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domingo, 15 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21547: (D)o outro lado do combate (62): o primeiro contingente cubano em acção no Boé em 1966 (Jorge Araújo)



Foto 1 - Citação: (1963-1973); "Fernando de Andrade com um grupo de guerrilheiros do PAIGC e internacionalistas cubanos", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43457 (com a devida vénia).



Foto 2 – Madina do Boé: vista aérea, tirada de DO27, c.1967. Ao fundo as colinas do Boé – Poste P18873, com a devida vénia.



Foto 3 – Madina do Boé: Imagem do aquartelamento. Foto do álbum de Manuel Coelho, ex-fur mil trms, da CART 1589 (1966/68) – Poste P8548, com a devida vénia.



O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo; tem  270 referências no nosso blogue.

 

GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE: 
O PRIMEIRO CONTINGENTE CUBANO EM ACÇÃO NO BOÉ (1966) 


► ADENDA AO P21529 (09.11.20) (*)


1. INTRODUÇÃO



O local de martírio, pelo sofrimento continuado na sua defesa, denominado Madina do Boé, enquanto território circunscrito à intervenção das forças militares que nele combateram até 05/06 Fev 69, continua a suscitar superior interesse no aprofundamento da sua historiografia, onde cada contributo se transforma em mais uma peça do puzzle na reconstrução da memória colectiva da «Guerra dos Doze Anos» (CTIG; 1963-1974).

Pelas diferentes narrativas publicadas na última quinzena, no Blogue, acreditamos que está longe o dia em que se poderá dar por encerrado este dossiê, uma vez que muito ainda estará, provavelmente, por dizer, contar e/ou escrever.

Para além do acima exposto, o conteúdo da carta manuscrita por Amílcar Cabral (1924-1973), em 12 de Abril de 1966 [por sinal dia de aniversário de minha mãe (1928-2015)], e enviada de parte incerta ao seu camarada Aristides Pereira "Xido" (1923-2011), onde são dadas informações sobre diversos assuntos, mescladas com "orientações/ordens", nomeadamente as relacionadas com os planos a desenvolver pela guerrilha no Sector do Boé, que, a partir daquela data, iria receber "reforços operacionais" com a chegada dos primeiros elementos do contingente cubano, está na origem deste texto que identifiquei como "Adenda ao P21529" (*).

Porque, entre os diferentes temas tratados na carta, se aborda a chegada dos primeiros cinco "internacionalistas cubanos": três artilheiros (Antonio Lahera Fonseca, Heriberto Salabarria e Loreto Vásquez) e dois médicos (Rómulo Soler Vaillant e Raúl Currás Regalado), fomos em busca de algo mais consistente para nos ajudar a compreender o papel desempenhado por esses "reforços", oriundos do Mar das Caraíbas, nos tempos que se seguiram.

Para o efeito, começaremos por analisar, no ponto 2, o conteúdo das "memórias do médico-cirurgião militar Rómulo Soler Vaillant", a que tivemos acesso na nossa investigação, em particular aquelas que se enquadram neste contexto.


2. MEMÓRIAS DO MÉDICO-CIRURGIÃO MILITAR CUBANO RÓMULO SOLER VAILLANT (GUINÉ, 1966/67) DA SUA PASSAGEM PELO BOÉ 


O médico-cirurgião militar Rómulo Soler Vaillant nasceu em 1936, na cidade de Guantánamo, uma das dez províncias de Cuba, onde está situada a Base Naval dos Estados Unidos. Já graduado em medicina, e como maior experiência em cirurgia, realiza a pós-graduação no Hospital Militar de Matanzas «Mário Muñoz Monroy» (Setembro de 1965 a Fevereiro de 1966). Durante este período de tempo trabalhou como cirurgião, Chefe do Serviço de Cirurgia e Director do Hospital.


Em Março de 1966, é integrado na missão internacional com destino à Guiné-Bissau, como cirurgião e médico da guerrilha do PAIGC, com o nome de guerra  "Raúl Sotolongo Soler".


Fez a viagem de avião, com escalas,  até chegar a Conacri, na Guiné-Conacri, na companhia de sete outros companheiros, dois eram médicos (ele e o Raúl Currás Regalado) e os restantes artilheiros e morteiristas [como por exemplo: os tenentes: António Lahera Fonseca e Heriberto Salabarria e o soldado Loreto Vásquez].


Conheceu o Amílcar Cabral (1924-1973) com quem conversou por diversas ocasiões, para além de realizar tarefas de organização dos medicamentos e outros do seu perfil médico, às vezes em Conacri, outras em Boké ou já na "mata",  com os guerrilheiros.


Após a chegada do resto do seu grupo "mobilizado" em Cuba, cuja composição era de oito médicos e vinte militares, seguiram por estrada até Boké, uma localidade a mais de duzentos quilómetros, perto da fronteira com a Guiné-Bissau. 


Boké era a base de abastecimento e infiltração para a Guiné-Bissau, com um hospital de rectaguarda. Esta cidade ficava a cerca de 40 - 50 quilómetros de Simber, a linha de fronteira entre as duas Guinés.


Sobre a constituição deste "grupo", recupero as informações publicadas no Poste P16224, da autoria do,  também, médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado, onde se refere: 


"(...) Em 21 de Maio de 1966, depois de me incorporarem neste contingente, constituído por artilheiros, morteiristas e médicos, embarcámos para a Guiné no navio Lídia Doce. A viagem durou dezasseis dias, chegando ao porto de Conacri em 06 de Junho desse ano. "(...) 


Do primeiro grupo de nove médicos, três (?) viajaram de avião porque o PAIGC precisava deles com urgência.


Continua: 


(...) "De Boké partimos em transporte para Simber, linha fronteiriça com a Guiné-Bissau, a passagem decorreu sem dificuldades. (…)

O acampamento base onde nos encontrávamos chamava-se Kanchafra [Kandiafara ?] ou Cubucaré, não me lembro bem, só me explicariam (mais tarde) os Drs. Júlio García Olivera ("Bebo") e o Luís Peraza Cabrera, que juntos formávamos o grupo médico da Região Sul.

"No Leste e Oeste do país (Guiné-Bissau), existiam também grupos guerrilheiros do PAIGC, conselheiros e médicos cubanos, entre eles os Drs. Jesús Pérez, Teudy Ojeda Suárez (ortopedista) e Domingo Díaz Delgado (neurocirurgião), Raúl Currás Regalado (medicina geral) [12Set1941-15Mai1976]


"Faleceu em 15 de Maio de 1976, entre Nova Lisboa e Lobito, durante a sua missão humanitária em Angola] que, como nós, tiveram que realizar diversos procedimentos cirúrgicos. Devo esclarecer que, excepto o Dr. Pedro Labarrere que já era especialista (internista), quase todos nós tínhamos experiência como alunos, em internato e em pós-graduação do referido perfil, mas ainda não éramos especialistas.

Um acontecimento maravilhoso e marcante, para mim e também para todos nós que formamos o grupo de cubanos nas "matas" da Guiné, foi a chegada, como chefe da missão, do Víctor Dreke, um homem simples, valente e com condições mais do que comprovadas como chefe e líder.

O costume dos guerrilheiros era dançar e cantar por dois ou três dias antes de atacar um quartel e, principalmente, quartéis com tropas numerosas e bem armados. 

Sobre este ataque, foi feito um filme com a direcção do cineasta José Massip e pela câmera de Dervis Pastor Espinosa, onde entrei no baile e, sem camisa, passei como um nativo [ver o filme cubano 'Madina Boé' – Poste P21522]. 

Madina Boé era uma região muito importante para os portugueses e também para os guerrilheiros: em duas ocasiões foi atacada e o fogo inimigo [NT] praticamente não permitiu que os guerrilheiros avançassem. 

Desta vez, os Drs. Virgílio Camacho Duverger, Ibrahim Rodríguez, Santiago Milton Echevarria Ferrerá ("Xisto") e eu [Rómulo Vaillant], garantiríamos o ataque ao quartel de Madina do Boé do ponto de vista médico. Camacho e Ibrahim preparariam as melhores condições no Hospital de Boké e Milton e eu acompanharíamos a tropa.

Instalamos o posto médico nas nossas mochilas a menos de um quilómetro de onde aconteceria o combate. Sob o comando dos chefes guerrilheiros do PAIGC e de Víctor Dreke, este quartel foi atacado, houve surpresa por parte do inimigo [NT], causando baixas com um incêndio que duraria cerca de 30 minutos (creio). 

Depois da surpresa e quando saímos dos abrigos, foram incontáveis os reabastecimentos e os disparos de canhões [sem recuo] contra nós, bombardeamentos e lançamentos de morteiros, claro que recuávamos a uma velocidade superior à dos projécteis que nos atiraram. Se não me falha a memória, tivemos apenas cerca de seis ferimentos, todos leves. Nunca corri tanto na minha vida.

Numa ocasião acompanhei um pequeno grupo de guerrilheiros (bigrupo) durante um reconhecimento, fui na frente durante a viagem e ouvi um grito alto de quem era o meu segurança... Raúl... - Não se mexa, não ande, você está num campo minado - e ele começou a guiar os meus passos para que ambos saíssemos do perigo, eu recusei-me a fazê-lo e gritei para ele vir-me buscar, e ao meu lado, eu pulei e subi para cima dele, graças ao meu santo eu saí desse tormento são e salvo". (…)


 


3. - OUTROS FACTOS RELATADOS NO LIVRO "LA HISTORIA CUBANA EN ÁFRICA", DE RAMÓN PÉRES CABRERA, SOBRE AS ACÇÕES MILITARES DOS CUBANOS EM MADINA DO BOÉ,  EM 1966


► FRENTE LESTE



Os três artilheiros cubanos chegados em [29] de Abril: Antonio Lahera Fonseca, Heriberto Salabarria e Loreto Vásquez, seguiram para a Frente Leste que tinha como comandante Domingos Ramos, que havia acompanhado Amílcar Cabral na sua viagem a Cuba para participar na «Primeira Conferência Tricontinental», que decorreu em Havana de 9 a 12 de Janeiro de 1966.



 


Foto 5 – Citação:
(1966), "Amílcar Cabral, Domingos Ramos, Pedro Pires e Vasco Cabral na Conferência Tricontinental em Havana", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44215 (com a devida vénia).

 

Os três cubanos, armados com AK, de fabrico chinês, para além de ensinarem o manejo de artilharia aos guerrilheiros, participavam nas acções destes em combate. Estes foram, com efeito, os primeiros cubanos a participarem nas actividades da guerrilha na Guiné (Bissau).


As acções tiveram início a partir do 1.º de Maio de 1966 contra o quartel de Madina do Boé. Por parte das forças das FARP participaram dois bigrupos, utilizando metralhadoras ligeiras e lança-roquetes, apoiados por dois morteiros 82 mm. Este quartel estava defendido por cerca de duzentos militares com potente armamento que incluía: dois morteiros de 81 mm, três metralhadoras calibre .50  [, 12.7 mm, talvez a Browning] e bazucas de grande potência [, 8.9 cm]. No ataque do dia 1.º de Maio, domingo, as FARP tiveram dois feridos.


No dia 12 de Maio, 5.ª feira, o mesmo quartel foi fustigado novamente, com fogo de artilharia, tendo atingido algumas "barracas". Nos dias 20, 6.ª feira, e 31, 3.ª feira, desse mês, realizaram-se novos ataques. 


Neste último ataque, a resposta dos portugueses causaram dois feridos aos guerrilheiros. No dia 23 de Julho, sábado, realizou-se o quinto ataque contra o quartel, onde participaram forças de infantaria e artilharia das FARP. 


Nessa ocasião foram atingidas quase a totalidade das instalações dentro do perímetro fortificado do quartel, apesar de não serem conhecidas as baixas inimigas [NT].


De facto as NT, neste ataque ao quartel, registaram três baixas, a saber (CECA; pp 202/203):


■ Soldado, Augusto Reis Ferreira, natural de Montargil (Ponte de Sôr);

■ Soldado, Carlos Manuel Santos Martins, natural da Cova da Piedade (Almada);

■ 1.º Cabo, Rogério Lopes, natural de Chão de Couce (Ansião).



Capa dp livro de Ramón Pérez Cabrera


Os guerrilheiros (FARP) tiveram três mortos e vários feridos. No dia 31 de Julho, domingo, foi realizado um novo ataque ao quartel com fogo de artilharia.

Neste mês de Julho de 1966, chegou à Guiné (Bissau) o 1.º comandante Raúl Menéndez Tomassevich a pedido de um grupo de oficiais das FAR  [, Forças Armadas Revolucionárias, cubanas], acompanhando, pelo país, Amílcar Cabral, João Bernardo Vieira "Nino" e Francisco Mendes. 

Na companhia de Tomassevich faziam parte os comandantes Lino Carreras, Flávio Bravo e outros comandantes das FAR. Tomassevich permaneceu vários meses assessorando os membros das FARP na organização das Bases guerrilheiras e participou na planificação da «Operação Madina do Boé», efectuada nos dias 10 e 11 de Novembro de 1966.

Esta seria a maior acção realizada até esta data pelas FARP.


No dia 10 de Novembro, 5.ª feira, às cinco da tarde, os guerrilheiros iniciaram os ataques com fogo de canhões e morteiros contra as instalações do quartel, onde estariam uns trezentos efectivos sob o comando de um capitão [o Cap Mil Inf Jorge Monteiro, autor do livro «Uma Campanha na Guiné; 1965/67»] que, entrincheirados nas suas fortificações defendiam-se com as suas armas de infantaria apoiados por potentes armas pesadas: dois morteiros de 81 mm, três metralhadoras de .50  [12,7 mm ] dez metralhadoras de .30 [7.62 mm].  Os atacantes estavam acompanhados por cerca de trezentos e cinquenta guerrilheiros que contavam com boas armas de infantaria e um poderoso armamento pesado: três canhões sem recuo de 75 mm, três morteiros de 82 mm, 15 lança-roquetes e seis metralhadoras antiaéreas de 12,7 mm, utilizadas em tiro rasante.

As acções planificadas pelo comandante Tomassevich, em coordenação com Amílcar Cabral, previam ainda a inclusão de emboscadas de contenção nas áreas de circulação terrestre e fluvial, assim como contra helicópteros. Na liderança das forças atacantes estava o comandante Domingos Ramos, membro do comité político do PAIGC e um dos líderes mais queridos e respeitados pelos guerrilheiros.

No combate participaram seis internacionalistas cubanos: os tenentes Aurélio Riscard Hernández, Heriberto Salabarria Soriano, Virgílio Camacho Duverger, médico, os soldados Loreto Vásquez Espinosa e Milán Suárez, anestesista. Também participou Ulises Estrada Lescaille [nome de Guerra, de Dámaso José Lescaille Tabares (11.12.1934-26.01.2014], membro da Inteligência cubana. (Op. Cit; pp 100-101).


Fonte: https://books.google.pt/books?id=4HT2AgAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-PT#v=onepage&q&f=false




4.  TESTEMUNHO DO MÉDICO CUBANO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER (1934-2003) O ATAQUE AO QUARTEL DE «ADINA DO BOÉ EM 10 DE NOVEMBRO DE 1966 – Poste P16613


Ao terceiro mês de estar na região Leste [novembro'66], é-lhe pedido que realize um reconhecimento ao quartel de Madina do Boé, considerada por si como a missão mais importante em que participou, tendo por companhia o dr. Milton Echevarria, médico do seu grupo na Frente, e o apoio de guias/guerrilheiros destacados para aquela acção, caminhada que, disse, demorou perto de cinco horas, uma vez que a base estava a cerca de três quilómetros dali.

Em 10 de novembro de 1966, uma quinta-feira, a operação concretizava-se. Antes do ataque, na companhia de um enfermeiro cubano anestesista que havia chegado para reforçar o grupo de saúde, criou um posto sanitário avançado em território da Guiné-Bissau, perto da zona do combate, de modo a facilitar a assistência médica e a prestar os primeiros socorros aos combatentes que ficassem feridos, pois não era fácil chegar ao Hospital de Boké.

Conta que a primeira morteirada lançada pelos portugueses [da CCAÇ 1416] cai, por casualidade, no local onde estava o posto de observação no qual se encontrava o comandante da Frente, o guineense Domingos Ramos. Os estilhaços da granada atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta que não deu tempo para o levar até ao hospital para o poder operar. 

Durante a evacuação, a caminho do hospital [não indica qual: se a enfermaria que ajudou a criar em território da Guiné-Conacri, se o Hospital de Boké], Domingos Ramos faleceu.


Nota final: 

Para mais detalhes sobre a morte de Domingos Ramos, consultar o poste P16662 > Domingos Ramos, desertor do exército português e herói nacional da Guiné-Bissau: entre o mito e a realidade: as últimas palavras que ele nunca poderia ter dito, nem muito menos escrito, antes de morrer, em 10/11/1966, no ataque a Madina do Boé (Jorge Araújo).


► Fontes consultadas:

Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).


Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001).


Ø Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

13Nov2020

__________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 9 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21529: (D)o outro lado do combate (61): A chegada dos primeiros cubanos em abril de 1966, e o reforço da guerrilha no Boé, conforme carta de Amílcar Cabral para "Xido", o nome de guerra de Aristides Pereira

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16304: Notas de leitura (858): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte IV: depois de 3 meses em tratamento do paludismo, em Conacri, o médico vai para a frente leste, em junho de 1967, regressando a casa em janeiro de 1968


Guiné > 1970 > s/l > Algures, numa enfermaria do mato, um "médico guerrilheiro" do PAIGC, seguramente cubano, faz um parto.  Uma das célebres fotos de Bara István o fotojornalista húngaro, nascido em Budapeste. 1942, que esteve 'embebed' com forças do PAIGC, no mato, em 1969/70. Ocorre-nos perguntar se médico. parturiente e criança (do sexo masculino) ainda estarão vivos. Oxalá /inshalla / enxalé!

Título da imagem em húngaro: "0084_Bara Istvan_Szules a dzsungelben 5, Guinea Bissau_1970.jpg [Em português, um nascimento no mato],

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria > Guiné-Bissau (com a devida vénia / with our best wishes...)

Estamos gratos a este conhecido fotojornalista magiar pelas imagens sobre a guerra colonial / guerra de libertação na Guiné-Bissau que disponibilizou na sua página. Isttvàn Bara continua manter, na sua página na Net, na sua galeria, esta e outras fotos que documentam bem a dura realidade da vida dos guerrilheiros do PAIGC e da população sob o seu controlo.  artimos do princípio que estas imagens são do domínio público.

Tentámos em tempos contactá-lo por e-mail, mas nunca recebemos resposta, para obtermos autorização para divulgação de mais fotos da sua fotogaleria. A Hungria, como se sabe,  é hoje um membro da União Europeia, e da NATO,  mas 1989 tinha um regime de partido único, e estava integrada no Pacto de Varsóvia. Penso que o fotojornalista de ontem se adaptou, com sucesso,  aos novos tempos e à economia de mercado. Na qualidade de diretor do MIT, e de fotojornalista com prestígio internacional, integrou em 1985 o júri do famoso prémio World Press Photo (mas ambém em 1986). Recorde-se que ainda estávamos em plena guerra fria.

Há apenas duas fotos, tiradas por ele, no Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum.


Quarta parte, enviada a 13 de julho último,  das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue.  



Foto à esquerda:

O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].


1. INTRODUÇÃO

Caros tertulianos; eis a última de quatro partes em que foi dividida a publicação, no nosso blogue, da entrevista realizada pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch ao cirurgião Domingo Diaz Delgado, médico do primeiro grupo de clínicos cubanos chegados em junho de 1966 à Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] para apoiarem o PAIGC na sua luta pela Independência.

Trata-se da primeira de três entrevistas organizadas pelo autor e que constam no seu livro, escrito em castelhano, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.]. [Disponível "on line"em formato pdf, ].

Seguir-se-ão os depoimentos de Amado Alfonso Delgado (médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia) e Virgílio Camacho Duverger (médico militar, especialista em cirurgia geral), onde cada um deles relata algumas das suas histórias de vida  passadas naquele contexto durante as suas missões,  de acordo o guião de entrevista utilizado pelo investigador. "(D)o outro lado do combate" é o título escolhido  por mim para explicitar o propósito da publicação deste meu trabalho neste espaço de partilha.

O livro merece uma leitura integral: o autor conseguiu localizar e entrevistar 15 médicos cubanos que estiveram, como "voluntários" em missões no estrangeiro, de "ajuda humanitária" e "solidariedade internacionalista", de 1963 a 1976, em diversos contextos africanos: Argélia, Guiné-Bissau, Congo Leopoldville, Congo Brazzaville  e Angola.

A primera brigada sanitária cubana chegou à  Argélia en maio de 1963: tinha 55 membros. incluindo 29 médicos- Por  tszões de "segurança de Estado", estas "histórias" tiveram que se manter "secretas".

Só a partir de 2001 é que o jornalista, investigador e escritor  H. L. Blanch [, foto à esquerda,] pode começar a trabalhar este tema. Doze dos entrevistados são apresentados como "médicos guerrilheiros"; os outros 3 (incluindo uma mulher) integraram a missão da Argélia, que não  era militar (nem, portanto, secreta).  Recorde-se que a Argélia tornou-se independente em 1962, depois de uma longa e sangrenta guerra contra a França.

Porque se trata de uma tradução (com adaptação livre e fixação do texto em português, da minha responsabilidade),  não farei juízos de valor sobre os diferentes depoimentos:  apenas coloquei  entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento socio-histórico ao que foi transmitido,  com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos deste blogue.

2. O CASO DO CIRURGIÃO DOMINGO DIAZ DELGADO [IV]

Para melhor compreensão da contextualização deste último fragmento sobre o médico em título, sugere-se a leitura dos P16224, P16234 e P16285, primeira, segunda e terceira parte destas "notas de leitura" (*).

O primeiro poste está relacionado com a preparação para a missão africana, a viagem (secretíma) de barco até à Guiné-Conacri e os primeiros contactos com a estrtutura do PAIGC noterreno. O segundo tem a ver com a  explicação/caracterização do leque de actividades clínicas presentes no quotidiano de um médico naquela guerra de guerrilha, das duríssimas condições logísticas vividas em bases improvisadas, provisórias e de parcos recursos, ora socorrendo os guerrilheiros feridos nos combates, ora cuidando das maleitas apresentadas pela população sob o seu controlo. Por fim,  no terceiro poste,  o entrevistado fala das actividades operacionais em contexto de bigrupo durante os primeiros três meses de 1967 na região [frente] Norte [Sambuiá] até ao momento em que começou a ter vários problemas de saúde que o obrigaram a fazer uma viagem, já em março de 1967.  até Conacri para recuperação/restabelecimento. e onde ficou 3 meses.

Utilizando o mesmo instrumento já apresentado no P16234 [Suprintrep n.º 31, de 13 de fevereiro de 1971 - P2787] dá-se conta na linha azul (mapa abaixo) da geografia dos itinerários percorridos pelo médico Domingo Diaz, também designados por “corredores”, ligando as diferentes bases do PAIGC, durante os primeiros oito meses da sua missão [julho de 1966 a março de 1967].

A estrela verde corresponde aos itinerários utilizados durante o segundo período na região [frente] Leste, entre junho e dezembro de 1967, com destaque para as actividades desenvolvidas em Madina do Boé e Beli.


Mapa das regiões [frentes e bases do PAIGC]. A linha azul corresponde ao primeiro período da missão de Diaz Delgado  (de julho de 1966 a março de 1967), na Frente São Domingos / Sambuiá. A estrela verde corresponde ao segundo período (de junho a dezembro de 1967), na Frente Bafatá  / Gabu (Sul). Infogravura adapt. de Supintrep nº 31, fevereiro de 1971.

Se em junho de 1967 Diaz Delgado  vem de Conacri, onde esteve a ser tratado de uma crise de paludismo, para a região do Boé, não faz sentido a nossa referência, no poste anterior [P16285],  à Op Cacau, realizada em  4/6/1967, e em que morreu o cap inf José Jerónimo da Silva Cravidão, cmdt da CCAÇ 1585, na região de Bricama (Farim), justamente no dia em que fazia 25 anos... 

O médico cubano refere uma data anterior,  março de 1967, para o ataque das NT a Sambuiá,  na véspera de ser  evacuado para Conacri com paludismo, regressando ao fim de 3 meses... No período em que o Diaz Delgado esteve na Guiné, na frente norte, entre agosto de 1966 e março de 1967 e depois na frente leste, entre junho de 1967 e janeiro de 1968, não temos informação de mais nenhum comandante de companhia das NT morto em combate numa operação. O Diaz Delgado pode estar a querer referir-se a um alferes, substituto do comandante de companhia. Quem poderá ter morrido em março de 1967 no ataque à base de Sambuiá ?









Indice da obra. A versão em pdf não está paginada,  Hedelberto López Blanch: «Historias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. [Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em: http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf. [A versão disponível em pdf,. embora integral, não está paginada; em papel a obra tem 248 pp, em versão digiral 147 pp.]


Capítulo 10 - Onde o tempo não se mede pelo relógio” (continuação). Transcrição da entrevista de Diaz Delgado, com as seis últimas questões [da 23ª à 28ª, identificadas por nós em numeração romana] (**)


(xxiii) Depois da recuperação em Conacri, 
aonde o colocaram?


Após um forte tratamento médico e com uma recuperação quase total, enviaram-me para a zona [frente] Leste. Esta região era um pouco mais tranquila do ponto de vista militar, embora se realizassem várias operações. Por exemplo Víctor Dreke [, o chefe da missão cubana, em Conacri] dirigiu um dos ataques a um quartel. Anteriormente [novembro de 1966] tinha-se verificado ali um combate importante onde mataram um dirigente do PAIGC, o comandante Domingos Ramos.

[Domingos Ramos foi morto em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966 (curiosamente o dia do meu 16.º aniversário), sendo considerado, por esse facto, um herói da Guiné-Bissau, uma vez que fez parte do grupo de pioneiros da luta de libertação, sob a liderança de Amílcar Cabral (1924-1973). Morreu ao lado do cubano Ulisses Estrada.Tem o seu nome ligado à toponímia e a instituições de ensino do país. O seu rosto figura em notas do Banco Central da Guiné-Bissau – exemplo da nota de cem pesos de 1983 e 1990. Tinha também um irmão na guerrilha, o Pedro Ramos – P16123].


[Imagem à esquerda: Efígie de Domingos Ramos, em nota de 100 pesos do Banco Central da Guiné-Bissau, emitida em 1990].


Para Domingo Diaz, a frente Leste era uma região onde se combatia, mas não com as mesmas características das do Norte. No Leste era uma zona mais isolada, com uma fronteira amiga, ou seja, a Guiné-Conacri.

Na zona de Madina do Boé morreu um companheiro cubano por uma úlcera perfurada ao comer umas folhas muito ácidas daquele lugar, que se chamam "foli" [também se diz "fole", com o fruto faz-se sumo]. Os nativos comem-nas para ter mais força e reanimarem-se, pois é muito ácida. 

A este companheiro se lhe perfurou o estômago e quando chega às minhas mãos está em agonia. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para lhe conter a hemorragia, e,  como carecíamos de instrumentos cirúrgicos, tentámos transferi-lo para o pequeno hospital de Boké, na Guiné-Conacri, mas faleceu durante a viagem. Este companheiro foi sepultado ao lado da base aonde nos encontrávamos [no Boé].

[A morte deste cubano – o tenente Radamés Sánchez Bejerano – ocorreu em 19 de julho de 1967, cinco dias depois de um ataque de artilharia efectuado pelos guerrilheiros do PAIGC ao quartel de Madina do Boé, conforme depoimento do médico Domingo Diaz publicado no livro «La Historia Cubana en África – 1963-1991», de Ramón Pérez Cabrera, 2011, p. 152. (Imagem da capa, à direita),

[ Aí se refere que após concluído o ataque, e na sequência da retirada, o tenente Radamés Sánchez perdeu-se na mata durante dois dias e por efeito de ter fome comeu umas folhas muito ácidas que lhe provocaram lesões no estômago. Tinha vinte e nove anos. (…) Esta foi a segunda baixa no contingente cubano em missão na Guiné-Bissau, sendo a primeira a de Félix Barriento Laporté, ocorrida duas semanas antes, em 3 de julho de 1967, durante o ataque ao quartel de Mejo. Na retirada, o artilheiro cubano morreu ao ser atingido por uma granada de obus. Tinha vinte e cinco anos. (op.cit. p.152)].


(xxiv) Que características tinham 
os guineenses?

Recordo muitos nomes valiosos, de chefes e soldados muito valentes que estavam dispostos a morrer antes de um cubano cair nas mãos do inimigo. Às vezes ouve-se falar de pessoas que são mais ou menos combativas. Creio que a guerrilha mais combativa, decidida e valente que havia em África naquela época, era a integrada pelos homens dirigidos por Amílcar Cabral [1924-1973].


(xxv) Nas caminhas pelas matas 
teve experiências com serpentes?


Claro que sim. Atendi vários com mordidelas de serpentes e também vi morrer à minha volta seis nativos por esse motivo. Eram principalmente da população civil. 

Recordo um caso na Zona Leste, um homem que chegou em muitas más condições e lhe tinham feito um garrote na perna, a qual estava em muito mau estado, com muitas borbulhas e praticamente preta. Comecei a tratá-lo e eu tinha uma ferida no pé. Usava  uns chinelos de plástico [hoje, havaianas] que os naturais utilizavam muito e a que me acostumei,  a esse tipo de calçado. Não me lembrei que tinha essa ferida no pé e já havia visto morrer gente à minha volta por picadelas de serpente.

Para esse tratamento fazíamos um corte em cruz no lugar da picada, levantávamos a pele nessa zona e começávamos a drenar para que saísse o sangue. Todo esse líquido me ia caindo na ferida que eu tinha no pé. Não sabia se isso me podia fazer mal ou não. Tomei a decisão de colocar um garrote na perna e fazer-me uma ferida. Não tinha bisturi, senão um canivete, que não estava esterilizado, mas era tanta a adrenalina que não senti o corte, e comecei a drenar. Um companheiro cubano controlava o garrote. Não tínhamos soro antiveneno para aplicar nessa zona. Em cada quarenta e cinco minutos aliviava dez minutos o garrote para que o sangue fluisse.

Passaram as horas e não senti nenhum sintoma. Provavelmente tomei esta decisão muito apressada, mas como tinha visto morrer cinco pessoas não quis arriscar a ser mais a sexta. Os companheiros que estavam comigo eram gente competente, um grupo de tropas especiais de dez guerrilheiros, embora não estivessem acostumados às lides  médicas. Dois deles desmaiaram, mas depois outro ficou a ajudar-me até ao fim.




Um curioso mapa da Guiné, sem data nem origem... Veja-se como os cubanos viam o território. Os únicos rios sinalizados são o Farim e o Corubal, Madina (do Boé) tem a mesma importância que as outras povoações donde faltam topónimos importanets como Nova Lamego (Gabu), Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa, Xime, Bambadinca, Catio, Cacine... Ziguinchor (no mapa, grafado como Zinguinchor), no Senegal, e Boké e Conacri na repúblcia da Guiné são as três únicas referências, nos países vizinhos,  que convinha ficar... Fonte: H. L. Blanch (2005).



(xxvi) Quando e como regressou 
da Guiné-Bissau?


Regresso em janeiro de 1968, ou seja, estive nesta missão durante vinte meses e em zonas de combate cerca de dezasseis. Regressei em más condições. Quando parti tinha 80 quilos e saí da Guiné-Bissau só com cinquenta. Com o objectivo de me recuperar, levaram-me a Conacri onde embarquei no navio cubano Pinar del Rio, que ia com destino ao Congo Brazzaville. Esses sete dias de viagem, mais uma semana no Congo, carregando troncos de árvores, e outra semana para regressar à Guiné-Conacri para recolher os restantes companheiros, serviram para me restabelecer um pouco.

O meu grupo regressa com o que pensámos ser aquele que nos iria substituir, uma vez que quando tínhamos oito meses de actividade em território da Guiné-Bissau, chega o segundo grupo cujo objectivo era reforçar a missão. No final regressamos todos juntos.

Desse segundo grupo quero fazer menção ao doutor Raúl Currás Regalado, que esteve todo o tempo na Zona Sul da Guiné-Bissau. Posteriormente foi cumprir uma missão internacionalista em Angola, aonde participou na companhia do clínico cubano Martin Chang Puga em várias acções de guerra. Durante uma deslocação, o veículo aonde seguiam voltou-se e perderam a vida. Currás tinha características excepcionais e deixou dois filhos e a esposa. E Chang, que não esteve na Guiné-Bissau, era epidemiologista, e também deixou filhos e esposa. [Os dois são considerados "mártires" pelo reime cubano].


(xxvii) Como foi a chegada do grupo 
a Cuba?


Em Cuba fomos recebidos pelo então capitão Guillermo Rodriguez del Pozo, chefe dos Serviços Médicos das FAR [, Forças Armadas Revolucionárias], e seu adjunto, Ángel Fernández Vila. Chegámos a Mariel e fomos para um acampamento aonde durante dois dias nos fizeram exames médicos. Ali nos foram visitar o comandante Pedro Miret, designado por ministro das FAR  Raúl Castro [n. 1931, atual presidente de Cuba]. 

Sentimo-nos muito orgulhosos e reconhecidos pelas palavras que nos dirigiram, e a todos os companheiros que participaram nesta missão nos entregou uma pistola «Makarov», a qual guardo ainda. [Pistola semiautomática, de 9 mm, que entrou em 1951 ao serviço das forças armadas e políciais da antiga União Soviética, substituindo a obsoleta Tokarev].


(xxviii) Que fez ao regressar 
a Cuba?

Conclui a especialidade de neurocirurgia. Já tinha experiência desde quando era estudante de medicina ao prestar apoio nos Centros. Nesse tempo existiam somente três mil médicos em Cuba e os cirurgiões eram muito poucos. Antes de partir para a Guiné-Bissau fiz o internato com o sistema do Instituto Nacional de Cirurgia e Anestesiologia (INCA), criado pelo comandante René Vallejo para formar no imediato cirurgiões e anestesistas. Nesse ano de internato realizei operações de cirurgia superior e quando regressei da missão queria fazer neurocirurgia. 

Estive três anos e meio no Instituto de Neurologia e Neurocirurgia e graduei-me como especialista de primeiro grau nessa área. Depois estive oito meses no Hospital Joaquin Castillo Duany, no Oriente, como chefe dos Serviços de Neurocirurgia, e mais tarde transferi-me para o Hospital Naval como chefe da mesma especialidade, até 1979. Daí passei para o Ministério do Interior com a perspectiva da fundação do CIMEC [Centro de Investigaciones Médico-Quirúrgicas] em 1982, aonde trabalho desde o seu início como vice-director para a docência e a investigação.




Guiné > c. 1966//67 > s/l > Provavelmente base de Sambuia, em 1967... Da direita para a esquerda, os médicos Pedro Labarrere (falecido),  Domingo Díaz Delgado e Teudy Ojeda... O primeiro da direita era o chefe do grupo cubano da Frente Norte, o tenente Alfonso Pérez Morales (Pina). Fo anexa ao livro de H.L. Blanch (205). Reproduzida com a devida vénia...



Domingo Diaz Delgado - Nota biográfica (adapt por JA):

(i)  nasceu em 1936, numa povoação chamada Florencia, na província de Camaguey, mas foi registado em Arroyo.  Arenas, na província da cidade de Havana;

(ii) terminou o bacharelato no Instituto de Marianao,  em 1957;

(iii) começou a estudar medicina em 1959, devido a estar fechada a Universidade desde 1956, quando se agudizou a luta contra o ditador Fulgêncio Batista Zaldivar (1901-1973);

(iv)  em meados de 1958 foi detido pela ditadura e levado à Décima Estação de Polícia situada no El Cerro, em Havana; ali foi torturado durante vários dias, mas, por alguns esforços que foram desenvolvidos, foi libertado e saiu para o México;

(v) regressou ao país em janeiro de 1959, depois do triunfo da revolução castrista;  decidiu retomar os seus estudos, matriculando-se na Escola de Medicina.

(vi) em 1961, quando se funda a Associação de Jovens Rebeldes, passou a ocupar o cargo de secretário organizador na Escola de Medicina;

(vii) mais tarde, em 1962, aderiu à União de Jovens Comunistas;

(viii) desde os primeiros anos, trabalhou como interno  de cirurgia no Hospital Militar Carlos J. Finlay;

(ix) terminou o internato de cirurgia em 1965;

(x)  pertenceu ao grupo de médicos que subiu, em 14 de novembro de 1965,  ao Pico Cuba Turquino, a cuja graduação presidiu o Comandante-chefe Fidel de Castro (n. 1926) [tratou-se da primeira geração de médicos formados pelo regime: 400 médicos e 26 estomatologistas]

____________

Notas do editor:

(*) Postes a nteriores:

22 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

24 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (851): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

terça-feira, 12 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4326: Estórias cabralianas (49): Cariño mio... Muy cerca de ti, el ultimo subteniente romántico (Jorge Cabral)

1. Mensagem do Jorge Cabral, ex- Alf Mil Art, Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71)

Amigos!
A propósito do Mato Cão (*) aí vai estória.
Luís, prepara o prefácio.

Abração,
Jorge Cabral



2. Estórias cabralianas > Da Enfermeira Cubana aos Tubarões no Geba

Dois dias depois de chegado a Bambadinca em meados de Junho de 69, fui mandado montar segurança no Mato Cão. Periquitíssimo, cumpri todas as regras, vigiando a mata de costas para o rio, sem sequer reparar na beleza da paisagem.

Mal sabia então, que ali havia de voltar dezenas de vezes, durante o ano que passei em Missirá. Pelo menos uma ida por semana para ver passar o Barco, no que se transformou numa quase agradável rotina.

Se a hora era propícia até lá batíamos uma boa sesta e certamente algum turra passeante se surpreendeu com os meus estridentes roncos, os quais numa estória que conto aos miúdos, assustavam os tubarões do Geba.

Tubarões no Geba? Claro que sim!

Pois não relatou o meu avô, militar em Moçambique na Guerra do Mouzinho, que marchou um dia inteiro por cima de uma jibóia?

Aí por Março de 71, chegou-me uma informação mais que duvidosa, mas que eu quis acreditar – em Madina existia uma enfermeira cubana. Ora na altura tinham-me mandado afixar nas árvores do Mato Cão, uns panfletos, convidando os turras à deserção.

Quais turras, quais quê? Eu só pensava na Cubana, que a minha imaginação transformara numa bela andaluza cheia de salero. Ela sim, seria bem-vinda a Missirá.

Assim em vez dos panfletos deixei uma mensagem:

“Se habla español. Mui cerca de ti, Cabral, el último alférez romántico”...

Que terão pensado os guerrilheiros?

Não sei. Mas hoje acredito que foi por esta e por outras que o Missirá do Cabral nunca foi atacado.


Jorge Cabral

3. Comentário de L.G.:

Não resisto, embora quebrando o meu dever de isenção, a fazer um comentário a mais esta estória cabraliana. O Jorge, que na vida real é professor universitário, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, onde coordena a pós-graduação de Criminologia e onde lecciona matérias como Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito de Menores, não é dos tabanqueiros mais assíduos. Sei que nos lê religiosamente todos os dias, mas é mais parco na colaboração escrita. Não sendo prolixo, é contudo um dos autores mais queridos do nosso blogue, tendo inclusive um clube de fãs...

Fico feliz por ele, expressamente, me convidar para prefaciar o seu futuro livro, que ainda não tem título nem editor. Claro que aceito, logo de caras. E vamos fazer tudo para que se tranforme no sucesso editorial do ano. Ele, Cabral, bem o merece. E, com ele, o nosso blogue, a nossa Tabanca Grande, os seus leitores, os/as seus/suas admiradores/as, incluindo muitos dos seus alunos/as da pátria de Cabral (do outro, o Amílcar).

Quanto à história de hoje, não podia ser mais apropriada. 12 de Maio é o Dia Internacional do/a Enfermeiro/a. Faz anos que nasceu a mulher que fundou a moderna profissão de enfermagem, a inglesa Florence Nightingale (1820-1910).

Por outro lado, a enfermeira internacionalista cubana fazia parte do imaginário (ou das miragens) do Zé tuga, na Guiné ... Por todo lado, víamos hospitais no mato e, à nossa espera, uma enfermeira cubana, imaculada, vestida de bata branca (***)...

Que dizer destas pequenas jóias literárias do nosso Cabral (o único, o autêntico, o nosso) ? Falo com ele ao telefone, de vez em quando, e ele deixa-me sempre bem disposto, mesmo quando não me trás boas notícias da nossa Guiné (que lhe chegam em primeira mão, através dos seus alunos, incluindo os filhos da nomenclatura)... Ontem, dizia-me que continua a querer voltar a Fá Mandinga para ir buscar uns papéis, seguramente imnoportantes, que deixou escondidos, em 1971, no alto do depósito de água, num buraco bem calefatado... Ele diz-me isto sem se desconcertar, com a maior naturalidade do mundo... É por isso que o seu humor é tão sui generis... Talento que lhe vêm no ADN, ou não tivera ele um avô, militar, que lhe contava histórias do realismo fantástico, como essa de andar a marchar toda a noite, em Moçambique, por cima de uma jibóia tão comprimida como a picada...

Jorge, mãos à obra, vamos ultimar livrinho!

PS - Jorge, no exército cubano, não me parece que eles tenham esse tal posto de alferes... Pelo sim, pelo não, promovo-te, no título, a subteniente
, não acontecer que a carta não chegue a Garcia, por erro no remetente.
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. o postes de 11 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4317: Os Bu... rakos em que vivemos (8): Estância de férias Mato de Cão, junto ao Rio Geba (J. Mexia Alves)


(**) Vd. os últimos postes desta série:

8 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4155: Estórias cabralianas (48): A Bandolândia ou uma aula de história em... 2092 (Jorge Cabral)

(...) O Cidadão – Aluno XI7 frequenta a décima semana do Curso Unificado – Primário, Secundário, Universitário, o qual segundo as normas da Declaração de Cacilhas, lher irá conferir o Diploma da Sabedoria.

Claro que, quando entrou na escola, já dominava muitas das matérias que antigamente demoravam anos a aprender, pois logo em criança lhe implantaram um chip com todos os conhecimentos básicos. Porém XI7, hoje chegou à aula cheio de dúvidas. É que encontrou uma fotografia do seu trisavô, vestido com uma farda e empunhando um instrumento, talvez uma arma.(...)



2 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4129: Estórias cabralianas (47): A minha mobilização: o galo dos Cabrais... (Jorge Cabral)

(...) Calma, simpática, acolhedora, a Vila de Vendas Novas. Bom vinho, petiscos, raparigas bonitas. Que mais podia aspirar o Aspirante? No Quartel fazia tudo, isto é, nada. Acumulara cargos, Justiça, Acção Psicológica, Revista, Cinema e ainda os discursos da Peluda.

Cumpria gostosamente um peculiar horário. Após o toque de alvorada, às vezes de ressaca, de cara por lavar e barba por fazer, corria para a Formatura Geral, onde... passava revista ao Pelotão. Meia hora depois, abancava no Bar e tomava um lauto pequeno almoço, antes de regressar à cama. (...)


31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4114: Estórias cabralianas (46): Inspecção Militar: E todos os tinham no sítio... (Jorge Cabral)

(...) Pois, também eu naquela manhã de Junho me dirigi à Avenida de Berna, ao Quartel do Trem Auto, onde hoje funciona a [Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da] Universidade Nova [de Lisboa].Éramos mais de cem, altos e baixos, loiros e morenos, alguns mancos, pitosgas muitos, um quase corcunda, três gagos e dois tontos. Mandaram-nos despir e pôr em fila, numa literal e verdadeira bicha de pirilau. (...)

2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3963: Estórias cabralianas (45): Massacres e violações (Jorge Cabral)

(...) Corria o ano de 1968, quando prestes a concluir o Curso, não resisti ao convite do Estado – Férias pagas em África, com grande animação e desportos radicais. Primeiro o estágio-praia para os lados da Ericeira, findo o qual, tive um grande desgosto. Tinham-me destinado ao turismo intelectual – secretariado. Felizmente as cunhas funcionaram e consegui ser reclassificado em atirador, tendo passado a frequentar no Alentejo, o estágio-campo. Terminado este, ainda vivi muitos meses de tristeza e inveja ao ver os meus camaradas integrarem satisfeitos numerosas excursões, as quais iam embarcando (...).

27 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3808: Estórias cabralianas (44): O amoroso bando das quatro não deixou só saudades... (Jorge Cabral)

(...) O Amoroso Bando das Quatro deixou-nos muitas saudades. Mas que noite agradável ... até sonhámos com elas. Só que ainda nem três dias haviam passado, já recebíamos tratamento à fortíssima infecção que nos atingira o dito e adjacências. Graças à Penicilina, o caso seria em breve esquecido, pois afinal tinham sido apenas ossos do ofício, os quais segundo alguns até mereceram a pena... Porém, e estranhamente, os sintomas começaram a surgir nos africanos, soldados e milícias, os quais não tinham usufruído da benesse (...).

6 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3572: Estórias cabralianas (43): O super-periquito e as vacas sagradas (Jorge Cabral)

(...) Cumbá, a terceira mulher do Maunde, ainda uma menina, sentiu as dores de parto, ao princípio da noite. Às duas da manhã sou lá chamado. Está muito mal e as velhas não sabem o que fazer. Eu também não. Vamos para Bambadinca. Chegamos, mas Cumbá morre e com ela a criança não nascida. Amparo o Maunde, que chora e grita:-Duas vacas, Alfero, duas vacas! (...)

26 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3519: Estórias cabralianas (42): As noites do Alfero em Missirá e uma estranhíssima ementa (Jorge Cabral)

(...) Eram calmas as noites do Alfero? Deviam ser, pois assim que pôs os pés em Missirá, cessou imediatamente a actividade operacional dos seus vizinhos de Madina. Chegou-se a pensar que o Comandante Corca Só entrara em greve, mas no Batalhão acreditava-se num oculto mérito do Cabral. Aliás, estando ainda em Fá e esperando-se um ataque a Finete, o Magalhães Filipe para aí o mandou, sozinho, reforçar o Pelotão de Milícias. Lá passou oito dias, dormindo na varanda do Bacari Soncó, que o alimentou a ovos cozidos (...).


13 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3446: Estórias cabralianas (41): O palácio do prazer, no Pilão (Jorge Cabral)

(...) De Bissau conheci muito pouco. Apenas o Pilão, e neste Os Dez Quartos, um palácio do Prazer. Era o local ideal para um sexólogo, pois tendo todos os quartos o mesmo tecto e paredes incompletas, ouviam-se os murmúrios, os gritos, os ais e os uis, deles e delas, em plena actividade. Sempre que lá fui, abstraí-me um pouco da minha função e dediquei-me à escuta, tentando até catalogar os clientes por posto, ramo, forma, jeito, velocidade e desempenho (...).

4 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3399: Estórias cabralianas (40): O meu sonho de empresário (falhado): a construção de uma tabanca-bordel (Jorge Cabral)

(...) Claro que lembro do Tosco! Havia pretas, mulatas e até uma chinesa. Todas, mais os copos, trataram-me da saúde. Entrava sempre a coxear, por via dos descontos… Mas o meu preferido era o Bolero, onde jantava no primeiro andar, antes do Tango em baixo, tocado a rigor por uma orquestra de cegos. Ainda lá fui após o 25 de Abril. A mesma orquestra, as mesmas putas, mas a música mudara – Todos em coro cantávamos a Internacional (...).

(***) Sobre os serviços de saúde do PAIGC e a ajuda cubana, vd. por exemplo:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli (Luís Graça)

11 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingos Diaz, 1966/67)

12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P956: Antologia (48): Félix Laporta, o primeiro cubano a morrer, num ataque a Beli, em Julho de 1967

14 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P960: Antologia (49): Oficialmente morreram 17 cubanos durante a guerra

18 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P967: Antologia (51): Os combatentes cubanos ou a mística da guerrilha (Victor Dreke)

15 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2762: PAIGC: Instrução, táctica e logística (11): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XI Parte): A máquina logística (A. Marques Lopes)

17 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2955: PAIGC: Instrução, táctica e logística (12): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XII Parte): Saúde (A. Marques Lopes)

24 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3090: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação do cubano Ulises Estrada

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16613: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XI: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [II]: Estava a 3 km de Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966, quando o cmdt Domingos Ramos foi morto por um estilhaço de morteiro da CCAÇ 1416 (Jorge Araújo)


Foto nº 1 > Guiné > Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68) > Canhão s/r,  vendo-se ao fundo uma das célebres colinas do Boé que rodeavam o aquartelamento.



Foto nº 2 > Guiné > Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68) > Abrigo

[Duas das 38 fotos de Madina do Boé com que o Manuel Coelho nos  brindou  em 2011 e que já publicámos no nosso blogue, sendo até agora o melhor registo fotográfico que conhecemos deste mítico aquartelamento. Justifica-se a republicação, um dia destes,  do conjunto, por temas. (LG)]

Fotos: © Manuel Caldeira Coelho (2011). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas]


 
Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes),
Portimão, Grupo Lusófona.


1. INTRODUÇÃO

Dando continuidade ao projecto de investigação que tem por título «d(o) outro lado do combate», seguimos com mais algumas das memórias transmitidas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, nos anos de 1966 a 1969.

No poste anterior, iniciámos a entrevista ao médico militar Virgílio Camacho Duverger [1934-2003], a terceira no alinhamento do livro escrito em castelhano pelo jornalista e investigador  Hedelberto López Blanch, uma coletânea de memórias e experiências divulgadas pelos seus diferentes entrevistados, a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação [Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em: 

Uma vez que se trata de uma tradução e adaptação do castelhano, onde procurei respeitar as ideias expressas nas respostas dadas a cada questão, entendi não fazer juízos de valor sobre o seu conteúdo, colocando entre parênteses rectos, quando possível, algumas notas avulsas de reforço histórico ao que foi transmitido, com recurso ao vasto espólio disponível no nosso blogue e a outras referências retiradas da Net.

Por outro lado, este segundo poste,  referente ao médico Virgílio Camacho Duverger,  irá ter, certamente, comentários de grande valor histórico por parte dos bravos camaradas, ex-combatentes, onde os factos relatados estão prestes a completar cinquenta anos. É muito tempo… mas acredito que os episódios marcantes para aqueles que os viveram em Madina do Boé (ou na região do Boé), e foram muitos e dramáticos, nem todos são conhecidos. Eis uma oportunidade…

2. O CASO DO MÉDICO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER [II]

Virgílio Camacho Duverger, cujo nome de guerra era "Vítor Córdoba Duque”, nasceu a 29 de novembro de 1934, em Guantánamo, chegando à Guiné-Conacri nos primeiros dias de junho de 1966, a seis meses de completar trinta e dois anos de vida e sete anos após ter ingressado no Exército Rebelde como técnico de saúde.

Concluiu o curso de medicina em Havana em dezembro de 1960, incorporando-se como médico militar. No dia seguinte a obter o seu diploma foi mobilizado para Mariel, seguindo-se, depois, a transferência para La Limpia del Escambray como médico militar.

Poucos meses depois é designado para fazer a pós-graduação no Serviço Médico Rural. Seguiu-se Minas de Frio, uma localidade existente na Serra Maestra, aonde funcionava a escola de recrutas [cadetes] que Ernesto Che Guevara [1928-1967] havia fundado em 1958.

Como era militar, enviaram-no para o acampamento Pino del Agua, na província de Oriente, para depois rumar ao Batalhão fronteiriço, em Guantánamo, que acabara de fundar-se. Foi o primeiro médico desse Batalhão aonde termina a pós-graduação, passando, em maio de 1962, para o Instituto Nacional de Cirurgia e Anestesiologia [INCA]. Conclui a cirurgia geral em 1964 (como militar) e transita para o Hospital Militar Central Dr. Carlos J. Finlay como especialista.

Em janeiro de 1966, durante a 1.ª Conferência Tricontinental, é lhe colocada a possibilidade de ir cumprir uma missão ao estrangeiro e que no seu caso seria a Guiné-Bissau, que aceita. Faz, então, parte do primeiro contingente de trinta elementos, entre médicos, artilheiros e motoristas-mecânicos, a chegar em missão de ajuda ao PAIGC.

Seguem-se mais alguns desenvolvimentos dessa missão,  revelados durante a entrevista dada pelo cirurgião cubano Virgílio Camacho Duverger ao jornalista e investigador  Hedelberto López Blanch, 10 meses antes de morrer.


Entrevista com 22 questões [Parte 2 > da 8.ª à 12.ª]

“Testemunhos antes da morte” [Cap. XII, pp. 154-165]



[A nota introdutória é da responsabilidade do jornalista Hedelberto López Blanch, justificando, pelo desenlace à posteriori, o titulo dado à entrevista: «testemunhos antes da morte». As perguntas vão numeradas, em romano, opção nossa. Optámos também pelo itálico na transcrição da respostas do entrevistado. Os parêntes retos são nossos].

A entrevista ao médico Virgílio Camacho Duverger [1934-2003] foi realizada pelo jornalista e historiador cubano Hedelberto Blanch numa tarde de janeiro de 2003, num pequeno gabinete do Hospital  Hermanos Ameijeiras, aonde mantinha uma consulta voluntária todas as terças-feiras. Viria a falecer dez meses depois,  vítima de enfarte do miocárdio.


(viii) Após a chegada  para onde o destinaram?

Em Conacri estivemos pouco tempo. Uma vez reunimo-nos com Amílcar Cabral [1924-1973]. Do grupo de nove médicos, o dr [Pedro] Labarrere e eu [Virgílio Duverger] éramos os únicos especialistas, alguns eram internos e outros com muito pouco tempo de graduados.

[Guiné > c. 1966//67 > s/l > Provavelmente base de Sambuia, em 1967... Da direita para a esquerda, os médicos Pedro Labarrere (falecido), Domingo Díaz Delgado e Teudy Ojeda... O primeiro da direita era o chefe do grupo cubano da Frente Norte, o tenente Alfonso Pérez Morales (Pina). Foto anexa ao livro de H.L. Blanch (2005). Reproduzida com a devida vénia.]


Na capital da Guiné-Conacri já estavam os que tinham viajado de avião [em março de 1966]. Eu fui para Boké, uma localidade situada perto da fronteira com a Guiné-Bissau, aonde havia um hospital de rectaguarda do PAIGC para a Frente Sul. Naquele tempo, na Guiné-Bissau existiam três frentes de guerra: Leste, Sul e Norte.

Para a Frente Norte, que teriam que passar pelo território do Senegal, vão três médicos: Pedro Labarrere, especialista em medicina interna; Domingo Diaz [Delgado], que tinha pouco tempo de graduado, com alguma experiência em cirurgia [o primeiro entrevistado deste projecto – P16224] e Teudi Ojeda [Suárez], com conhecimentos em ortopedia [Vd. foto acima].

Para a Frente Sul vão três cirurgiões: Rómulo Soler Vaillant, Luís Peraza [Cabrera] e o Bebo [Julio García Olivera], que era cirurgião em Santiago de Cuba.

Em Boké, ficou o Raúl Currás [Regalado], especialista em medicina interna, Jesús Pérez, que fazia ortopedia, e eu [Virgílio Duverger], que era especialista em cirurgia geral [, mais tarde irá especilizar-se em cirurgia cardiovascular]. 


Ali já se encontrava um médico [italo-]panamiano, de nome Hugo Spadafora [Franco] [1940-1985], que esteve connosco cerca de dois meses e depois não sei para onde foi.


[Segundo José Macedo (DFE21), Hugo Spadafora chegou a Conacri em 10 de fevereiro de 1966, seguindo para Boké, onde recentemente o PAIGC tinha aberto um hospital. (…) Spadafora saiu de Boké para as matas da Guiné-Bissau em julho de 1966, aí permanecendo durante nove meses. Regressou ao Panamá em maio de 1967 (comentário ao P9070)].


(ix) Passou todo o tempo em Boké?


Com cerca de três meses de estadia em Boké, o dr. Jesús Pérez teve uma icterícia violenta e regressou a Cuba. Ficámos ali só os dois: o Raúl Currás e eu [Virgílio Duverger].

Mais tarde [agosto de 1966?] mudaram-me para a Frente Leste, cujo objectivo principal, do ponto de vista militar, era o quartel de Madina do Boé [onde esteve instalada, entre maio de 1966 e abril de 1967, a CCAÇ 1416, comandada pelo Cap Mil Jorge Monteiro].

Fizemos um "hospitalito" [enfermaria de campanha] no interior da República da Guiné, perto da fronteira com a Guiné-Bissau, para apoiar os combatentes da Frente Leste, cujo chefe era o cmdt Domingos Ramos [nome de guerra “João Có”] do PAIGC .



(x) Em que consistia  esse hospital de campanha? 



Era muito rudimentar: umas palhotas de colmo com três ou quatro camitas. O médico tinha uma cubata independente, perto da enfermaria, com um rio [Corubal] a cem metros que era necessário para a higiene da instalação.

Depois vieram outros dois médicos cubanos de cirurgia, o dr.  [Santiago] Milton Echevarria [Ferrerá] (faleceu em Cuba em 2003) e o dr. Ibrahim [Fernández] Rodriguez, que actualmente é [tenente-coronel, ] professor consultor de cirurgia do Hospital Militar Central Dr. Carlos J. Finlay [com vários artigos publicados na Revista Cubana de Medicina Militar]. 



Milton Echevarria chega ao nosso hospital de forma indirecta, porque saiude Cuba para cumprir a sua missão em Moçambique, mas por não existir um  coordenador naquele país, não pôde ficar, seguindo para integrar esta nossa missão [na Guiné-Bissau].

[O dr. Ibrahim Fernández Rodriguez fez parte da equipa de sete especialistas cubanos que trataram o presidente da Venezuela Hugo Chávez (1954-2013) durante a sua estadia em Cuba. Por esse motivo foram condecorados pelo Governo Venezuelano com a «Ordem dos Libertadores e Libertadoras da Venezuela de 1.ª Classe e Espada», conforme consta no Decreto 9419, publicado no Diário Oficial n.º 40130, a segunda mais importante do país. A primeira é a “lança” e a terceira é a ”flecha”].


(xi) Participou em acções de guerra? 


A missão militar mais importante em que participei foi num reconhecimento ao quartel de Madina [do Boé]. Em novembro de 1966, na companhia dos exploradores, o dr. [Santiago] Milton Echevarria [Ferrerá] e eu [Virgílio Duverger] fizemos uma caminhada que durou perto de cinco horas até que chegámos ao local previsto. 

Regressámos, e em poucos dias preparou-se o ataque ao quartel, não para o conquistarmos, mas tão só para causar baixas e para dar conta que a guerrilha estava activa.


Guiné > Região de Boé > Madina do Boé > 1966 > Vista aérea do aquartelamento. Foto atribuída a Manuel Domingues, s/d, inserirda no poste P238 (**)



Antes do ataque, fizemos um posto avançado. Comigo ia um enfermeiro anestesista do Hospital Dr. Carlos J. Finlay [Havana] que se havia incorporado. Este enfermeiro estivera inicialmente em Boké [hospital de rectaguarda] na companhia do dr. Noronha, de um clínico de radiologia e de um clínico de laboratório.

Entrámos em território da Guiné-Bissau para estar mais perto do combate,  de modo a facilitar a assistência médica aos combatentes que ficassem feridos. Essa foi uma experiência repetida nas Frentes Norte e Sul do país, aonde as distâncias eram grandes e às vezes os feridos demoravam vários dias para chegar ao hospital.


A primeira morteirada lançada pelos portugueses [da guarnição de Madina do Boé, a CCAÇ 1416] cai, por casualidade, no local aonde estava o posto de observação no qual se encontrava o comandante da Frente, o guineense Domingos Ramos [foto ao lado com Amílcar Cabral – P16246]. Os estilhaços atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta,  não lhe tendo dado tempo para o levar até ao hospital, situado na fronteira, e para o poder operar. O posto sanitário avançado era só para prestar os primeiros socorros. Durante a evacuação a caminho do hospital, Domingos Ramos faleceu [em 10 de novembro de 1966].

Embora médico, eu ia armado pois em algum momento poderia ter de combater. Do lugar aonde estávamos ouvia-se perfeitamente o ruído das viaturas dos portugueses, assim como dos disparos de artilharia: obuses [, granadas de canhão s/r, não havia obuses] e morteiros. O posto médico estava a cerca de três quilómetros do combate.


[Este episódio é descrito pelo “internacionalista” cubano Ulises Estrada Lescaille,  Ulises, só com um "s", nome de guerra de Dâmaso José Lescaille Tabares (1934-2014), chegado à Guiné-Bissau na sequência do contacto que estabelecera com Amílcar Cabral durante a Primeira Conferência Tricontinental, realizada em Havana em janeiro de 1966, nos seguintes termos:

“Eu encontrava-me ao lado de Domingos [Ramos], em que metade do seu corpo cobria o meu para proteger-me, coisa que não pude evitar, e abrimos fogo com um canhão B-10 colocado numa pequena elevação situada a cerca de seiscentos metros do quartel. Os portugueses [CCAÇ 1416] tinham montado postos de vigia na zona e responderam com disparos certeiros de morteiro, embora nós continuássemos a disparar com o canhão sem recuo, metralhadoras e espingardas.

Pouco tempo depois de iniciado o combate, senti que corria pelo lado direito das minhas costas um líquido quente e pensei que estava ferido por uma das morteiradas que caíam ao nosso redor. Era Domingos [Ramos], sangrava abundantemente. Peguei no seu corpo com a ajuda de outro companheiro e o conduzimos ao posto médico, situado a cem metros da zona do combate. O médico cubano [?, pois havia mais do que um] informou-me que havia falecido.

Não podíamos deixar o cadáver do dirigente guineense nas mãos dos portugueses. Pegámos no seu corpo e num camião nos deslocámos pelos campos de arroz até à fronteira com Conacri. Chegámos a Boké, aonde se encontrava o posto de comando fronteiriço e entregámos o seu cadáver ao companheiro Aristides [Maria] Pereira [1923-2011], para que pudesse fazer o funeral e render-lhe as honras que merecia este combatente, que foi um dos primeiros grandes chefes do PAIGC a morrer em combate”].

[tradução de JA, do castelhano: «Recordando Amílcar Cabral, líder anticolonialista da Guiné-Bissau», em: http;//45-rpm.net/sitio-antiguo/palante/cabral.htm].


(xii) Esteve até ao fim da missão no Leste da Guiné ?


Não. Como aí estava já há um ano, em junho de 1967, o dr. Rómulo Soler Vaillant, que estava na Frente Sul com Bebo [Julio García Olivera] e Luís Peraza [Cabrera], adoeceu e enviam.-no para Madina do Boé, aonde o trabalho era menos intenso, e a mim transferem-me dali com destino ao Sul [Frente].

Nessa altura já aí se encontrava o comandante Victor Dreke [Moya] como chefe da Missão Militar Cubana, e também começámos a receber aprovisionamento logístico (viveres) de Cuba, que anteriormente não tínhamos. No hospital do Sul tínhamos um caçador nativo, que era combatente, e que assegurava a proteína dos feridos e do pessoal do hospital.

Quando substitui o dr. Rómulo [Soler Vaillant], sou nomeado chefe do Hospital Militar de Boké que, como disse, estava em território da Guiné-Conacri.
   
(Continua) (***)

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Notas do editor:

(*)  Último poste da série > 12 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16592: Notas de leitura (888): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte X: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger´[I]: viajando até Conacri com nomes falsos... (Jorge Araújo)

(**) Vd. poste de 25 de outubro de 2005 > Guiné 63/74 - P238: Antologia (22): Madina do Boé, por Jorge Monteiro (CCAÇ 1416, 1965/67) (Luís Graça)

(***) Último poste da série > 17 de outubro de  2016 > Guiné 63/74 - P16608: Notas de leitura (891): “História da História em Portugal, Séculos XIX-XX”, organização de Luís Reis Torgal, José Amado Mendes, Fernando Catroga; Temas e Debates; 1998, volume II (2) (Mário Beja Santos)