos anos em boa acalmia, adorava ir até à Irlanda do Norte visitar os seus netos "cor de café com leite", sempre irrepreensivelmente vestido, todo aquele corpanzil exibia um cavalheiro à moda antiga.
 
É talvez esta última imagem que eu quero guardar de ti, como se estivesse a ouvir o teu vozeirão de baixo-barítono, que não perdeu volume, passados mais de 50 anos. E um abraço fraterno de nosso alfero, aí vai, até às estrelinhas,
 
Mário

Mamadu Camará - Pel Caç Nat 52


Estas repetidas perdas de inexauríveis amizades

Mário Beja Santos

Não tenho precisado do confinamento para me manter em rede com a tropa guineense e as gentes do Cuor. Acresce, quando é possível ir trabalhar na Biblioteca da Sociedade de Geografia haver passagem obrigatória pela comunidade que se espraia pelos bancos do Rossio, para os lados da casa da ginjinha e por todo o Largo de São Domingos, comércio variado não falta por ali, pergunto por beltrano ou sicrano, sempre com prudência, nunca esqueço o lamentável incidente em que perguntei a alguém pelo Braima Galissá, exímio tocador de korá, e me responderam prontamente que tinha morrido durante um concerto em Genebra. 

Como há meses que o telefone não atendia, telefonei contristado ao Abudu Soncó, dei-lhe a triste nova. Não passou quinze dias que o Abudu voltou a telefonar-me, apanhara um susto de todo o tamanho, deu com o Braima na rua, dadas as explicações do seu assombro, Braima Galissá, com a maior placidez, explicou que quem esperneara fora outro Braima Galissá, também tocador de korá, e à cautela procurou-me como se estivesse a fazer prova de vida.

Passou-se recentemente algo parecido, telefonava sem resposta ao Queta Baldé, o meu admirável 126, sempre a arrastar os pés, que me deu uma ajuda extraordinária a reconstituir o meu diário da Guiné, faz parte do pequeno grupo que de vez em quando aqui vem ao bacalhau com batatas, a maior das preferências de qualquer guineense. 

Eis que desta vez o Queta atendeu o telefone, passámos em revista Bambadinca e Amedalai, por lá anda a família do Queta e certos amigos comuns, como Fodé Dahaba e Sadjo Seidi. Manifestei-lhe a minha estranheza de o telefone do Mamadu Camará não responder, tinha dois números de telemóvel, penso que um deles era o que ele levava para a Irlanda do Norte quando ia visitar os netos, “cor de café com leite”, expressão sua. Queta, mostrou-se surpreendido, então não sabia que o Mamadu já morreu? 

Depois de ter levado este coice, com a voz entaramelada, insisti com o Queta se não tínhamos para aqui uma confusão como a do Braima Galissá, Queta respondeu prontamente que tinha a certeza, confirmara junto de alguns irmãozinhos de Mamadu, eu que ficasse descansado…

Descansado era coisa que eu não haveria de ficar, desde de 4 de agosto de 1968 que Mamadu Camará fazia parte do meu currículo. Estou neste momento a vê-lo atrás de Zacarias Saiegh, ao lado de Abdulai Djaló (dito o Campino), vieram buscar-me a seguir ao almoço para seguirmos para Finete e Missirá, o seu olhar coruscante media de alto a baixo o novo comandante, o que dele podia esperar. E começou logo a dar trabalho, tinha dívidas por toda a parte, era doido por rádios, relógios, pulseiras e caprichava na roupa, passeava-se nas horas disponíveis num brinco de roupa garrida. Aceitava que através da contabilidade houvesse os descontos para os seus credores esfaimados. E sabia pedir. O meu guarda-costas, Cherno Suane, escovava regularmente a roupa que trouxera de Lisboa, bem como três pares de sapatos. Em escassos meses, levou-me dois pares, tive que lhe fazer frente explicando-lhe que os sapatos pretos eram de uso obrigatório com a farda n.º 2, rendeu-se à evidência, mas aproveitou para perguntar se eu não precisaria de um par de sapatos novo, era uma questão de irmos a Bafatá, sim, àquela loja do Esteves, onde nosso alfero compra a música dessa gente que está sempre a gritar… 

Era inequivocamente um dos meus bravos e não se furtava ao trabalho, como demonstrou na reconstrução de Missirá, de abril a junho de 1969. Quando acabou o seu tempo de tropa, foi incorporado na 2.ª Companhia de Comandos Africana, e um dia recebi carta com fotografia sua, deitado numa cama de enfermaria, alguém escrevia que tinha levado um tiro no calcanhar perante uma operação em Salancaur, no Sul. Os médicos terão feito um esforço titânico para reconstituir os ossos, a perna gangrenou, acompanhei este processo no Hospital Militar Principal, foi alguns meses à Alemanha, adaptou-se bem à prótese.

Tornei-me seu confidente. Não era muito feliz nos seus amores. Apaixonara-se por uma cabo-verdiana que tinha um terrível cadastro, numa rixa com o anterior companheiro, quando este se preparava para lhe dar uns tabefes e pontapés, ela atirou-lhe um facalhão de talho à tábua do peito. Terá vivido embeiçado com a dita, suportou estoicamente comportamentos menos desejáveis, acarinhou os filhos dela e os rebentos dos dois. Passavam-se os anos e a praxe dos encontros manteve-se imperturbável. 

Estou neste momento a vê-lo sentado a conversar com Tina Kramer, quando esta se preparava para ir para a Guiné fazer o trabalho de campo do seu doutoramento, impressionante com o seu fato completo, incluindo colete e gravata acetinada, era como se estivesse sempre preparado para ir à conservatória ou a casamento alheio.

Inesquecível esquecê-lo, e neste meu vasto armário onde guardo relíquias da saudade abro mais uma gaveta, e com que dor contida vasculho a homenagem que devo prestar a tal querido amigo. E foi então que me recordei de um texto que lhe dediquei relacionado com o ato de lealdade e dedicação incomparável, curvando-me respeitosamente pela sua memória, volta-se a publicar algo que tanto pode ser ficção mas também tomado como realidade, e abraço mais saudoso para ti não pode haver:

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Agosto de 1969

MAMADU CAMARÁ, A ONÇA VIGILANTE

Fogo de Santelmo, fogo de Madina


A partir do meio da tarde, o céu fez-se chumbo, o ar esfriou, ficámos à espera que chovesse, contrariados no meio dos trabalhos, tudo à volta do arame farpado. Quando parecia que o chumbo passaria a negro, o negro da nuvem espessa que se encaixara como uma abóbada sobre Missirá deixou imprevistamente que os raios e coriscos se acendessem e, como uma faca que rasga a seda, estoiraram estrepitosamente em Missirá, em todo o Cuor. O anoitecer fez-se dia com aquela iluminação de teatro, espectral. A chuva abundante caiu dos céus, ficou a empapar-se às nossas botas, o sibilar da trovoada gigante levou-nos a fugir para casa.

É nesse entretanto da fuga precipitada para as moranças que começa uma flagelação com morteiros e costureirinhas. Do pânico da chuva passou-se rapidamente para a resposta, corríamos nus, em roupa interior, encharcados, enlameados. Quem limpava as armas pô-las em funcionamento, quem fazia a contabilidade mudou de armas, quem cozinhava foi logo responder com metralhadoras, e todo este fogo de resposta amorteceu o som das obusadas que espalhavam o metal destruidor, salpicando a terra. Colhidas de surpresa, as mulheres e as crianças que cultivavam e brincavam, atiraram-se para as valas. No morteiro 81, encadeado por aquele maldito fim de tarde desorientador, pois falsa era a noite e falso era o dia, com o precioso auxílio do Queirós, eu punha e tirava cargas das granadas, procurando atinar com as distâncias. 

Era uma estranha flagelação, era um fogo espúrio, como se estivessem a testar-nos para o tiro a tiro. O Queirós gemia, segurando o tubo sem a braçadeira, o braço a ficar em chaga. As explosões chegavam espaçadas, como a lembrar que há muitas maneiras de fazer flagelação. É então, entre esse dia e essa noite de Santelmo e do fogo de Madina que sou disparado a coice, saio do abrigo de morteiro com forte encontrão, alguém me projeta no solo. Uma explosão ao pé soergue-me e ao intruso que me arrancara do morteiro 81. Eu desfiro palavrões, mas o intruso grita de dor. Desprendo-me do fardo, o Queirós a tudo assiste aparvalhado, ponho-me de pé e vejo Mamadu Camará jazente e depois de tronco arqueado, com o rosto riscado pelo sofrimento. É o Queirós, que sai do atordoamento, que explica o transcendente daqueles instantes: "Meu alferes, o Camará viu o rebentamento, quis salvar-lhe a vida"

Entretanto, acabou-se a flagelação, que deixou a mesquita com algumas chapas perfuradas, há os pés rasgados do costume, há semblantes enfarruscados e queimados e há ainda alguma luz para deitar contas à vida e ver o que correu mal. Felizmente, nada mais aconteceu, Madina lançou mais um aviso, muito provavelmente vieram patrulhar e antes de retirar deixaram este cartão de visita.

Agora, nada mais me interessa do que agradecer discretamente a Mamadu Camará, que cambaleia, cheio de contusões e rasgões. Nessa noite, depois do jantar, enquanto Missirá faz serão a comentar os acontecimentos, chamo Mamadu, depois de ter refletido sobre a sua bravura. 

"Mamadu, não tenho palavras para te agradecer, tu estiveste pronto para dar a tua vida para me salvar. Tu merecias uma elevada condecoração. No entanto, vê a posição em que me encontro: se publicitar o teu feito, parece que estou a engrandecer o facto de estar no morteiro, no meu dever a enfrentar o inimigo. Peço-te que me compreendas, prefiro ficar com uma dívida contigo, deixa-me amanhã eu contar a todos o que fizeste por mim. E esta história fica sem ser conhecida por mais ninguém fora de Missirá"

Mamadu, que em todas as conversas sérias tinha um vozeirão de barítono wagneriano, pôs-se a entaramelar a voz, reduzindo-a a um fio, vacilava na resposta. Ouviu-me e disse:

  "Está certo, ninguém tem o direito de saber fora de Missirá esta história. Eu já tenho uma medalha, não preciso de mais"

E ninguém soube até hoje. Chegou o momento da tua abnegação chegar aos quatro cantos do mundo, Mamadu.
Na reconstrução de Missirá, Mamadu senta-se no tronco da palmeira, enquanto converso com Cibo Indjai, lá ao fundo, Alcino Barbosa, quer intervir na conversa
Fotografia tirada em Missirá, seguramente depois do grande ataque de março de 1969, em que perdi todo o material fotográfico
Mamadu Camará à esquerda, sempre galhofeiro, disse pilhéria e pôs toda a gente a rir, que saudades guardo de todos estes meus queridos companheiros
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21833: In Memoriam (388): Aniceto Rodrigues da Silva (1947 - 2021), soldado condutor auto, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, maio de 1969 / março de 1971)

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21811: (Ex)citações (385): A família Soncó, o Regulado do Cuor e a situação da Guiné-Bissau (João Crisóstomo / Mário Beja Santos)

1. Mensagem enviada pelo nosso camarada João Crisóstomo ao outro nosso camarada Mário Beja Santos com conhecimento ao Editor Luís Graça, datada de 22 de Janeiro de 2021:

Caro Beja Santos,
Tentei fazer/escrever um comentário ao teu post P21795[1], de hoje, 22 de Janeiro, mas nesse comentário não consegui incluir cópia duma carta, que acho pertinente ao assunto/pergunta de que queria falar.

Por isso envio-te este comentário por E-mail, com conhecimento ao comandante de todos nós, Luís Graça, na esperança de que ele te faça chegar este comentário, pois me parece que raramente lês os meus E-mails, o que é mais que compreensível, pois assim como sucede com o Luís Graça, eu não sou capaz de imaginar como vocês têm tempo para tantas coisas sobre que escrevem e em que estão envolvidos todos os dias. Mas o facto de eu não ter capacidade para tanto não quer dizer que outros não a tenham e vocês os dois são disso prova. E, como diz o ditado: “contra factos não há argumentos”, embora o ex-presidente “trump" (letra pequena) e muitos dos seus crentes seguidores tenham tentado provar que não é bem assim. Mas com ele fora de circulação, esperemos que volte o bom senso e “ditados" como este voltem a ter a devida aceitação.

Mentiria se dissesse que leio tudo o que escreves; mas porque andaste por terras que a ambos nos ficaram no coração e ainda hoje nos são queridas, sempre que vejo menções destas, especialmente Missirá e Porto Gole não deixo de ler essas tuas memórias. Por vezes, como sucedeu hoje, essas descrições memórias são fortes demais para mim e tenho de me socorrer do lenço de bolso para controlar estas emoções.

Hoje foram algumas fotos deste post que começaram por chamar a minha atenção: as fotos a "subida da palmeira” ; a "panorâmica da velha Tabanca de Bambadinca”; a foto do “local em Mato Cão onde se fazia a vigilância das embarcações” …Que saudades e emoções me fizeram logo sentir! E depois comecei a ler:

“foi um grande choque encontrar Bissau a caminho do descalabro, as ruas esburacadas, os prédios em ruínas, a Guiné a viver da ajuda internacional, a classe dirigente enriquecida e o povo muito pobre.” e… à entrada do hospital “viste chegarem os familiares dos doentes com colchões, havia camas nas enfermarias, mas os colchões estavam literalmente podres. Tu sentias uma infinita tristeza com um espetáculo tão deplorável.”

O ponto alto dessa estadia foi a visita a Missirá,… “tu entraste em transe, a procurar reconhecer os locais que percorrias com tanta assiduidade, ficaste impressionado por ter voltado vida a Cancumba, durante a guerra não havia vivalma, e a alegria do reencontro com amigos, registei o abalo que sentiste quando abraçaste Bacari Soncó, que será mais tarde régulo do Cuor, a conversa havida com a população,… Antes, tu percorreras Missirá sempre a soluçar, à procura de vestígios do passado, a despedida foi um sofrimento ainda mais penoso, até porque foi nesse momento que chegou Cherno Suane, o teu guarda-costas, alguém fora de bicicleta chamá-lo a Gambiel, e quando o viste foi outro choro irreprimível, porque ele logo disse que sabia por Deus que um dia o virias buscar, um irmão ajuda sempre o seu irmão, era para ele impensável que eu não o trouxesse para Portugal, fora castigado porque pertencera aos Comandos,…”

Como não hei-de ficar abalado? Descrições como esta fazem-me sempre imaginar coisas: neste momento esta pessoa que tu descreves sou eu, voltando à Guiné procurando saber o que é feito de tantos que eram meus amigos… especialmente do meu guarda-costas… quem sabe não faz parte das muitas vítimas do abandono a que foram sujeitos depois da independência e da vingança dos “vencedores" que logo se seguiu… 

Como posso eu deixar de sentir mágoa e revolta… gostaria de um dia voltar lá; mas ao mesmo tempo sei bem que não sou capaz.

Antes, no mesmo texto leio: “Regressas a Lisboa em 1970, tens vários militares feridos, uns a pôr próteses, outros em tratamento. Outra gente da Guiné ia aparecendo, é o caso do Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo, que apareceu em 1996,”

E aqui eu fiquei confuso: Eu conhecia o filho do régulo de Missirá, de nome António Eduardo Quebá Soncó, ferido um dia em combate, mesmo ao meu lado; o destino da bala podia ter sido eu, mas foi ele que a apanhou, numa operação em que tomei parte. Na minha mente jamais o esqueço e o seu grande sorriso permanente e contagioso. Era ele, assim se dizia, que ia um dia suceder a seu pai como régulo de Missirá. 

 Eu pensei que ele era o filho mais novo do régulo. Ferido, teve de ser evacuado para Bissau e daí foi para Portugal. Em 1966 eu vim de férias a Portugal e fui-o ver no hospital; e no dia seguinte voltei lá com uma mala que ele me disse precisava para as suas coisas pois ia ser enviado para a Alemanha, para lhe porem uma perna artificial. Ele queria conhecer Lisboa antes de partir; e no mesmo momento apesar do seu estado peguei nele e levei-o a visitar diversos pontos da cidade. Ele jamais esqueceu isso; quando voltou à Guiné escreveu-me de Bambadinca, que já tinha visto a família etc. Foi a última carta dele. Esta carta e outras que recebi dele guardo-as com o mesmo carinho com que guardo outras cartas de minha família e amigos cuja amizade muito enriqueceram a minha vida.

Como falas do "Abudu Soncó, filho mais novo do régulo” que apareceu em 1966… depreendo que eu estava enganado: então o Quebá Soncó não era o filho mais novo; muito menos sabia que o irmão dele tivesse conseguido ir/ficar em Portugal e o Quebá nunca me ter falado dele. Ou pelo menos eu não me lembro. Talvez esta minha confusão seja resultado da idade que nos faz destas…

Obrigado pelas muitas memórias que me fazer sempre reviver. Não esqueço que foi graças a ti - e a este blogue - que consegui encontrar e ainda ver o meu/nosso querido amigo Zagalo, antes de ele nos deixar.

A Vilma, (de nome “Knapič," não esqueças… e portanto ainda tua distante familiar e compatriota eslovena,) quis saber a quem eu estava a escrever e pede para a não esquecer o abraço, por enquanto apenas virtual, é portanto de nós dois. Vamos a ver se quando formos a Portugal tu arranjas tempo para um abraço mesmo como deve ser!

João e Vilma

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2. Resposta de Mário Beja Santos enviada ao João Crisóstomo, no dia 25 de Janeiro, com conhecimento ao Blogue:

Meu estimado João, 

Votos de muita saúde, tanto para ti como para a Vilma e restante família.
Aqui me tens pronto a satisfazer a tua curiosidade relativamente à família Soncó. Antes, porém, permite-me que te dê uma explicação quanto a silêncios. Cada um de nós reparte-se por causas, deveres auto-instituídos ou por imperativos de vária ordem. No ano passado, fui forçado a alterar rotinas, vendi a casa de Pedrógão Pequeno, seguiu-se o tormento do recheio. 

No Natal de 2019, a Cristina entrou no hospital entre a vida e a morte, um mês e meio depois, já num quadro de dependência e com grandes atribulações na mente, foi para um lar, onde está a minha irmã, vítima de AVC. Tive que ajudar a minha filha a tratar da papelada e a pôr ordem na casa, a todos os títulos é a coisa menos agradável do mundo. Acresce que mantenho quatro colaborações semanais no blogue, diferenciadas, e pretendo mantê-las com alguma exigência de qualidade. 

A despeito da pandemia, tenho prosseguido o meu trabalho à volta de um livro em construção "Guiné, Bilhete de Identidade", uma antologia cronológica dos textos fundamentais da Guiné, entre o período dos Descobrimentos do século XV até Sarmento Rodrigues, é um tamanhão de trabalho. A pandemia requer novos ritmos e não é fácil adaptarmo-nos na nossa idade a comunicar pelo computador e pelo telefone, pertencemos a uma geração em que nos encontrávamos, tínhamos vida associativa presencial e o mais que se sabe. 

Havia que encontrar antídotos para as longas permanências em casa, atirei-me às limpezas, a redecorar paredes, a cozinhar. E a ter tempo para ler como nunca tive, já que o televisor parece estar organizado para nos causar angústia e roubar o futuro. Dentro dessas opções, tu e muitos amigos foram afetados pela falta de comunicação, a ver se me emendo. E vamos às questões que me pões, Quebá Soncó e Abudu Soncó.

Quebá Soncó, que tu conheceste e combateu ao teu lado, era o filho mais velho do régulo Malam Soncó, foi ferido na região de Madina, veio para Portugal e esteve na Alemanha onde se adaptou a uma prótese. Deficiente das Forças Armadas, nunca renunciou à nacionalidade portuguesa, voltou para Missirá depois da independência, obviamente que não podia ser régulo, em 1990, quando o visitei em Missirá na companhia de Maria Leal Monteiro e Francisco Médicis, recebeu-me calorosamente e apresentou-me ao seu tio régulo que eu não conhecia, passou todo o período da guerra no Senegal. 

Quebá vinha muitas vezes a Lisboa e encontrávamo-nos, o seu filho Bacari Soncó telefona-me com uma certa regularidade, trabalha na construção civil em vários países. 

Pois foi nesse encontro de janeiro de 1990 que voltei a ver Abudu Soncó, já homem, falando um português impecável, era professor primário, veio para Portugal em 1996, era insuportável estar dez meses sem receber e com vários filhos para sustentar. Atirou-se à construção civil, foi um daqueles muito enganados por patrões que tiravam dinheiro para a Segurança Social e que efetivamente não o depositavam nos cofres do Estado, já sofreu dois enfartes do miocárdio e daqui não pode sair, não há um cardiologista na Guiné, e tem medicação obrigatória. 

Nesse mesmo ano de 1990 e no ano seguinte, tive a alegria de reencontrar o valoroso tio de Quebá e Abudu, Bacari Soncó. Como podes ver nas fotografias, o jovem Abudu, fotografia que lhe tirei em Missirá e a fotografia de Bacari, que tenho no meu escritório. Em 2010, quando voltei a Missirá nos preparativos do meu livro "A Viagem do Tangomau" visitei o seu túmulo, era um amigo muito querido.

Creio que estão esclarecidos os Soncó, o régulo atual chama-se Karambá, através do Abudu faço-lhe chegar os livros que escrevo. Confesso-te que tenho saudades sem fim das pessoas e do chão, se o futuro reservar oportunidade de ainda ter saúde para voltar àquela terra onde me tornei homem, acontecerá nova romagem, a despeito daquela dor que provoca a miséria, a mão estendida, o perguntar por A, B ou C, e responderem-me que partiram para as estrelinhas, já assim aconteceu em 2010. Mas um Soncó volta sempre.

Abraço-vos, diz à minha prima eslovena que a Fátima e eu rejubilamos pela vossa felicidade, e a despeito de toda esta ausência, guardo-te no coração com a admiração que bem sabes,
Mário

Abudu é o 2.º menino a contar da direita, distinguia-se pela sua grande cabeça e o seu bonito sorriso
Bacari Soncó e Lãnsana, dois filhos de Quebá Soncó, quando fomos visitar a sepultura de Malam Soncó
Bacari Soncó, régulo do Cuor, tio de Quebá Soncó
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Notas do editor:

[1] - Vd. poste de 22 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória

Último poste da série de 23 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21798: (Ex)citações (384): A evacuação do capitão paraquedista Valente dos Santos, no decurso da Op Grande Empresa (Manuel Peredo, ex-fur pqdt, CCP 122, 1972/74 / Moura Calheiros, ex-maj pqdt, 2º cdmt, BCP 12, 1972/74)

sábado, 23 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21797: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (83): Pergunta ao Beja Santos: afinal quem era o filho mais novo do régulo de Missirá? E quem foi o seu sucessor? (João Crisóstomo, Nova Iorque)


Carta do António Eduardo Quebá Soncó, filho do régulo de Missirá, enviada ao João Crisóstomo,  Datada de Lisboa, 23 (?) de junho de 1967 (?)

Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentárioenviado ao Mário Beja Santos, pelo João Crisóstomo
nosso camarada da diáspora (EUA, Nova Iorque), ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), casado com a eslovena Vilma, e destacado ativista social:


Date: sexta, 22/01/2021 à(s) 18:58
Subject: Comentário ao Post Guiné 61/74 - P21795
 

Caro Beja Santos,

Tentei fazer/ escrever um comentário ao teu post P 21795 (*), de hoje, 22 de Janeiro, mas nesse comentário não consegui incluir cópia duma carta, que acho pertinente ao assunto/pergunta de que queria falar.

Por isso envio-te este comentário por E mail, com conhecimento ao comandante de todos nós, Luís Graca, na esperança de que ele te faça chegar este comentário, pois me parece que raramente lês os meus E mails, o que é mais que compreensível, pois assim como sucede com o Luís Graca, eu não sou capaz de imaginar como vocês têm tempo para tantas coisas sobre que escrevem e em que estão envolvidos todos os dias). 

Mas o facto de eu não ter capacidade para tanto,  não quer dizer que outros não a tenham e vocês os dois são disso prova. E, como diz o ditado: "contra factos não há argumentos", embora o ex-presidente "trump" (letra pequena) e muitos dos seus crentes seguidores tenham tentado provar que não é bem assim. Mas, com ele fora de circulação, esperemos que volte o bom senso e "ditados" como este voltem a ter a devida aceitação.

Mentiria se dissesse que leio tudo o que escreves; mas porque andaste por terras que a ambos nos ficaram no coração e ainda hoje nos são queridas, sempre que vejo menções destas, especialmente Missirá e Porto Gole,  não deixo de ler essas tuas memórias. Por vezes, como sucedeu hoje, essas descrições memórias são fortes demais para mim e tenho de me socorrer do lenço de bolso para controlar estas emoções.

Hoje foram algumas fotos deste post que começaram por chamar a minha atenção: as fotos a "subida da palmeira" ; a "panorâmica da velha Tabanca de Bambadinca"; a foto do "local em Mato Cão onde se fazia a vigilância das embarcações" …Que saudades e emoções me fizeram logo sentir! E depois comecei a ler:

(...) "Foi um grande choque encontrar Bissau a caminho do descalabro, as ruas esburacadas, os prédios em ruínas, a Guiné a viver da ajuda internacional, a classe dirigente enriquecida e o povo muito pobre. (...). E à entrada do hospital (...) viste chegarem os familiares dos doentes com colchões, havia camas nas enfermarias, mas os colchões estavam literalmente podres. Tu sentias uma infinita tristeza com um espetáculo tão deplorável (...) 

"O ponto alto dessa estadia foi a visita a Missirá (...), tu entraste em transe, a procurar reconhecer os locais que percorrias com tanta assiduidade, ficaste impressionado por ter voltado vida a Cancumba, durante a guerra não havia vivalma, e a alegria do reencontro com amigos, registei o abalo que sentiste quando abraçaste Bacari Soncó, que será mais tarde régulo do Cuor, a conversa havida com a população. (...) Antes, tu percorreras Missirá sempre a soluçar, à procura de vestígios do passado,(...)

(...) "A despedida foi um sofrimento ainda mais penoso, até porque foi nesse momento que chegou Cherno Suane, o teu guarda-costas, alguém fora de bicicleta chamá-lo a Gambiel, e quando o viste foi outro choro irreprimível, porque ele logo disse que sabia por Deus que um dia o virias buscar, um irmão ajuda sempre o seu irmão, era para ele impensável que eu não o trouxesse para Portugal, fora castigado porque pertencera aos Comandos. (...)

Como não hei-de ficar abalado ? Descrições como esta fazem-me sempre imaginar coisas: neste momento esta pessoa que tu descreves sou eu, voltando à Guiné procurando saber o que é feito de tantos que eram meus amigos… Especialmente do meu guarda-costas, uem sabe não faz parte das muitas vítimas do abandono a que foram sujeitos depois da independência e da vingança dos "vencedores" que logo se seguiu… 

Como posso eu deixar de sentir mágoa e revolta… gostaria de um dia voltar lá, mas ao mesmo tempo sei bem que não sou capaz. 

Antes, no mesmo texto leio:

(...)  "Regressas a Lisboa em 1970, tens vários militares feridos, uns a pôr próteses, outros em tratamento.(...) Outra gente da Guiné ia aparecendo, é o caso do Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo, que apareceu em 1996. (...)

E aqui eu fiquei confuso: Eu conhecia o filho do régulo de Missirá, de nome António Eduardo Quebá Soncó , ferido um dia em combate, mesmo ao meu lado; o destino da bala podia ter sido eu , mas foi ele que a apanhou, numa operação em que tomei parte. 

Na minha mente jamais o esqueço e o seu grande sorriso permanente e contagioso. Era ele , assim se dizia, que ia um dia suceder a seu pai como régulo de Missirá. Eu pensei que ele era o filho mais novo do régulo. Ferido, teve de ser evacuado para Bissau e daí foi para Portugal . 

Em 1966 eu vim de férias a Portugal e fui-o ver no hospital; e no dia seguinte voltei lá com uma mala que ele me disse precisava para as suas coisas pois ia ser enviado para a Alemanha, para lhe porem uma perna artificial. Ele queria conhecer Lisboa antes de partir; e, no mesmo momento apesar do seu estado, peguei nele e levei-o a visitar diversos pontos da cidade . 

Ele jamais esqueceu isso; quando voltou à Guiné escreveu-me de Bambadinca, que já tinha visto a família, etc. Foi a última carta dele. Esta carta e outras que recebi dele guardo-as com o mesmo carinho com que guardo outras cartas de minha família e amigos cuja amizade muito enriqueceram a minha vida.

Como falas do "Abudu Soncó, filho mais novo do régulo" que apareceu em 1966… depreendo que eu estava enganado: então o Quebá Soncó não era o filho mais novo; muito menos sabia que o irmão dele tivesse conseguido ir/ficar em Portugal e o Quebá nunca me ter falado dele. Ou pelo menos eu não me lembro. Talvez esta minha confusão seja resultado da idade que nos faz destas… (**)

Obrigado pelas muitas memórias que me fazer sempre reviver. Não esqueço que foi graças a ti —e a este blogue--que consegui encontrar e ainda ver o meu/nosso querido amigo Zagalo, antes de ele nos deixar.

A Vilma , ( de apelido  "Knapič," não esqueças… e portanto ainda tua distante familiar e compatriota eslovena,) quis saber a quem eu estava a escrever e pede para a não esquecer… 

O abraço, por enquanto apenas virtual, é portanto de nós dois. Vamos a ver se quando formos a Portugal tu arranjas tempo para um abraço mesmo como deve ser!  

João e Vilma
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Chegou-se a um momento em que se cruzam os acontecimentos do tempo da guerra com o dos regressos à Guiné, estes, por sinal, festivos e simultaneamente dolorosos. Annette registou conversas, espicaçou o diálogo sobre os retornos, sabia que tinha havido reencontros, tudo com pretextos profissionais, selaram-se novas cumplicidades. Um Soncó volta sempre. É um dever, é uma razão de ser. Paulo aprendeu ao longo dos anos que houve quem regressasse da Guiné profundamente malquisto, magoado, disposto a tratar aquele passado como livro fechado. Ele e a sua circunstância ditaram outro caminho, por isso acedeu facilmente a satisfazer a curiosidade de Annette quando ela lhe perguntou nas curtas férias de Lier, não muito longe de Antuérpia: o que representou na tua vida regressar aos locais de tantos afetos e de tantas violências? E Paulo contou-lhe o significado que ele atribuía aos seus retornos, afinal demonstrativos de que há memórias que nunca se apagam. E repetiu-lhe: um Soncó volta sempre.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureux, trabalhei todo o dia em Gand, era uma reunião promovida pela Comissão com médicos de várias categorias, retive comentários de professores universitários, eminentes cirurgiões, médicos de família também, mas havia na assistência representantes da indústria farmacêutica, farmacêuticos e especialistas em Saúde Pública, não sei se não estou a dizer algum disparate, mas passou-se o dia inteiro a ouvir intervenções sobre automedicação, tudo começou com a intervenção do Comissário da Saúde que tratou a automedicação como um fenómeno inevitável e em expansão, não só para garantir a eficiência dos serviços de Saúde e medicamentos essenciais a preços abordáveis, transferindo os medicamentos não prescritos pelo médico para um novo quadro de responsabilidade entre farmacêuticos e utentes e doentes. Houve para ali uma certa polvorosa, os médicos entendem que os doentes, de um modo geral, ainda não estão preparados para uma automedicação criteriosa. O representante da indústria farmacêutica, por seu lado, mostrou-se entusiasta para que a lista destes medicamentos cresça e revelou que os laboratórios gostariam de fazer uma comunicação direta com os doentes. Não podes imaginar o pandemónio que houve na sala. E recordei-te o dia todo porque no ano em que nos conhecemos tu tinhas vindo a Bruxelas colaborar na primeira conferência europeia sobre a automedicação.

Obrigado pela organização que estás a dar a todos os teus apontamentos até agosto. Tenho uma surpresa para ti. Coligi as nossas conversas em Lier, estava mortinha de curiosidade para saber o que representava a Guiné nos anos subsequentes ao teu regresso. Vê se compreendi bem, e o que estiver impreciso acrescenta ou corta. Pelo desenvolvimento que estás a dar ao romance, parece-me que faz todo o sentido que haja um posfácio, voltaste à Guiné em 1990, uma curta viagem, trabalhaste sensivelmente cinco meses em 1991 como cooperante, ficou-me a impressão de que houve alegrias e deceções profundas.

Retive o seguinte. Regressas a Lisboa em 1970, tens vários militares feridos, uns a pôr próteses, outros em tratamento. Aquele teu furriel cujo sistema nervoso colapsou ainda estava muito débil, quase apático. Recebes visitas frequentes do Paulo Ribeiro Semedo e do Fodé Dahaba. Virão mais tarde outros sinistrados, caso daquele teu grande amigo, Mamadu Camará, era soldado Comando, foi gravemente ferido num calcanhar, tudo se tentou para a sua recuperação, mas a perna gangrenou, houve que a amputar, ainda hoje vocês se encontram. Outra gente da Guiné ia aparecendo, é o caso do Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo, que apareceu em 1996, ele era professor primário, passava longos meses sem receber salário, aproveitou um curso em Setúbal e foi trabalhar para a construção civil. Ri-me imenso quando me falaste de que tinhas preenchido uma declaração dizendo que o Abudu fora admitido em tua casa como criado, ele para ficar em Portugal tinha que ter uma fonte de rendimento, foi esse o expediente encontrado.

A Guiné entrara no limbo no teu quotidiano, mais tarde foste solicitado para escrever em algumas publicações, registei que fora trabalho penoso ir aos escaninhos da memória e encontrar episódios aliciantes, ilustrativos da guerra em que te movimentaste, foi trabalho de pouca dura, sentiste alívio que tudo permanecesse no limbo. Até que um dia, no final de 1989, foste chamado ao teu diretor-geral que te informou que as autoridades portuguesas, no âmbito das reuniões ministeriais que estavam a ter com os novos países independentes de língua portuguesa, para articularem posições quanto à Cimeira da Terra, que se iria realizar no Rio de Janeiro em 1992, o Ministro da Guiné-Bissau, para completa surpresa do ministro português, pedira-lhe cooperação para aprofundar uma política de consumidores no país, coisa considerada urgente. Estava aprazada uma reunião para janeiro, em Bissau, iria a subdiretora-geral e fazia todo o sentido que tu participasses nessa missão, não mais de uma semana, era só para avaliar da viabilidade de tal cooperação e em que termos ela podia ser feita. Foste, foi um grande choque encontrar Bissau a caminho do descalabro, as ruas esburacadas, os prédios em ruínas, a Guiné a viver da ajuda internacional, a classe dirigente enriquecida e o povo muito pobre. Ficaste assombrado com o funcionamento da administração, uma diretora-geral do Comércio Externo recebeu-vos logo declarando que tinha pouco tempo disponível, precisava de ir para a sua empresa pois tinha um contrato de exportação vantajoso para tratar… E à porta do hospital Simão Mendes viste chegarem os familiares dos doentes com colchões, havia camas nas enfermarias, mas os colchões estavam literalmente podres. Tu sentias uma infinita tristeza com um espetáculo tão deplorável. O ponto alto dessa estadia foi a visita a Missirá, graças a um outro cooperante, o carro avariou mas ele arranjou uma camioneta de caixa aberta, desde que te aproximaste de Mato de Cão até tomarem a estrada que leva Canturé a Missirá, passando por Cancumba, tu entraste em transe, a procurar reconhecer os locais que percorrias com tanta assiduidade, ficaste impressionado por ter voltado vida a Cancumba, durante a guerra não havia vivalma, e a alegria do reencontro com amigos, registei o abalo que sentiste quando abraçaste Bacari Soncó, que será mais tarde régulo do Cuor, a conversa havida com a população, tu, a tua subdiretora e o cooperante português (registei o nome, Dr. Francisco Médicis), vocês rodeados dos anciãos, mais atrás os homens mais novos e os jovens adultos, ao fundo as mulheres e as crianças. Antes, tu percorreras Missirá sempre a soluçar, à procura de vestígios do passado, olhando para os tetos das casas e recordando o trabalhão que dera a chegada de tanta chapa zincada, entregavam-te papéis à socapa, o professor pedia cadernos e lápis e todos os livros disponíveis, alguém te entregou uma folha a pedir equipamentos de futebol, faltavam sacos de cimento para acabar a reparação da mesquita, noutra folha alguém invocava generosidades pretéritas, precisava de dinheiro para comprar arroz, óleo e sabão, se podia dar uma ajuda de uns escassos milhares de pesos… E tu ainda ficavas mais magoado, não vieras preparado para tanto desembolso. A reunião prolongara-se até meio da tarde, a despedida foi um sofrimento ainda mais penoso, até porque foi nesse momento que chegou Cherno Suane, o teu guarda-costas, alguém fora de bicicleta chamá-lo a Gambiel, e quando o viste foi outro choro irreprimível, porque ele logo disse que sabia por Deus que um dia o virias buscar, um irmão ajuda sempre o seu irmão, era para ele impensável que eu não o trouxesse para Portugal, fora castigado porque pertencera aos Comandos, era um banido, tinha emprego na empresa Socotran, cortava madeira, mas hoje mesmo viria comigo para Bissau, estava pronto a partir para Portugal. E tu transido, o que responder a este homem que te tinha dado uma amizade desvelada, que naquela amaldiçoada noite de 16 de outubro de 1969 ia no guincho do Unimog 404 e que com o sopro da explosão da mina anticarro voara uns bons metros até aterrar em cima de um morro de bagabaga, trazido para Finete, tu abraçado a quem davas como moribundo, o rosto todo retalhado, em Bissau diagnosticado duplo traumatismo craniano, e que superara o sinistro, como era possível agora dizer-lhe que não? E regressaram a Bissau, o Cherno empertigado na caixa da camioneta onde iam as prendas da população, várias galinhas e sacos com mangas. Mais tarde, o Cherno veio para Portugal, tornou-se uma das mais queridas amizades, encontrou emprego num estabelecimento de eletrodomésticos na região de São Paulo, entre o Cais do Sodré e o Conde Barão, foi o que tu me ditaste, espero que tenha escrito bem.

Estou agora a alinhavar o essencial do que me disseste da tua experiência em 1991, que peripécias, cher Paulo! Eu vou tomando nota de tudo o que te vem à memória, não te quero mentir, há momentos em que me convenço que o que se escreve na literatura é menos empolgante do que se passa na realidade… E pergunto-me a mim própria como é que aquela experiência da Guiné te fez mais forte, te trouxe uma maior alegria de viver. Disseste-me um dia que teres perdido tudo o que trouxeras de Lisboa numa flagelação em que se incendiou a tua casa, não te trouxera grande inquietação, havia que refazer o quartel e tratar dos vivos, os teus trastes foram considerados coisa morta, e havia mais vontade de viver, seria ela capaz de fazer renascer roupas, livros, discos e recordações feitas cinza, e que a grande lição aprendida é que se a vida não renasce é porque se perdeu o respeito por nós e o amor pelos outros. Quando voltas a Bruxelas? Onde passaremos a Páscoa? Que saudades tenho de ti, a despeito de tanta companhia que me dás. Obrigado pela tua joie de vivre, mon adorable, bien à toi, Annette.

(continua)

Local em Mato de Cão onde se fazia a vigilância das embarcações militares e civis no Geba
Edifício dos CTT, Bissau, imagem de Didinho, com a devida vénia
A beleza acrobática da subida da palmeira, um fruto que pode custar a vida, imagem de Didinho, com a devida vénia
Pescador no Rio Grande de Buba
Ainda hoje estremeço nesta panorâmica da velha tabanca de Bambadinca, ao fundo à direita estão os estancos onde se comprava desde a graxa a biscoitos, ali tudo se encontrava, do lado esquerdo, situava-se a loja do Rendeiro, outro fornecedor, detinha uma caverna de Ali Babá para primeiras necessidades, e ao fundo, feita a cambança do Geba, a bolanha de Finete, ao fundo à esquerda vêm-se os armazéns do porto, tudo mudou, a decadência tomou conta de tudo.
Uma imagem que vale por mil palavras
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21769: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (35): A funda que arremessa para o fundo da memória