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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22696: (De)Caras (181): os dois "ponteiros" de Bambadinca, o velho Brandão (da Ponta Brandão) e o histórico Inácio Semedo, de quem o Amílcar Cabral foi padrinho de casamento - Parte I



Guiné > Região de Bafatá > Bambadinca (Sector L1 > Ponta Brandão, fevereiro de 1970: major Cunha Ribeiro (2.º cmdt do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, de alcunha, o "major elétrico") na  ação psicossocial. Havia aqui uma destilaria, de cana de acúcar... Repare-se que a morança tem uma placa, no meio da parede, com "número de polícia": GU 23 (ou 27). A população parece ser balanta.


Guiné > Região de Bafatá > Bambadinca (Sector L1) > Ponta Brandão, uma "ponta" (exploração agrícola, com destilaria de cana de açúcar) que ficava nas imediações de Bambadinca, a caminho de Bafatá, na margem esquerda do Rio Geba Estreito... Na foto, o alf mil cav Jaime Machado (*).

Fotos (e legendas): © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Ponta Brandão > 1970 > Dois velhos balantas,  um deles vestido apenas de um rudimentar tapa-sexo. Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > Carta de Bambadinca (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Nhabijões, Mero, Santa Helena, Fá Balanta e Ponta Brandão, núcleos populacionais consideradas, desde o início da guerra, como estando "sob duplo controlo", ou seja, com população (maioritariamente balanta) que tinha parentes no "mato" (zona controlada pelo PAIGC)... Em Finete, Missirá e Fá Mandinga havia destacamentos nossos: milícias e/ou Pel Caç Nat (52, 63)... Entre Bambadinca e Fá Mandinga ficava Ponta Brandão. Havia aqui uma destilaria, de cana de acúcar... O "ponteiro" era o velho Brandão.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014).


1. A Ponta Brandão veio,  de novo, à baila com a republicação  recente de mais uma das deliciosas  "estórias cabralianas" (**)... Oficial e cavalheiro, o "alfero Cabral", comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71) conta-nos, com a sua inimitável e inefável  brejeirice, as peripécias da 
inesperada visita ao destacamento de Fá Mandinga de "tres alferes de Bambadinca, acompanhados de duas raparigas", uma, a "filha do Senhor Brandão [, da ponta Brandão]" e a outra,  "uma amiga de Bissau, cabo-verdiana".

Não sabemos a razão de ser da visita: por motivos de segurança, só se podia viajar, sem escolta,  à volta de Bambadinca. Fá Mandinga ficava ali à mão, a cerca de 5 km. Ia-se (e vinha-se),;de jipe, nas calmas. Por outro lado, em Fá Mandinga tinha sido uma antiga estação agronómica por onde se dizia ter passado, nos anos 50, o Engº Agrónomo Amílcar Cabral, licenciado pelo ISA- Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa... O que parece não corresponder à verdade, mas, provavelmente, as "duas raparigas" eram simpatisantes do PAIGC e queriam ver, com os seus olhos,  o que restava dessas instalações onde o "pai da Pátria" alegadamente trabalhara vinte anos antes ...Ou então os três jovens e galantes alferes de Bambadinca (quem teriam sido eles? ) devem-lhes vendido essa patranha...

Havia uma outra ponta, em Bambadinca (diz a história do BART 2917) (***), mas eu nunca soube onde ficava exatamente . Presumo que essa pertencesse ao outra "ponteiro", Inácio Semedo, de que falaremos num próximo poste. Antes da guerra, teria havido outras mais pontas. 

Os balantas adoravam aguardente de cana. Por outro lado, os comerciamtes também trocavam aguardente de cana por arroz aos balantas, que eram grande orizicultores. Era natural que a guerrilha do PAIGC (ou os seus elementos locais, nomeadamente em Nhabijões, Mero e Santa Helena) viessem aqui, a Ponta Brandão, abastecer-se. A aguardente de cana era o uísque dos pobres. E sem álcool  ou droga ninguém faz guerras.

O Jorge Cabral conhecia, melhor do que eu, a Ponta Brandão (a escassos  quilómetros de Bambadinca, à esquerda da estrada para Bafatá, e a meio caminho de Fá Mandinga; ia-se lá por causa da aguardente de cana, dos leitoes, da fruta tropical e de .... uma certa bajuda, que devia ser filha ou mais provavelmente neta do velho Brandão).
 
2. Recorde-se que na Guiné o vocábulo "ponta" quer dizer propriedade agrícola, exploração agrícola, horta, em geral junto a um curso de água, na margem de um rio, e o nome estava muitas vezes associado ao seu proprietário, cabo-verdiano ou "tuga": por exemplo, Ponta do Inglês, Ponta João da Silva, Ponta Luís Dias, Ponta Nova, no Rio Corubal.. Mas havia muito mais pontas pelo interior da Guiné: por exemplo, pela Carta de Farim, verifica-se que havia diversas pontas ao longo do curso do Rio Farim:

Ponta Caeiro
Ponta Fernandes
Ponta Paulo Cumba
Ponta Camilo
Ponta Pinto
Ponta Manuel Rodrigues
Ponta Boa Esperança
Ponta Cabral
Ponta Francisco Monteiro
Ponta Simão, etc.

Com o início da guerra, grande parte destas explorações agrícolas foram abandonadas...

Está, de resto, por fazer a história das pontas na Guiné (****)... Na carta de Cacheu / São Domingos, fui encontrar o topónimo, Ponta Salvador Barreto... Em Bambadinca, havia a Ponta Brandão... Fui lá algumas vezes... No Xime, a Ponta Coli, a Ponta Varela...

Há muitas histórias, ligadas às Pontas, que estão por contar... Mas a nossa curiosidade ficará, em muitos casos, por satisfazer: afinal, quem era o Varela ? E o Inglês ? E o Salvador Barreto ?

Mesmo em relação a Ponta Brandão... Q
uem era o velho Brandão?  A sua origem, a sua historia?... Seria também um desterrado? ... Não temos bnenhuma foto dele, só do sítio (e de parte da sua destilaria). Mas na Ponta Brandão haveria mais população, e nomeadamente balanta, gente que no passado trabalhava o arame ele, na ponta e na destilaria...
Enfim, do velho  Brandão, sabemos pouco, embora a malta de Bambadinca, do meu tempo (1969/71), lá fosse com alguma frequência... Afinal, era um vizinho.

Eis aqui alguns testemunhos, já em tempos aqui publicados (*****):

(i) Torcato Mendonça (1943-2021) (, o nosso saudaso amigo e camarada passou por Fá Mandinga, antes da da sua CART 2339, 1968/69, ter sido colocada em Mansambo):

(...)  Não sei se a Ponta Brandão de que falas, se refere a uma quinta, algures entre Fá e Bambadinca, e pertencente a um português há muito radicado na Guiné. Creio que por razões de ordem politica.

Tenho disso uma recordação muito fraca. O vagomestre parece que ia lá comprar vegetais. Passei lá uma ou duas vezes. O Velhote tinha quatro ou cinco filhos, já homens e mulheres, mais velhos que nós. Falei com, pelo menos, um dos filhos. Contou-me que, antes da guerra certamente, caçavam no Geba jacarés e outro tipo de caça naquela zona, etc.

O Velhote tinha uma destilaria. Estando a fazer aguardente de cana,quando por lá passei, agarrou num copo em bambú, encheu e bebeu a aguardente de um trago. Como quem bebe água fresca. Depois, noutro copo, deitou aguardente e deu-me a beber. Foi o liquido mais forte que bebi... deslizava e queimava... e ele olhava... respirei fundo e soprei forte. Fiquei desinfectado. O fulano sorrindo disse ter-me portado bem. 

A minha memória dessa destilaria é fraquissima. Há outro pormenor mas é com a "inteligência" de Bambadinca. O Jorge Cabral e outros militares que passaram por Fá, certamente lembram-se desta família. Será Brandão? Não sei.


(ii) Luís Graça:


(...) Também lá fui uma ou outra vez. Ponta quer dizer quinta. Logo havia lá criação (leitões, por exemplo), horta e fruta (abecaxis, por exemplo). Julgo ter lá ido algumas vezes quando algum de nós estava de sargento de dia à messe (ou sargento de mês, mais exactamente)... 

O Jaime  (Soares Santos), o nosso vaguemestre (da CCAÇ 12), batia região à cata de matéria-prima para satisfazer o apetite voraz da messe de Bambadinca (as meses de sargentos e de oficiais eram separadas, mas a cozinha era a mesma)...

O Jorge Cabral também conhecia a Ponta Brandão, que de resto ficava perto de Fá... Mas tudo aquilo, a começar pela casa, tinha um ar decadente...

Já não posso jurar se a família era de origem metropolitana, ou cabo-verdiana... Sei que a família Brandão de Bambadinca era aparentada com os Brandão de Catió... Uns e outros tinham fama de ter gente no PAIGC. Já os Semedos tinham fortes ligações ao PAIGC (...)

(iii) António Rosinha:

Quando se fala nestas figuras de comerciantes ou agricultores, neste caso com o nome de Brandão, que na Guiné é um dos nomes de colonos históricos, noutras ex-colónias há outros nomes também com história, estamos a falar dos verdadeiros colonizadores "à lá portuguesa".  

Estes homens, sem disso terem consciência, chegaram e abriram caminho e serviram de intérpretes, a missionários católicos e outros, a chefes de posto e administradores e militares.

Estes comerciantes raramente foram alvo de um estudo, que analizasse as suas grandezas e misérias. Mas todos os governantes, desde o Diogo Cão até ao Gen Spínola, secundarizaram estas pessoas, quando devia ter sido o contrário.

Os africanos (indígenas) davam mais importância a um comerciante do que a um governador geral ou a um missionário ou chefe de posto.

Em relação à guerra, tiveram um papel tão importante, para o bem ou para o mal, que podemos dizer que os milhares de Brandões na África portuguesa, foram os pais e os avós da maioria dos teóricos fundadores, do MPLA, PAIGC e FRELIMO, movimentos que secaram outros em volta, e com isso, talvez ainda sobre alguma coisa no fim de isto tudo.

Estes comerciantes, a maioria analfabetos, ou quase, chegavam a falar um dialeto ou mais que um, continuarão a ser olhados de soslaio por qualquer militar que, ao fim de 24 meses, não chegava a comprender aquela africanização, para não dizer outros nomes.

Estes portugueses de Áfricas e Brasis foram a história mais importante da diáspora portuguesa. Em geral viajaram com passagem paga por eles. Muitos netos dessa gente veio para o meio de nós em pontes aéreas. (*****)

(iv) Jorge Cabral:

Confirmo. Fui visita assídua do Senhor Brandão, principalmente durante as férias da filha que trabalhava em Bissau. Era natural de Viana do Castelo ou da Póvoa de Varzim, já não me recordo bem. Teria na altura quase 80 anos, mais de 40 de Guiné e muitos filhos. (******)

A aguardente de cana era fogo... mas matava qualquer bicho, mesmo os imaginários...

(Continua)
___________



(***) Vd. poste de 16 de junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6601: Elementos para a caracterização sociodemográfica e político-militar do Sector L1 (6): Povoações sob controlo IN; Recursos; Clima e meteorologia; Dispositivo e actuação da guerrilha (Benjamim Durães / J. Armando F. Almeida / Luís Graça)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7650: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (16): Até Bissau num toca-toca e conversas sobre a história do PAIGC

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,
Estejam descansados, já estamos nos últimos dias.
Aquele Tangomau partiu para a capital lamuriento, embirrando consigo próprio, devia ter feito mais para cumprir o seu propósito de ver quase tudo onde vivera e onde combatera. As coisas não correram de feição, agora pretende-se ouvir um dos destinatários dessa medonha guerra, o outro, o PAIGC.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (16)

Beja Santos

Até Bissau num toca-toca e conversas sobre a história do PAIGC

1. Na véspera, já no quarto e pronto para dormir, o Tangomau ainda escreve no seu caderninho viajante: “O tocador de korá que vem na fotografia tirada no Bambadincazinho chama-se Seco Galissá e é parente do Braima Galissá; não se falou da visita de Demba Seidi, ele até aparece numa das fotografias em casa do Fodé, compareceu ao almoço de confraternização, foi sempre um soldado estimável e colaborante, não merece o anonimato; tenho de me encher de coragem e pedir ao Fodé para amanhã, no regresso, fazermos uma curta paragem em Finete, perdeu-se todo o material fotográfico, é um desgosto não mostrar a ladeira alcantilada que subimos e descemos centenas de vezes, tirar uma imagem à capela católica, construída nos anos 80 e que ameaça ruina iminente; e novamente captar a imagem da casa onde viveu Bacari Soncó e que me cedeu ali um quarto, sempre que pernoitei no quartel; afinal a fotografia que atribuo ao filho de Mankaman Biai é de Lamine Suane, o filho de Cherno. Tudo isto é resultado de não escrever imediatamente o que se está a fotografar, em cima das situações, não há memória que resista a tanto nome, depois vem esta caldeirada de nomes”.
O Tangomau desperta mal-humorado, sabe muito bem que quer ficar mais tempo, mas não pode espadeirar contra factos consumados. Tem a bagagem em ordem, já recebeu os presentes para entregar ao embaixador Inácio Semedo, também foi presenteado com erva-cidreira e doce de papaia, é nisto que começa a troar o carro de combate onde Calilo e Fodé Dahaba me vão depor na Pensão Central, em Bissau, a Avó Berta avisou-me que me espera para o almoço.



2. O Tangomau despede-se com um pesar sincero dos anfitriões, agradece e redobra cumprimentos, sente-se feliz pelo calor do acolhimento, aquela família deu o que podia dar, até tinham falta de transporte, disponibilizaram cordialidade, interessaram-se por todos os itinerários, ao longo de 10 dias. É um casal com dois filhos, como já se referiu, o Toinho e o Thierry, este bem pequenino. Vamos mostrá-los todos, menos a Dada que cismou não estar aprontada e só por isso não cabe no rectângulo da fotografia. Primeiro o Toinho, aprimorado e nada rabugento, às vezes dá noites difíceis, dá gosto ver estes olhos vivos, em pose para a fotografia.



3. Temos agora o pai e os filhos, Fernando Semedo (o Mio), Toinho e Thierry, o Tangomau gosta muito do ângulo, está ali a mesa onde leu e escrevinhou, onde, amanheceres e entardeceres a fio, se deslumbrou com Bambadinca ao longe, à esquerda, as bolanhas de Ponta Nova e Finete e Mato de Cão, ao centro, à direita e ao fundo. Até o cão, que deu companhia ao Tangomau, se fez fotogénico e se juntou à recordação.



4. Alguém alvitrou que o anfitrião se devia mostrar ao lado do hóspede, ou vice-versa. O hóspede está encolhido, já choramingou, anda há dez dias em efusões e infusões, tem o ânimo abalado, o balanço é altamente positivo, em nenhum momento se arrependeu desta empreitada, e tantos foram aqueles que o advertiram: “Não vás, é um sofrimento desmesurado, aquele mundo que conheceste vive convulsionado, serás interpelado por gente de mão estendida, haverá equívocos e grandes espectativas, juízos infundados, não vás!”. O Tangomau foi bem acolhido no Bairro Joli, tirando um bêbado na Ponta do Inglês toda a gente veio à fala, foi cordial, deu informação, mesmo sabendo-se como são ínvios, por portas e travessas, os silêncios africanos. Tira fotografia, dá cá um abraço e garanto-te que me despeço sinceramente com um “adeus, até ao meu regresso”. Alberto Djata, o cozinheiro, colocou-se a jeito para apreciar a cena.



5. É a vez de fixar Fodé Dahaba para o mísero álbum das glórias do Tangomau. Este é o amigo a quem se chama irmão, é uma amizade que arde e resiste a todo o sopro. Dá que pensar como se supera, entre ele e o Tangomau, a tensão cultural, o Fodé é mandão, presumiu que na sua terra tudo quanto determinasse seria irrefragável, deu chispa, aqui e acolá gritavam, com mais ou menos sinceridade. Ainda bem, o que importa foi o desvelo, a gratidão, a recepção de braços abertos. O Tangomau caminha para estes olhos vazios dentro de um rosto atento, pois os outros sentidos cresceram à custa da visão que se perdeu. Mais de 40 anos de uma grande amizade. É o momento propício para se agradecer todas as gentilezas com que se foi cumulado. Mesmo quando o Fodé perdeu o volante da condução das viagens, manteve-se vigilante, pairando, graças ao telemóvel, por aquelas viagens de motocicleta pelos pontos ermos. O Tangomau esteve mesmo à beira de o surpreender e embaraçar, dizendo: “Não me vou embora, sigo para Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, amanhã desço até ao Corubal, vou inteirar-me dos santuários do PAIGC, faz boa viagem, logo que possa regresso a Bissau de canoa”. Mas o Tangomau resignou-se às vontades do calendário, meteu-se no toca-toca, num banco corrido que em tempos teve um assento confortável e agora é uma simples chapa de ferro. Será uma viagem atribulada mas inesquecível. Nem o Tangomau terá coragem de pedir para se fazer uma pausa em Finete. Para quem desconhece uma viagem a toca-toca é qualquer coisa como um autocarro de carreira, com a diferença de que em muitos casos são os passageiros que fazem a paragem, tal o volume de sacos de carvão, de malas com peixe, cachos de bananas, volumes de todas as dimensões, alguns deles nos colos ou junto aos pés dos passageiros; aquela senhora anafada que se atirou para cima do Tangomau e o espalmou junto do banco do motorista, a ponto de o obrigar a levar as mãos no ar, como se fosse a rezar, é uma viagem com gritos constantes a mandar parar e seguir, passando pela Bantanjã Mandinga, Finete, Gambaná, Mato de Cão, Gã Mamadu, ao longe avista-se o Geba, já se passou o Enxalé, duas horas e meia depois de peripécias entra-se na estrada que une Safim a Bissau, dá agora para compreender como os subúrbios da capital crescem descontrolados, agravando os problemas e a miséria geral, não há recursos para este saneamento básico, para ter adequados cuidados de saúde, escolas, captação de actividades económicas. Esfomeado, o Tangomau é depositado na Pensão Central.



6. Esclareça-se o leitor que quer por motivos de cansaço quer pelo compromisso de não tirar fotografias a determinados interlocutores, a partir de agora as imagens vão rarear até ao fim da viagem. Aproveita-se a prata da casa, imagens ainda não publicadas ou aquelas, por serem sugestivas, mereçam ser colocadas a propósito. É assim que o Tangomau aparece de novo ao lado da Avó Berta, a proprietária da Pensão Central, e que conhece vão passados 40 anos. Estão ambos comovidos pelo encontro, era então a manhã de 18 de Novembro. O que importa é que o Tangomau encontrou um quarto à sua espera, já comeu uma sopinha bem apurada e com gosto a batata e cenoura, comeu peixe de caldeirada e até sobremesa doce. Vai descansar uma hora a ouvir o ruído monótono da ventoinha, seguirá para a embaixada, para certificar os compatriotas de que está vivo, e daí partirá para uma reunião que o Delfim Silva organizou, há gente de várias precedências e talentos que se prontificou a dar esclarecimentos sobre certos pontos que o Tangomau ainda os acolhe em claro-escuro, mas também com zonas prolongadas de cinzento e tons desmaiados.



7. Tranquilizou-se na embaixada de Portugal quem andava desassossegado pela falta de notícias, Tangomau é mesmo Tangomau quando se abalança a ir para o mato não dá sinal de vida. Fazem-se telefonemas para derradeiros encontros nos dois últimos dias, há abraços a dar aos Soncó, principalmente será importante reencontrar Mamadu Soare Soncó, a quem há dias morreu o seu irmão Quecuta. Parte-se para uma prolongada reunião, é-se acolhido numa moradia, apresentam-se os quadros políticos e militares de um passado menos próximo. O primeiro ponto que o Tangomau solicitara para a discussão era o da documentação histórica do PAIGC, até 1974, parece assunto menor mas não é. Está-se a falar de fontes primárias ou da mais genuína matéria-prima. O que se vai apurar, durante esta conversa informal e muito amiga é que tudo quanto está na Fundação Mário Soares é um soberbo arquivo mas incompleto. Desapareceu integralmente o recheio do que veio de Conacri, à data da independência, correspondência dos dirigentes entre si e com os aliados, só por aí se ficaria a saber, com mais conhecimento de causa, a evolução do armamento, os apoios internacionais, o aprovisionamento tanto a partir da Guiné Conacri como do Senegal; os arquivos pessoais de Amílcar Cabral estão na posse de duas herdeiras; os ficheiros do PAIGC em Bissau foram devastados, tanto por decisões arbitrárias de quem mandou eliminar ou desviar documentos como pelo próprio conflito político-militar de 1998/1999; há várias biografias de Cabral, há as publicações propagandísticas, há indícios sobre a existência de alguns diários, como o de Chico Té, fala-se na importância das investigações de Leopoldo Amado (o Tangomau há muito que se propõe ir lê-la à Faculdade de Letras), afinal Vasco Cabral, de quem se esperava inúmeras revelações, nada deixou escrito, e por aí adiante. Há inúmeras peças soltas e se escândalo maior se quisesse evidenciar bastava referir que tudo o que foi o processo do julgamento sobre o assassinato de Amílcar Cabral, absolutamente tudo, desapareceu. Ponto final, no futuro os historiadores que descalcem a bota para fixar as peças do puzzle, qualquer lógica para o retrato.
Seguem-se outros temas, de acordo com os interesses manifestados pelo Tangomau: como se deu a supremacia dos militares sobre os políticos; porque se radicalizaram as posições durante a independência, quando era certo e seguro que o PAIGC até tinha proposto por mais tempo a presença portuguesa.
Com entusiasmo, os diferentes participantes foram expondo as suas razões. Despedimo-nos até à próxima com uma outra versão daquele poilão da Ponta do Inglês que fala inequivocamente da guerra e da presença humana, como se testemunhasse que há memórias que não se querem apagadas, em vez de lançarem uma garrafa ao mar, ao lado das marcas das balas, os soldados tatuaram a árvore, como se dissessem: até sempre, não nos esqueçam.


Continua
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de Guiné 63/74 - P7645: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (15): Uma ida aos Nhabijões, com o coração cheio de lembranças da CCaç 12

segunda-feira, 14 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P268: Memórias de Turpin e da Bissau do seu tempo (Mário Dias)

Elisée Turpin (n. 1930, em Bissau), co-fundador do PAIGC (1956).

Fonte: PAIGC (2003) > Depoimento de Elisée Turpin

Mais informações, pormenorizadas, sobre o Turpin, por parte do Sargento Mário Dias, dos comandos, ex-camarada do Virgínio Briote (por cujo intermédio chegou esta mensagem:

Ao passar pelo foranada li as memórias do Elisée Turpin de quem me recordo perfeitamente. Era empregado no escritório da SCOA que ficava num edifício com a estrutura em grande parte de ferro, ao lado da catedral.

O Elisée Turpin tinha um irmão, de nome Antoine, que eu conheci quando estava em Farim. Ele era o encarregado do armazém de produtos (mancarra e coconote) que a NOSOCO tinha em Binta. Ali estive muitas vezes com ele quando embarcávamos os referidos produtos nos barcos da SG que iam carregar ao porto de Binta.

Mas voltando à SCOA, onde o Turpin foi empregado de escritório: Depois do encerramento dessa casa comercial, esse edifício serviu como sede do Sindicato e da Caixa Sindical onde curiosamente eu trabalhei no período que mediou entre a minha passagem à disponibilidade - Outubro (?) de 1960 - e o regresso ao serviço militar activo, em Janeiro de 1963. Actualmente esse edifício é uma pensão, segundo tenho visto publicado no blogue - onde inclusivamente dele existe uma foto.

Já agora, e apenas também como curiosidade, eu fui trabalhar para o Sindicato porque, enquanto estava no serviço militar (com o Domingos Ramos, Rui Jassi, Constantino Teixeira, etc. etc.), a NOSOCO, firma comercial francesa onde eu trabalhava, encerrou a sua actividade na Guiné.

A sede da NOSOCO ficava junto ao rio, estendendo-se as traseiras para a actual Rua Guerra Mendes, mesmo junto a um dos baluartes da Amura. Ao lado era a PSP, comandada pelo major Pezarat Correia, pai do actual brigadeiro (ou general?) ligado ao 25 de Abril de 1974. Este edifício foi, durante a guerra, sede e armazém da Manutenção Militar.



















A pacata Bissau colonial dos anos 60. A Praça da República. Postal da época.

Imagem enviada por João Varanda, ex-militar da CCAÇ 2636 (Có, 1969/71).

Das pessoas referidas pelo Elisée (1) recordo-me perfeitamente de:

- Benjamim Correia, que tinha uma loja de bicicletas e acessórios e era um conceituado comerciante muito estimado e considerado entre a população da Guiné, "colonos" incluídos;

- Rafael Barbosa, que era funcionário das Obras Públicas e tinha uma pequena deficiência numa perna que o obrigava a mancar;

- Quanto ao Inácio Semedo, o único Semedo de que me recordo era o guarda-redes do Sporting de Bissau, alcunhado de "Swift"; talvez não seja o mesmo;

- Luís Cabral, irmão do Amílcar, trabalhava na Casa Gouveia.

Porém, aqueles de quem melhor me lembro - por com eles ter lidado mais de perto - são:

- Fernando Fortes que era funcionário dos Correios em Bissau: tinha um irmão (Alfredo, salvo erro) que nos meus tempos de Farim (1953/55) era o Delegado Aduaneiro naquela localidade;

- João Rosa foi meu colega de trabalho na NOSOCO. Era o guarda-livros. Fui muitas vezes a casa dele no Chão Papel (2). Era muito meu amigo e fui visitá-lo ao hospital quando ali foi internado, já sob prisão da PIDE;

- João Vaz era o alfaiate dos serviços militares. A oficina era na Amura e era ele que fazia o fardamento para os recrutas e demais militares. Ainda tenho comigo um camuflado que ele me fez sob medida.

E chega por hoje. Se me ponho a desbobinar as recordações da Guiné, nunca mais paro.

Mário Dias
_________

(1) Vd. post de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC.

(2) Vd. planta da cidade de Bissau (pós-independência): o Chão de Papel ficava a sudoeste da cidade, contígua a Bandim.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2128: Bibliografia de uma guerra (18): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte II)




Uma imagem repetida vezes sem conta.
Da CArt 3492. Álvaro Basto

BARCAS NOVAS

Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de armas
Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens
Barcas novas
levam guerra
As armas não lavram terra
São de guerra as barcas novas
ao mar mandadas com homens
Barcas novas são mandadas sobre o mar
Não lavram terra com armas
os homens
Nelas mandaram meter
os homens com sua guerra
Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas
em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas

Fiama, 1966
__________

Porquê tantas vidas, em tantas naus, durante tantos anos?

"Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países". Aristides Pereira (1).

As primeiras denúncias internacionais sobre o colonialismo na Guiné, os caminhos de Amílcar Cabral e dos seus companheiros em direcção à independência, os esforços, independentemente do que se possa dizer, de Rafael Barbosa e Fernando Fortes (*) pela emancipação dos seus povos, o espectro do Pindjiguiti sempre a pairar, a luta pela unidade, a proliferação de partidos, uniões e grupos, e a projecção que o PAIGC alcançou internacionalmente, é o resumo do que hoje tratamos.

A Aristides Pereira e à Editorial Notícias, a vénia que é devida. E o agradecimento, que lhes é devido também (**), pela oportunidade que nos dão de melhor compreendermos as Histórias de três países.

V. Briote, co-editor
__________

A luta clandestina na Guiné

As primeiras denúncias internacionais sobre o colonialismo português, surgiram em 1959/60, e foram feitas em Londres por Basil Davidson (1) e Abel Djassi, pseudónimo de Amílcar Cabral.

Amílcar Cabral, logo após o regresso à Guiné em 1952, tentou criar um clube desportivo e cultural com a colaboração de alguns elementos da pequena burguesia (2), movimentação que despertou suspeitas nas autoridades coloniais e levou à sua interdição de permanecer no território, movimentação essa que, parece, ter estado na origem da instalação de um posto da PIDE em Bissau.

Após a fundação do PAI (Partido Africano para a Independência), em Setembro de 1956, as primeiras células foram criadas em Bissau, Bolama e Bafatá, recorrendo a alguns elementos da pequena burguesia aí instalados. Para apalpar o terreno, começaram por apresentar pequenas reivindicações de ordem social, e foram difundindo o sentimento nacionalista entre os assalariados e os trabalhadores dos transportes fluviais.

A independência do Gana em 1957 e as perspectivas da Guiné-Conacri e do Senegal se tornarem a breve prazo independentes, “adubou” o terreno e chegou a pensar-se que, à semelhança do que estava a acontecer com os vizinhos, também a Guiné-Bissau se iria tornar independente sem necessidade do recurso à luta armada.

Amílcar Cabral e Rafael Barbosa nos fins dos anos 50

A partir de 1958, numerosos jovens guineenses foram para o Senegal e para a Guiné-Conacri, em busca de melhores condições de vida.
Numa primeira fase, em Conacri, o médico são-tomense Hugo Azancot de Menezes acolheu-os e enquadrou-os.
Com o acordo das autoridades de Conacri, Azancot funda o Movimento de Libertação dos Territórios sob a Dominação Portuguesa em 1959. Mais tarde, essa autorização viria a ser-lhe retirada, com o argumento, pensa-se, de manter uma estratégia errática.

Logo nesse mesmo ano, a Rádio Nacional da Guiné-Conacri pôs ao dispor do Movimento uma hora semanal de emissão. O programa emitido em crioulo e em algumas línguas locais, para além do português, ganhou rápida audiência. Era um programa cujo conteúdo se baseava em informações que provinham do próprio território da Guiné, transmitidas principalmente por Rafael Barbosa a Domingos Pina Araújo, na altura residente em Koldá (Senegal), que as fazia chegar a Conacri.
Entretanto, em Bissau, movidos pela expectativa do acesso a uma rápida independência, Rafael Barbosa e Epifânio Amado transformaram o MLG em MLCG (Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde), a que aderiram Inácio Semedo, Fernando Fortes a outros elementos já pertencentes ao MLG.
Os incidentes do Pindjiguiti acabaram por reforçar o sentimento nacionalista. Aproveitando esse acontecimento, Amílcar Cabral passou uns dias em Bissau, entre 14 e 21 de Setembro, tendo acordado com Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Rafael Barbosa e João da Silva Rosa, que largaria tudo e seguiria para a República da Guiné, de onde enviaria directrizes.

A unidade foi difícil desde o início. Os primeiros sinais de desconfiança do hegemonismo dos cabo-verdianos na luta de emancipação, traduziram-se na ruptura entre o PAI e o MLGC protagonizada por José Francisco Gomes “Maneta”, na altura principal dirigente do MLGC, que interditou as actividades de Rafael Barbosa, acusando-o de vender a Guiné aos Cabo-Verdianos.

Nessa altura, o cruzamento de informações falsas é impressionante.
Aristides Pereira escreve: “Na altura, Maneta chegou a abdicar das funções de presidente em favor de Fernando Fortes, tendo novamente chamado a si a presidência quando se deu conta de que Rafael Barbosa e Fernando Fortes estavam sintonizados. (…) Maneta foi informado por carta da ida de Rafael Barbosa a Dacar e dos contactos que aí manteve com Amílcar. Nessa mesma carta, Vicente Có informa falsamente Maneta que o PAIGC já tinha formado um governo só de cabo-verdianos para mandarem numa Guiné independente…”

Entre 1958 e 1961, alguns dirigentes do MLG e do PAI partilharam o mesmo espaço político e alguns acreditavam mesmo que, a curto prazo, as negociações para a independência iriam ter lugar. No entanto vários acontecimentos levaram a uma onda de repressão por parte das autoridades coloniais: a mobilização crescente no interior da Guiné, as mensagens ao governo português exigindo o início das conversações, as primeiras acções armadas do MLG de François Mendy no norte da Guiné e o assalto às prisões de Luanda por nacionalistas angolanos.

As detenções efectuadas pela PIDE em 1961 e 1962 obrigaram o PAI à clandestinidade e ao desmantelamento do MLG em Bissau, levando à dispersão de alguns destacados dirigentes, que se fixaram no Senegal e na República da Guiné.

Entretanto, em Conacri, Amílcar estruturava o PAI e fazia-o crescer. Criou o Lar dos Combatentes (3) para receber os jovens enviados de Bissau por Rafael Barbosa, que depressa ficou sobrelotado.

Depois de alguns esforços de elementos do MLG, nomeadamente por parte do “Maneta”, tentando desacreditar Amílcar Cabral junto das autoridades da República da Guiné-Conacri, tarefa que se revelou infrutífera, o PAIGC acabou por convencer Sekou Touré da seriedade da sua luta.

“Maneta”, impedido de regressar a Bissau, acabou por se estabelecer em Dacar, juntando-se aos elementos do MLG aí residentes, continuando a combater mais o PAIGC que o colonialismo português.

Em Abril de 1961, deu-se a primeira grande onda de prisões feita pela PIDE. José Lacerda, João da Silva Rosa, Paulo Fernandes, Tomás Cabral de Almada, Alfredo d’Alva, Elisée Turpin, Paulo Gomes Fernandes, Nicandro Barreto, Epifânio Souto Amado, Ladislau Justado, Fernando Fortes, entre outros, foram detidos.

Rafael Barbosa entrou na clandestinidade, vindo a ser preso em Fevereiro de 1962, juntamente com outros, durante um assalto da PIDE à sede clandestina do PAIGC, para os lados de Bissalanca, ficando desmantelada a rede clandestina do partido, tendo ainda sido apreendidos numerosos documentos e algumas armas.

Uma segunda vaga de prisões atingiu Momo Turé, Jorge Monteiro, Constantino Lopes da Costa e outros. Alguns foram desterrados para o Tarrafal. Ao Rafael Barbosa, a troco de colaboração, ao que se diz, foi-lhe fixada residência em Bissau, com a obrigatoriedade de se apresentar diariamente à polícia.
Em 1964, Arnaldo Shultz, desaconselhou a restituição à liberdade dos arguidos, acabando por lhes serem fixadas residência em colónias penais durante quatro anos, uns na Ilha das Galinhas, outros em Mocâmedes, Angola, no campo de S. Nicolau.

Em 3 de Agosto, é criada a FLING, enquanto Amílcar Cabral prosseguia a tarefa de consolidação do PAIGC em Conacri, ganhando dia a dia a confiança das autoridades da República da Guiné.

Em 1962, sob a influência de César Alvarenga, é formada a UNPG (União dos Povos da Guiné). Enquanto o PAIGC se decide pela acção armada no sul da Guiné, interrompendo estradas e cortando os fios telefónicos, a UNPG dirigiu uma carta ao governo colonial, pedindo autonomia e soberania.
O Presidente do Conselho Português recebeu em Lisboa, em 1963, Benjamim Pinto Bull, como dirigente da UNPG.


Benjamim Pinto Bull

Salazar, de início disponível para o diálogo, acabou, posteriormente, por o inviabilizar. Assim, enquanto a UNPG perdia credibilidade, o PAIGC, interna e externamente via reafirmada a sua.

Lendo Aristides Pereira fica-se com uma ideia bem mais clara desse conturbado período, em busca da unidade da luta pela independência do território sob dominação portuguesa:
“ (…) é difícil, senão mesmo impossível, a reconstituição do ambiente em que se moviam, na década de 60, os movimentos de libertação tanto na República da Guiné como no Senegal, na medida em que, por ali pulularam inúmeros partidos e movimentos que a pretexto de tudo e de nada eram fundados e refundidos. Ainda mais difícil é a análise do verdadeiro alcance das acções desses movimentos, devido ao seu elevado número e à sua divisão em “raças” ou “religiões”. Acresce ainda o facto de que vários dirigentes desses agrupamentos aparecerem referenciados em várias formações políticas ao mesmo tempo e às vezes até em formações políticas rivais.

Esse ambiente de desorientação foi agravado quando, em face do avanço da luta, a 29 de Setembro de 1964, as autoridades de Senegal reconheceram o PAIGC como o único movimento representante do povo da Guiné, dando-lhe a facilidade de desenvolver actividades políticas no Senegal, proibindo, no entanto, terminantemente o trânsito e a permanência de material de guerra no seu território”.

Numerosos foram os elementos recrutados, que pela influência de Rafael Barbosa, em muito influenciaram o trabalho de mobilização do PAIGC, permitindo alargar a rede clandestina a outros pontos do território.
Grande parte desta gente acabou, no entanto, por ser presa, formando o primeiro grupo de nacionalistas a ser enviado para a Ilha das Galinhas.
Gerações posteriores de combatentes tiveram sempre por detrás a mão de Rafael Barbosa, afirma Aristides Pereira.

Assim aconteceu com o grupo de jovens do grupo musical “Cobiana Djazz” (4) (José Carlos Schwartz, Aliu Bari, Duco Castro Fernandes, Isaac Dias Ferreira, Firmino Cabral, Januário Sano e João Saul de Carvalho Neves), que, de forma subtil, foi consciencializando as populações através das suas criações musicais.

A afirmação internacional do PAIGC

Em Dezembro de 1960, realizou-se em Londres uma conferência na qual participaram pela primeira vez as organizações anti-colonialistas – MPLA, PAI e Goa League – representadas por Mário de Andrade, Viriato Cruz, Américo Boa Vida, João Cabral e Aristides Pereira.

Após a extinção do Movimento para a Independência dos Territórios sob Dominação Portuguesa, Amílcar Cabral com outros camaradas criou em Conacri o MLGCV (5).

No Lar dos Combatentes, em Conacri, finda a formação ideológica e política, os voluntários eram enviados para o interior da Guiné, com o objectivo de mobilizar os camponeses.

Foi sob a responsabilidade de Malan Sanhá que entraram no território a quase totalidade das armas que o PAIGC fez sair clandestinamente do porto de Conacri, as mesmas que serviram para o ataque ao quartel de Tite em 23 de Janeiro de 1963. Diz Aristides Pereira, que nesta transferência de armas, houve baixas de importantes responsáveis do PAIGC, como foi o caso de Vitorino Costa, que “encontrando-se cercado pelo exército colonial e na tentativa heróica de salvar os camaradas que com ele agiam na região de Quinara, sucumbiu perante as balas inimigas” (Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta,…pág. 148).
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Fotos e notas de rodapé extraídas ou resumidas do "Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países", de Aristides Pereira, Editorial Notícias

(*) Fernando Fortes, ao que se sabe, envolveu-se em tudo o que fosse partido ou movimento contra a presença portuguesa na Guiné.

(**) Destaque para o trabalho que Leopoldo Amado tem vindo a desenvolver como historiador da Guiné e de Cabo Verde, em especial sobre os anos recentes.

(1) Escritor e africanista inglês

(2) Martinho Ramos, Isidoro Ramos, João Vaz, Elisée Turpin, José M. Davyes, Godofredo de Sousa, Crates Nunes e Estêvão da Silva

(3) “Para a luta de libertação, eu enviei mais de 500 pessoas. Quase toda a malta que saiu daqui de Bissau eu é que mandei. Umaro Djaló, Constantino Teixeira, Buscardini, Chico Mendes, Malan Sanha, Rui Djassi, Vitorino Costa, Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Tiago Aleluia Lopes, Juvêncio Gomes, etc….”

(4) José Carlos Schwartz (1949/1977), considerado o pioneiro da música moderna guineense, esteve preso na ilha das Galinhas. Após a independência dirigiu o Departamento de Arte e Cultura do Comissariado da Juventude e Desportos e, mais tarde, foi encarregado de negócios da Guiné-Bissau em Cuba, onde morreu vítima de um acidente de aviação.

(5) “Movimento para a Libertação da Guiné e Cabo Verde”, 1960

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Nota de vb:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P2114: Bibliografia de uma guerra (17): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte I)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6828: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (3): Estabelecido por conta própria em 1955



Continuação da publicação das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

Excertos da 1ª Parte, Pág. 7-9 


"17. Foi a fase em que surgiu Amílcar Cabral, [em 1952, o qual ] jogou um papel importante, inteligente, em que organizou a sociedade, fazendo serenar os ânimos [exaltados devidos às ] rivalidades, e levando os adeptos a uma camaradagem que se impunha, e a um convívio em paz. E unidos, no sentido de organizar o combate ao único inimigo da Pátria, o nefasto colonialismo.

“Amílcar organizou os contactos, restritos. Para defesa da confidencialidade necessária”: Elisée Turpin, Inácio Semedo, Fernando Fortes, Luís Cabral, Aristides Pereira, Epifânio Soto Amado, Júlio Almeida, guarda-redes da UDIB, etc.

"18. Os colonialistas, em vez de corrigirem, incentivaram mais os motivos das rivalidades e dos reparos dos guineenses: Liceus em Cabo-Verde, bons empregos, salários desiguais, etc.

"19. Vinha de Bolama, as reuniões eram no quarto de Elisée Turpin, [,em Bissau,] que ficava situado atrás do salão onde se pratica hoje o judo. Vinham conhecidos dele do Senegal e os encontros eram ali e também na messe do B.N. U. [, Banco Nacional Ultramarino,] com os cabo-verdianos, empregados do B.N.U. que passaram a dar uma contribuição válida, Lima Barber, Júlio Simas, Eanes, Cézar, Lomba Nascimento, etc., sendo os últimos de S. Tomé.

“Após as reuniões, o camarada Luís Cabral, invariavelmente, mantinha-s eno passeio do B.N.U,, a passear. Ao chegarmos à esquina da empresa francesa NOSOCO (hoje Henrique Rosa), o Elisée dizia-nos:
- Um momento, para eu dar uma fala ao Luís Cabral.  

"Mas nunca dizia o que ia tratar com ele"... 









Cópia da 1ª Parte, pág. 8 (em cima)... Transcrição da página 9 (a seguir):

"razão do meu constrangimento e propôs-me uma transferência para Paris, dada a confiança que ganhei em toda a organização, a exemplo de muitos colegas que foram transferidos na altura para Ziguincgor, Dakar, etc. 

"Avisou-me que o vento da Independência iniciada nos países vizinhos (Conakry, Senegal, etc.) chegaria à Guiné-Bissau e aconselhou-me que, se ficasse na Guiné, iria passar mal, como passei.

"Após esta reunião, decidi adiar a minha decisão, era altura da campanha, mas com o constrangimento a que éramos obrigados nas compras dos produtos, voltei à carga com a decisão. Foi assim que me estabeleci por conta própria a 5 de Setembro de 1955.

"Fim da 1ª Parte".

[ Revisão / fixação  de texto/ excertos / digitalizações / título: L.G.]

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Nota de L.G.:

 (*) Vd. postes anteriores da série:


2 de Agosto de 2010 > 
Guiné 63/74 - P6815: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (2): A elite guineense nos anos 50


domingo, 26 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3360: Em busca de... (47): Referências a meu pai, António Andrade Júnior, Cameconde, 1967/69 (Gonçalo Andrade)







Guiné > Região de Tombali > Cameconde, 1967/69 > O nosso já falecido camarada António Andrade Jr, posando para a fotografia junto a um monumento erigido, possivelmente em Cacoca, junto à fronteira sul, pela CART 640: "Quartel de Cacoca, ocupado e construído pela CART 640, desde 24-6-64"... Não sabemos se o António estava na altura em Cacoca, ou apenas de passagem.


Fotos: © Gonçalo Anadtrade (2008). Direitos reservados



1. Mensagem de hoje, do nosso amigo Gonçalo Andrade, filho do nosso camarada António Andrade Júnior, em busca de companheiros de seu pai.


Amigo Luis Graça,

O meu pai foi combatente na Guiné (Cameconde), aproximadamente entre 03/1967 e 03/1969.

Infelizmente, o mesmo faleceu, vítima de acidente de viação em 1979 (tinha eu 8 anos) e a minha mãe também faleceu em 1983 (eu com 12 anos) igualmente de acidente automóvel. Desta forma, não tenho quem me dê informações ou referências e ando em busca das origens.

Pelo referido, excepto as datas e algumas fotografias, nada mais sei, nem nome/número da Companhia, nem ramo das forças armadas a que pertenceu.

Gostava de obter informações a seu respeito, fotografias e filmes onde aparecesse e de saber se a sua Companhia se organiza em confraternizações.

O seu nome era António Andrade Júnior e era natural de Estremoz, nascido em 1945.

Em busca que fiz na Net dei com o seu blogue. Assim pergunto se me pode auxiliar com informações ou indicando a quem me possa dirigir (particular ou entidade oficial).

Anexo 9 fotos do meu pai e camaradas, no sentido de auxiliar a identificar.

Um abraço
gonçalo andrade
goncalo.andrade@netcabo.pt

2. Comentário de CV:



Aqui ficam algumas fotos que o Gonçalo nos enviou na esperança de que alguém reconheça o seu pai, se reconheça a si próprio ou reconheça algum amigo e assim criar uma corrente que leve ao passado do nosso malogrado camarada. Contamos com a colaboração dos nossos leitores. As duas ou três últimas fotos parece terem sido tiradas na Metrópole, na altura da instrução militar.






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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3359: Em busca de ... (46): Inácio Semedo, agricultor de Bambadinca, um histórico do nacionalismo guineense (Pepito)

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8176: Notas de leitura (234): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2011:

Queridos amigos,


Vale a pena insistir na importância da panóplia de entrevistas incluídas em “O Meu Testemunho” de Aristides Pereira*, bem como o apenso documental, textos do maior relevo para a compreensão da história do PAIGC e também, por tabela, da política portuguesa.


A narrativa do secretário-geral do PAIGC é frustrante, há momentos em que nos questionamos quanto à péssima estruturação dos dados, a gravidade das omissões, a extensão dos silêncios. Não é difícil concluir que vamos esperar muito tempo até aparecer uma história do PAIGC suficientemente abrangente e elucidativa e que não seja alvo de uma contestação fundamentada.


Um abraço do
Mário


O testemunho de Aristides Pereira (2)

Beja Santos

Não devo esconder que sempre considerei este documento público como uma decepção. Um político que teve as elevadas funções como Aristides Pereira, sempre ao lado de Amílcar Cabral a partir de 1960, secretário-geral adjunto do PAIGC desde 1964, eleito secretário-geral em 1973, é obrigatoriamente conhecedor de eventos que a historiografia deste movimento independentista da Guiné tem omitido.

Em 2003, data da publicação desta obra, Aristides Pereira já dispunha de um distanciamento que lhe permitia ir muito mais além do que a elaboração de um modesto relatório de prestação de contas, com uns pozinhos apologéticos e a compreensiva admiração por Amílcar Cabral. O seu testemunho é tímido, está pejado de silêncios e até de omissões graves. Não consegue ter o voo a que se permitiu Luís Cabral que escreveu o seu depoimento numa prisão e certamente sem documentos para consultar. Vai escrevendo recorrendo a outros plumitivos, testemunhado com outros testemunhos. Incapaz de dar substância à doutrina então vigente da unidade Guiné-Cabo Verde, recorre a um texto inverosímil sobre o sistema colonial português em Cabo Verde, que é um verdadeiro tiro no pé, parece estar ao serviço de todos aqueles que sempre contestaram o projecto da união orgânica dos povos da Guiné e das ilhas de Cabo Verde.

Por absurdo que pareça, o seu testemunho passa a ser importante pela variedade das entrevistas recolhidas por Leopoldo Amado e o enriquecimento que traz o apenso documental. É por isso que recomendo a leitura de “O Meu Testemunho, versão documentada”, por Aristides Pereira, Editorial Notícias, 2003 (insisto que se trata da versão documentada, com quase 1000 páginas).

Retomando o fio da narrativa, entra-se na luta clandestina da Guiné, o autor dá-nos o ambiente das independências nos territórios limítrofes e a emergência de diferentes grupos norteados pelo espírito libertador: Movimento de Libertação dos Territórios Sob a Dominação Portuguesa, criado em 1959 na República da Guiné, com o enquadramento do médico são-tomense Hugo Azancot de Menezes, que estava em contacto com Rafael Barbosa, ainda muito activo em Bissau. Recorde-se que o PAI (Partido Africano da Independência) fora fundado em Setembro de 1956, na Guiné, e passara a dispor de células em Bissau, Bolama e Bafatá. Rafael Barbosa foi um dos impulsionadores do MLG – Movimento de Libertação da Guiné a que aderiram Inácio Semedo e Fernando Fortes.

É um período de grande mobilização e de grande turbulência ideológica, a situação só começou a clarificar-se quando o MLG e o PAI aceitaram a liderança de Cabral e de Barbosa, diferentes dissidentes tornaram-se acérrimos adversários do PAIGC ou aderiram a novos grupos, sediados em Dakar e Conacri. Em 1961, acontece uma grande vaga de prisões, os militantes foram desterrados para o Tarrafal, outros foram sujeitos a medidas administrativas de fixação de residência por 4 anos, uns na Ilha das Galinhas, outros no campo de São Nicolau, no deserto de Moçâmedes. A prisão de Barbosa leva a que a actividade política que todos aqueles que hostilizavam o PAIGC se tivessem transferido para o Senegal e para a República da Guiné. É em Conacri que Cabral é forçado a uma campanha de esclarecimento junto das autoridades para explicar a diferença de atitudes entre os movimentos de libertação, revelando mesmo os cadastros de alguns dirigentes como gente que tinha colaborado com administração colonial portuguesa, ladrões, fugitivos à justiça, provocadores a trabalhar para a PIDE, etc. Trata-se de um documento inédito depositado no arquivo do PAIGC, é digno de reflexão.

Ganha interesse e deve ser lido a par do depoimento de Luís Cabral o capítulo sobre a mobilização, acção directa e o início da luta armada na Guiné-Bissau. O massacre do Pindjiguiti fora assumido como uma lição, tal como disse Amílcar Cabral, “Nós fizemos asneira aqui. Fomos mexer onde o inimigo é mais forte, na cidade. Vamos sair daqui, vamos mobilizar os camponeses, lá o inimigo tem pouca força. Em Conacri é criado o lar dos combatentes, que acolhia voluntários, vinham receber explicações sobre os objectivos da luta. Rafael Barbosa ufanava-se de ter mandado para lá mais de 500 pessoas. Finda a preparação ideológica e política em Conacri, uns passaram directamente à mobilização dos camponeses, outros foram doutrinados em Nanquim, na China, caso de Nino Vieira. O PAIGC começa a ser pressionado de várias direcções: o MLG de François Mendy ataca no norte da Guiné e em Agosto de 1961 Amílcar Cabral anunciou a passagem à acção directa, a par de ter desencadeado uma ofensiva de sensibilização junto das Nações Unidas.

O capítulo sobre a mobilização e as perspectivas da luta armada em Cabo Verde tem utilidade para se entender o trabalho desenvolvido por Cabral e perceber como a rede clandestina do PAIGC em Cabo Verde foi sendo desmantelada e, com o tempo, houve o entendimento não haver condições para a luta armada em Cabo Verde. Aristides Pereira refere-se sumariamente à batalha de Como e ao congresso de Cassacá.

Vale a pena citar aqui um parágrafo para se perceber como o autor recusa aprofundar as situações de tensão e como estas eram totalmente desconhecidas pela direcção do PAIGC: “Numa digressão que Luís Cabral fez a Quitafine, no sul da Guiné, houve gente que se encheu de coragem e lhe deu conhecimento de comportamentos condenáveis da parte de certos sectores responsáveis que cometiam desmandos e abusos de poder, que iam desde o consumo exagerado de bebidas alcoólicas e castigos corporais até ao abuso sexual e fuzilamento de populares. Esses crimes estavam a provocar uma desconfiança cada vez maior das populações em relação ao PAIGC e à sua direcção”. Não deixa de inquietar a serenidade do escrito, há cerca de um ano, pelo menos, que se lutava e vivia em acampamentos, como é que era possível a direcção do PAIGC desconhecer estes desmandos.

A luta político-diplomática do PAIGC foi ganhando solidez, certificou o reconhecimento de uma luta cada vez mais intensa que logo em 1963 obteve posições muito fortes no sul, no leste e na região do Morés. Saltando para a chegada de Spínola, que introduziu um quadro novo de acções sociais e económicas com o chamamento das populações fiéis através dos chamados Congressos do Povo, o PAIGC viu-se obrigado a responder a uma acção psicológica devastadora intensificando os seus ataques.

E assim se chegou à proclamação da independência do Estado da Guiné-Bissau que Amílcar Cabral começara a anunciar desde 1965. Esta proclamação, escreve Aristides Pereira, só veio a revelar-se aceitável quando, a partir de 1969, o PAIGC reforçou a sua acção diplomática, com resultados nitidamente desfavoráveis a Portugal. Nesta fase, do ponto de vista militar, a situação ainda era estacionária. A missão especial das Nações Unidas à Guiné, de 1 a 8 de Abril de 1972, deu às Nações Unidas uma base concreta para conceder ao PAIGC novas formas de ajuda, aos poucos passou a ter acolhimento, mesmo com o estatuto de observador, junto de certas agências da Nações Unidas. Em 1971 Cabral produziu um documento intitulado “Para a criação da Assembleia Nacional Popular”, que serviu de guia ao referendo que levou à constituição da Assembleia Nacional e dos órgãos do Estado, iniciativas que Aristides Pereira descreve com algum pormenor.

E assim se chegou, em termos históricos, ao assassínio de Amílcar Cabral.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) vd. poste de 20 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8141: Notas de leitura (230): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (1) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 26 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8169: Notas de leitura (233): Triste vida leva a garça, de Álamo Oliveira (Mário Beja Santos)

sábado, 12 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P265: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC (Luís Graça)

Planta da cidade de Bissau, depois da independência (Dica > Clicar duas vezes no lado esquerdo rato, para ampliar a imagem e assim poder ver os pormenores)

© A. Marques Lopes (2005)

Por sugestão do nosso amigo Jorge Santos (autor da página A Guerra Colomial) . É um depoimento interessante para a história da Guiné-Bissau e para se perceber os antecedentes da guerra (colonial) que nos calhou na rifa... L.G.

Fonte: PAIGC > Depoimento de Elysée Turpin


Elisée Turpin é um dos fundadores do PAIGC, no dia 19 de Setembro de 1956. Nasceu a 23 de Maio de 1930, em Bissau, onde frequentou Escolas Primária e Secundária.

Mais tarde, vinha a concluir o curso de Contabilidade por correspondência. Foi empregado da Companhia Francesa S.C.O.A. – Sociedade Comercial Oeste Africana (de 1942 a 1956).

De 1958 a 1964, foi empregado da Casa António Silva Gouveia (1), e de 1964 a 1973, exerceu a função de Gerente da ANCAR.

De 1973 a 1976, exerceu a função de Secretário Geral da Associação Comercial. A partir de 1976, começou a trabalhar por conta própria.

Foi Militante do Partido Comunista Português na clandestinidade em Bissau, e é Militante do PAIGC desde a sua criação.

O presente depoimento está ligado à fundação do PAIGC, expondo alguns factos de que se recorda e em que participou, para permitir uma maior e melhor percepção deste acontecimento histórico ocorrido em 19 de Setembro de 1956, em Bissau.

"... O espírito de revolta contra a presença colonial aumentou consideravelmente, a partir de 1942, altura em que o Governador da Província da Guiné era o Sr. Ricardo Vaz Monteiro (2), e o Administrador de Bissau era Pereira Cardoso.

O Governador Ricardo Vaz Monteiro, fortemente influenciado pela esposa Maria Augusta, quis introduzir o sistema de Apartheid na Província, ao tentar impor que nos estabelecimentos comerciais fossem criadas zonas separadas para brancos e pretos. A tentativa gorou, pois foi contestada pelos proprietários dos estabelecimentos comerciais.

Associação Comercial e Industrial, em Bissau, de que Elysée Turpin foi secretário geral, de 1973 a 1976.

Foto de 1965 ou 1966.

© Virgínio Briote (2005)

Na sequência dessa tentativa, foi preso o maior comerciante guineense na altura, Sr. Benjamim Correia, alegadamente por se ter queixado junto do Governo Central de Lisboa sobre o ocorrido. Ele foi preso e transportado para Cabo Verde - Tarrafal (3).

O mesmo Governador introduziu um código de postura em que era proibido andar nos passeios de Bissau a todo o indígena que não tivesse sapatos nos pés.

Estes factos e mais outros que ocorreram durante os anos 50, reforçaram o espírito nacionalista e patriótico em muitos guineenses. Foi nesse período dos anos 50 que o Amilcar Cabral (4) regressou à Guiné e começou a fazer contactos com vista à criação duma Associação Desportiva, através da qual levávamos a cabo actividades políticas.

Alguns de nós eram militantes clandestinos do Partido Comunista Português, nomeadamente, Abílio Duarte e eu (mais tarde soube que o Rafael Barbosa o era também). Os activistas políticos não se conheciam todos, por motivos ligados à segurança.

Amilcar Cabral nos dizia que devíamos trabalhar como uma pirâmide. Isto é, o núcleo principal e de contactos permanentes seria pequeno, mas cada um devia ter a sua célula. Eu, por exemplo, tendo como célula a Zona Velha da Cidade de Bissau (pois morava nessa zona), nunca tive contacto com Rafael Barbosa. Só mais tarde vim a saber dele, como sendo um dos principais activistas políticos desde anos 40 e um dos mentores da criação do Partido.

Para além das células, estabeleceram-se pontos focais, ou seja, elos de ligação no interior do País. Por exemplo, o elo de ligação em Farim era o Dionísio Dias Monteiro; em Bolama era Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai); em Catió era Manuel da Silva.

Actual sede nacional do PAIG em Bissau. O seu sítio oficial na Net não é actualizado desde Janeiro de 2004.

O actal presidente do PAIGC é Carlos Gomes Júnior (Cadogo Jr.), filho de Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai), um dos militantes históricos.

Fonte: PAIGC (2003).

Lembro-me de algumas pessoas que se movimentavam na altura como activistas políticos e muitos deles envolvidos na criação do Partido: Amilcar Cabral, Aristides Pereira, Rafael Barbosa, Luís Cabral, Abílio Duarte, Fernando Fortes, João Rosa, Inácio Semedo, Victor Robalo, Júlio Almeida, João Vaz, Domingos Cristovão Gomes Lopes.

Contudo, no dia 19 de Setembro de 1956, na fundação (criação formal do Partido, denominado PAI - Partido Africano da Independência), compareceram apenas 6 pessoas: Amilcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Júlio Almeida, Elisée Turpin.

Muitos não compareceram devido a constantes perseguições dos elementos da então PIDE. Nós que conseguimos participar no encontro, tivemos que ser muito prudentes e discretos: entravamos um a um e saíamos da mesma forma.

O evento teve lugar no primeiro andar do edifício onde residiam Aristides Pereira e Fernando Fortes, no Bairro de Tchada, próximo do Hospital Nacional Simão Mendes.

Eram volta das 5 horas de tarde desse dia. Foram aprovados os Estatutos do PAI elaborados e apresentados por Amilcar. A reunião deve ter durado cerca de 1 hora de tempo.

A partir dessa data, intensificaram-se os contactos, visando levar a mensagem junto dos guineenses e cabo-verdianos e anunciar as nossas intenções. O grosso das reuniões do PAI, a partir da sua criação, tiveram lugar na residência de João Rosa, que se situava no Chão de Papel.
Nessas movimentações participaram muitos outros activistas. Lembro-me de alguns: Quintino Nosoline, Ladislau Lopes Justado, Manuel Lopes Justado, Rui Barreto, Epifanio Soto Amado, Alfredo Menezes, Carlos Correia, José Ferreira de Lacerda, Gudifredo Vermão de Sousa (Tatá), Milton Sezimudo Pereira de Borja, José Opadai, Armando Lobo de Pina.

O intensificar de actividades e constantes movimentações políticas levaram a que a PIDE reforçasse as perseguições e, consequentemente, muitos activistas foram sendo aprisionados e torturados nas diferentes celas de prisões. Este facto e outros, nomeadamente os acontecimentos de Pindjiguiti em 1959, levaram à tomada de decisão do Partido de instalar a sua Direcção no país vizinho independente - Guiné Conakry...." (5).
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Notas de L.G.

(1) A famosa Casa Gouveia, ligada ao Grupo CUF, ainda existia no nosso tempo, tendo estabelecimentos pelo menos em Bissau e Bafatá. No período de 1969/71, fazíamos segurança aos seus barcos, quando passavam pelo Geba Estreito, em Mato Cão. E inclusive utilizávamos os seus barcos nas deslocações a Bissau...

(2) Foi governador geral no período de 1941/45

(3) Vd post do nosso camarada João Tunes, de 2 de Outubor de 2005 > Lembrando Tarrafal. Vd. fotos do Tarrafal, na ilha de Santiago, na página Amigos de Cabo Verde, criada por suecos (fotos de Björn Hagelby)

(4) Vd. biografia de Amílcar Cabral (1924-73) no sítio Vidas Lusófonas

(5) Para saber mais: vd Fundação Mário Soares > Dossier Amílcar Cabral

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22748: (De)Caras (183): Revivendo e partilhando (João Crisóstomo, Nova Iorque, de Visita a Portugal)

1. Mensagem do nosso camarada João Crisóstomo, a residir em Nova Iorque, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), enviada ao nosso Blogue em 16 de Novembro de 2021:

Caros camaradas,
Sempre que vou a Portugal uma das minhas prioridades é tentar contactar pessoalmente aqueles que me são queridos e a quem apenas consigo contactar por telefone ou E-mail durante todo o ano. Se a alguns consigo fazê-lo individualmente a maioria sejam estes membros de família, camaradas da Guiné ou simplesmente amizades feitas ao longo dos anos, apenas consigo fazê-lo em ocasiões pre-combinadas que me permitem ver e encontrar várias pessoas ao mesmo tempo.
Evidentemente que “férias em Portugal” quer dizer sempre viajar um pouco. E foi nestas viagens que tive ocasião de fazer algumas visitas já mencionadas em ocasiões anteriores quando tive a grande satisfação de visitar o Valdemar Queiroz e o Francisco Pinho da Costa. Este último nunca o tinha visto mais depois de termos sido vítimas duma mina, ocasião em que fracturou as pernas e foi evacuado para Bissau e depois para Portugal. Tive muita pena de não me ter sido possível visitar vários outros que sabia estarem com problemas de saúde ou outras razões que que não lhes permitiam deslocações. A alguns até já contactei depois de ter voltado a Nova Iorque. A outros farei o possível para os contactar brevemente, tanto mais que a época de Natal e Ano novo se aproximam.
Entretanto aqui estão algumas fotos, queridas todas pois são elos entre mim e outros que me são queridos.


Esta foto foi tirada no Algarve. O Henrique Matos encarregou-se de combinar com os outros três a melhor maneira de nos vermos e vieram os quatro ter comigo ao Hotel Vila Galé em Tavira onde eu e a Vilma, acompanhados pelo Rui e Virginia a quem tínhamos convencido a vir connosco, fizemos a nossa base nesses poucos dias no Algarve. A Vilma, convencida a ficar na foto para esta ficar mais bonita, foi depois ter com o Rui e Virginia. E nós cinco, - eu , Henrique Matos, Teixeira, Chico e Viegas - ( que faz hoje anos e a quem por telefone já dei um abraço, interrompendo o seu almoço com amigos) ficámos a matar saudades, revivendo momentos, partilhando notícias e lembrando camaradas; como sempre sucede nestas ocasiões.
Reviver a Guiné, pelo menos para mim, mas creio que é mais ou menos geral este sentir, não importa quantas vezes o fazemos, é quase sempre como se fosse a primeira vez depois das vividas experiências passadas. Doloroso porém quando aqueles camaradas que connosco viveram esses momentos não estão mais entre nós. Ao fim de duas horas e um abraço forte despedido-nos… "até à próxima vez, talvez no próximo ano, se Deus quiser”.

O claustro do convento de Varatojo foi o lugar de encontro com os meus familiares e amigos este ano. E porque entre os meus familiares tenho alguns que foram também meus camaradas na Guiné e outros que partilharam comigo as vivências de Seminário, na missa que precedeu o nosso encontro eu pedi ao Padre Melícias, celebrante para lembrar duma maneira abrangente todos os camaradas da Guiné ou de Seminário já falecidos. Como a foto revela foi pequeno o número de presentes este ano. Razões de idade, agora agravadas pela ainda presente covid assim o exigiram.

O viver próximo de Luís Graça, Rui Chamusco e a São, esposa do saudoso Eduardo Ferreira, facilitaram-me encontros e momentos daqueles que me fazem sentir o quão maravilhosa pode ser a vida de cada um de nós. Basta sabermos não perder as boas oportunidades. O sorriso na cara de cada um, incluindo em outros queridos/as presentes nesses momentos, dá bem idéia da amizade e alegria que todos sentíamos naquele momento.

Outros momentos me ficaram na memória e coração, mas que devida à minha pouca perícia em coisas digitais não me ficaram devidamente registados apesar das boas intenções nesse sentido. Mesmo sem as devidas fotos, recordo já com saudade os momentos com Manuel Leitão (o Mafra); as visitas ao Forte de Castro Marim, no Algarve, quase na fronteira com a Espanha, onde o Infante Dom Henrique que aí chegou a viver foi o primeiro Grão Mestre da Ordem de Cristo, herdeira dos privilégios e propriedades da extinta Ordem dos Templários.
Entre outros momentos dignos de registo lembro uma visita à Coudelaria de Alter do Chão com os seus famosos cavalos e a sua “escola de faisões", única no género em Portugal. No Crato fui encontrar o túmulo, original dizem, de Don Nuno Álvares Pereira… e em Castelo de Vide, graças a uma dica do Luís Graça, fui encontrar uma sinagoga e o que resta de uma povoação que recebeu milhares de refugiados aquando da instalação da Inquisição na Espanha.
E outros lugares que me fazem ver que cada vez que me desloco dum lado para outro o quanto há para conhecer e visitar.

Que ficam para a próxima vez, se Deus quiser.
João Crisóstomo, Nova Iorque

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22699: (De)Caras (182): os dois "ponteiros" de Bambadinca, o velho Brandão (da Ponta Brandão) e o histórico Inácio Semedo, de quem o Amílcar Cabral foi padrinho de casamento - II (e última) Parte

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7370: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (1): Primeiras notícias da Guiné-Bissau

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Dezembro de 2010:

Malta,
Por favor, peguem na carta de Bambadinca. Acima de Missirá, na confluência com os regulados de Mansomine e Joladu temos o rio Gambiel. Aqui vim pela primeira vez na primeira semana de Agosto de 1968. Fiquei deslumbrado com tanta beleza: palmares imponentes, palmeiras de Samatra, nas margens de um rio que fertiliza as bolanhas, na altura abandonadas do lado do Cuor e discretamente cultivadas na outra margem, como vim a perceber, quando levei com uma carga de morteiro, meses depois.
O Gambiel era para mim, tal como Chicri, um dos panoramas assombrosos, que eu queria rever nesta viagem. Lá fui de motocicleta, na companhia de Lânsana Sori, um jovem da Guiné Conacri. Depois da guerra ali apareceu uma nova tabanca, Madina de Gambiel. Chegados ao local, pedi para falar com o chefe da tabanca. Levantou-se um homem, quando ouviu a minha voz. Chegou ao pé de mim e disse-me:

- Reconheci-te pela maneira de andar e pela voz, sou o Ieró Baldé, do pelotão de milícias de Missirá.

E caímos nos braços, um no outro, não me coibi de soluçar por alguém que me reconheceu, mais de 40 anos depois. E de mão dada fomos até ao Gambiel.

Estou de regresso, acho que vocês têm todo o direito de receber as primeiras notícias. Muito provavelmente, volto lá em breve.
Se aqui se vai instalar a recessão, quero informar-vos que cortei o cabelo na barbearia Chiado, no Bissau Velho, por 2€. Então vou até à Guiné para dar um pontapé na crise.
Trago toneladas de fotografias. Se houvesse aí uma alma caridosa em Lisboa que me ajudasse a abrir este ficheiro, fico antecipadamente grato. É assunto sério e urgente.
Venho de boa saúde, comi canja de ostra, muita papaia, banana-maçã, bifes de sereia e cachupa de milho.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (1)

Primeiras notícias da Guiné

Beja Santos

1. Na concepção logística, a operação começa a tremelicar em pleno check in, três horas antes do voo para Bissau, no fim do dia 17 de Novembro. O Tangomau leva mais de 40kg de carga, é fácil supor porquê: as inevitáveis mudas de roupa, artigos de higiene e asseio, enfim, dois pares de sapatos e umas chinelas, tudo aquilo que parece ser imprescindível para um conforto básico no início da época seca. Não são os bacalhaus, chouriços e azeite que fazem mossa, a culpa é dos livros, cartonados. A menina do check in é intransigente: ou paga o excesso a 9 euros por quilograma ou a bagagem não é expedida.

É aí que intervém o providencial Abudu, experiente nestas coisas da carga em excesso. Alivia-se da mala que vai no porão e sobrecarrega-se na carga que vai nas espáduas do Tangomau, é ele que decide quando as malas já estão no tapete rolante. O Tangomau protesta, a proposta do Abudu é inadmissível, há uma pasta que vai ajoujada com papéis e os livros do costume, endereços, cadernos e canetas, na mão esquerda, qual Lusíadas, sobraça a prenda mais preciosa que segue para a Guiné, as cartas da Guiné portuguesa em 1:50.000, a prenda que Humberto Reis depositou nas mãos do Tangomau e que vai ser transferida para o INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, o verdadeiro arquivo nacional da Guiné-Bissau que foi profundamente vandalizado durante o conflito político-militar de 1998-1999.

Não querendo adiantar os factos, foi nas instalações do INEP que ficaram as tropas senegalesas, as baterias da Junta Militar despejaram algumas canhonadas sobre o edifício e os garbosos senegaleses aqueceram-se com fogueiras em que a matéria-prima era documentos de inegável valor histórico… pois bem, o saco que vai na outra espádua tem já peso exorbitante. É aí que Abudurramane Serifo Soncó dá uma lição admirável a quem protesta, furtando-se a ser burro de carga:

- Aquela menina é uma malvada, tu até lhe mostraste a capa dos livros, se ela tivesse bom coração nem ameaçava com multas. Tu vais levar os livros todos, há uma grande expectativa a rodear a tua viagem, arrastas os sacos até entrar no avião, pensa nas alegrias que vais dar aos outros.

A advertência sortiu efeito, o Tangomau rilhou os dentes, comeu umas coisas para enganar a fome, foi apresentando o passaporte aqui e acolá, atirou o corpo para uma cadeira e começou a ler “O Nosso Jogo”, de John Le Carré. Sim, leva dois livros de John Le Carré, este e o que acaba de sair, de título “Um Traidor dos Nossos”. “O Nosso Jogo” é uma obra-prima. Há muito que o autor do clássico “O espião que veio do frio” reciclou as temáticas da Guerra Fria, agora os problemas são do mundo confuso e turbulento e multipolar: vamos ser confrontados com conflitos étnicos acirrados por potências que pretendem debilitar a Mãe Rússia; vamos ficar chocados com os actos criminosos de certa indústria farmacêutica que não olha a meios para testar novos medicamentos usando populações em abuso de fraqueza para chegar a novas combinações; vamos acompanhar a manipulação dos serviços secretos que preparam uma cilada envolvendo velhos espiões para agitar o papão do terrorismo talibã… Em “O Nosso Jogo”, dois espiões reformados vão aparecer no barril de pólvora do Cáucaso, é a luta do povo inguche contra a Rússia e a Ossétia.
Até Bissalanca, o Tangomau vai saboreando a trama urdida por Larry Pettifer que arrasta o seu amigo Timbo até ao sacrifício supremo. Na pasta, leva outras preciosidades. Por exemplo, “O Poder e o Povo”, de Vasco Pulido Valente.

O avião acaba de poisar, o hangar de Bissalanca está iluminado e vai acolher quem chega.


2. Os trâmites da viagem passaram pelos seguintes procedimentos: encontrar um agitador encartado que convoque todos os antigos soldados caçadores e milícias: o Fodé Dahaba aceitou a incumbência, melhor trombeteiro não há; encontrar uma alma caridosa que desse cama e mesa na região de Bambadinca: o embaixador Inácio Semedo e o Eng.º Fernando Semedo embarcaram na aventura, o Tangomau vai aboletar-se no Bairro Joli, premonitoriamente em frente da bolanha de Finete e com vistas desafogadas até Chicri e Mato de Cão; até o embaixador de Portugal na Guiné-Bissau promete apoios, o Tangomau tem pela frente viagens por bairros ínvios, esconsos, labirínticos: Bairro Militar, Bairro Bissaque, Bairro Missirá, Bairro Quelélé…; camaradas da Guiné fazem pedidos desordeiros: entregar envelopes às antigas lavadeiras; um senhor de Mansambo, Lorde Torcato, pede informações sobre gente no eixo Bambadinca-Xitole; um anarca, de nome Jorge Cabral, quer estimativas na compra de uma morança em Finete, obra asseada, chapa de zinco com forro de cibes, duas janelas à frente e duas atrás, cozinha e casa de banho, de preferência com vista para a bolanha, o Tangomau é mandatado para descobrir um construtor e negociar o terreno com o chefe da tabanca local; anarca assumido e poeta dissimulado, esse tal Jorge Cabral demanda que vá a Fá e mais tarde proceda a um relato… mas há mais pedidos, alguns aparentemente inocentes que o Tangomau pagará com língua de palmo: por exemplo, o Humberto Reis, a quem chamam o cartógrafo-mor, manda uma carta para um tal Zeca Braima Sama, o dito Zeca depois quer entrevistas, ele faz agit-prop em Bafatá, este Tangomau veio mesmo a calhar, um encontro de sexagenários que foram combatentes não é notícia que se dê todos os dias, depois o rumorejar vai até à RTP África. Não vale a pena dissecar a torrente de acontecimentos, eles irão ser perfilados, de acordo com a calendarização prevista e as inúmeras situações imprevistas. Fiquemos por aqui, já estamos na madrugada do dia 18, o senhor Sabino, da embaixada de Portugal, majestoso no porte e dotado de um português bem cadenciado, ajuda-o a pôr os cerca de 40kg dentro de um Land Rover e vai encaminhá-lo para a Pensão Lobato na Pansao N’Isla, que no passado era a estrada que unia o Bissau Velho a Santa Luzia, o Quartel-General.


3. O que é que há a destacar e que começa a gravar-se na memória perdurável? A lufada de um vento quente com os seus aromas peculiares: as acácias floridas, os odores putrefactos devido aos gafanhotos mortos, deve também haver umas gomas e resinas que rescendem odores acres, e tudo misturado é aquele calor de estufa nocturna, o Land Rover afoita-se pelas dezenas de milhares de buracos dessa estrada só iluminada pelos faróis das viaturas, já perto de Bissau há o movimento das discotecas, passa-se pelo espectro do HM 241, chega-se à Chapa Bissau, para o lado esquerdo temos o Bairro Caracol, por aqui pode descer-se até ao Quartel-General, para a direita temos o mercado de Bandim, a Mãe de Água no alto do Crim, àquela hora está tudo adormecido, com tudo é permanente a zanguizarra dos grilos. E depois de muitas sacudidelas e fintas dentre o alcatrão esburacado chega-se à Pensão Lobato. O Tangomau é recebido por algumas baratas, uma ventoinha ruidosa que lembra a do filme Apocalypse Now. São três da manhã, a pele já está empapada de suor, põe-se o despertador para as 8, não há leituras para adormecer, a pituitária acomoda-se aos cheiros e o Tangomau lembra aquela primeira noite de Missirá, já lá vão 42 anos, em que tudo estranhou e até sorriu antes de adormecer a pensar como aquela comissão militar passou depressa, mas não fugazmente. Fez uma jura a si próprio: o primeiro dia em Bissau irá ter parecenças com a experiência vivida em 29 de Julho de 1968, o dia da descoberta da cidade. Puro engano, como se vai ver a seguir, com a máquina digital na mão vai percorrer os escombros do palácio presidencial, passará bem próximo do que foi o museu da Guiné (agora chamado Primatura ou escritório do Primeiro Ministro), também na Praça dos Heróis Nacionais, segue-se a descida da Avenida Amílcar Cabral, a UDIB, o Hotel Portugal e a primeira grande, grande comoção: a Pensão Central onde a D. Berta o vai acolher de braços abertos.
(Continua)

Comentário: Meu querido Jorge Cabral, ao percorrer o mercado de Bambadinca (no antigo Bambadincazinho ), fui abordado por Dungo Queta, que perguntou por ti. Sei que vais ficar muito magoado com o obituário. Entreguei uma folha ao Dungo e pedi-lhe para fazer uma lista da malta do 63. Aqui tens. O original será para ti. O que não te posso entregar é a dor de alguns dos teus antigos soldados, desfizeram-se em confissões, pedidos, o mais que sabes. Já tenho o orçamento da tua casa. O “passeio” a Fá não foi fácil. Vou dar notícias, mais adiante.

Estas eram as minhas obrigações para com o Abudu. Acabaram por se multiplicar: o Tumblo, por telemóvel, mandou-me ao bairro Missirá, eu tinha que ir visitar a família, um Soncó tem que partir mantenha logo que chega. Mamadu Soncó estava enlutado, acabara de morrer o seu irmão Quecuta, que conheci em criança. Só o voltei a ver em 1 de Dezembro, pediu-me para trazer um dos filhos para jogar futebol em Portugal.
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

27 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7347: Notas de leitura (177): Marcelino Marques de Barros, um sábio guineense (Mário Beja Santos)
e
12 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7269: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (5): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (3) 1 de Novembro