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domingo, 10 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19569: Blogpoesia (611): "As maldições...", "Os cantos do mundo" e "E agora?...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


As maldições...

Benditas terras de Lisboa abençoada.
Onde o sol vem luminoso em cada dia,
Pintando de azul de mar o céu e de verde os jardins que a embelezam.

Chovem graças abundantes nos telhados de seus bairros.
Da Graça à Madragoa.

São de paz as suas ruas e miradouros.
Têm a marca da inocência os carinhos das suas gentes quando abrem suas portas.

Dizem que há hostes permanentes de anjos bons a gravitar ao seu redor, afugentando-lhe as maldições.

Bar Fradinho no centro de Mafra, 3 de Março de 2019
8h34m
Jlmg


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Os cantos do mundo

Corri os cantos do mundo em busca de poesia.
Tudo seco e arrasado.
Um deserto.

Onde os prados de boninas e as serras vestidas de urzes, em majestade?
E as planuras extensas, loiras, com o pão de oiro a fermentar?

Já não há rios. Dos mais pequenos.
Corriam alegres como gamos, pelas ladeiras.

Andam tristes as crianças. Perderam aquele viço travesso que lhes dava a natureza.
Agora, é só jogos virtuais nas tabletes. Queimam tempo e nada ensinam.
Vivem alheios à Natureza
Que tudo ensina e tudo dá.
Na ignorância.

Recebem tudo feito e embalado. No supermercado.

Como germina uma semente e nasce uma flor?

Ninguém repara no nascer do sol.
E o pôr não tem ninguém a despedir-se...

Bar Castelão, em Mafra, 5 de Março de 2019
9h50m
dia cinzento e molhado
Jlmg


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E agora?...

E, agora? Chove lá fora e ela não vem.
Está longa a espera.
Aspiro escrever. Nada aparece.
Um bulício na mente.
Tanta procura, em vão.
Apetece parar.

Se não fosse o passado,
quando o mesmo ocorreu,
de repente, o céu se abre
e tudo volta ao que era.

O tempo não pára.
Leva e traz.
Tira e dá.

Só se sabe o que vem
Quando ele chegou.

Bar Caracol, arredores de Mafra, 6 de Março de 2019
9h7m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19547: Blogpoesia (610): "De tristezas e alegrias", "De bico no chão" e "Não sou marinheiro", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

sábado, 11 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24840: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (19): O Bairro Alto... de finais do séc. XIX, mal afamado durante muitas décadas, e hoje gentrificado...

Capa do livro de Avelino de Sousa (1880-1946), "Bairro Alto: romance de costumes populares". Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa, 1944, 290 pp. 


1. Já não é do nosso tempo de meninos e moços...Mas se fosse,  não nos deixavam lá ir, sozinhos... Nem já é do tempo dos nossos pais, nascidos por volta dos anos 20... Estamos a falar de 1896/97/98, e de um dos guetos de Lisboa... o mal afamado Bairro Alto. 

Irreconhecível hoje, ou talvez não: as suas ruas, o seu casario, são os mesmos... Ainda existem casas com aventais de pau (meias-portas, nos pisos térreos), e persianas de tabuinhas nos andares de cima. Mas já ninguém sabe hoje o significado da expressão, "estar de avental de pau" (estar debruçada, a mulher,  sobre as meias-portas, oferecer-se, prostituir-se).

A toponímia pode ter mudado num caso ou noutro. As tascas dos galegos desapareceram. Tal como os candeeiros a gás, de iluminação pública.  E a redação dos jornais e as tipografias, que começaram a concentrar-se nesta zona histórica, logo desde meados do séc. XIX. Já não há cheiro a peixe frito nem se servem entaladas, candas, iscas com elas, etc., nem se bebe um meio-curto (copo mal cheio, com café, vinho, canela e açucar)... Ou uns tintos.... cortados (vinho com soda).

A fauna humana também mudou... Todos/as tinham alcunhas, "nomes de guerra", das rascoas aos faias, dos artistas aos amigos do alheio:  Pinoia, Enjeitada, Pantera, Micas, Camélia, Pinta-Monos, Pé de Chumbo, Zé-Bode, Garrafão, Fininho, Janota... O fadista ou faia, com o seu traje característico e o seu calão,  perdeu-se na voragem do tempo...As modas são outras,,,  A fadista de faca na liga, também. 

Grosso modo, há o antes e o depois de Amália Rodrigues, que ajudou a branquear o passado "lumpen", proletário,  rasca, ordinário, popular, do fado...O mesmo  é dizer: nobilitou o fado, arrancando-o da rua, da viela, do vicio, da taberna... 

E já não há Adelaides Pinóias a cantar ou a gemer: "Quem nasceu no Bairro Alto / há de sofrer e chorar / ao ouvir uma guitarra / docemente a soluçar" (pág. 289).  Nem o Bairro Alto é mais o dos "amores tão delicados": se o foi, foi no bom tempo do palácios e conventos do séc.  XVI... Degradando-se, foi apropriado pelas "classes laboriosas" e pelos grupos socialmente marginalizados. O "acantonamento" das prostitutas em certas zonas da cidade, bairros populares, ribeirinhos  degradados, imposto por postura municipal de 1833, por razões de "saúde pública" e de salvaguarda da "moral pública", de acordo com o discurso liberal então dominante,  acabou por estigmatizar o Bairro Alto (e outros; Mouraria, Alfama, Madragoa, etc.) durante mais de um século... Mas foi também um dos "laboratórios sociais" do fado, "canção popular urbana de Lisboa"... hoje "património imaterial da humanidade", tal como o "cante" (que nasceu nos campos, na rua, na taberna...).

Perderam-se "bons e maus costumes"... Ganharam-se outros.  Em 2013, o antigo bairro aristocrático quinhentista fez 500 anos. O antigo Carnaval de Lisboa. com as suas cegadas,  também não existe mais, "muito bruto, por vezes malcriado, mas ao mesmo tempo divertido e com graça" (pág. 159). Em 1963, o Estado Novo hipocritamente fechou as "casas de passe" (nome eufemístico para os prostíbulos, em que as prostitutas tinham número de matrícula e inspecção médica periódica)... Já o tinha feito, de resto, no Ultramar (em 1954). 

Vinte anos depois, em 1983, Portugal legalizou a prostituição, mas não resolveu o problema das suas suas causas e consequências. 

Vale a pena, todavia, dar aos nossos leitores uma "ideia" e um "cheirinho" do que foi  o Bairro Alto das últimas décadas do século dezanove, social e espacialmenteĺ segregado, mal afamado tantos anos (até mesmo para lá do 25 de Abril de 1974)... 

Alguns de nós ainda o conhecemos nos anos 60/70, ao tempo da tropa e da guerra colonial ... Mesmo para aqueles que nunca lá foram, ficou no seu imaginário, tal como o Pilão, em Bissau...

A partir dos anos 80, o Bairro Alto "aperaltou-se", lavou a cara,  passou a ser uma zona turística, sítio obrigatório da noite de Lisboa, e hoje cada vez mais "gentrificado"...  Novas formas e lugares de prostituição apareceram, a começar pela prostituição de luxo (a que as elites do Estado Novo, de resto, já recorriam: veja-se o "escàndalo" do Balet Rose, em 1967).

Reproduzimos a seguir alguns excertos deste pitoresco "romance de costumes", do Avelino de Sousa,  publicado em 1944, mas que começou por ser uma opereta, com o mesmo nome, e do mesmo autor. (Terá tido bastante sucesso no ano de 1927, já em plena Ditadura Militar...)


O Bairro Alto de antigamente

(...)  Bairro Alto – bairro de gente honesta, bairro de artistas e de operários,      bairro da Imprensa, de boémios e de fadistas e também – na época em que decorre a ação deste romance – bairro de rascoas que se estendiam como que em alas de ambos os lados da maioria das artérias, debruçadas sobre os aventais de pau [nome  dado vulgarmente às meias portas], por todas as ruas, da Atalaia, dos Calafates, da Barroca, das  Salgadeiras, do Norte, das Gáveas, Travessas da Cara, da Boa-Hora, da Água da Flor, dos Fiéis de Deus, das Mercês, da Espera, do Poço da Cidade. (…) (pág. 58).

(...) A velha casa das iscas do Bairro Alto na rua da Atalaia, à esquina da Travessa da Água da Flor, era a mais antiga de Lisboa, depois da que ainda existia na rua do Arsenal, à esquina da Travessa do Cotovelo. Os seus proprietários, dois irmãos galegos, Manuel e José, usavam matacões [suiças],(...) (pág. 76).

***

 (…) Havia no Bairro Alto um fadista − ajudante de cortador no talho do Augusto, na rua da Rosa, esquina dos Inglesinhos − rapaz alto, desempenado, aloirado, de pequeno bigode e nariz saliente, vestindo rigorosamente à fadista: jaquetão e colete de astracã preta, camisa de cordões de seda em substituição da gravata, calça de boca de sino, até ao bico do sapato, em fantasia às riscas, num tom acastanhado,  algibeiras ao alto, larga pestana a guarnecer a perna,  cinto de seda vermelha, chapéu de aba de tela. Usava uma grande melena,  em caracol como que colada à testa, bamboleava muito o corpo,  quando andava, e fumava charutos cortados de dez cada um.

Bons tempos!

Chamava-se Augusto César de Carvalho,  mas era conhecido pelo Augusto   Bombinhas. (…) (pp. 116/117)

***

(...)  Ora, graças!... A velha, foi amiga!... Doze mal reis!...Ena pai!... 24 c’roas!... É melhor do que nada e eu estava sem vintém! (…)

E metendo o dinheiro no bolso do  colete, abandonou o saquito num canto, desceu a escada, saiu pela rua Formosa, meteu-se  à calçada do Combro, entrou na Adega do Estucador ao lado do quartel  dos Paulistas, e, ao mesmo tempo que tirava do prato, que estava em cima do balcão, um ovo cozido pintado de encarnado à força de anilina,molhando-o no sal grosso, depois de rebolar a casca sobre o balcão para a partir, pediu:

Dê cá três celitros, ó patrão!... e deu  uma dentada no ovo.

Mas, nisto, uma voz,  por detrás dele, dizia-lhe ao ouvido:

Não pagas nada, ó Cambalhotas ?...

Era o Pé de Chumbo gatuno como ele.

− Estás teso ?...

− Palavra de honra que estou! Não tenho  chapeca, e o raio da Micas, hoje, ainda não se estreou!

  Andas com azar!... Olha, come um ovo cozido, que estão bons!...Vá anda, e bebe um copo! O cofre, está aberto! Queres duas c’roas emprestadas?...

− Estás armado ?...

− E bem armado! Tive um belo gancho!, camarada.

− Não percebo!

− Contos largos! Toma lá as duas c’roas, não se fala mais nisso!

− Viste o Garrafão ?...

− Hoje, não. Ontem à noite,estive com ele no João da Arruda na rua da Atalaia.  Estava danado com a dor!

− Está no pinho?... [não ter amante]

− Pois, !... A Pantera correu com ele, e passou-se para o Zi-Zi!

 E o gajo não lhe deu um flàquibaque na tabuleta  [ bofetada na cara] ?

− Não, porque  tem medo do Zi-Zi. Tu sabes que o Garrafão não é mau rapaz, mas é fracalhote. Aquele corpo, todo é balofo!

− Ora, meu amigo, tu  também  quando a pregas é à carunfa [à traição] ! – disse o Cambalhotas.

− É como calha! Também não és tu quem dá os bons dias [ser o mais valente, ou o mais cotado em qualquer manifestação da vida].

O Cambalhotas engoliu em seco, e disse, fugindo à discussão:

− Também o Garrafão não perdeu nada! A gaja era um estojo horrível!

  bem, ela é atanado, é feia que nem um pente de pau do ar, mas governa-se bem a vender os trapos  às outras! Olha que o Garrafão talvez não arranje outra assim!

− Não sei… Ele andava a fazer-se [a atirar-se, a fazer o cerco] todo com a Beatriz Gorda, e também com a Augusta do Campos! Mas esta não deixa o João da Isabel [Também cantava o fado e era irmão do Zé-Bode e do Júlio Martelo].

− Pelo lado do interesse, nenhuma delas vale a Pantera! Agora como mulheres…

Enquanto estes dois patifes conversavam, comendo ovos cozidos e bebendo a sua pinga, na Adega do Estucador, outras cenas de roubo se desenrolavam em todas as casas de penhores do Bairro Alto (…) (pp. 129-131).

***

(...) Pendurados junto às ombreiras das  portas de um lado e outro da Travessa do Poço da Cidade, no renque de luz indecisa,  os candeeiros de petróleo difundiam uma claridade bruxuleante, mal eliminando as caras pintadas das infelizes rascoas, encostadas às tradicionais meias portas.  Nos primeiros andares,  de tabuinhas, a mesma luz soturna lucilava, mal se distinguindo da rua.

A cada esquina , um candeeiro de iluminação pública, espalhava aquela luz amarelada e mortiça do gás da Companhia. Lá em cima, na esquina da rua da Rosa, um polícia,  de palestra com o guarda noturno, chupava um magro cigarro.

No Bairro Alto, pelo menos na época que estamos descrevendo. a maioria das raparigas da vida, como era de uso chamar-lhes, eram comedidas de linguagem e de atitudes, raro sofrendo uma admoestação policial, e até se dava o caso interessante de cumprimentarem e serem cumprimentadas, cortesmente, por pessoas honestas da vizinhança. (…) Acarinhavam e  beijavam a petizada da vizinhança, tornando-se assim simpáticas aos pais e às mães das crianças.

E não se pegava nada, como diz o povo judiciosamente,  ou quem sabe ? talvez houvesse menos maldade naquele tempo! (...)  (pp. 137/138)

***

(…) A Enjeitada afastou um pouco a cortina de ramagem, sentou-se no canapé, de guitarra em punho, e a Adelaide, sem sair da porta, pegou no papel dos versos.

− Dá-me entrada, sim?...

A Enjeitada começou a tanger a guitarra,  tirando uns acordes à maneira de introdução.

− Entra agora!

E  a Adelaide começou:

Este livro é a grilheta
que a corrente a desgraçada, 
que chafurda e que vegeta 
nesta vida segregada!

É o nó que à perdição 
nos prende por toda a vida, 
− o selo da podridão,
e a algema da perdida! (…)

A Pinoia interrompeu-se:

− Vou bem ?

− Muito bem ! Segue, anda!

 A Adelaide prosseguiu: 

É ferro em brasa,
 que nos queima
 e nos arrasa! 
Um alvará 
que, por teima, 
a Lei nos dá.

Um passaporte p’ra viver no lodaçal:
Um escarro ignóbil ao serviço da Moral!

− Que tal,  ó Enjeitada ?

− Muito bem, Adelaide! E os versos ? Cheios de verdade!... (pp. 184/185) (**)

***

(...) E  a Adelaide senta-se no canapé.  O Pinta-Monos toma lugar a seu lado e observa:

 − Ah!, Adelaide se tivesses sido a minha, já não estavas aqui!

Ela solta uma gargalhada, e contrapõe;

− Tu estás doido,  rapaz ?! Deixar esta vida, eu ?! Aqui,  é que eu sou gente! Fora disto,  seria uma mulher corriqueira, uma senhora honesta,  como outra qualquer!

− Mas... 

− Já te disse: aqui,  sou eu Rainha! (...) (pág. 198) (**)

(Seleção / revisão e fixação de texto / adaptação: LG. As notas dentro dos parênteses retos são notas de rodapé, da responsabilidade do autor, Avelino de Sousa)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série de 5 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24824: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (18): a taberna em meio rural (António Eduardo Ferreira, 1950-2023, Moleanos, Alcobaça)

(**) Glossário (termos e expressões idiomáticas da gíria ou do calão usados no romance):

Alcouce - Bordel, prostíbulo (etimologia duvidosa)

Alcoveta -Mulher intermediária no comércio do sexo (do árabe, al-qawwâd, intermediário.)

Belfe - Calote


Buchinha - Num baile, era ceder a dama a outro cavalheiro

Carunfa - Traição

Carunfeiro - Traiçoeiro

Celitro - Decilitro (de vinho)

Cheta - Um vintém (20 réis), 5 chetas equivalia a 1 tostão

Cortado - Vinho  com soda

C'roa - Dois mil (ou mal...) réis 

Cunfia - Confiança

Dar os bons dias - Ser o mais valente

Duques - (?)

Elas - Batatas ("Iscas com elas")

Ensaio de galheta - Par de bofetadas

Entalada - Uma isca metida num quarto de pão.

Estar no pinho - Não ter amante

Ético - Sem dinheiro ("estar ético")

Flaquibaque - Estalada

Garonga - (?)

Labita - Fraque

Libra - 4500 réis

Meio-curto - Copo mal cheio, com café, vinho, canela e açucar.

Meia-lata - Meio litro (de vinho)

Meia-unha - Meio tostão

Pai de vida - (?)

Ourelo -  Cuidado, cautela

Quarto de bife ou quarto de dose - Um meio bife custava 140 réis (sete vinténs). Um quarto custava metade. Pretexto para se beber nais um copo.

Queijada - Gratificação

Rascoa - "Mulher da vida", prostituta... Era duplamente exploradas: pelos chulos  (rufiões, que nem todos eram fadistas, vivendo do pequeno crime)  e pelas "patroas", as donas das casas ("cobravam, em geral, quinze tostões a dois mil réis por dia por cada casa"; (...) "uma exploração ignóbil de que as infelizes eram vítimas, pois que, na maior parte dos dias, não ganhavam nem para o petróleo, como elas próprias diziam". (pág. 192).

Requineta - Fraque

Roda - Tostão (duas rodas, dois tostões ou dois-tões)

Tabuleta - Cara

Tostão - 100 réis, 5 chetas ou 5 vinténs

Toudas - Sopapo

Trompázio na fuça - Soco na cara

Trovas a atirar - Cantigas que encerravam uma provocação, dando origem por vezes a conflitos.

Vintém - 20 réis

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6366: Tabanca Grande (218): Armando Faria, ex-Fur Mil da CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74

1. Mensagem do nosso camarada e tertuliano Armando Faria* (ex-Fur Mil, CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74), com data de 5 de Maio de 2010:

Boa noite companheiro.

Já noutra altura enviei para vós e publicaram, duas palavras sobre a CCAÇ4740.

Hoje e após as inúmeras visitas feita ao Blogue, penso que não posso continuar só pelas visitas, talvez tenha chegado o tempo de mais alguma coisa, participar.

Assim vou juntar aqui um texto que dedicarei a todos aqueles que connosco partilharam o pão e os sabores da vida que nos foi “oferecida”.

A todos vós,
Um abraço do tamanho do Cumbijã.

Armando Faria,
ex-Fur Mil da CCAÇ 4740 – Cufar – Guiné


2. Tempo de recordar amigos de sempre

Companheiro, amigo, camarada, irmão…

Muitos poderiam ser os adjectivos e os nomes chamados e bem merecidos a cada um de vós/nós, porém a todos nós basta saber que um dia, algures em algum lugar, fomos irmanados, não pelo nosso querer ou vontade própria, mas pelas circunstâncias do momento que a todos chamou, a PÁTRIA precisou de nós.

O nosso caminho vai sendo percorrido ao sabor deste tempo que nos é concedido, pachorrentamente na companhia daqueles que nos acolheram como família, dos amigos e das memórias que habitam todo o nosso ser.

Foi e será assim, as memórias do tempo que para lá ficou, dos amigos ‘deixados’ pelo caminho da vida, das alegrias e tristezas então vividas, não nos deixaram jamais.

Foi tempo de ser herói, sim, porque todos à nossa maneira o fomos, tempo de dar o melhor que tínhamos, a nossa juventude, tempo de fazer dos medos a nossa maior arma de combate e assim ganharmos a ‘guerra’ do nosso próprio medo, em suma, ser herói.

Desse tempo resta uma nostalgia de gente que connosco viveu e de uma ou outra forma nos marcou para sempre.

Gente que fomos, vida que vivemos, terras que visitamos, lugares lindos que se ficaram e da nossa memória não se esbatem, amigos que partiram para junto das suas famílias, mas que hoje queremos rever e com eles reviver as alegrias de então, não pela saudade de algo que ficou, mas pela amizade que aí se construiu.

Hoje, aqui no meu canto, sou assaltado por essas memórias e pelo que então foi um pouco a nossa vida, não pelo que alguém possa pensar de saudoso desse tempo de alguma desventura, mas, como disse, da amizade aí encontrada em pessoas nunca antes conhecidas e que se vieram a revelar de muito valor, no tempo e agora, pois é com essas memórias e ‘essas’ pessoas que hoje estamos aqui em contacto, não fora isso e nunca teríamos tido a ventura de conhecer gente que se veio a tornar tão importante para nós neste momento da vida.

Sois, como então, parte da família que me orgulho de ter, fomos heróis, vencemos os medos, conseguimos alcançar a liberdade para viver a vida que nos foi proposta viver, juntamo-nos à família e juntos hoje vivemos a alegria de sermos livres.

Somos feitos de uma massa que já não se usa muito por cá, fomos temperados na vida e para a vida por outras experiências e vivências que não nos envergonha, tivemos pais que da vida nos ensinaram o melhor e temos filhos, os que têm, que são o nosso orgulho, afinal «os filhos são a coroa de glória de seus pais» e somos o que somos porque trabalhamos para o merecer.

Hoje é tempo de reencontrar esses ‘velhos’ companheiros, É este o tempo escolhido, a hora chegada a quem dedico este momento de fim de tarde, para aqui e agora fazer minhas as palavras do poeta. Saudade.

Por aqueles que desta vida já tiveram que se ‘despedir’ elevo a Deus a minha Oração.

Um abraço, até sempre, ou para alguns de vós, até ao dia 19 Junho em Fátima, onde espero poder fazê-lo pessoalmente.

Armando Silva Faria,
Ex-Fur Mil
C CAÇ 4740
Cufar – Guiné 72/74


3. Comentário de CV:

Caro Armando Faria

No teu caso, nem precisas de boas-vindas uma vez que estás instalado na Tabanca já há algum tempo.

Apresentado que estás oficialmente, tomaste a responsabilidade de contribuir para o pecúlio deste Blogue com as tuas memórias e fotografias.

No lado esquerdo da nossa página poderás certificar-te das nossas normas de conduta, além de, através dos diversos marcadores, acederes às numerosas publicações do nosso Blogue. Clicando por exemplo no marcador CCAÇ 4740, terás acesso ao que se publicou já sobre a tua Companhia.

Posto isto, cabe-me enviar-te, em nome da tertúlia, um abraço.
O camarada e amigo
Carlos Vinhal
__________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

30 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5730: Blogues da nossa blogosfera (33): Site da CCAÇ 4740 (Armando Faria)
e
4 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6311: Convívios (143): Encontro Anual da CAÇ 4740, dia 19 de Junho de 2010 em Fátima (Armando Faria)

Vd. último poste da série de 10 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6365: Tabanca Grande (217): Alcides Silva, ex-Sold Cond Auto, amigo do Madragoa (Júlio Tavares), CCS / BART 1913, Catió, 1967/69

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12649: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (14): As localidades por onde passei, sofri e amei - Conclusão (Veríssimo Ferreira)

1. Em mensagem do dia 34 de Janeiro de 2014, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil da CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, e Bissau, 1965/67) enviou-nos a segunda e última parte do seu percurso militar desde sua promoção à alta patente de 1.º Cabo Miliciano, passando pela promoção a Senhor Furriel, terminando na sua ansiada ida para a Guiné.


AS LOCALIDADES POR ONDE PASSEI... SOFRI... AMEI
(continuação*)

À Amadora cheguei... nem ao almoço tive direito e mandam-me avançar, de forma a estar e sem falta, no dia seguinte em Lamego.
Voei para Sta. Apolónia, fui para o Porto, daqui para a Régua e o certo mesmo é que às 8,30 entro no novo poiso.

Bambúrrio... dei de caras, logo à porta de armas, com um herói da minha terra, combatente já com uma comissão prestada em Angola, 2.º Sargento e monitor agora, das tropas a preparar.
Trocámos abraços, continências e amigáveis palavras, e logo ali ele próprio se disponibilizou para me ajudar no que eu precisasse.

A caserna era óptima e fiquei em lugar privilegiado de cama. Fora dos últimos a chegar e não houve hipótese de arrebanhar melhor. Havia só que subir três beliches, até chegar ao 4.º onde dormia e com uma vista fantástica para os barrotes em madeira, que até me davam para estender a roupa molhada e esta, por sua vez, passava as gélidas noites, a afagar-me a tromba, durante os raros momentos que ali estacionei, pois que os treinos eram constantes, a qualquer momento... prolongados... estafantes.

Foram tempos duros, mas uma óptima preparação para as dificuldades que vieram depois. Ficou-me gravada, a frase: "Nunca se sabe", resposta que sempre ouvíamos a qualquer pergunta que fizéssemos.
Lá de quando em quando, também nos convidavam a ir até lá abaixo à City e então era um fartote... que belas pingas... bom presunto (coisa da qual eu já ouvira falar mas não provara qu'a crise abundava com'há agora) e até as pessoas eram simpáticas prá rapaziada fardada.

No aspecto da preparação militar, gostei "manning" d'atravessar o rio dum lado pró outro, agarrado a uma corda e com os pés assentes noutra e a água lá em baixo revolta com'ó caraças fez-me perguntar a mim próprio: porqu'é que não trouxeste o calção de banho em vez da farda de trabalho?

Lamego
Foto: Pais&Filhos, com a devida vénia

Tancos, desejava-me ardentemente e as Minas e Armadilhas que as amasse... e a Barquinha ali tão perto e com tão boa comida e melhor buída...
Recordo com alguma emoção convenhamos, aquele dia em que cá em baixo, junto ao Castelo de Almourol, me pediram atenciosamente para experimentar um pedaço de massa explosiva, a que chamavam farinheira. Colocada que foi, debaixo dum pedregulho de todo o tamanho, a que juntei depois um detonador, mais um cabo eléctrico com 50 metros que trouxe até cá ao alto e liguei a uma caixinha com alavanca que pressionei.
O estardalhaço do rebentamento foi impressionante, levantei a cabeçorra e é nessa altura que vejo no ar aquele monstro redondo a dirigir-se a jacto, precisamente para o local onde me encontrava e a quem eu disse:
-Trá-la-rai, la-rai, la-rai... falhaste pá... paciência.

Acabara sim, por derrubar uma pobre e velha árvore centenária.

Castelo de Almourol
Foto: Imagens de locais onde já estive, com a devida vénia

Passou-se e eis senão quando, me vejo a caminho de Lisboa, Avenida de Berna, Grupo de Companhias Trem Auto, o que me confundiu do porquê. E não só a mim, também o Senhor Sargento da Secretaria se espantou e exclamou:
- Ora porra, pedi um Cabo-Miliciano condutor e mandam-me um atirador? Mas... - continuou ele: Aguente aí ó patrício, você é da Ponte Sôr... eu sou de Alter... temos de resolver isto.

E após perguntar-me se conheço a capital e eu respondido "negativo", decidiu que eu devia ficar por ali, até que fosse rectificado o lapso, o que deveria demorar um mês.

Sem função atribuída, saía, à civil, de manhã e voltava para dormir, às vezes, num quarto com mais sete militares e cinco ratazanas, das maiores que já vi.
Turismei... Vi cinema nos: Piolho... Condes... Éden... S Jorge...;
Conheci, a desoras, as boas zonas... Intendente... Cais Sodré... Bairro Alto... Alfama... Mouraria... Madragoa...;
Vi campos de futebol, com relva imagine-se... o aeroporto... Cabo Ruivo e os hidroaviões... comboios em Santa Apolónia e Rossio... Fui a Cacilhas... ao Jardim Zoológico... Parque Mayer... Parque Eduardo VII... Feira Popular...;
Comi bifes na Solmar... Portugália... Império... Ribamar... sopa de marisco na Rua de S. José... iscas na Travessa do Cotovelo... bacalhau com grão no João do Dito...;
Bebi na Ginginha e no Pirata e uns tintos no Quebra Bilhas...

Lisboa - Cinema S. Jorge
Foto: Expressões Lusitanas, com a devida vénia

Até que um dia me transmitem:
- Vais para Abrantes.

Bati o pé e disse:
- Não vou... Não vou... Não vou... E fui.

Em Abrantes, estava mais perto de casa, o que me agradou.
Lá se foi passando o tempo e coube-me ajudar o Oficial instrutor, ensinando novos militares. Por que alguns de nós, os recentes cabo-milicianos, estávamos já a ser mobilizados, fui-me preparando. Contudo, tal mobilização só veio a acontecer, quando já houvera prestado 20 meses de tropa.

Entretanto em Abril de 1965 e "por equivalência a seis meses consecutivos em Unidade Operacional, condição a que satisfaz para promoção ao posto imediato (sic)" , fui promovido a Senhor Furriel-Miliciano. Estava então em Tomar a preparar outros jovens, que afinal acabaram por ser os que fazendo parte da Companhia de Caçadores 1422, embarcaram comigo para a Guiné, em 18 de Agosto.

Quando digo "embarcaram comigo", em vez de "embarquei com eles", deixem que explique:
Quer o Comandante, quer os restantes Oficiais e Sargentos, haviam partido uma semana antes, de avião, ficando apenas connosco, um senhor Sargento-ajudante, (pessoa com alguma idade e peso e que era chefe de secretaria) e nós próprios, os Furriéis Milicianos e toda a restante e valorosa CCAÇ 1422 claro.
A ele pertenceria comandar-nos antes do embarque, no desfile perante as autoridades... perante os nossos familiares presentes. No último momento, nomeia-me para o fazer... ordens não se discutem... cumpri.

Correu lindamente, marchámos com garbo. Depois? Bom... depois a vinte e tal de Agosto de 1965 chegámos a Bissau... para ganhar a guerra e preparar zonas de turismo para que os vindouros ali passassem férias descansadas.

Não precisam agradecer.
Disse.

Veríssimo Ferreira

Abrantes
Foto: Região do Médio Tejo, com a devida vénia
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Nota do editor

(*) Vd. poste de 21 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12617: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (7): As localidades por onde passei, sofri e amei (Veríssimo Ferreira)

Último poste da série de 27 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12645: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (13): Mafra e Lamego duas cidades que me marcaram (Francisco Baptista)

sábado, 29 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10454: Do Ninho D'Águia até África (13): O Bóia (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (13)
O Bóia

Já lá ia mais de um ano de estadia na província.

A farda que usávamos era amarela, começando a aparecer tropa com roupa de diferente cor, um verde azeitona. Diziam que era feita de tecido melhor e que se adaptava mais ao clima tropical, podia ser verdade, mas estes novos militares logo foram baptizados com o nome de “Periquitos”. E alguns desses militares podiam ser pessoas com bastante senso nas palavras e com escola superior, mas isso não interessava nada, tudo o que pudessem dizer, não valia e não tinha qualquer senso, pois vinha da boca de um “Periquito”.

O Cifra tinha quase a certeza, mas podia estar enganado, de quem baptizou estes novos militares, foi o cabo “Bóia”, pois um dia quando chegou ao aquartelamento um Unimog carregado com alguns tropas vestidos com a farda verde azeitona, quando esses militares saltaram para o chão, o cabo Bóia, disse: Oh raio, parecem periquitos!

O nome pegou.

O cabo Bóia, em Portugal, era da região do Alentejo, falava devagar e com um sotaque bastante popular, que só ele sabia, era difícil de imitar. O seu vocabulário tinha um conjunto de palavras que só ele e mais uns quantos entendiam, e era conhecido por esse nome porque sempre que se aproximava a hora da refeição, dizia: Hei, compadres, está na hora da bóia.

A bóia, na sua linguagem, era a comida. Tinha um grande bigode, retorcido nas pontas, era tropa dos velhos, pois pertencia à tal companhia onde o capitão batia nos soldados e furriéis.

O Curvas, soldado atirador, alto e refilão, um dia na altura da refeição do meio dia, pega no recipiente onde vinha a comida para a mesa, que parecia uma bacia em alumínio, diz a respeito do tal capitão: Ca granda filho da puta! Se fosse comigo, enfiava-lhe com esta bacia cheia de merda nos cornos! Cabrão! Era assim o homem. Quando se lhe desprendia a língua, era melhor fugirem!.

Para nossa salvação andava sempre por perto o Trinta e Seis, soldado telegrafista, baixo e forte na estatura, que logo lhe disse:
- Cala-te homem de Deus, e tem respeito, pois isto é uma mesa onde todos comem.

Mas adiante, vamos à história. Havia uma pequena ponte, um pouco distante do aquartelamento, quem ia para o interior, creio que na estrada que ia dar à povoação de Cutia, que era guardada durante o dia por uma secção. Na dita altura das chuvas formava-se um grande pântano a que os militares chamavam bolanha sul, com alguns quilómetros de extensão, mas onde se transitava pela estrada de terra, que era um pouco mais alta, onde a água tinha pouca ou quase nenhuma altura, e quem conhecia o caminho ia e vinha sem qualquer problema. A zona onde estava localizada a ponte era seca.

Estes militares levavam comida para todo o dia, e para lá iam de Unimog, onde tinham uma espécie de pequena fortaleza montada, que era um abrigo feito com sacos de terra, coberto com uma estrutura de alguns troncos de palmeira e algumas folhas de zinco, que por sua vez estavam também cobertos de terra. Ali passavam o dia, e entre outras coisas, identificavam quem passava na ponte. Tinham aparelhagem de rádio e estavam em contacto, se fosse caso disso, com o aquartelamento.

Não muito distante havia uma pequena aldeia de naturais que trabalhavam nas terras pantanosas, ou seja a bolanha do arroz e criavam alguns animais, eram pessoas pacatas, pelo menos pareciam, não havia pessoas novas, eram só velhos e crianças, mesmo crianças. Havia até alguns militares que queriam fazer esta segurança à ponte, pois no regresso traziam aguardente de palma, que compravam, ou talvez não, na referida aldeia. O Bóia foi destacado, nesse dia, para ir com outros militares prestar segurança à referida ponte.

Tudo normal.

Chegam, inspeccionam o local, normalmente deixavam um sinal em certos pontos estratégicos para verem se alguém tinha usado a ponte ou a pequena fortaleza, durante a noite. Nesse dia, sim, tinham usado.

Havia sinal de pegadas, de sandálias que os militares conheciam, pois faziam parte da farda dos guerrilheiros, logo muito conhecidas.

Ficam com cuidado redobrado, comunicam ao aquartelamento o sucedido e recebem ordens de se manterem de olhos bem abertos, que alguma tropa iria já para lá, para reforçar a zona da ponte e talvez fazer uma patrulha mais aprofundada na zona.

O Bóia, com o cigarro no canto da boca, com o seu ar bonacheirão, com a mão direita, pois a esquerda segurava a G3, tira o cigarro da boca, molha os dedos com saliva, coloca de novo o cigarro na boca e retorcendo o seu grande bigode, diz:
- Deixa lá ver o que estes “compadres” andaram por aqui a fazer durante a noite?

Enquanto os militares se encontravam quase todos juntos a discutir a situação, o Bóia com passo lento mas firme, começa a atravessar a ponte de G3 na mão, pronta a disparar, quase com se andasse à caça aos coelhos, em alguma herdade lá no seu Alentejo, quando mais ou menos ao meio, mas mais perto do final, sente qualquer coisa a tocar-lhe a perna e a prender-lhe o movimento.

O pobre do Bóia, não viu mais nada. Sem querer accionou um engenho explosivo que lhe destruíu quase todo o corpo.

Morreu, tendo o seu corpo sido recolhido aos bocados. Mais dois soldados foram atingidos com alguns estilhaços. Quando chegaram os reforços, que aumentaram o andamento ao ouvirem o rebentamento do engenho explosivo, depararam com toda esta cena, onde parte dos soldados choravam e tentavam recolher os restos do corpo da pessoa a quem carinhosamente chamavam Bóia.

Quando chegaram ao aquartelamento, com o resto do corpo do Bóia, o Cifra tinha acabado de decifrar uma mensagem dirigida à companhia a que pertencia o defunto Bóia, comunicando que se deviam apresentar num dos próximos dois dias no comando territorial da provincia, na capital, a fim de embarcarem para Portugal, pois tinham completado o tempo de serviço, que na altura eram dois anos. Esperariam pela chegada da força militar que os vinha substituir naquele cenário de guerra, que tinha vindo no mesmo barco que os havia de levar de regresso a Portugal, levando o defunto Bóia dentro de um caixão.

Era esta a guerra onde estávamos envolvidos, onde não havia regras de sobrevivência, o militar estava exposto até ao último minuto da sua estadia, pois era substituído por outra força militar, em pleno cenário de guerra, não tinha nenhuma chance, pois mesmo que houvesse leis, não havia qualquer meios na capital da província de se restabelecer, uns dias antes de regressar à Metropole, como então se dizia.

Alguns apresentavam-se à família, no cais da Alcântara em Lisboa, com a roupa rota e suja, as botas também rotas, com o cabelo comprido, com grandes barbas e bigodes, os dentes negros, mas mesmo negros, vários insectos minúsculos em determinadas zonas do corpo, cara de selvagens, falando pouco, desconfiados, deprimidos, olhando sempre para o chão, algumas encurrilhas na testa, em sinal e na expectativa do pior, não queriam que lhes tocassem no corpo, admirados por verem tantas pessoas trajando civilmente, pensando que ainda estavam debaixo de um abrigo, que os guerrilheiros iam atacar, que o arroz que iam comer lhes fazia os intestinos andarem parados por dias, com dores constantes na região do estômago e que só de facto algum excesso de álcool, entre outras coisas, lhes fazia ter uma vida considerada “normal”.

A alguns, todos estes sintomas não mais sairam do seu corpo e passado quase cinquenta anos, os que ainda estão vivos, que são homens com um “H” muito grande, apresentam por vezes todo este aspecto, também por vezes alteram um pouco a sua voz de revolta, e algumas pessoas, das novas gerações, onde se incluem muitos políticos, ao verem-nos, viram a cara, riem-se baixinho, e dizem:
- Deixa lá esse desgraçado falar, pois aquilo é só stress e saudades da guerra.

Oxalá que o Curvas, alto refilão, ainda esteja vivo, mas que não leia este texto, porque depois de ouvir todas estas considerações do amigo e companheiro Cifra, é capaz de vir por aí e matar tudo e todos, como ele dizia, pois era a pessoa que mais bem preparada estava, naquele tempo, para enfrentar aquele conflito, pelo menos na linguagem.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10438: Do Ninho D'Águia até África (12): O Madragoa (Tony Borié)

domingo, 18 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19205: Blogpoesia (595): "Fardas e batinas...", "Romagem a Lisboa" e "Olho daqui Lisboa...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Fardas e batinas...

Fardas e batinas,
Vestes chiques,
Fraques de cerimónia,
Lunetas e óculos escuros,
Lantejoulas,
descem vaidosos as calçadas de Lisboa,
Chiado e Madragoa.
Espiolham as vitrines,
Mercam cravos e flores,
Tragam bicas e fumegam cigarros e cachimbos, pelos cafés,
Bons vivants,
Uns snobs.
E, na esquina,
empertigado,
Um homenzarrão,
Corda ao ombro,
É só chamá-lo,
Um bruta-montes,
Carrega às costas
O que for preciso,
Por uma migalha.
Pelas valetas dos passeios,
Escorre a chuva, leva tudo adiante,
Até ao Tejo.
E, na Praça nobre, dos ministérios,
Um Arco triunfa aos tempos,
Canta glórias e desditas,
Feitos idos.
Umas escadas leves, em mármore eterno,
Desce ao rio e lava os pés,
Olhando além.
Incansáveis, os eléctricos amarelados,
Trilham as linhas de aço,
Brilhando ao sol.
Fervilham de gente que não quer ficar.
É asim Lisboa, enquanto Deus quiser...

Ouvindo Carlos Paredes
Berlim, 14 de Novembro de 2018
7h15m
Jlmg

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Romagem a Lisboa

Afastaram-me de Lisboa as forças cegas do destino.
Vagueio perdido neste mundo.
Minhas raízes estão bem vivas.
Meus pés sangram de saudade.
Só de longe a longe lá regresso.
Nem chego a aquecer-me nos seus lençóis.
Tomo as malas e me ausento angustiado.
Foi assim traçado meu destino.
Desvarios de quem comanda nosso barco,
Atirando para o infortúnio da emigração,
Negando-lhe o direito de permanecer no seu torrão natal.
Só os desterrados sabem quanto dói
E a só temos uma vida para viver...

Ouvindo Carlos Paredes
Berlim, 17 de Novembro de 2018
8h7m
JLMG

********************

Olho daqui Lisboa...

Aqui de longe, olho para Lisboa e sinto saudades.
Daquele amanhecer suave ao sol nascente glorioso vindo do além.
Daquele manto extenso de casario em ondas largas de colinas.
Aquele formigar de gente pacata pelas ruas e avenidas descendentes e sinuosas,
de autocarro ou eléctrico, a caminho do trabalho.
Daquele espelho azul do magno rio, em constante correria que, prazenteiro, nos leva ao mar.
A incessante procissão de barcos-cacilheiros abraçando as duas margens.
As duas pontes longas levando e trazendo, num instante, gente nova.
Os braços divinos de Cristo-Rei a abençoar Lisboa e Almada.
Aquelas noitadas longas no mistério cativante das guitarradas.

Ouvindo Carlos Paredes
Berlim, 16 de Novembro de 2018
8h5m
JLMG
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19184: Blogpoesia (594): "Vasos de barro", "As notas da guitarra" e "Com granizo e trovoadas...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

sábado, 27 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22757: Agenda cultural (790): Camarada, se vives em Lisboa ou na Grande Lisboa, leva amanhá o(s) teu(s) neto(s) à Maratona de Robertos, no Museu da Marioneta... Eu levo a minha neta, que acabou de fazer dois anos..... (Luís Graça)

Teatro Dom Roberto, Porto. Com a devida vénia...


1. Ólh'óó Rrrrrrroberrrrto!!!
Maratona de Robertos


Lisboa, Bairro da Madragoa, Comvento das Bernardas
Endereço: Rua da Esperança 146, 1200-660 Lisboa

Domingo, 28 Novembro de 2021 |
Sessões contínuas :  das 11h00 às 18h00 | Aconselhado a famílias |
Entrada Livre! 

No dia 28 de novembro o Museu da Marioneta festeja 20 anos, mas festeja também a classificação no Inventário do Património Cultural Imaterial do Teatro Dom Roberto, uma das formas mais antigas e mais genuínas de teatro de marionetas português. 

Dom Roberto é direto e rude, mas também simpático e bonacheirão, criando grande empatia nos seus públicos!

Até meados do século XX, era comum encontrarem-se Robertos e as suas coloridas barracas nas ruas, praças, jardins e praias de todo o país. De carácter essencialmente popular e frequentemente ignorada pela maioria dos historiadores e investigadores das artes teatrais, o repertório do teatro de robertos era composto por textos de tradição oral, de sabor popular, com direito a muito improviso. 

Novos e velhos, crianças e adultos, acorriam aos primeiros sons agudos da palheta, prontos a deliciarem-se com os episódios cómicos que aqueles bonecos protagonizavam com ritmo e destreza.

No final do século XX, no entanto, esta forma teatral estava quase esquecida. Foi João Paulo Seara Cardoso, do Teatro de Marionetas do Porto, que primeiro percebeu a necessidade de preservar os Robertos, aprendendo a arte com o marionetista António Dias, ainda em atividade nos anos 80. 

Hoje, em Portugal, há de novo uma família de bonecreiros que percorrem o país com os seus ‘atores de palmo e meio’, as suas guaritas e a sempre característica voz de palheta.

No domingo dia 28 estarão reunidos no Claustro do Museu, para uma Maratona de Robertos. Venha celebrar connosco e assistir ao teatro de marionetas Dom Roberto – pelos roberteiros:

  • Fernando Cunha
  • Filipa Mesquita
  • Francisco Mota
  • João Costa
  • Jorge Soares
  • José Gil
  • Manuel Dias / Trulé
  • Marcelo Lafontana
  • Nuno Pinto
  • Raul Constante Pereira
  • Ricardo Ávila
  • Rui Sousa
  • Sara Henriques
  • Vítor Santa Bárbara 

Vd. também aqui a história do Museu e Página do Facebook do Museu da Marioneta 

 
2. O Teatro Dom Roberto  é um género de espectáculo, teatral, popular,  satírico, itinerante, de bonecreiros, também conhecido como "teatro de fantoches", destinado a todas as idades, mas que faz parte, muito em particular  das nossas melhores recordações de infância...  Era então um dos grandes divertimentos populares, até cair hoje (quase) no esquecimento... Foi recentemente  inscrito no Inventário de Património Cultural Imaterial Português.

Nesse tempo, em que éramos putos,  ainda  não havia a televisão, nem a Net nem muito as redes sociais. Víamos os "robertos", literalmente maravilhados, fascinados, boaquiabertos, assombrados, divertidos, sentados no chão, à volta de uma "barraquinha de feira", montada nalguma praça, jardim,  feira, terreiro de festa ou praia das nossas santas terrinhas...  Infelizmente, esses espetáculos, sazonais, não eram tão frequentes quanto isso...

Citando o sítio das Marionetas do Porto: “Nos finais dos anos 50, ainda os fantocheiros populares calcorreavam terras portuguesas por festas e romarias, divertindo o povo de pequenos e grandes que acorria a ver os seus espetáculos. Os pequenos bonecos de madeira e trapos bailavam caprichosamente ao som dos gritos estridentes produzidos pelo fantocheiro e tudo terminava invariavelmente pela tradicional cena de pancadaria, para grande alegria do público.

"Hoje, o Teatro Dom Roberto é apenas uma imagem feliz da infância de alguns, um traço  vivo de uma preciosa herança cultural que se vai esvaindo com os tempos da 'modernidade' ".
 
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Nota do editor:

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14697: Inquérito online: "Os 'nosso filhos da guerra' deveriam poder ter acesso à nacionalidade portuguesa"... A grande maioria (84%) dos respondentes (num total de 94) está de acordo


Foto de Júlio Tavares (1945-1986), publicado no blogue da sua filha Marisa Tavares, Are  you my brother ? (http://omadragoa.blogspot.com/ ) (*).

 O Júlio Tavares, mais conhecido por "O Madragoa",  foi sold cond auto, CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69), a mesma unidade a que pertenceu o nosso saudoso Victor Condeço (1943-2010).

O blogue foi criado em 2010, com o objectivo de encontrar um irmão  guineense, um filho que o seu pai terá tido em Catió, conforme confissão feita por ele na hora da sua morte, em 1986. Qualquer informação sobre o paradeiro do seu meio-irmão guineense (,hoje com 46/47 anos, se  ainda estiver vivo,) pode ser enviada para o email da Marisa Tavares, hoje canadiana,  e de quem também já não temos notícias há muito:  mt_iphone@rogers.com



I. SONDAGEM: OS "NOSSOS FILHOS DA GUERRA" DEVERIAM PODER TER ACESSO À NACIONALIDADE PORTUGUESA


Resultados finais (n=94):


1. Discordo totalmente  (n=1) / 2. Discordo  (n=1)  (2%)

3. Não discordo nem concordo / Não sei  (n=13) (14%)

4. Concordo (n=38) (40%)


5. Concordo totalmente  (n=41) (44%)


A sondagem fechou às 22h do dia 30 de maio p.p.


II. Comentários,  para quê ? 

A grande maioria dos amigos e camaradas da Guiné, leitores deste blogue, estão de acordo quanto á possibilidade de atribuição da nacionalidade portuguesa àqueles/as dos/as filhos/as, concebidos/as durante a guerra colonial (grosso modo, entre 1961 e 1974), filhos de pais, militares portugueses,  e de mães guineenses.

A nossa sondagem parece ser conclusiva: 84% dos respondentes (numa amostra não aleatória de 94 votantes) está de acordo com a proposição, segundo a qual "os 'nossos filhos da guerra' deveriam poder ter acesso à nacionalidade portuguesa", se assim o desejarem ou requererem.

Os também conhecidos como filhos do vento poderão ter hoje entre 40 e 50 anos e, no caso da Guiné-Bissau, não deverão ultrapassar os 500 indivíduos de ambos os sexos, a viver em Portugal e a Guiné-Bissau, segundo estimativas da Conservatória de Registo Civil de Bissau que recebe os pedidos de nacionalidade com base na paternidade portuguesa (Fonte: Catarina Gomes, "Embusca do pai tuga", Público, 14/7/2013).

 A Associação "Fidju di Tuga", com sede em Bissau, que luta pela defesa dos direitos destes homens e mulheres, achava a estimativa conservadora. O mesmo pensam outros observadores (e atores) da realidade guineense como o nosso amigo Cherno Baldé.

A jornalista Catarina Gomes, que é uma profunda conhecedora deste dossiê, recorda a situação, algo similar, dos filhos dos soldados americanos no Vietname:

(...) "A história de guerras em que os combatentes que vão lutar fora do seu país deixam filhos não é uma realidade nova. No século XX, há, por exemplo, casos de alemães que, na Segunda Guerra Mundial, deixaram filhos de francesas que depois foram ostracizadas.

"Nos Estados Unidos, os filhos dos soldados americanos com mulheres vietnamitas até têm nome, chamam-lhes amerasians (fusão das palavras americanos com asiáticos). De tal forma o assunto se tornou público, que estes 'filhos do pó', como eram conhecidos no Vietname - cresceram muitos deles em orfanatos ou tornaram-se sem-abrigo - ganharam direito ao estatuto de imigrante americano de forma automática. Em 1987, o Amerasian Homecoming Act deu-lhes esse direito, sem necessidade de haver provas de paternidade, bastava terem a mínima presença de traços físicos ocidentais. 

"Ao abrigo da lei, emigraram para os Estados Unidos 26 mil filhos e mais 75 mil dos seus familiares.
Um estudo publicado no Journal of Multicultural Counseling and Development sobre este universo concluiu que 76% desejavam conhecer os seus pais, mas só 33% sabiam os seus nomes. Outros 22% tinham tentado estabelecer contacto, mas só 3% tinham tido a oportunidade de conhecer os seus pais biológicos" (...) (Fonte: Catarina Gomes, "Embusca do pai tuga", Público, 14/7/2013).

Pode perguntar-se: amigos e camaradas, o que é que o nosso blogue pode fazer, mais e melhor, por estes "nossos filhos da guerra" ? Para já vai dando visibilidade a um problema que era também, até há alguns anos atrás, mais um dos "esqueletos guardados no armário" da história da guerra colonial.

A Catarina Gomes tem um endereço de email expressamente destinado ao envio de informações julgadas relevantes para "a busca destes filhos de ex-militares portugueses":
filhosdovento@publico.pt.

O seu trabalho de investigação jornalístico já se estendeu entretanto também a Angola. No dia 29 de maio último, ela voltou á Guiné-Bissau, "por sua conta e risco". Ou seja, ele já não é apenas uma jornalista, é uma também  ativista na luta pela defesa dos direitos destes homens e mulheres, "nossos filhos da guerra",  que carregam às costas um passado de humilhação. discriminação e sofrimento. Na realidade, é esperado que os governos de Portugal e da Guiné-Bissau possam fazer algo mais por estas vítimas, colaterais, da guerra.

Apraz-nos registar, por outro lado, que a reportagem Filhos do Vento, de Catarina Gomes (texto), Ricardo Rezende (vídeo) e Manuel Roberto (fotografia), foi distinguida, em 2014, com o Prémio Gazeta na categoria Multimédia, atribuído pelo Clube de Jornalistas.

E, por fim, recorde-se que não são apenas os filhos (guineenses) a procurar o "pai. tuga".. São também os irmãos (portugueses) a procurar os irmãos guineenses... Recorde-se aqui o caso, comovente,  da Marisa Tavares, que vive no Canadá (*). O seu blogue ainda continua ativo; Are you my brother ? [Em português, és meu irmão ?], sinal de que ainda não encontrou o irmão de Catió, que a estar vivo deverá ter 46/47 anos...  O pai, ex-sold cond auto, esteve em Catió e Ganjola, entre 1967/69 (vd. foto acima).

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quarta-feira, 20 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23446: Memórias da minha tropa: localidades por onde passei, que amei e onde sofri: de Ponte de Sor a Mafra, Amadora, Lamego, Tancos, Lisboa, Abrantes, Tomar... até chegar a Bissau (Veríssimo Ferreira, Ponte Sôr, 1942 - Loures, 2022)


Veríssimo Ferreira, soldado instruendo: BI militar, 
emitido pela EPI (Escola Prática de Infantaria), 
Mafra, em 25 de abril de 1964.


Verísismo Ferreira, furriel miliciano: BI militar, 
emitido pela CCS / Quartel General, 
 CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné), 
Bissau, 14 de julho de 1966.



Guião da CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, "Bravos e Serenos"


1. Há três dias, em 17 do corrente, às 22h19, a sua filha Cristina F. Titau já temia e nos fazia temer o pior:

O meu pai está neste momento a lutar pela vida nos cuidados intensivos, ligado a um ventilador.

Para o meu pai "os melhores anos da sua vida" foram os que passou na tropa, na Guiné. Não pela guerra, mas por ser jovem, forte e pela camaradagem.
 
As probabilidades estão contra ele mas rezo para que ganhe mais esta batalha. Peço aos seus camaradas na honra de ter servido o país que rezem também comigo.

O meu pai é Veríssimo Ferreira.

A ontem, às 12h54, sabíamos qual era o doloroso e irrevogável desfecho (*):

O meu pai faleceu esta manhã. Quando souber do funeral, aviso. Obrigada a todos que foram amigos dele. ELA 
Esclerose Lateral Amiotrófica ]+ COVID, dificilmente podia ser diferente...

Recordem-no e guardem-no no coracão, que ele tinha medo da solidão... Nunca estarás só,  paizinho. Andas sempre em nós. 

Segundo informação da filha, Cristina Paula, a cerimómia funerária será realizada amanhã, quinta feira, dia 21. O corpo do nosso camarada Veríssimo Ferreira ficará em câmara ardente na capela da casa mortuária de Loures, a partir das 10h00. Às 15h15 será celebrada missa de corpo presente, seguindo o funeral para o cemitério de Loures.   

Como recorda a Cristina, "o pai nasceu a 21, casou a 21, partiu para a Guiné a 21 e voltou a 21, e fecha-se assim o ciclo deste modo no dia 21".

Vamos nós, seus camaradas, recordá-lo com saudade e honrar a sua memória. (LG)

2. Ainda antes do seu corpo descer à terra, vamos aqui lembrar o nosso querido amigo e camarada Veríssimo Ferreira, através da republicação, revista, de dois postes em que ele, com o seu típico bom humor de alentejano, recordava os seus primeiros vinte meses de tropa (a que se seguiram outros tantos de guerra, na Guiné, entre agosto de 1965 e abril de 1967). 

O Veríssimo Ferreira:

(i) nasceu em Ponte Sôr, distrito de Portalegre, Alto Alentejo,  em 21 de fevereiro de 1942;

(ii) fez o Curso de Sargentos Milicianos (CSM), com a recruta em Mafra e a especialidade de atirador de infantaria em Tavira, em 1964;

(iii) foi furriel miliciano, CCAÇ 1422, subunidade do BCAÇ 1858: mobilizada pelo RI 15 (Abrantes), partiu para o TO da Guiné em 18/8/65 e regressou a 15/4/67, tendo passado por Bissau, Bula, Farim, Mansabá, Saliquinhedim / K3;

(iv) foi o primeiro (e único) representante da CCAÇ 1422, no blogue, onde tem mais de 7 dezenas de referências;

(v) era (e é) o membro n.º 581 da  Tabanca Grande, onde ingressou em 3 de outubro de 2012;

(vi) passa a figurar na já longa lista (alfabética, ver coluna estática, no lado esquerdo do blogue) dos 121 amigos e camaradas da Guiné que "da lei da morte já se libertaram".


3. Memórias da minha tropa: localidades por onde passei, que amei e onde sofri: de Ponte de Sor a Mafra, Amadora, Lamego, Tancos, Lisboa, Abrantes, Tomar... até chegar a Bissau

por Veríssimo Ferreira (1942-2022)


E vai daí... Por edital, soube que me deveria apresentar em Mafra, na Escola Prática de Infantaria (EPI), a fim de frequentar o Curso de Sargentos Milicianos (CSM).

Saí de Ponte de Sôr, pela matina e no comboio. Chegado a Lisboa, pedi informações para ir para o Martim Moniz, local donde sairia a camioneta para Mafra.

A confusão, nesta louca cabecinha, era mais que muita (primeira vez na grande cidade) e, habituado que estava a ver muita gente junta aquando das feiras, pensei:
— Há por aqui uma como a nossa de outubro!!!

Bom, mas lá fui ter e parti para o destino... E cheguei enquanto no entretanto comi as duas sandes que a minha querida mãe preparara para a viagem.

Mafra, surpreendeu-me, quando logo ali mirei o Mosteiro.
— Um quartel? — duvidei.

Na entrada, havia um enorme grupo de juventude de cabelinhos cortados à inglesa curta e que esperava,  e a eles me juntei.

Lá chegou a minha hora e,  preenchidos que foram, uns papéis, mandaram-me para o alfaiate que tirava medidas olhando-nos de alto abaixo, o que significou que recebi umas roupitas bem bonitas por acaso: um  bivaque onde cabiam duas cabeçorras, duas camisas cinzentas n.º 54 (e eu até aí, usava 42), dois pares de calças que me chegavam dos pés à cabeça, duas botas 47 (e eu calçava 41)... e por aí fora.

Na caserna, assim chamavam ao quarto luxuoso, um 5.º andar e 183 degraus para subir, onde me colocaram, e onde, para me não sentir só, deixaram-me acompanhado por mais 151 recrutas que se tornaram meus amigos.

No dia seguinte reuniram-nos num espaço rectangular, que ainda hoje existe, lá atrás do convento e a que chamaram (e chamam) "a parada".

Éramos, talvez uns três mil, que sairiam dali como oficiais ou sargentos milicianos. Juntaram-nos depois, sentados no chão,  e rodeando o oficial instrutor, cá fora,  ali ao lado esquerdo de quem entra, e esclareceram-nos sobre as normas em vigor, para contactos eventuais, com os residentes civis,  e também como distinguir os postos militares.

Ficámos a saber, que a coisa começava desta forma: o início e por aí fora: recrutas; soldado; 1.º cabo; furriel; sargento; aspirante; alferes; tenente; capitão; etc., etc., etc.; general; marechal; e, finalmente, 1.º cabo miliciano...

Contentíssimo fiquei. Então não é, que o filho do meu pai iria alcançar o mais alto posto, lá para agosto de 1964 e já especialista de infantaria?!... E 1.ª classe em metralhadora Dreyse 7,9? E 3.ª classe em espingarda mauser 7,9? E 1.ª classe em comportamento? E atirador, terminada a instrução complementar?

Aparvalhado ainda, com o facto de ontem ter visto, Lisboa, aviões dos grandes  e barcos a atravessar um rio a que ouvi chamarem Tejo, e ter ainda a possibilidade de (e também, pela primeira vez) poder ir ver o mar, as praias da Ericeira e mais agora esta notícia, plena de responsabilidades... Olhem, fiquei de tal maneira entontecido  que julgo não ter voltado a ser o humano normal de antes.

Continências e divisas, foram-nos sabiamente mostradas, bem como o manejo duma espingarda, o seu desmanchar em bocados  e a consequente limpeza com o escovilhão.

No 3.º dia, e após o pequeno almoço, começou a preparação para que pudéssemos vir a ser militares disciplinados, bravos, heróicos e que, acima de tudo, voltássemos inteiros: corridinhas na tapada, rastejar no meio da trampa, percursos de combate, saltos para o galho, jogos de brutobol, tiro na carreira do dito, actividades desportivas com vários empecilhos no meio, audição dos gritos estridentes e ameaçadores dos monitores do pelotão... Enfim, toda uma panóplia útil que só mais tarde entendemos ter sido preciosa para que aqui e agora estejamos ainda semivivos e, ah!,  sempre acompanhados pela fiel Mauser e de capacete enfiado, no local próprio de enfiar capacetes.

Regressávamos depois e quase na hora do repasto. Íamos à suite tomar um banhito rápido e mudar de fato. Toca a corneta e ala que são horas de almoço.

Boas refeições, sim senhor e até vinho havia e da cor que entendêssemos, embora eu achasse que aquilo era mais água e cânfora, substância que, e ao que diziam, transformava em eunucos, embora provisoriamente, quem bebia a zurrapa.

A 4 de julho de 1964, após portanto 5 meses e 10 dias e com aproveitamento e todos os créditos alcançados, consideraram-me então, apto, ou seja, vais tirar a especialidade de "atirador" e, como ordens não se discutem, decidi-me e fui para Tavira

Terra linda que continuo a visitar. Linda praia, onde até a água era e é, quente, comparada com a da Ericeira, de que tinha provado o sal. Boas gentes, embora e nesse período, as tenha considerado más com'ás cobras, tendo em conta que quando os pobres militares, sedentos e até com alguma fomita, colhíamos algumas amêndoas, alfarrobas ou figos, ou ainda, lhes bebíamos umas gotas nos escassos poços existentes, iam de imediato participar ao quartel e algumas vezes lá tínhamos que desembolsar os 25 tostões para compensar o prejuízo.

A miséria patrimonial deste povo algarvio era notória e justificava a queixa. O turismo mal começara e aquelas frutas e água eram o seu ouro.

No que se refere à instrução militar, foi o acrescento próprio, para quem já estava treinado.
Novidade apenas para o "deitá...á...á...r!" nas salinas. Lindo de se ver, creiam. E nós, vestidinhos, lavadinhos e engomados, calçadinhos, botas engraxadas e reluzentes, espelhando o sol quente desse mês de julho, obedecíamos, está claro, só para não nos considerarem desobedientes.

Saíamos enlameados, cheios de lodo até aos cabelos, mas mais fortes alguns, aqueles que engoliam alguma distraída enguia. Até nisso, a sorte me foi madrasta já que o único brinde que me calhou foi uma enorme serpente que resolveu aninhar-se no bolso esquerdo das calças.

À tardinha dispensavam-nos e podíamos então confraternizar mas as tascas locais, onde sempre comíamos generosas doses de grandes conquilhas, ou jaquinzinhos atados pelo rabo e em grupos de 5 ou 6, regados com aquele saboroso tintol carrascão de tal forma que até os dentes ficavam coloridos.

Alguns mais afortunados, proporcionavam, a outros, passeios e assim conheci, Quarteira, Armação de Pera, Albufeira e Faro.

E em 30 de agosto de 1964, fui promovido a 1.º cabo miliciano, pois então... Começa aí um percurso agitado, com constantes mudanças, assim estilo "faça férias cá dentro" e foi o que me valeu para ficar bem a conhecer algum deste País, que eu julgava ser só o Alto Alentejo:

1.º - Amadora (Regimento de Infantaria 1);
2.º - Lamego (Rangers);
3.º - Tancos (Minas e Armadilhas)
4.º - Lisboa (Grupo C. Trem Auto)
5.º - Abrantes (Regimento Infantaria 2)
6.º - Tomar (Regimento Infantaria 15)
7.º - Bissau e o resto (CCAÇ 1422).

À Amadora cheguei... nem ao almoço tive direito e mandam-me avançar, de forma a estar, e sem falta, no dia seguinte em Lamego.

Voei para Sta. Apolónia, fui para o Porto, daqui para a Régua e o certo mesmo é que às 8,30 entro no novo poiso.

Bambúrrio,  dei logo de caras,  à porta de armas, com um herói da minha terra, combatente já com uma comissão prestada em Angola, 2.º sargento e monitor agora das tropas a preparar. Trocámos abraços, continências e amigáveis palavras, e logo ali ele próprio se disponibilizou para me ajudar no que eu precisasse.

A caserna era óptima e fiquei em lugar privilegiado de cama. Fora dos últimos a chegar e não houve hipótese de arrebanhar melhor. Havia só que subir três beliches, até chegar ao 4.º,  onde dormia e com uma vista fantástica para os barrotes em madeira, que até me davam para estender a roupa molhada e esta, por sua vez, passava as gélidas noites, a afagar-me a tromba, durante os raros momentos que ali estacionei, pois que os treinos eram constantes, a qualquer momento,  prolongados, estafantes...

Foram tempos duros, mas uma óptima preparação para as dificuldades que vieram depois. Ficou-me gravada, a frase: "Nunca se sabe", resposta que sempre ouvíamos a qualquer pergunta que fizéssemos.

Lá de quando em quando, também nos convidavam a ir até lá abaixo à City e então era um fartote... Que belas pingas, bom presunto (coisa da qual eu já ouvira falar mas não provara qu' a crise abundava com'agora) e até as pessoas eram simpáticas prá rapaziada fardada.

No aspecto da preparação militar, gostei manning d'atravessar o rio dum lado pró outro, agarrado a uma corda e com os pés assentes noutra e a água lá em baixo, revolta com'ó caraças fez-me perguntar a mim próprio: 
 —  Porqu'é que não trouxeste o calção de banho em vez da farda de trabalho?

Tancos desejava-me ardentemente e as Minas e Armadilhas que as amasse... e a Barquinha ali tão perto e com tão boa comida e melhor buída...

Recordo com alguma emoção, convenhamos, aquele dia em que cá em baixo, junto ao Castelo de Almourol, me pediram atenciosamente para experimentar um pedaço de massa explosiva, a que chamavam farinheira. Colocada que foi, debaixo dum pedregulho de todo o tamanho, a que juntei depois um detonador, mais um cabo eléctrico com 50 metros que trouxe até cá ao alto e liguei a uma caixinha com alavanca que pressionei...

O estardalhaço do rebentamento foi impressionante, levantei a cabeçorra e é nessa altura que vejo no ar aquele monstro redondo a dirigir-se a jacto, precisamente para o local onde me encontrava e a quem eu disse:
— Trá-la-rai, la-rai, la-rai... falhaste, pá, paciência!

Acabara, sim, por derrubar uma pobre e velha árvore centenária.

Passou-se, e eis senão quando, me vejo a caminho de Lisboa, Avenida de Berna, Grupo de Companhias Trem Auto, o que me confundiu do porquê. E não só a mim, também o senhor sargento da Secretaria se espantou e exclamou:

—  Ora , porra, pedi um cabo miliciano condutor e mandam-me um atirador?! Mas... — continuou ele — aguente aí, ó patrício, você é da Ponte Sôr,  eu sou de Alter, temos de resolver isto.

E, após perguntar-me se conheço a capital e eu respondido "negativo", decidiu que eu devia ficar por ali, até que fosse rectificado o lapso, o que deveria demorar um mês.

Sem função atribuída, saía, à civil, de manhã e voltava para dormir, às vezes, num quarto com mais sete militares e cinco ratazanas, das maiores que já vi.

Turismei... Vi cinema no Piolho, Condes, Éden, S Jorge... Conheci, a desoras, as boas zonas: Intendente, Cais Sodré, Bairro Alto, Alfama, Mouraria, Madragoa... Vi campos de futebol, com relva imagine-se... O aeroporto, Cabo Ruivo e os hidroaviões, comboios em Santa Apolónia e Rossio... Fui a Cacilhas...  Fui ao Jardim Zoológico, Parque Mayer, Parque Eduardo VII, Feira Popular... Comi bifes na Solmar, Portugália, Império, Ribamar..., sopa de marisco na Rua de S. José, iscas na Travessa do Cotovelo,  bacalhau com grão no João do Dito... Bebi na Ginginha e no Pirata e uns tintos no Quebra Bilhas...

Até que um dia me transmitem:
— Vais para Abrantes.
Bati o pé e disse:
— Não vou... Não vou... Não vou... 
E fui.

Em Abrantes, estava mais perto de casa, o que me agradou. Lá se foi passando o tempo e coube-me ajudar o oficial instrutor, ensinando novos militares. Por que alguns de nós, os recentes cabos milicianos, estávamos já a ser mobilizados, fui-me preparando. Contudo, tal mobilização só veio a acontecer, quando já houvera prestado 20 meses de tropa.

Entretanto em abril de 1965 e "por equivalência a seis meses consecutivos em unidade operacional, condição a que satisfaz para promoção ao posto imediato (sic)" , fui promovido a senhor furriel miliciano. Estava então em Tomar a preparar outros jovens, que afinal acabaram por ser os que, fazendo parte da Companhia de Caçadores 1422, embarcaram comigo para a Guiné, em 18 de agosto desse ano.

Quando digo "embarcaram comigo", em vez de "embarquei com eles", deixem que explique: quer o Comandante, quer os restantes oficiais e sargentos, haviam partido uma semana antes, de avião, ficando apenas connosco, um senhor sargento-ajudante, (pessoa com alguma idade e peso e que era chefe de secretaria) e nós próprios, os furriéis milicianos e toda a restante e valorosa CCAÇ 1422, claro.

A ele pertenceria comandar-nos antes do embarque, no desfile perante as autoridades e perante os nossos familiares presentes. No último momento, nomeia-me para o fazer... Ordens não se discutem, cumpri.

Correu lindamente, marchámos com garbo. Depois? Bom...,  depois a vinte e tal de agosto de 1965 chegámos a Bissau, para ganhar a guerra e preparar zonas de turismo para que os vindouros ali passassem férias descansadas.

Não precisam agradecer.
Disse.
Veríssimo Ferreira (**)

[ Seleção a partir dos postes P12617, de 21/1/2012, e P12649, de 28/1/2012 / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
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Notas do editor:


(**)  Vd, também os primeiros postes da série "Os melhores 40 meses da minha vida";