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segunda-feira, 2 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)



Guiné > Bisssau > Filial do BNU - Banco Nacional Ultramariono > Ofício para o Governador, na sede, em Lisboa, datado de 16 de março de 1962, em que se noticia a detenção pela PIDE, entre outros,  do funcionário,  "contínuo" do Banco,  Inácio Soares de Carvalho, por alegadamente pertencer ao clandestino  PAIGC. Cortesia do nosso colaborador permanente Mário Beja Santos (*).




Capa e contracapa do livro "Memórias da Luta Clandestina", de Inácio Soares de Carvalho. Foto: cortesia de Expesso das Ilhas, 30/1/2020. (**)

1. O  livro "Memórias da Luta Clandestina" foi lançado, no passado dia 30 de janeiro, na Praia, capital de Cabo Verde, na Biblioteca Nacional.  Dois meses antes, um dos filhos, Carlos de Carvalho, arqueólogo e historiador, que coordenou o projeto editorial, pediu-nos autorização para reproduzir uma foto do administrador Guerra Ribeiro, da autoria de Paulo Santiago (***). Autorizou-nos, ao mesmo tempo, a reproduzir alguns excertos da obra, em fase final de acabamento.

Inácio Soares de Carvalho (ISC) trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. Vamos continuar a publicar alguns excertos das suas memórias políticas, até há pouco inéditas, com a devida autorização do seu filho, Carlos de Carvalho.

Nasceu na Praia em 1916,  foi em criança para a Guiné com os pais. Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no  MLG – Movimento para Libertação da Guiné, e mais tarde no PAI (futuro PAIGC),  por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.

Seria preso pela primeira vez em 15/3/1962. É então deportado, com outros "suspeitos",  para o Tarrafal, donde regressa em 1965. É depois colocado na ilha das Galinhas. Em 1967, é solto,  pela primeira vez. Em 1972, é de novo preso e encarcerado na 2.ª Esquadra de Bissau, sendo solto, 3 meses depois, sempre sem culpa formada. Em 1973, é de novo preso, para conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974.  Nos finais de setenta, regressa a sua terra natal, Cabo Verde e afasta-se praticamente da vida política activa. Faleceu em 1994. O seu nome de guerra era "Naci Camará", mas nunca andou no mato, fazia parte do "back office" do PAIGC.

"Após incessantes insistências dos filhos, ISC resolve escrever suas 'Memorias', tendo-as dado por concluídas em 1992. Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC." (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné)


2. Excertos do livro  - Parte II

(...) Em 1956, o Sr. Abílio Duarte, que trabalhava, como eu, no Banco Ultramarino em Bissau [1], foi à minha casa levando um volume contendo uns documentos que me entregou e pediu-me que os guardasse num sítio muito seguro e com muito cuidado, porque "tem uns papéis de muita responsabilidade".

Mas, não me explicou do que se tratava. Dado ser pessoa de minha grande confiança, tomei e guardei no sítio onde penso que era um lugar bem seguro. De vez em quando, ele ia à minha casa pedir tal volume e eu o dava; puxava de uma cadeira e sentava à mesa, fazia as suas consultas e depois amarrava de novo como estava e entregava-me outra vez; eu punha de novo no lugar do costume. 

Naquela altura, eu e o Abílio já éramos compadres, porque baptizara meu filho Celso; isso foi pouco tempo antes de me ter entregado tais documentos. O Abílio de vez em quando dizia-me:

– Compadre, tenho uma coisa muito importante para lhe dizer. 

Dizia-me isso sempre no Banco porque, além de trabalharmos juntos, trabalhávamos na mesma secção. Ele era Chefe de Secção de Correspondência e eu, naquela altura, era encarregado do Arquivo. Não sei se não sentia coragem para me dizer o que queria, mas, o que é certo, repetia-me isso várias vezes. Um belo dia, após ter-me dito a mesma coisa, voltei para ele e disse-lhe:

–  Compadre,  não sente receio de me dizer nada, tanto para o bem ou para o mal, porque além de sermos compadres, o compadre já me conhece muito bem, conhece a minha maneira de ser.

Ao tempo, éramos todos novos, embora sendo eu muito mais velho do que ele.

Quando resolveu abrir comigo e contar-me o que se passava, convidou-me um dia para irmos passar uma tarde no seu quarto. Foi um sábado. Voltei para ele e disse-lhe:

 – Está bem compadre, mas tem que me esperar ir à casa almoçar e dizer a minha mulher que tenho assunto muito urgente a tratar no Banco; e então compadre espera por mim, porque se eu não chegar à casa na hora do costume, ela fica muito preocupada, porque não é hábito chegar fora de hora, sem antes lhe ter avisado.

E  assim ficamos combinados. 

Depois do almoço, descansei-me como era de costume, e depois fui ao Banco ter com ele no seu quarto. Dali então começamos a nossa conversa que foi muito prolongada, e no fim disse-me.

 – Pois,  compadre, fica a saber que existe cá, em Bissau, um movimento muito importante que é para a Independência da Guiné e Cabo Verde. O inicial deste movimento é MLGC – Movimento para Libertação da Guiné e Cabo Verde [, confusão do Naci Camará: na época era o MLG - Movimento para a Libertação da Guiné, "tout court", (LG].

Mas, na altura, não me citou nomes dos responsáveis do Movimento. E depois disse-me que é uma grande responsabilidade para todos aqueles que aderirem ao referido Movimento. E disse-me ainda mais:

 –  Compadre,  deve pensar muito bem antes de tomar a decisão que entender, porque é de muita responsabilidade, e requer grande cuidado.

Naquela altura, eu era pai de 4 filhos,  todos menores. A mais velha, que era Fátima, tinha apenas 8 anos de idade. E realmente pensei muito bem e então decidi aceitar o convite. Isso foi em 1957.

O MLGC [, ou melhor, MLG,]  foi fundado por um grupo de alguns Guineenses e Cabo-verdianos, mobilizados por Amílcar Cabral, em 1956. Mais à frente encontra-se nomes de alguns daqueles fundadores.

Quando aceitei o convite, ele disse-me que agora devo ter muito mais cuidado ainda com tais documentos. Falamos muito naquela tarde, e eu então fiquei muito entusiasmado com tudo o que ele me falou sobre a Independência da Guiné e Cabo Verde, e de mais colónias que estão sob domínio português.

Dali então continuamos a trabalhar no sentido de mobilizar pessoas, o povo para a luta pela liberdade.

Depois da sua saída, então o Sr. Rosendo, que era também empregado do Banco, entrou em contacto comigo e dali então começamos a falar muito do nosso Movimento e começou a dar-me nomes de alguns responsáveis que fazem parte do referido Movimento, como: Srs. Fernando Fortes, de S. Vicente, Inácio Semedo, de Bissau, Aristides Pereira, de Boavista, Elisé Turpin, de Bissau, João Rosa, de Bissau, Ladislau Justado Lopes, de Bolama, Epifânio Souto Amado, de Tarrafal, Júlio Almeida, de S. Vicente, José Francisco, de Calequice, Alfredo Menezes d’Alva, de S. Tomé, Rafael Barbosa, de Bissau, Luís Cabral, nascido em Bissau, mas saiu daqui muito criança, mas toda a gente o conhece, e ainda o nome do próprio fundador do nosso Movimento, Sr. Amílcar Cabral, de Geba [2]. E há muito mais que já não me lembro dos nomes.

Dali então o Sr. Rosendo deu-me a responsabilidade de mobilizar todos os meus amigos e conhecidos, mas de minha grande confiança, lembrando-me sempre da grande responsabilidade que vou assumir no seio do nosso Movimento.

O massacre de Pidjiguiti e o inicio da luta

A 3 de Agosto de 1959, aconteceu o massacre de Pidjiguiti.

O 3 de Agosto foi organizado por responsáveis do nosso Movimento, a fim de, por um lado, chamar à atenção do povo para a luta contra o colonialismo e, por outro, chamar à atenção do mundo para o facto de que os povos da Guiné e de Cabo Verde estarem sob o domínio colonial e de não aceitarem pacificamente essa condição. É nessa perspectiva que os militantes do nosso Movimento organizaram a greve e a manifestação que desembocou no grande massacre de Pidjiguiti.

[...] Com o acontecimento de 3 de Agosto, muitos guineenses e cabo-verdianos descobriram que alguma coisa estranha estava a acontecer na Guiné, o que muito nos encorajou e motivou a trabalhar com mais dedicação.

A fundação do PAIGC

No fim do mês de Setembro a Outubro de 1960, o nosso grande líder, Amílcar Cabral, decidiu mudar a denominação do Movimento de MLGC – Movimento para Libertação da Guiné e Cabo Verde,  para PAIGC  – Partido Africano para Independência da Guine e Cabo Verde. E para o efeito, mandou pedir que fosse à Dakar um dos principais responsáveis do Movimento a fim de contactar com ele, para poder trazer de lá um esclarecimento do motivo que lhe obrigou a fazer tal mudança do nome Movimento para Partido.

Para a designação do responsável que devia seguir para Dakar cumprir a missão, realizamos uma reunião de grande escala. A reunião, como não podia deixar de ser, foi presidida pelo Fernando Fortes visto ser ele o responsável máximo do Movimento que se encontrava dentro do território da Guiné-Portuguesa. Depois do Fortes ter esclarecido o motivo da reunião, ficou-se a espera da pessoa que se disponibilizaria para realizar a missão que era seguramente muito espinhosa. Depois de um largo silêncio, ninguém se oferecendo, o Rafael Barbosa levantou o braço e ofereceu-se como voluntário para ir contactar com o nosso grande líder em Dakar.

Naquele momento, todos os presentes ficaram muito contentes com o gesto do Rafael. A pedido do líder, todos deviam quotizar, conforme a possibilidade de cada um, para as despesas do Rafael na viagem à Dakar. Cumprindo as instruções de Cabral, tomamos todos o compromisso de cuidar da família do Rafael já que ele não tinha meios suficientes para manutenção da família, sendo ele um simples capataz e com um salário mísero que mal dava para aguentar a família.

Foi assim que se preparou a saída do Rafael e ele conseguiu ir à Dakar contactar com o líder do nosso Movimento.

(Continua)
______________

Notas de Carlos de Carvalho:

[1] ISC ingressa no BNU (Banco Nacional Ultramarino) em 1939. ISC tinha, na altura, 34 anos de idade. O BNU era das mais importantes instituições nas colónias portuguesas.

[2] As pessoas aqui referenciadas constituíram o núcleo inicial dos responsáveis do Movimento, MLGC.
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19264: Notas de leitura (1128): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (63) (Mário Beja Santos)

(**) Último poste da série 29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

(***) Vd. postes de:

16 de janeiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20563: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca...é Grande (112): Vamos publicar, com a devida autorização da família, um excerto das memórias, ainda inéditas, de Inácio Soares de Carvalho, um nacionalista da primeira hora, militante do PAIGC, pai do nosso leitor (e futuro grã-tabanqueiro), o historiador e arqueólogo Carlos de Carvalho, cabo-verdiano, de origem guineense

15 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20559: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (67): pedido de autorização para uso de fotos de Guerra Ribeiro, em livro de memórias do "tarrafalista" Inácio Soares de Carvalho (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, Cabo Verde)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6126: (Ex)citações (65): Os nossos Brandões desconhecidos que foram os antepassados dos pais fundadores do PAIGC, MPLA e FRELIMO (António Rosinha)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Ponta Brandão > 1970 > Dois velhos balantas.  Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).



Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


1. Comentário, de hoje, do António Rosinha, ao poste P6116 (*)
 Quando se fala nestas figuras de comerciantes/agricultores, neste caso com o nome de Brandão, que na Guiné é um dos nomes de colonos históricos, noutras ex-colónias há outros nomes também com história, estamos a falar dos verdadeiros colonizadores à-lá-portuguesa.

Estes homens, sem disso terem consciência, chegaram e abriram caminho e serviram de intérpretes, a missionários católicos e outros, a chefes de posto e administradores e militares.

Estes comerciantes raramente foram alvo de um estudo, que analizasse as suas grandezas e misérias. Mas todos os governantes,  desde o Diogo Cão até ao Gen Spínola, secundarizaram estas pessoas, quando devia ter sido o contrário.

Os africanos (indígenas) davam mais importância a um comerciante do que a um governador geral ou a um missionário ou chefe de posto.

Em relação à guerra, tiveram um papel tão importante, para o bem ou para o mal, que podemos dizer que os milhares de Brandões na África portuguesa, foram os pais e os avós da maioria dos teóricos fundadores, do MPLA, PAIGC e FRELIMO, movimentos que secaram outros em volta, e com isso, talvez ainda sobre alguma coisa no fim de isto tudo. (**)

Estes comerciantes, a maioria analfabetos, ou quase, chegavam a falar um dialeto ou mais que um, continuarão a ser olhados de soslaio por qualquer militar que, ao fim de 24 meses, não chegava a comprender aquela africanização, para não dizer outros nomes.

Estes portugueses de Áfricas e Brasis foram a história mais importante da diáspora portuguesa. Em geral viajaram com passagem paga por eles. Muitos netos dessa gente veio para o meio de nós em pontes aéreas.

É um ponto de vista.

Antº Rosinha

[ Revisão / fixação de texto / bold / título: L.G.]

__________________

Nota de L.G.:

(*)  Vd. poste de 6 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6116: O Nosso Livro de Visitas (85): Maria Helena Carvalho, filha do Pereira do Enxalé, localidade onde nasceu há 60 anos, hoje residente nas Caldas da Rainha (Luís Graça)

(...) Outros comentários:

(i) Torcato Mendonça:

Luís Graça:  não sei se a Ponta Brandão de que falas,  se refere a uma quinta, algures entre Fá e Bambadinca, e pertencente a um português há muito radicado na Guiné. Creio que por razões de ordem politica.

Tenho disso uma recordação muito fraca. O vago-mestre parece que ia lá comprar vegetais. Passei lá uma ou duas vezes. O Velhote tinha quatro ou cinco filhos, já homens e mulheres,  mais velhos que nós. Falei com, pelo menos, um dos filhos. Contou-me que, antes da guerra certamente, caçavam no Geba jacarés e outro tipo de caça naquela zona,  etc.

O Velhote tinha uma destilaria. Estando a fazer aguardente de cana,quando por lá passei, agarrou num copo em bambú,  encheu e bebeu a aguardente de um trago. Como quem bebe água fresca. Depois, noutro copo, deitou aguardente e deu-me a beber. Foi o liquido mais forte que bebi... deslizava e queimava... e ele olhava... respirei fundo e soprei forte. Fiquei desinfectado. O fulano sorrindo disse ter-me portado bem. A minha memória dessa destilaria é fraquissima. Há outro pormenor mas é com a "inteligência" de Bambadinca. O Jorge Cabral e outros militares que passaram por Fá, certamente lembram-se desta família. Será Brandão? Não sei.

Abraço,Torcato
 
(ii) Luís Graça:
 
Torcato: Também lá fui uma ou outra vez. Ponta quer dizer quinta. Logo havia lá criação (leitões, por exemplo), horta e fruta (abecaxis, por exemplo). Julgo ter lá ido algumas vezes quando algum de nós estava de sargento de dia à messe (ou sargentod e mês, mais exactamente)... O Jaime, o nosso vague-mestre (da CCAÇ 12), batia região à cata de matéria-prima para satisfazer o apetite voraz da messe de Bambadinca (as meses de sargentos e de oficiais eram separadas, mas a cozinha era a mesma)...


O Jorge Cabral também conhecia a Ponta Brandão, que de resto ficava perto de Fá... Mas tudo aquilo, a começar pela casa, tinha um ar decadente...

Já não posso jurar se a família era de origem metropolitana, ou caboverdiana... A família Brandão de Bambadinca era aparentada com os Brandão de Catió... Uns e outros tinham fama de ter gente no PAIGC...

E a propósito de civis de Bambadinca, soube pelo Dr. António Vilar - o médico do BART 2917, que sucedeu ao Mário Ferreira - que o Rendeiro ainda está vivo. Com cerca de 90 anos, vive em Murtosa, separado da esposa africana, que era filha de um régulo mandinga e que ele nunca nos mostrava. Era a mãe dos seus numerosos filhos... Jantei algumas vezes em sua casa... O seu chabéu era famoso... Em troca, ele queria saber coisas da vida do quartel...

Recordo-me de ele me ter dito que fora para a Guiné aos 17 anos... Terá nascido, portanto, em 1920.

(iii) Jorge Cabral:

Confirmo.Fui visita assídua do  Senhor Brandão, principalmente durante as férias da filha que trabalhava em Bissau. Era natural de Viana do Castelo ou da Póvoa de Varzim,já não me recordo bem.Teria na altura quase 80 anos, mais de 40 de Guiné e muitos filhos.

A aguardente de cana era fogo...mas matava qualquer bicho, mesmo os  imaginários...

Abraço.

Jorge Cabral

(**) Vd. também postes sobre a família do agricultor de Bambadinca, Inácio Semedo, um histórico do nacionalismo guineense, pai do Doutor Eng Inácio Semedo Júnior, que vive presentemente em Lisboa.

terça-feira, 3 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)


Guiné-Bissau > Bolama > s/d  [ c. 2009] > Cais > Uma canoa nhominca, para transporte de passageiros. A sua lotação máxima são 100 passageiros...  E foram 100 "nacionalistas" ou "elementos subversivos" [, no dizer das autoridades coloniais da época, ao tempo do governador da Guiné, de triste memória, o oficial da marinha, António Augusto Peixoto Correia (1913-1988)],  que em 1 de setembro de 1962  foram tranferidos da Ilha das Galinhas, a ilha-prisão do arquipélago dos Bijagós, para o Campo de Trabalho de Chão Bom, no Tarrafal, ilha de Santiago Cabo Verde...

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(...) "Na madrugada de 1 de setembro [, depois da prisão, efetuada nas instalações do BNU em 15 de março de 1962, ainda ao tempo do governador, oficial da marinha, Peixoto Correia], foram buscar-nos em Mansoa para [nos] levar à ilha das Galinhas. Via João Landim, fomos levados no porão do barco Formosa. Chegamos à ilha das Galinhas cerca das 16 horas. De seguida, fomos levados para o acampamento, onde já se encontravam outros presos oriundos da Zona Sul. Na noite de 1 de Setembro, dormimos todos nós presos concentrados num pavilhão grande. Naquela noite tiraram dois irmãos e foram matá-los a tiro. (...).

"No dia 2 de setembro, de manhã cedo, tiraram-nos num total de 100 presos e encaminharam-nos para o Porto da Ilha das Galinhas, onde tínhamos desembarcado no dia anterior; meteram-nos no porão do mesmo barco Formosa, com o rumo a Estação de Pilotos em Pontom; de seguida, meteram-nos no porão do vapor África Ocidental com destino desconhecido por nós. Só viemos a saber onde estávamos quando chegamos ao Porto do Tarrafal, onde nos mandaram sair de porão como animais de carga. Passamos muito mal durante todo o caminho."(...)  

(Excerto de: Inácio Soares de Carvalho, "Memórias da Luta Clandestina", no prelo, 2020)


 Por Portaria nº 18539, de 17 de Junho de 1961, assinada pelo então Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, tinha sido reaberto o antigo campo de Tarrafal (que funcionou entre 1936 e 1954), agora designado Campo de Trabalho de Chão Bom, na Ilha de Santiago, Cabo Verde, originalmente destinado aos presos políticos de Angola. 

Em 1962, após uma série de vagas de prisões de nacionalistas guineenses, que sobrelotavam os ass prisões e os quartéis militares de então, o governador da Guiné pede. por um simples ato administrativo,  a deportação para o Tarrafal dos 100 mais... "perigosos".  Juntam-se aos angolanos em 4 de setembro de 1962.

O governador  António Augusto Peixoto Correia viria a substituir o professor Adriano Morerra no cargo de ministro do ultramar.


Capa do livro "Memórias da Luta Clandestina", de Inácio Soares de Carvalho. Foto: cortesia de Expesso das Ilhas, 30/1/2020



1. Continuação da publicação de excertos do  livro "Memórias da Luta Clandestina" (que foi lançado, no passado dia 30 de janeiro, na Praia, capital de Cabo Verde, na Biblioteca Nacional.)  (*)

Dois meses antes, um dos filhos, do Inácio Soares de Carvalho , o  Carlos de Carvalho, arqueólogo e historiador, que coordenou o projeto editorial, pediu-nos autorização para reproduzir uma foto do administrador Guerra Ribeiro, da autoria de Paulo Santiago (***). Autorizou-nos, ao mesmo tempo, a reproduzir alguns excertos da obra, em fase final de acabamento.

Inácio Soares de Carvalho (ISC) (1916-1994)  trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, desde 1939,  até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. Vamos continuar a publicar alguns excertos das suas memórias políticas, até há pouco inéditas, com a devida autorização do seu filho, Carlos de Carvalho.

Nasceu na Praia (, temos dúvida sobre a sua data de nascimento: ele diz que em 29 de Abril de 1974, quando "terminou para sempre o nosso martírio e sofrimento na Ilha das Galinhas", ele completava "58 anos de idade"; terá então nascido em 29/4/1916 ).
 

Foi em criança para a Guiné com os pais. No seu tempo haveria 1700 cabo-verdianos no território, muitos deles tendo posições de destaque na vida económica, social, cultural e político-administrativa  da colónia portuguesa. Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no MLG– Movimento para Libertação da Guiné   (**) por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.

Seria preso pela primeira vez  pela PIDE em 15/3/1962. É então deportado, com outros "suspeitos", para o Tarrafal (, a partir da Ilha das Galinhas). Três depois, em 16/10/1965, 
é transferido  para a  colónia penal da  ilha das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós. 

Em 7/2/1967, é solto, pela primeira vez. Em 1972 e 1973, volta a passar pela experiência da prisão, em Bissau,  até conhecer a liberdade definitiva com o "golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 em Portugal". O seu nome na clandestinidade era Nassi ou Naci Camará. [O de Rafael Barbosa, de etnia papel (c. 1926-2007), era Zain Lopes.]

Nos final dos anos setenta, regressa à sua terra natal, Cabo Verde e afasta-se praticamente da vida política activa. Vem a falecer em 1994.

"Após incessantes insistências dos filhos, ISC resolve escrever suas 'Memorias', tendo-as dado por concluídas em 1992. Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC." (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné, complementadas por LG.)



Assinaturas em Relatório do PAIG sobre o dispositivo militar português em Bissau, e nomeadamente o Quartel General a "norte da cidade" [Santa Luzia].  Data: c. 1961. Relatório datilografado, em duas páginas, em papel branco. É assiando pelos eesponsáveis do PAI em Bissau: Latranco da Costa [Pedro Ramos], Zain Lopes [Rafael Barbosa] e Naci Camará [Inácio Soares de Carvalho, acrescentamos nós. (LG)]...

Citação:
(1961), "Relatórios do PAI em Bissau", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41679 (2020-3-3) (com a devida vénia...)

[No Arquivo Amílcar Cabral, há vários documentos, como este,  com a assinatura de Zain Lopes e N. Camará, da Secção de Controlo e Defesa, do PAI, em Bissau,  datados de 1961. Rafael Barbosa e Inácio Soares de Carvalho serão presos em Março de 1962. Pedro Ramos (, irmão do Diomingos Ramos,) consegue furar o cerco militar à base clandestina onde estava escondido  o presidente do PAI,nio Rafael Barbosa, na Zona 0, em Bissalanca, nos arredores de Bissau. Sabe-se que o Rafael Barbosa teve, na época, um papel fundamental na mobilização dos jovens para a "luta de libertação". Era considerado uma figura carimástica e respeitada pelos mais jovens até à sua  prisão em setembro  de 1962 e posterior libertação, em 1969, ao tempo de Spínola. A sua evental participação no conspiração para prender e/ou matar Amílcar Cabral, em janeiro de 1972, é ainda hoje motivo de controvérsia. Tornou.se um dissidente do PAIGC, sendo a sua memória, hoje, na Guiné-Bissau,  objeto de uma relação de amor-ódio.  Leopoldo Amado entrevistou-o e fotografou-o em 1989. (LG)]


2. Excertos do livro - Parte III (*)

(Continuação)

Rafael Barbosa – o regresso a Bissau

Estando o Alfredo Menezes d’Alva ainda em liberdade faz todos os possíveis para entrar em contacto com o Rafael  [Barbosa] que se encontrava já nas matas no interior da Guiné, em campanha de mobilização, com a ajuda de um nosso companheiro [1].

Entretanto, esse companheiro nosso acabou por ser informado por nossos agentes de ligação do que se passou em Bissau. Dali então tomou a precaução de pôr o Rafael Barbosa na clandestinidade sob a vigilância de um dos nossos responsáveis em Bissorã que, do seu lado, tudo fez para entrar em contacto com o Menezes. 

Como não havia lugar seguro onde se podia esconder o Rafael, a única solução que foi encontrada foi metê-lo numa horta de mandioca enquanto, durante a noite, se procurava um lugar definitivo para o pôr a salvo da PIDE. Foi efectivamente muito complicado tirar o Rafael de Bissorã e pô-lo em Bissau, ainda mais sendo ele um deficiente físico [2].

Com a prisão de nossos companheiros, responsáveis do Partido, e crentes de que o Rafael se encontrava em Dakar, os agentes e informadores da PIDE deram uma festa para comemorar porque estavam presos todos os principais responsáveis do Partido no interior da Guiné e contavam que o Rafael estivesse em Dakar. Esta convicção dos agentes da PIDE de que o Rafael estava em Dakar foi uma grande sorte para nós.

A minha grande preocupação nessa altura era que a PIDE não soubesse que o Rafael já estava dentro da Guiné, porque se soubessem desencadeariam uma perseguição até o encontrarem, o que seria uma desgraça, pois seria um grande atraso para a nossa luta, sobretudo nessa fase muito difícil.

Estando o Rafael em Bissorã, o nosso maior problema agora é fazê-lo entrar em Bissau, tendo em conta o aumento do número de informadores que a PIDE fez em toda a Guiné, principalmente em Bissau, capital da província.

A entrada do Rafael Barbosa em Bissau só foi possível devido à vontade e muita coragem do Alfredo Menezes d’Alva e alguns jovens companheiros de luta como Nicolau Cabral [3], Mandu Biai [4] e Albino Sampa [5].

Amigos leitores, não fazem ideia da minha grande satisfação quando o Alfredo Menezes foi ao Banco [, o BNU, ]  dar-me a notícia de que o Rafael já se encontrava em Bissau e o sítio onde se encontrava escondido. Ele foi levado e escondido em casa duma prima dele que se situava na margem esquerda da ponte de Cobornel [6] ], para os lados do futuro Bairro da Ajuda ?, (LG)].  Informou-me ainda a forma como chegar ao local onde estava escondido.

Mas para ver o Rafael,  o Menezes recomendou-me para fazê-lo só a partir das 3 horas da tarde, pois, é uma zona muito movimentada e tinha que ter muita atenção. Mais me disse que o Rafael estaria à janela à minha espera, pois, já estava tudo combinado com ele. Assim, não foi difícil localizar a casa e encontrar o nosso companheiro de luta.

Tudo aconteceu num sábado à tarde e, caros leitores, passámos toda a tarde até às 9 da noite a conversar sobre os últimos episódios de nossa luta; mas, como tínhamos muitos assuntos a discutir, acertamos continuar a conversa no dia seguinte, visto que já era tarde e a vigilância da PIDE era apertada e não podíamos correr risco.

No encontro do dia seguinte, começamos logo a pensar na melhor maneira de recomeçarmos as nossas actividades e Rafael contou-nos como passou na vinda de Bissorã para Bissau, dado o seu estado físico.

Caros leitores, podem imaginar um indivíduo fisicamente deficiente e debilitado conseguir fazer um trajecto de aproximadamente 70 kms, tudo dentro do mato até chegar a capital porque não podia andar por via normal, controlada pelos agentes da polícia e da PIDE. Todo este episódio foi contado pelo Rafael na presença do Menezes, Nicolau Cabral, Albino Sampa e mais outros companheiros de luta.

Depois deste acontecimento entrei em contacto com D. Irene Fortes, esposa do Fernando Fortes, e informei das últimas novidades, sobretudo a entrada do Rafael em Bissau. Quando lhe contei toda a estória, ela ficou ainda mais contente do que eu próprio. De seguida, fui levar a mesma informação ao Sr. Rosendo que ficou muito admirado ao saber que o Rafael já estava em Bissau, pois ninguém esperava naquelas horas muito difíceis que isso pudesse acontecer.

Aproveitamos para falar, mas não por muito tempo, pois andava sempre desconfiado com a PIDE porque os companheiros estavam quase todos na prisão.

Com o Rafael já em Bissau, a nossa maior preocupação consistia agora em arranjar um sítio mais seguro para o esconder porque a casa da prima, como dito antes, ficava na beira da estrada e não nos oferecia segurança para montarmos a nossa base, mas sobretudo porque o marido dela já estava com medo porque a PIDE lançou a propaganda de que a casa onde for encontrado o Rafael, este seria preso com toda a família que o escondia.

Assim, para ultrapassar essa situação e encontrarmos um lugar com segurança, fizemos uma pequena reunião da qual saiu a decisão de encarregar Nicolau Cabral, Albino Sampa, Abdulay Bary, Martinho Balanta que é cunhado do Epifânio, Mandu Biai, Abdul Dja [7] e mais outros jovens de procurar um lugar seguro para instalarmos Rafael e “construir” a base para o recomeço de nossas actividades.


A primeira leva de prisões de responsáveis do PAIGC

Todo aquele desentendimento e confusão, em Dezembro do mesmo ano [, 1960 ?], originou a prisão de alguns de nossos companheiros, como o Quintino Nosoliny, o Estevão Tavares e o Lassana Sissé, todos eles responsáveis do Partido em Bissorã. Estes responsáveis faziam parte dos responsáveis que estavam de acordo para se trabalhar conjuntamente com os cabo-verdianos.

A segunda leva de prisões de responsáveis do PAIGC

Nesta leva de prisões [, em abril de 1961 ], foram presos, entre outros, Fernando Fortes, Inácio Júlio Semedo, Epifânio Souto Amado, Júlio d’Almeida e João Rosa. Só o Alfredo Menezes d’Alva escapou. (**)

Estes nossos companheiros foram levados e ficaram detidos nas celas na 2ª Esquadra da Policia. A situação deles como a de todos os prisioneiros políticos era desagradável porque eram sujeitos a muitas injúrias pelos agentes da PIDE portugueses e também de alguns dos nossos irmãos africanos que se encontravam ao serviço da Policia portuguesa na referida Esquadra. Depois da prisão destes companheiros, as actividades paralisaram quase completamente.

(Continua)

_________________

Notas do Carlos de Carvalho:

[1] ISC não explicita o nome desse companheiro. Mas, com certeza, trata-se de um dos muitos dirigentes / militantes que o Movimento/Partido tinha já espalhado em todas as zonas do interior da Guiné-Portuguesa, como se poderá constatar aquando das prisões ocorridas em [março de]  62.

[2] Rafael era deficiente da perna esquerda. Segundo a filha Helena Barbosa esse problema foi consequência duma deficiente administração de uma vacina, em criança, contra a meningite, tendo piorado já homem, após ter sido mordido por uma cobra.

[3] Nicolau Cabral foi seguramente dos mais activos militantes do PAIGC na clandestinidade. O seu nome aparece em todos os principais momentos da luta clandestina. Preso em 1962, foi enviado, como ISC, para a Colónia Penal do Tarrafal. Segundo ISC, era pedreiro de profissão.

Segundo informações de Almiro de Carvalho, depois da independência, Nicolau trabalhou na UNTG.

[4] Mandu Biai foi preso em [março de ] 1962 e enviado com ISC à Colónia Penal do Tarrafal, em Cabo Verde, donde terá saído em liberdade em 1969. Segundo ISC, Biai era Empregado Comercial.

[5] ISC fala do Albino Sampa durante todo o decurso da luta. É de se supor que Albino tenha sido mobilizado por Rafael para a luta, pois, na sua “Descrição Biográfica”, uma espécie de “Autobiografia Política”, fornecida por um sobrinho de nome Paulino, Albino escreve que: “Aderiu às fileiras do PAIGC em 1957 com idade muito jovem, tendo cumprido a sua primeira Missão de Serviço em 01/05/61, que lhe fora incumbida pelo Sr. Rafael de Paula Gomes Barbosa, no sentido de efectuar uma viagem para o Senegal, Dakar, portador de correspondências para Luís Cabral, naquela cidade, e para o Sr. Marcelo em Cundará”

Foi um dos principais agentes de ligação entre a Zona 0 e o exterior. Muito seguro e convicto, granjeou respeito no seio de seus companheiros de luta. Ainda após a luta ISC se lembrava com frequência desse incansável lutador pela independência da Guiné e de Cabo Verde.

Ainda segundo sua “Descrição Biográfica” e informações recolhidas junto de vários companheiros de luta (Paulo Pereira de Jesus, Brígido, Constantino, entre outros), Albino, depois da independência, trabalhou como Agente de Guarda nos Empreendimentos dos Serviços Portuários. Morreu em 2014, quase completamente abandonado pelos companheiros de luta. (Ver nos Anexos alguns documentos sobre este herói quase desconhecido da maioria de seus compatriotas).

[6] Cobornel era, na altura, um bairro em construção. Ficava a uns poucos quilómetros do centro da Cidade de Bissau, portanto, uma zona quase que desabitada. Na verdade, a cidade de Bissau quase que terminava na zona situada logo após a “Chapa-de- Bissau”. [Mais tarde ter-se-á construido ali o novo bairro da Ajuda; segundo o Leopoldo Amado, seria em Bissalanca. (LG).

[7] Sobre Abdul Djá,  ISC falará posteriormente.

(Continua)
____________

Notas do editor:

(*) Postes anteriores da série

2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

(**) MLGC ou só MLG?... Não confundir com o PAI (futuro PAIGC). Um e outro entram em rutura antes do início da luta armada..

Vd. poste de 25 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P569: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

(...) Aliás, salvo raras excepções, d
e 1958 a 1961, numa amálgama inextricável, alguns destacados dirigentes do MLG e do PAI, indistintamente, partilharam, voluntária ou involuntariamente o mesmo espaço político (...)  coincidindo essa fase com o período em que ainda se acreditava ser possível, a breve trecho, sobretudo da parte do MLG, o início do processo que havia de conduzir a Guiné "dita portuguesa" à independência.

Na verdade, a criação em Bissau, em 1958, do MLG (Movimento de Libertação da Guiné), a par das perseguições das autoridades coloniais, constituiu-se no mais sério problema para os propósitos unitários que Amílcar Cabral postulava na luta contra o colonialismo português na Guiné. O MLG, que desenvolvia acções numa perspectiva política pouco elaborada, cedo hostilizou Amílcar Cabral, a quem alcunhou pejorativamente de "cabo-verdiano".

Este movimento acusava os cabo-verdianos de terem ajudado os portugueses na dominação colonial da Guiné e, perante a iminência de independência, pretenderem substituir os colonialistas. A miragem de uma independência prestes a concretizar-se, à semelhança do que ocorreu nas colónias francesas da Guiné "dita francesa" e do Senegal, precipitou nas hostes do MLG a tendência para a organização de um movimento que procurasse congregar no seu seio alguns poucos guineenses ilustres, dando assim primazia a necessidade de sublimação das inquietações mais personalizadas que colectivas, relegando para um plano secundário a preparação para a luta armada e a estruturação do movimento em termos populares. (...)

(...) Como quer que seja, é dado adquirido que o PAI, enquanto tal, até pelo hiato referido que caracterizou a sua quase inacção entre 1956 e 1959, não teve, pelo menos directamente, uma acção ou influência decisivas nas acções que viriam a desembocar em Pindjiguiti. Diferentemente do PAI, a mesma asserção já não pode aferir-se relativamente ao MLG que teve, de facto, uma assinalável e directa participação directa nos acontecimentos. Efectivamente, activistas do MLG tais como César Mário Fernandes (empregado do tráfego do cais de Pindjiguiti), Paulo Gomes Fernandes e José Francisco Gomes tinham-se há muito empenhado em acções de discreta mobilização e consciencialização política dos trabalhadores portuários em geral e dos marinheiros e estivadores do cais de Pindjiguiti em particular (...)

Das pessoas referidas pelo Elisée[Turpin] (...) recordo-me perfeitamente de:

- Benjamim Correia, que tinha uma loja de bicicletas e acessórios e era um conceituado comerciante muito estimado e considerado entre a população da Guiné, "colonos" incluídos;

- Rafael Barbosa, que era funcionário das Obras Públicas e tinha uma pequena deficiência numa perna que o obrigava a mancar;

- Quanto ao Inácio Semedo, o único Semedo de que me recordo era o guarda-redes do Sporting de Bissau, alcunhado de "Swift"; talvez não seja o mesmo;

- Luís Cabral, irmão do Amílcar, trabalhava na Casa Gouveia.

Porém, aqueles de quem melhor me lembro - por com eles ter lidado mais de perto - são:

- Fernando Fortes que era funcionário dos Correios em Bissau: tinha um irmão (Alfredo, salvo erro) que nos meus tempos de Farim (1953/55) era o Delegado Aduaneiro naquela localidade;

- João Rosa foi meu colega de trabalho na NOSOCO. Era o guarda-livros. Fui muitas vezes a casa dele no Chão Papel (...). Era muito meu amigo e fui visitá-lo ao hospital quando ali foi internado, já sob prisão da PIDE;

- João Vaz era o alfaiate dos serviços militares. A oficina era na Amura e era ele que fazia o fardamento para os recrutas e demais militares. Ainda tenho comigo um camuflado que ele me fez sob medida.(...)

Vd. também postes de:


segunda-feira, 18 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23439: O nosso livro de visitas (216): Areolino Cruz (Bafatá, 1944 - Cubucaré, 1965) foi meu colega de carteira no Colégio Nuno Álvares, em Tomar, nos anos de 1957/58. Guardo dele uma terna recordação (Francisco A. Monteiro e Souza, natural de Cabo Verde, a viver nos Açores, ex-membro da FAP e da TAP)



Colégio Nun'Álvares, de Tomar, Externato e Internato, Masculino e Feminino - Cursos: Curso Primário Elementar; Cursos de Admissão aos Liceus e Escolas Técnicas; Curso completo dos Liceus (do 1º ao 7º ano): Curso completo Comercial (ciclo Preparatório e Curso Geral de Comércio);  Admissão às Universidades e Institutos médios e superiores.

Anúncio publicitário inseridno,  na pág. 93, na revista Seara Nova, nº 1385-86. março-abril de 1961. Fonte: RIC - Revistas de Ideias e Culura | SLHI - Seminário Livre de História das Ideias, CHAM | FCSH | Universidade NOVA de Lisboa. (Com a devida vénia...)



A notícia da morte de Areolino Cruz foi divulgada no Boletim mensal «Libertação», Órgão de informação oficial do PAIGC, edição n.º 62, Janeiro de 1966, classificado de "número especial". O texto que abaixo citamos foi retirado da página 11.




Citação: (1966), "Libertação", n.º 62, Ano 1966, Janeiro de 1966 | Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral - Vasco Cabral  (com a devida vénia).

Infografia: Jorge Araújo / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021).



1. Mensagem recebida no Formulário de Contacto do Blogger  (*): 

Data - quinta, 14/07/2022, 17:17

Fui colega de carteira do Areolino 
[Cruz], no Colégio Nuno Álvares, em Tomar, nos anos 57/58. 

Embora mais novo que ele, guardo do mesmo uma terna recordação. Sai do colégio em 1958 e desde então perdi o contacto com o mesmo. 

Soube mais tarde,através do Daniel Ramos Benoliel, guineense, que comigo serviu na Força Aérea Portuguesa e mais tarde foi meu colega na TAP, que o Areolino tinha ido para a URSS estudar e que, por qualquer motivo, foi recambiado para a Guine, onde viria a morrer.
Paz à sua alma.

Francisco Souza (natural de Cabo Verde).

Cumprimentos,
Francisco A. Monteiro e Souza


2. Resposta do editor Luís Graça:

Data - sexta, 15/07/2022, 10:29

Francisco, obrigado pelo contacto. Sobre o Areolino Cruz (Bafatá, 1944 - Cubucaré, 1965) temos pelo menos 3 referências.(**)

Se não vir inconveniente, gostávamos de poder publicar a sua mensagem. É sempre escassa a informação sobre os homens (guineenses, cabo-verdianos, portugueses, cubanos...) que estiveram "do outro lado" nesta guerra, afinal de contas fratricida... 

O nosso blogue é uma plataforma para a partilha de memórias de todos nós que, ao fim e ao cabo, continuamos a ter a Guiné e a sua gente (e, claro, Cabo Verde) no coração.

Mantenhas. Luis Graça

3. Resposta de Francisco A. Monteiro e Sousa:

Data - 16 jul 2022 14h59

Caro Luís Graça,

Muito obrigado pela sua mensagem. Não vejo qualquer inconveniente em publicar a minha mensagem. 

Mais informo que durante a minha estadia no colégio Nuno Álvares,em Tomar, fui colega de vários outros Guineenses, entre eles o João Domingos Gomes,o Eslávio Gomes Correia e os irmãos Inácio e Júlio Semedo   [o Inácio Semedo tem 1o referências no nosso blogue], todos eles mais velhos que eu,  mas com os quais mantive boas relações. Não sei se ainda estão vivos, mas se ainda o forem,  daqui (Açores, onde vivo desde 1979) lhes envio um fraterno abraço.

Termino enviando-lhe um cordial abraço.

Francisco A.Monteiro e Souza.
_____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 26 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23203: O nosso livro de visitas (215): Martin Evison, inglês, em nome da ONGD Action Guinea BIssau, uma "charity" do Reino Unido, criada em 2020, que atua em Catió e Cufar

(**) Sobre o Areolino da Cruz, vd. postes de:

24 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21943: (D)o outro lado do combate (65): a morte de Areolino Cruz (Bafatá, 1944-Cubucaré, 1965), professor do ensino básico no Cantanhez (Jorge Araújo)

(...) Areolino Cruz, de nome completo: Areolino Lopes da Cruz Júnior, filho de Augusto Lopes da Cruz e de Domingas da Rocha Cruz, nasceu em 14 de Janeiro de 1944 (6.ª feira), em Bafatá. Morreu, como se infere da nossa investigação, em Cubucaré, na Região de Tombali (Cantanhez), entre 17 e 20 de Dezembro de 1965, de acordo com as circunstâncias relatadas no ponto 3 deste texto. (...)

23 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21000: PAIGC - Quem foi quem (13): Areolino Cruz, professor do ensino primário, que alegadamente terá perdido a vida ao tentar salvar os seus alunos durante um bombardeamento, em Cubucaré, em 17 de fevereiro de 1964 (Cherno Baldé / Jorge Araújo)

20 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20994: (D)o outro lado do combate (60): O ataque a Pirada em 15 de julho de 1963 (Jorge Araújo)

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14164: Historiografia da presença portuguesa em África (49): Revista de Turismo, jan-fev 1956, nº especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte I (Mário Vasconcelos)












Alguns das dezenas de anúncios de casas comerciais inseridos na revista Turismo, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2, nº especial dedicado à província portuguesa da Guiné. Alguns dos nomes são-nos familiares: por ex,, (i) o António Amante Rosa, de Fulacunda, que era pai do nosso camarada Manuel Amante Rosa, e que depois mais tarde será armador, com barcos que faziam o  rio Geba, mas também a ligação de Bissau com os Bijagós;  (ii) Inácio Júlio Semedo, de Bambadinca, pai de  Inácio Semedo Júnior (ex-guerrilheiro e quadro do PAIGC, ex-embaixador aposentado, com residência em Lisboa, em 2008); (iii) José Gardette Correia, de Bissorã, pai do Manuel Gardete Correia (médico)...  Por outro lado, os libaneses tem eram comerciantes com forte implantação no território; a empresa Aly Souleimane & Ca, de importação e exportação, com sede em Bissau, tinha nada mais nada menos do que 15 filiais no território: desde Bambadinca a Contuboel, desde Farim a Gadamael...

Estes anúncios não deixam de refletir o clima de relativa prosperidade económica da província que se vivia nos meados da década de 1950, ainda longe das ameaças da guerra... Recorde-se que faz 52 anos, no próximo dia 23 de janeiro de 2015, que se iniciou oficialmente a guerra de guerrilha com o ataque a Tite.

Fotos: © Màrio Vasconcelos (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


1. Mensagem, com data de ontem, do nosso camarada Mário Vasconcelos  [, ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72, Mansoa, e Cumeré, 1973/74; foto atual à esquerda]:


Tenho em posse a revista TURISMO, publicada em Janeiro/Fevereiro de 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2, a qual refere ser um número especial dedicado à (então) Província da Guiné. [Foto da capa, a seguir].

Nas voltas que o tempo tece, fui descobri-la no espólio de meu pai- que
Deus o tenha em descanso merecido - e que, quem diria, só agora se encontra como elo de ligação ao meu tempo de serviço militar por tais paragens. Paragens estas, forçadas, mas que me têm dado, fortificados e inesquecíveis laços de amizade com muitos camaradas, que de outro modo não existiriam.

Pena tenho de a não ter levado comigo, quando mobilizado, pois poderia ter-me permitido constatar, in loco, algumas das notícias publicadas e abrir-me à recolha de dados que estiveram presentes e não foram apreciados devidamente, nomeadamente os aspectos étnicos e as transformações havidas.

Farei referência, futura, a alguns escritos então publicados (se for de interesse geral), mas, por agora limito-me a aspectos de economia local (década de 1941-1950) bem como a menção (passe a publicidade) de vários anúncios de casas comerciais desse tempo, e tentar fazer luz, sobre se algumas destas existem no real ou apenas em memórias.

Mais certo será que a grande maioria, se não a sua totalidade, tenham perecido no tempo. Bem vistas as coisas, mais de um bom punhado de anos são passados.

Deixo aos editores, como não poderia ser de outro modo, o interesse de, total ou parcialmente, proceder à publicação.

Com um alfa bravo me despeço de todos os camarigos.

Mário Vasconcelos

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7440: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (5): Do Bambadincazinho para Ponta Varela

Guiné > Zona Leste > Mapa do Xime (1955), 1/50000  > Detalhe: O Rio Geba, o Rio Corubal, à esquerda, Poindon, Ponta Varela, Madina Colhido, estrada Xime-Ponta do Inglês, Rio Geba Estreito,  Xime, estrada Xime-Bambadinca, Enxalé (em frente, na margem direita do Rio Geba), Samba Silate, Ponta Coli, Amedalai... Tudo lugares míticos, carregados de emoções para os camarigos que viveram e lutaram no Sector L1 (Bambadinca) ou que desembarcaram, numa LDG, a caminho de outras terras da vasta zona leste da Guiné, via Bambadinca-Xitole ou Bambadinca-Bafatá... (LG)


1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Dezembro de 2010:

A partir deste dia 21 de Novembro passei a andar às ordens do Fodé Dahaba. Procurei deixar tudo anotado e por ordem. Em vão. Na mesma folha onde escrevi o nome de Demba Embaló, o guarda-costas de Jorge Cabral, pus o nome de Aliu Baldé, Binta Seidi, e para baralhar mais as coisas escrevi os nomes dos comandantes do PAIGC em Madina e Belel: Santiago Mendes, Farazinho Pereira e Samper Mendes.
A partir daqui ainda vai ser pior. Felizmente que me posso guiar pela ordem, dia-a-dia, registada pela máquina fotográfica. Mas falei com tanta gente, perguntei por tanta gente, estou certo e seguro que vou cometer graves omissões.
Nem tudo o que queria ver e que pedi ao Fodé foi possível visitar: a estrada da Amedalai para Moricanhe estava praticamente intransitável, e só conheci muito tarde a solução salvadora, Lânsana Sori e a sua milagrosa motocicleta; chegar ao Buruntoni e ao Baio é muito difícil, e tem que ser a partir da Ponta do Inglês; a mesma coisa com a viagem da Ponta do Inglês até à mata de Fiofioli, onde se situa a tabanca de Tubácuta onde viveu o comandante Domingos Ramos.
O importante é que a viagem nunca acaba. E os sonhos do viandante permanecem.

Um abraço do
Mário
__________________

Operação Tangomau (5)

por Beja Santos

Do Bambadincazinho para Ponta Varela

1. A partir de Bambadinca, chega-se num ápice ao Bairro Joli, contíguo de Santa Helena. Por aqui andei no passado longínquo em missões pacíficas e em nomadizações hostis. Durante a guerra, comprava-se aqui gado,  muito útil para os problemas de intendência de Missirá, os dois cabritos que Jobo Baldé ali assou no Natal de 1968, daqui vieram, seguiram pela bolanha de Finete num Unimog 411 e finaram-se na véspera de Natal, para gáudio de quem combatia e vivia naquele ponto do Cuor. Estes caminhos do Bairro Joli eram espiolhados devido à incontestável conivência de alguma população com os inimigos de Madina/Belel. Era o drama das relações de sangue de quem tinha optado pela luta ou ficado à sombra da bandeira portuguesa.

Em Santa Helena, Fá Balanta e Mero viviam comunidades balantas onde se acoitavam, à sorrelfa, civis e militares do mato, que procuravam informações, compravam tabaco ou sal, abasteciam-se de gado, traziam esteiras e produtos das suas hortas. Atravessavam o Geba estreito entre as bolanhas de Finete e Ponta Nova. Aparecíamos ao amanhecer em missões pouco conciliatórias e às vezes com inquirições duras. A verdade é que a comunicação, mesmo com mortes e feridos de permeio, nunca se interrompeu completamente. Ora é acima de Ponta Nova que eu vou habitar. Aqui se devotou Inácio Semedo a construir casa, destilaria e horta. A casa, basta ver a fotografia, é bem semelhante àquelas que se podiam ver em Malandim, Saliquinhé ou São Belchior, até mesmo no Enxalé, ao tempo.

O panorama que se desfruta é, no mínimo, deslumbrante. O Tangomau vai desfrutar das vistas do amanhecer e do entardecer, são momentos mágicos. De manhã, antes das sete horas, Bambadinca aparece submersa pelo sereno, uma neblina que se evola com o primeiro calor da manhã, deixa ver, em toda a sua majestade, as bolanhas, os palmares e os meandros do Geba estreito. À tarde, é o cerimonial do pôr-do-sol, a bola de fogo tisna-se de todos os tons ígneos, até se esconder entre Mato de Cão e Chicri. Nesta casa onde me acolhera, há muito da traça portuguesa adaptada ao calor tropical, as varandas são indispensáveis, os telhados prolongam-se para dar sombra sobre os alpendres.

O Tangomau e comitiva são recebidos pela Dada e Fernando Semedo, Mio. Há duas crianças (Tuinho e Thierry), uma menina de nome Florinda, a empregada, depois vai aparecer um outro empregado, Alberto Djata. Mostram-lhe o quarto, a casa de banho, a sala onde irão ver os canais franceses mais alguns filmes em DVD.

O Tangomau logo regista a casa, teve mesmo a pretensão de captar as duas bolanhas em sequência, saiu imagem amassada, desbotada, paciência. Vamos agora ao que importa, mentaliza-se que se avizinham emoções muito poderosas, vai rever gente que muito estima, vão ser expostos problemas (para ele) insolúveis, ser-lhe-ão feitos pedidos que não poderá atender, é preciso estar de ânimo forte.

A casa no Bairro Joli, perto de Santa Helena,  onde estou a viver. Foi erguida por Inácio Semedo, que pertenceu ao PAIGC e que por isso obrigado a viver em Angola durante 7 anos. Um dos seus filhos, o Eng.º Fernando Semedo, procura pôr de pé o sonho do seu pai, dar vida ao projecto agro-industrial


2. Para se sentir preparado, veio cedo contemplar a bolanha de Ponta Nova, trouxe “As Palavras”, de Jean-Paul Sartre, uma narrativa autobiográfica muito dolorosa e corajosa, não é qualquer um que se acomete a escrever assim:“Uma manhã, em 1917, em La Rochelle, aguardava alguns colegas que deviam acompanhar-me ao liceu; estavam a demorar; sem já saber o que inventar para me distrair, resolvi pensar no Todo-Poderoso. Logo ele se precipitou no azul-celeste e se sumiu sem dar explicação: não existe!, disse eu a mim próprio com um espanto cortês, e julguei o assunto arrumado. De certa maneira estava, visto que nunca mais, desde aí, senti a menor sensação de o ressuscitar. Mas o Outro subsistia, o Invisível, o Espírito Santo, o que garantia o meu mandato e regia a minha vida por grandes forças anónimas e sagradas. Deste, senti bem maior dificuldade em me livrar, pois que se instalara atrás da minha cabeça, nas noções adulteradas que eu usava para me compreender, me situar e me justificar. Escrever foi durante muito tempo pedir à Morte, à Religião, sob uma máscara, que me arrancassem a minha vida ao acaso. Fui da Igreja. Militante, quis salvar-me pelas obras; místico, tentei desvendar o silêncio do ser por um sussurrar contrariado de palavras e, sobretudo, confundi as coisas com os seus nomes: isto é querer”.

Divago sobre esta capacidade de falar sobre a perda da fé quando se começa a ouvir o motor da Renault Express. Fodé apresenta cumprimentos, não há tempo a perder, os eventos sociais estão marcados. Há só uma curta paragem no mercado de Bambadinca, o Tangomau vai abastecer-se de bolacha Maria, banana-maçã e alguma goiaba. Primeiro, e de acordo com a lei Mandinga, receber cumprimentos dos homens grandes, aparecem capitaneados por Aliu Fuma, mais do que octogenário, trazido pela mão de um genro. Há saudações e depois orações, dá-se graças a Deus por este reencontro. A seguir a família, mulheres, gente mais jovem e as crianças. Sucedem-se as reverências mandingas, o Tangomau é saudado com o profundo respeito da amizade que merecem os velhos. Aliás, o Tangomau vai passar repetidamente a ouvir o cumprimento: “Olá, velho! Corpo?”.

É neste grupo que aparece Mamadu Baldé, filho de Queta Baldé, chegara expressamente de Amedalai apresentar cumprimentos. E temos o último cerimonial, o pessoal da casa, mulheres e filhos. É nisto que o Tangomau acorda para um drama, a terceira mulher do Fodé, a quem chamam a Louca, aparece, profere uma frases ininteligíveis e desaparece. É a mãe de Calilo, Iaguba, Braima, isto só para falar dos machos, é impossível fixar o nome daquele rol de fêmeas a que constantemente Fodé grita para pedir coisas ou dar ordens.

Não fosse o Tangomau um obscuro fotógrafo amador e teria conseguido capturar a deslumbrante extensão das bolanhas de Ponta Nova e Finete, com Mato de Cão lá ao fundo. É o que há, pede-se desculpa por não se ter capturado um panorama magnífico do Geba estreito.


3. Súbito, o Tangomau é avassalado por uma emoção, diante dele, de braços abertos e riso bom aparece-lhe Samba Gebo, sempre jovem, distinto, mal se apresentou e já começa a pedir livros, lápis e papel. No seu caderninho, o Tangomau notou: o Samba trouxe-me a juventude de Missirá, é o porta-voz daquela gente abnegada, leal, sempre pronta a seguir-me.

Chegou igualmente Madiu Colubali, tem a vista turva, desfaz-se em ademanes. Fodé grita, a família Fati, os Sanhá e os Dahaba têm uma recepção à nossa espera em Amedalai. O primeiro choque surge quando o Tangomau pede uma curta paragem na ponte de Udunduma, depois de uma ligeira discussão Fodé condescende. Tiram-se fotografias e o Tangomau precipita-se ladeira acima, à procura do local onde esteve instalado o destacamento mais infecto da Guiné.

Encontrou uma tabanca, foi muito bem acolhido, explicou ao que veio e apanhou um instantâneo e uma festa de mulheres, só fixou que se tratava de um corte de cabelo. Pouco depois, chegaram a Amedalai, a tabanca é enorme, talvez tenha mesmo duplicado ou triplicado. Os Fati, os Sanhá e os Dahaba são uma pequena multidão. Fodé discursa, um homem grande responde e o Tangomau, inexplicavelmente, pede a palavra e conta onde e como nasceu a profunda amizade que nutre por Fodé. Fala-se de Finete, de uma colaboração muito leal, e no fim conta-se aquele desastre brutal no amanhecer de 22 de Fevereiro de 1969. Mudara a vida do Fodé e aquele menino alferes descobria que às vezes uma ordem pode dar um sinistro despropositado, como fora o caso daquele.

O almani presente na cerimónia levanta-se e reza uma nova acção de graças. O Tangomau gagueja: “Deus Todo-Poderoso tem compaixão de nós, perdoa os nossos pecados e conduz-nos à vida eterna”. Procura-se a seguir Mamadu Djau, não está, aproximam-se os familiares e até um homem que se apresenta como primeiro-cabo da CCaç 12, dá pelo nome de José Carlos [Suleimane Baldé], exige ficar numa fotografia para que lá em Portugal saibam que está vivo. E parte-se para o Xime, o alcatroado tem resistido bem ao tempo, o Tangomau viu-o nascer, em 1970. Pelo caminho, despontam as tabancas que surgiram depois da guerra, Taliurá e Ponta Coli, são os manjacos que exploram estas ricas de bolanha.

Uma variante da fotografia que já saiu no álbum, publicada há dias: estamos em Amedalai e alguém que se apresenta como José Carlos Suleimane Balbé [ex-1º Cabo, CCA>Ç 12, 1969/74] , pede para ser fotografado. Ei-lo, ladeado por Samba Baldé (Samba Gebo) e Madiu Colubali. O fundo é dado por membros da família de Mamadu Djau.


4. Chegados ao Xime, a primeira curiosidade é de visitar o porto. Este já existe, está reduzido a miseras meia-dúzia de estacas. Até o capim brota do alcatrão, como se protestasse por tão indigno abandono. Numa elevação, ergue-se uma estrutura monumental, ao que parece um silo para a mancarra, trata-se de uma infra-estrutura que nunca teve uso, quando Luís Cabral caiu em desgraça Nino Vieira votou ao desprezo os projectos do seu antecessor. Há ainda uma visita a fazer a membros da família Fati, aparece a viúva de Mankuma Biai, um guia muito capaz que prestou um óptimo serviço ao Tangomau na operação “Rinoceronte Temível”, tendo mesmo sido louvado.

O Xime é uma mistura de instalações ao abandono e da nova tabanca. Fodé adverte que vamos para o último itinerário da viagem, Ponta Varela. Tomou-se à direita a estrada Xime-Ponta do Inglês, seguiu-se por um estradão mal tratado, ao fim de meia hora entrei num território que percorrera sempre à espera de contacto com o inimigo. O que o levara ali era conhecer o local onde, nesse passado remoto da guerra, as forças do PAIGC desfechavam bazucadas sobre as embarcações civis que, arrastadas pela corrente, se aproximavam do tarrafe, à entrada do Geba estreito.

Nas operações que se destinavam ao Poindom ou Ponta do Inglês flanqueava-se as bolanhas e os velhos trilhos, que o PAIGC minara. Eram viagens que se faziam com luz, temia-se uma sarrafusca nocturna, com a desvantagem do inimigo saber retirar e de novo golpear. O importante é que mal chegados à tabanca, e feitos os cumprimentos da praxe, o Tangomau pediu para ir até à margem do Geba.

Um jovem, de nome Mussá, ofereceu-se mas logo avisou que havia passeata para cerca de 3km, o que não incomodou o Tangomau, ele segue excitado por mangais, picadas, hortas e palmares. Irá guardar a imagem dos fios de luz, uma luz coada a ouro, se ir infiltrando pelos cajueiros, tudo dentro de uma grande serenidade, não há mais presença humana, o passeio não cansa, depois surge o Geba, o terreno amoleceu e Mussá mostra o local, aponta para um pilar de cimento, era dali, dentro dos cajueiros fechados que vinha o fogo mortífero.

Captam-se várias imagens, o que era segredo deixou de o ser. E regressa-se em passo estugado. Dos aspectos essenciais, o Tangomau tomou nota: dentro de dias irá conhecer M’Fon Na Bra, comandante do bigrupo que actuava em Ponta Varela; a memória, vacilante, recuou até ao mês de Março de 1969, foi no HM 241 que o Tangomau conheceu aqueles membros da família Fati que vivem agora no Xime; na nova tabanca de Udunduma gostou muito de ser questionado pelos jovens que pretendiam mais informação sobre o quartel. Ainda havia umas folhas soltas com observações registadas,  perderam-se. E assim findou o primeiro dia organizado pelo Fodé, Calilo vai depositá-lo no Bairro Joli.

Demba Embaló, guarda-costas de Jorge Cabral, do Pel Caç Nat 63. Atenda-se à naturalidade da pose, quando se vêem estas fotografias acorre ao espírito as pessoas naturalmente aristocráticas. O Demba coligiu a folha que já aqui foi publicada com os nomes dos soldados do Pel Caç Nat 63. O Demba vende cola e tabaco no mercado de Bambadinca. Garanti-lhe que uma das razões que me trouxera à Guiné era preparar a compra da casa do Jorge Cabral. O Demba tomou-me a sério: “Fica tão contente, tão contente!”

5. Deixou-se para o fim um pormenor essencial: Fodé vive no Bambadincazinho, não há que enganar. Mal se apercebeu dessa realidade, o Tangomau foi visitar a Missão do Sono, a escassas dezenas de metros. Aí voltará na manhã seguinte, na companhia de Mamadu Djau. Mas não se quer adiantar mais pormenores, amanhã será um dia dedicado a Bambadinca, haverá baba e ranho de todo o tamanho, desde o quartel ao porto, também ele desaparecido. Será aí que o Tangomau, especado, olhará para a bolanha de Finete, exactamente no local onde a canoa de Mufali Iafai o conduzia, perto do fim do dia. Mufali também desapareceu.

Ao longo deste dia perguntou-se por muita gente, foram explosões, umas atrás das outras. Serifo Candé, que o Tangomau tanto ansiava abraçar em Biana, perto de Fá, morreu. Na semana anterior morrera Mamadu Silá, o 108, um gigante de corpo com um fiozinho de voz. O Tangomau chega cabisbaixo, com aquela sensação paradoxal que satisfez a curiosidade de visitar lugares anteriormente interditos mas ter perdido camaradas inesquecíveis. Depois cumprimenta a família Semedo, já anoiteceu, conta o que viu e quem visitou, adormeceu cedo, desta vez não teme só os encontros com as pessoas, teme os lugares que vai rever e que tanto estimou, um afecto que guardará até ao fim dos tempos.

Outra variante da fotografia já publicada sobre Ponta Varela, exactamente no local onde as forças do PAIGC atacavam as embarcações civis. É pena não se ficar com a ideia de como, também neste local, nascera o Geba estreito, o leito do rio afunila, à esquerda, não muito longe daqui, passa o rio Corubal [. Vd. detalhe da carta do Xime, 1955, acima].

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7417: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (4): 20 de Novembro, de Bambadinca para o Bairro Joli

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17920: (D)o outro lado do combate (14): a odisseia do português, da Murtosa, Rodrigo Rendeiro: uma viagem atribulada, de cerca de mil km, de 3 a 26 de setembro de 1963, de Porto Gole, onde tínha um estabelecimento comercial e era casado com uma senhora mandinga, de linhagem nobre, Auá Seidi, e tinha cinco filhos,até ao Senegal (Samine, Ziguinchor e Dacar), unindo ocasionalmente o seu detino ao do PAIGC... Relatório, assinado por ele, mas de autenticidade duvidosa...



Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o  Rio Geba ao fundo, e a saída para leste (no sentido de Bafatá)... Em primeiro plano, lado nordese do quartel e um dos abrigos, sobranceiros à tabanca, e a morança do comerciante português Rodrigo Rendeiro, do outro lado do arame farpado... Ficava do lado direito, quando se subia, vundo de Bafaté e do rio Geba,  a famosa rampa de acesso ao quartel e posto administrativo de Bambadinca.

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Portal Casa Comum > Instituição:Fundação Mário Soares

Pasta: 07075.147.042 [Clicar aqui para ampliar]

Título: Relatório sobre o ingresso de Rodrigo Rendeiro no PAIGC

Assunto: Relatório assinado por Rodrigo Rendeiro, remetido ao Secretário Geral do PAIGC, sobre a sua saída de Porto Gole até ao ingresso no PAIGC.

Data: Quinta, 26 de Setembro de 1963

Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios XI 1961-1964.

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Tipo Documental: Documentos

Direitos:
A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Arquivo Amílcar Cabral > 04. PAI/PAIGC > Relatórios/Directivas


Citação:
(1963), "Relatório sobre o ingresso de Rodrigo Rendeiro no PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41411 (2017-10-30)


Transcrição:

Dacar, 26 de setembro de 1963

Relatório ao Exmo. Sr. Secretário do PAIGC sobre a minha saída de Porto Gole, até ao ingresso nas fileiras nacionalistas (PAIGC)

No dia 3 de setembro de 1963, cerca das 7 horas da tarde, chegou a Porto Gole para libertação desta pequena vila da Guiné, dita Portuguesa, uma força nacionalista comandada pelo camarada Caetano Semedo,  e que não encontrou resistência por parte da população civil, visto esta comungar da mesma ânsia de liberdade do jugo colonialista português comandado por Salazar.

Quando o camarada Semedo chegou à minha casa comercial, convidou-me para abrir a porta da residência, com palavras e gestos corteses, o que logo me cativou e mais ainda fez luz no meu espírito[:] que os nacionalistas combatem por, e com, um ideal elevado, ou seja, a independência da sua terra do jugo capitalista e opressão salazarista, e não são indivíduos de baixos instintos, como diz a propaganda imperialista.

O camarada Semedo sabia perfeitamente que eu tinha conhecimento da sua base em [Baradoulo e não Barradul, vd. mapa de Mamboncó], povoação biafada, a 10 km de Porto Gole, e que da minha loja partia[m] os abastecimentos para os seus camaradas de luta. O meu empregado José Duarte Pinto era o responsável dos civis militantes em Porto Gole, [e] a quem eu dizia sempre que estivesse tranquilo, que da minha parte jamais haveria traição alguma, não só por viver na Guiné, dita Portuguesa, onde labutava [h]á vinte anos, mas também por encontrar nessa Guiné a mulher, de raça mandinga, e os nossos  cinco filhos, que são a minha principal família.

O camarada entendeu, como eu estava colaborando com eles, e para não sofrer [represálias](*) da parte das autoridades portuguesas, levar-me para a base de[ Baradoulo, e não Barradul] e depois para lugar seguro. Assim começou a minha viagem até à fronteira do  Senegal, passando pelas bases de Mansodé [, a sudoeste de Mansabá] e Morés, onde estive 14 dias, sendo tratado com todos os pergaminhos (sic) de delicadesa por parte do camarada Osvaldo Máximo Vieira e de seus camaradas de luta.

Parti do Morés no dia 17 do corrente, pelas 4 horas da tarde, para a fronteira do Senegal, jantando na povoção de [Fajonquito, a sul do Olossato] (**), comandada pelo camarada Mamadu Indjai, pessoa de trato afável que me dispensou todas as atenções. Depois de jantar nesta base, partimos para a povoação de Lete [, ou melhor, Leto, a sudoeste do Tancroal], onde cheguei aproximadamente às 3 horas da madrugada do dia 18. Descansámos nesta povoação até cerca das 4 horas da tarde. Donde partimos para a travessia [do rio Cacheu e não do rio Farim...] que já se fez de noite, devido à vigilância duma vedeta colonialista. 

Cerca das duas horas da manhã [, do dia 19,] chegámos à povoação fronteiriça de Jiribã [e não Giribam], já [no] Senegal, onde descansámos até  às 7 horas da manhã. De seguida partimos para [Ierã, em português, e não Eran], onde o guia nos antecedeu, partindo para Samine [, a leste de Ziguinchor, capital de Casamansa, e não Zinguichor]. Devido a má interpretação deste guia, as autoridades senegalesas tomaram-nos {por] prisioneiros de guerra, pelo que fomos detidos e algemados. 

À nossa chegada, o camarada Lourenço [Gomes], responsável do Partido em Samine, protestou junto das autoridades senegalesas, fazendo-as ver que não éramos prisioneiros mas sim refugiados que vínhamos pedir asilo no seio do PAIGC. Então fomos desalgemados e conduzidos ao lar dos camaradas,  onde almoçámos. Após o almoço seguimos para Ziguinchor, ainda detidos,  onde o camarada Lourenço [Gomes] nos antecedeu para tratar da nossa [libertação](***). 

Mas em Ziguinchor,  ainda durante [os] 4 dias [em]  que lá estivemos, continuámos detidos,  devido a [má] comunicação, com a gendarmaria, de Samine [e de] Ziguinchor, como prisioneiros. Após estes 4 dias, saímos de Ziguinchor para Dacar no dia 23, onde chegámos somente por volta das 8 horas da noite do [dia] 25, devido a uma avaria na viatura que nos transportava.

Como os nossos camaradas de Dacar, que têm como responsável o camarada [Pedro] Pires, não soubessem da nossa chegada, tivemos que dormir na prisão até  ao dia seguinte.  Depois de termos contacto como o camarada [Pedro] Pires, este dirigiu-se ao ministério do Interior, tratou dos nossos interesses e fomos postos em liberdade. Dirigi-me para o lar dos camaradas, onde me encontro desde o dia 25 do corrente.

Com o vivo protesto de saudações para o nosso partido, e que a nossa luta contra os colonialistas portugueses alcance em breve o seu fim.

[Assinatura, legível] Rodrigo Rendeiro,


 Revisão, fixação de texto e notas: Luís Graça

*No original, repressões; **  No original, Feijão Quito; *** No original, liberdade.


Parte final do relatório, datilografado, de 2 páginas, com a assinatura do comerciante português Rodrigo Rendeiro, datado de Dacar, 26 de setembro de 1963... 


1. Das vezes (duas ou três, pouco mais) que estive na sua casa, em Bambadinca, convidado para os seus famosos almoços de frango de chabéu, em geral aos domingos ou feriados, entre julho de 1969 e março de 1971, ele nunca me falou desta "odisseia" nem muito menos do seu passado de eventual militante ou simpatizante do PAIGC. 

Nem poderia falar, obviamente,  estando na presença de militares portugueses, alferes e furriéis milicianos aquartelados em Bambadinca (CCAÇ 12, CCS/BCAÇ 2852, CCS/BART 2917...), com quem gostava de conversar, aproveitando para matar saudades de Portugual e da sua terra, Murtosa,  e, eventualmente, saber coisas da tropa e da guerra...

Só muito mais tarde, depois do 25 de Abril, é que alguns de nós viemos a saber que o Rendeiro tinha sido  "informador" da PIDE/DGS (*), e que inclusive teria tido problemas na terra da sua amada esposa, Auá Seidi, mandinga, de linhagem nobre, e dos seus queridos filhos. (Sou testemunha do amor que ele tinha aos filhos, embora ele nunca os tenha apresentado  a n+os, tal como nunca nos mostrou a esposa).

Dando como certo o relato destes acontecimentos, mas pondo em causa a "sinceridade" do Rendeiro que, de um dia para o outro, se vê "apanhado" pela teia do PAIGC, os dados biográficos a seu respeito batem certo com o que  dele conhecíamos:

(i) o seu nome completo era Rodrigo [José[ Fernandes Rendeiro, natural da Murtosa, onde de resto iria falecer, tendo o seu funeral ocorrido em 10/9/2011, conforme relato do nosso camarada Leopoldo Correia, de quem era amigo desde os tempos da Guiné (##);

(ii) em Bambadinca, tratávamo-lo simplesmente pelo apelido, Rendeiro; era um homem discreto, polido, magro de cara, moreno, que pouco falava de si; e eu da sua terra, só conhecia a ria de Aveiro e o ensopada de enguias, tinha lá ido de comboio em 1963, com 16 anos numas férias grandes;

(iii) em Banmbadinca era nosso vizinho e, de certo modo, nosso "protegido"; além disso, tinha negócios com a tropa (aluguer de viaturas para transporte de material);

(iv) em 1963, o Rendeiro já estava na Guiné há 20 anos, ou seja desde os seus 17 anos; deve ter emigrado, portanto, em plena II Guerra Mundial (c. 1942/1943), e pelas nossas contas deve ter nascido por volta de 1925/1926, e não em 1920, como eu supunha, teria portanto 44 anos quando eu conheci em Bambadinca;

(v) tal como consta do seu "depoimento" acima transcrito, casou com uma senhora, de etnia mandinga /(, de seu nome Auá Seidi), de que tinham 5 filhos (à data dos acontecimentos);

(vi) nesse ano de 1963 deve ter nascido o seu filho Rodrigo Fernandes que viria a morrer, aos 53 anos de idade,  em 24 de abril de 2016 (, conforme notícia necrológica que encontrámos na Net); residia em Pardelhas, Murtosa, e era "irmão de Maria Libânia, Joaquim Carlos, Joana Maria, Álvaro Henrique, João Herculano, Maria Paula e Hilário, todos com os apelidos Fernandes Rendeiro,  e de Ana Maria Fernandes Rendeiro Bernard, já falecida" [, licenciada em direito, procuradora da República, em Lisboa];

(vii) o comandante Caetano Semedo, aqui citado, devia ser da família de  Inácio Semedo (,conhecido agricultor de Bambadinca, velho nacionalista, de quem Amílcar Cabral foi padrinho de casamento,  e foi um dos históricos do PAIGC); é uma história a aprofundar, com mais tempo e vagar...

2. Tenho dúvidas sobre a "vontade sincera e espontânea" do Rendeiro em pedir a adesão ao PAIGC e ficar em Dakar. Ele terá sido "obrigado" pelas circunstâncias a "colaborar" com o o PAIGC... Era comerciante em Porto Gole, em 1963, e vivia das boas relações com a população indígena, mas também não podia dar-se ao luxo de entrar em rota de colisão com as autoridades portuguesas. Afinal, a Guiné era a sua segunda terra e era lá que ele queria criar os seus filhos e dar-lhes um futuro.  

Lendo com atenção o documento que  acima se transcreve, parece-nos que o comteúdo e a forma não poderiam ser da lavra do Rendeiro... Alguém quis (talvez o "camarada Caetano Semedo" pou talvez o Lourenço Gomes, que estava no Senegal) mostrar bom serviço ao secretário-geral do PAIGC. A "conquista" de Porto Gole  e a "adesão" de um comerciante branco à "luta de libertação" eram dois "grandes roncos", em meados de 1963, com seis meses de guerra...

O documento está escrito em bom português, com um erro ou outro de ortografia, que corrigimos, mas é seguramente muito melhor do que o português da maior parte dos comandantes operacionais do PAIGC.

O Rendeiro, casado com uma senhora mandinga, de linhagem nobre, devia ser pessoa considerada pelos militantes e simpatizantes do PAIGC, e pela população indígena em geral. No relatório é citado o famigerado Mamadu Indjai, mandinga, que irá pôr o setor L1 (Bambadinca) a ferro e fogo em meados de 1969... Acredito que, por razões de sobrevivência, o Rendeiro tenha sido obrigado a colaborar no abastecimento da guerrilha da base de Barradul, a 10 km a norte  de Porto Gole.

Só o seu amigo (e nosso camarada) Leopoldo Correia (##), a par dos seus filhos (que devem viver em Portugal, na Murtosa), pode esclarecer este período obscuro e dramático da vida do Rendeiro. Ele regressou a casa, mas não sabemos quando. E provavelmente nessa altura deve-se ter estabelecido em Bambadinca onde eu e outros camaradas o conhecemos em meados de 1969.

Enfim, mais um episódio para a série "(D)o outro lado do combate" (###). Pode ser que o Jorge Araújo, nosso colaborador permanente e conhecedor do Arquivo Amílcar Cabral,  queira e possa acrescentar ainda  novos dados sobre este caso. O Jorge teve ter tido oportunidade de conhecer o Rendeiro, em Bambadinca, nos anos em que esteve no Xime, Enxalé e depois Mansambo (entre 1972 e 1974).

Também a nossa amiga Maria Helena de Carvalho, filha do Pereira do Enxalé, é capaz de saber algo mais sobre esta história. O Rendeiro, em Porto Gole, e o Pereira,no Enxalé, eram amigos e talvez amigos... O Pereira fixou-se em Bissau, com a família, em 1962. O Reneiro ficou. Não haveria muitos mais brancos em redor, no início da década de 1960.


3. Tentando reconstituir (e estimar o tempo de) o percurso feito pelo  Rendeiro (e a sua escolta), calculamos que ele terá feito cerca de mil km, de Porto Gole (partida a 4/9/1963) a Dacar (chegada a 25/9/1963). É uma estimativa grosseira, com base nas estradas de hoje.

O Rendeiro fez pelo menos 160 km a pé, de Porto Gole até à fronteira senegalesa, entre Bigene e Guidaje:

(i) partiu de Porto Gole no dia 4 de setembro, possivelmente logo de manhã, passando pela base de Mansodé e chegando ao Morés possivelmente no dia seguinte;

(ii) aqui ficou 14 dias, partiu no dia 17, pelas 4 horas da tarde, a caminho da fronteira;

(iii) jantou na povoção de Fajonquito, a sul do Olossato;

(iv) depois do jantar, partiu para a povoação de Leto, a sudoeste do Tancroal, aonde chegou aproximadamente às 3 horas da madrugada do dia 18;

(v) descansa nesta povoação até cerca das 4 horas da tarde do dia 18,  partindo de seguido para a travessia do rio  Cacheu, o  que já se fez de noite, para ilkudir vigilância da marinha portuguesa;

(vi) cerca das duas horas da manhã  do dia 19, chegou à povoação fronteiriça de Giribam, já no Senegal; aqui descansou até  às 7 horas da manhã;

(vii) partiu depois, em viatura, para Ierã e Samine onde foi detido pela gendarmaria;

(viii) depois do almoço, seguiu para Ziguinchor, onde ficou mais 4 dias detido;ix)

(ix) esclarecida a sua situação e o seu novo estatuto, seguiu de Ziguinchor para Dacar no dia 23, aonde chegou somente por volta das 8 horas da noite do dia 25, devido a uma avaria na viatura que o transportava (, a ele e à sua escolta).

Em resumo, as forças do PAIGC levariam normalmente entre  4 a 5 dias, do centro da Guiné (Porto Gole, na margem direita do rio Geba) até à fronteira (,corredor de Sambuiá), fazendo uma média de 30/40 km por dia. Um ferido grave, levado para o hospital de Ziguinchor, morreria fatalmente pelo caminho,,,
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(...) Infelizmente já não está entre nós, pois foi sepultado na sua terra natal [, Murtosa,] em 10/09/2011, tendo eu assistido ao funeral e tido contacto com toda a " ínclita geração", os filhos de Fernandes Rendeiro / Auá Seide, da qual só tenho a dizer bem. A que estudava em Coimbra, era licenciada em direito e era magistrada: faleceu também há cerca de 5 anos. Era juíza do Ministério Público em Lisboa. (...)

/###) Último poste da série > 25 de outubro de  2017 > Guiné 61/74 - P17905: (D)o outro lado do combate (13): Jovens recrutas do PAIGC... (Jorge Araújo)