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quinta-feira, 29 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P925: A formação de companhias de milícias em Bambadinca (J. L. Vacas de Carvalho)


Guiné-Bissau > Zona Leste > Estrada Xime - Bambadinca > Carreira de tiro > 1971 > O Alf Mil Cav José Luís Vacas de Carvalho, comandante do Pel Daimler 2606, foi também instrutor de tiro de "duas ou três companhias de milícias", numa altura em que aumentava a escalada da guerra e se intensificava o esforço de africanização das NT.
"Eu estou atrás do General Spínola. Ao meu lado direito está (parece-me) o Fabião e logo a seguir o Polidoro Monteiro. E atrás, de óculos escuros, parece-me ser o Tomé".

Foto: © J.L. Vacas de Carvalho (2006]


Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 > O Alf Mil Cav J. Vacas de Carvalho, comandante do Pelotão de Reconhecimento Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/71), à chegada de uma coluna logística ao Xitole.

Foto: © Humberto Reis (2006)
Texto do Vacas de Carvalho (conhecido, entre os amigos, por Zé Luís):


Para vossa Informação, fui instrutor de tiro, de 2 ou 3 companhias de milícias, em 1972. Vou ver se descubro, uma foto minha com o General Spínola. A carreira de tiro era no caminho do Xime, aproveitando-se um desterro quando foi feita a estrada alcatroada para o Xime.

Não sei se consegues ver alguma coisa. A foto é já antiga, como podes calcular. Mas se reparares, eu estou atrás do Gen Spínola (1). Ao meu lado direito está (parece-me) o Fabião e logo a seguir o Polidoro Monteiro (2). E atrás, de óculos escuros, parece-me ser o Tomé (2).

E quando quizeres aparecer por Montemor-O-Novo para tomar um copo com o [Paulo] Raposo, é só dizeres. E isto é extensivo a todos.

Um abraço
J. Vacas
PS - O Pelotão Daimler 2206 ( mais conhecido entre o IN pelas Tartarugas de Bambandinca) teve como unidade mobilizadora o RC 6, no Porto e chegou à Guiné no dia 6 de Janeiro de 1970. Chegou no navio Uíge e partiu de avião (um dos primeiros) em 14 de Dezembro de 1971. Um abraço do Zé Luís

____________

Notas de L.G.

(1) É visível o distintivo da arma de cavalaria na boina do Vacas de Carvalho que, para além disso, usava bigode.

(2) O Polidoro Monteiro era o comandante do BART 2917.

(3) Major Mário Tomé. DE 1970 a 1972, comandou, como capitão, a CCAV 2721 (Olossato e Nhacra). Um dos seus alferes era o nosso Paulo Salgado, actualmente a exercer funções, como cooperante, na administração do Hospital Nacional Simão Mendes, em Bissau: vd post de 20 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCI: CCAV 2712 (Olossato e Nhacra, 1970/72)

sábado, 27 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10580: Memória dos lugares (193): O inferno de São Domingos, em março de 1972, ao tempo da CCAV 3365 / BCAV 3846, Os Quixotes (Bernardino Parreira / Plácido Teixeira)








Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Meados de 1972 > CCAV 3365, Os Quixotes (Domingos,1971/1973) > Testemunhos do "inferno" que se viveu em São Domingos, em resultado de vários dias de ataques do PAIGC

Fotos : © Plácido Teixeira / Bernardino Parreira  (2012). Todos os direitos reservados



Bernardino Parreira
1. Mensagem do nosso camarada Bernardino Parreira, na sequência do poste P10525, de que lhe enviei uma cópia (*)


Data: 16 de Outubro de 2012 14:31

Assunto:  Guiné 63/74 - P10525: Um história do artilheiro de Gadamael, Vasco Pires (...) 

Caro amigo, Luís Graça

Aí envio essas fotografias de meados de 1972, que me foram facultadas pelo meu camarada e amigo Plácido Teixeira, que cumpriu toda a comissão em S. Domingos,[na CCAV 3365,]  desde Maio de 1971 a Março de 1973, e que ilustram bem o estado em que ficou o aquartelamento de S. Domingos após mais um ataque ao quartel que durou alguns dias. 

Conforme consta num relato efectuado pelo meu camarada e amigo Plácido Teixeira, que já vos facultei, em que o mesmo manifestava agradecimento ao General Spinola pela visita que fez àquele aquartelamento na sequência desses episódios.(**)

Refiro ainda que à data já não me encontrava lá, em virtude de no princípio de 1972 ter sido destacado para a companhia africana, CCaç 16, sediada no Bachile -Teixeira Pinto, onde acabei a comissão. Mas recordo-me de muitos ataques ao quartel enquanto lá estive, tendo sentido grande alivio quando saí de lá, e parti preocupado com os camaradas que lá deixei a ferro e fogo.


Enquanto estive em S. Domingos vi e vivi situações de guerra e nunca me senti num "resort". No período que lá estive, os Furrieis dos Obuses eram os meus amigos Pimenta e Rebelo. Tudo isto pode ser testemunhado pelos meus camaradas da CCAV 3365 [, Os Quixotes].

No entanto, regozijo-me que a situação estivesse calma no período em que o Alferes Vasco Pires lá esteve. Ainda acrescento ter conhecimento que, depois da minha saída de S. Domingos, o meu amigo Furriel Pimenta, dos Obuses, ficou gravemente ferido numa operação no mato, tendo sido evacuado para Lisboa.

Um abraço

Bernardino Parreira

2. Mensagem do Vasco Pires (*):


Caro Luís,

Muito obrigado pelo informe. Li o depoimento do nobre camarada Bernardino Parreira, e conclui que devemos ter estado lá em datas diferentes, pois não tenho memória de nenhuma flagelação, tão pouco me lembro de ter havido um disparo dos nossos obuses. A única hipotética acção seria uma pretensa operação perto da fronteira, para onde o Major de Operações pretendia levar os obuses. Ora a ordem do Comando do GAC 7 era de que os obuses não deveriam sair nunca do aquartelamento, se o Comando da unidade a que estávamos adidos insistisse na saída, deveria ser dada ordem por escrito, e, quando eu solicitei essa ordem, ficou por isso mesmo. Creia-me,  caro Luis, que na minha memória, a palavra "resort", não é exagero, excepto, que a essa data, por direito, já devia estar em casa. abraço, VP

3. Comentário do L.G.:

Meu caro Bernardo, gostaria que transmitisses ao teu amigo e nosso camarada Plácido Teixeira o meu desejo de o ver mais perto de nós, sentado sob o poilão mágico e fraterno da nossa Tabanca Grande. No caso dele, basta-lhe mandar as duas fotos da praxe, uma do antigamente e outro do agora. Fazes isso por todos nós ?... Um abração. LG (***)

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10525: Um história do artilheiro de Gadamael, Vasco Pires, à beira da peluda, no 'bem-bom' de São Domingos... (Vasco Pires, Brasil)



Plácido Teixeira (Cortesia do blogue Luar da Meia Noite)


(**) Reproduz-se, de novo aqui, o texto escrito por Plácido Teixeira, da CCAV 3365 / BCAV 3846, colocado em S. Domingos,1971/1973, e que vive atualmente nos EUA, em Boston. [O  BCAV 3846, 1971/73,  era composto pelas CCAV 3364 (Ingoré), CCAV 3365 (S.Domingos) e CCAV 3366 (Suzana)].

(..:) Senhor Spínola... sim, Senhor, porque outros tempos vão longe! Mas,  Senhor Spínola, com muito respeito eu digo e escrevo o seguinte:

Muito obrigado pelas palavras que proferiu uma vez em S. Domingos, para uma Companhia abusada, e maltratada e deitada ao abandono. Lembro-me que uma vez, num horrível mês, do ano de 1972, a nossa Companhia foi um alvo, uma carreira de tiro. Sim, uma carreira de tiro e nós o alvo!!! Era bombardeamento diário. Não havia comida, não havia bebida ou até luz.

Lembro-me que andava a passar uma ronda e fomos apanhados no meio do campo de futebol. Todos saltámos do Jeep, uns para a direita, outros para a esquerda. Como fomos apanhados no meio do campo de futebol, a vala e os abrigos estava muito longe. Corri e cheguei finalmente a vala, sem arma, sem sapatos e sem oculos! Bonito para a minha defesa. Mais uma vez a ideia era sobreviver. Havia fumo por todo o lado. Como tinha chovido, na vala era só lama. Não havia luz e com o fumo nada se via para fora da vala. Era até impossível por a cabeça de fora. O tiroteio do outro lado do arame era intenso. Constou que estávamos a ser atacados com bombas de fumo e que até já tinham entrado para dentro do "quartel".

Ficámos toda a noite nos abrigos. Mesmo após o tiroteio ter parado, estava tudo cansado e desmoralizado, sabe-se lá até com que ideias... Sabíamos que do lado de fora do arame, o ataque estava bem organizado e como tal para sobreviver não havia que dar chances ou oportunidades.

Na manhã seguinte com a luz do dia só se via destruição. Poucos foram os que se aventuraram para fora dos abrigos. No entanto como era normal principiaram os boatos... o Jeep está destruído... o bar está acabado... ha dois mortos... há inúmeros feridos... na enfermaria só há sangue etc. etc.

Foi bombardeamento diário durante muitos dias. Era afinal S. Domingos. Era a razão pela qual a sede do Batalhão foi para lugar seguro. Foi assim o nosso pesadelo!

Durante os ataques e certas vezes podia-se ouvir o outro lado, sabiamos portanto que eles não estavam longe, e que afinal eram seres humanos como nós, só que defendiam a sua terra a qual não nos pertencia. Eles tinham razão. Nós éramos invasores, éramos seres humanos como eles, com pais e irmãos, alguns casados e com filhos. Ficámos esgotados e sem energia para sobreviver, água não havia a não ser a da chuva, comer não havia, e munições também estavam a esgotar rápido.

A lama acabou por secar e as pernas foram ficando presas como no cimento. As armas, muitas não trabalhavam de sujidade. Estávamos deitados ao abandono e à mercê da sorte ou do destino.

Não veio ajuda... nem do ar, nem por terra, nem tão pouco por água. Esperávamos somente ajuda, mas do Céu. Mais um dia e seríamos todos mortos ou prisioneiros tal foi essa semana maldita.

Os aviões não podiam vir, pois eles estavam tão perto, corriam o risco de ser também feridos ou mortos. Helicópteros não vinham mandar mantimentos, medicamentos e o necessário, pois seriam alvejados... estes foram os boatos!.

Finalmente ao fim de uma semana, fomos ajudados. Talvez tenha sido por Deus... Como ratos saímos das valas. A cara estava amarela, a barba enorme as roupas rasgadas, e havia lama por todo o lado e até ao cabelo.

O choque final foi saber quem ficou ferido, quem morreu etc.

Ficou tudo destruído. Gerador, frigoríficos, fogões até as panelas ficaram como um assador de castanhas! Água não havia. Passamos a beber água amarela dos "poços" da tabanca. Estávamos portanto sujeitos a malária etc.

Era uma Companhia desmoralizada, sem energia sem sono! Uns choravam com o stress de Guerra, outros não falavam, outros ficaram sem o sorriso da juventude.

Finalmente. um dia, um helicóptero!

Foi tudo reunido para ouvir o Governador da Guiné. Senhor Spínola,  eu agradeço imenso e esteja onde estiver, esteja em paz, como em paz nos deixou! Agradeço as palavras, não de um General mas palavras de um amigo, palavras de reconhecimento. Agradeço ter compreendido estes jovens que foram deixados a mercê das armas e da sorte.

Senhor Spínola... muito e muito obrigado por ter dito a todos nós, em frente do Comandante da Companhia que... a culpa não foi nossa... que: "a culpa foi do vosso Comandante que deixou que o vosso quartel fosse uma carreira de tiro..."!

Resta-me portanto dizer que fomos bombardeados diariamente, que sofremos porque gente sem escrúpulos, sem dignidade, gente agarrada à
s ideias fascistas e de poder, orgulhosos de uma farda e de peso nos ombros famintos por medalhas ao peito, nunca pediu ajuda! Esse Comandante não teve dignidade humana...

Senhor Spínola, muito obrigado é verdade... aquele senhor desumano, realmente deixou fazer do nosso quartel uma carreira de tiro, onde todos nós fomos o alvo.

Bem-haja.
Plácido Teixeira (...) 



(***) Último poste da série > 13 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10523: Memória dos lugares (192): Cufar (Mário Fitas, 1965/67; Eduardo Campos, 1972)

terça-feira, 18 de abril de 2006

Guiné 63/74 - P702: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (2): Aspirante em Elvas, Tancos e Abrantes

O Paulo Enes Lage Raposo foi Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70> Galomaro e Dulombi).

Publica-se a II parte de O meu testemunho.

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 7-10 (1)

© Paulo Raposo (2006)

ELVAS

Passado este período sou enviado em Setembro para Elvas, para o B.C. 8, já graduado como Aspirante a Oficial miliciano.

Aí dei instrução a duas incorporações de soldados. Foi um trabalho gratificante mas duro, pôr rapazes, com os músculos viciados no trabalho manual do campo, a marchar e a manusear as armas.

Elvas era uma cidade bonita, e o quartel estava instalado num antigo convento, dentro das muralhas da cidade, junto à porta poente. Dali se avistava o Forte de Elvas, prisão militar para os desertores.

O forte não tinha água canalizada. Eram os reclusos que, diariamente, iam buscar água à fonte que ficava no exterior. O transporte da água era feito numas barricas que eram carregadas às costas. Houve muito boa gente que se ofereceu para pagar o custo da instalação de uma canalização.

Os reclusos, porém, sempre se recusaram pois era uma maneira de diariamente saírem das suas celas. Fui visitar o Forte uma vez, impressionou-me muito.

Como o nosso quartel era na cidade, a carreira de tiro estava bem fora das muralhas. Ai dávamos instrução de tiro aos soldados. Como se usavam munições reais, os procedimentos na carreira de tiro eram muito severos. Os soldados eram colocados em linha e a ordem carregavam as armas com as munições, apontavam e disparavam, ora deitados, ora em pé, para os alvos que estavam na barreira.

Todos estes procedimentos eram feitos a ordem de comando.

Um dia, depois de eu dar a ordem de fogo, um soldado roda, vira-se com a arma apontada para mim e, premindo o gatilho, diz:
- Meu Aspirante, a arma não dispara.

Nossa Senhora me salvou. A arma estava travada.

No fim de cada incorporação havia exercícios finais, que realizávamos no campo.
Os exercícios finais da primeira incorporação a que dei instrução em Elvas, coincidiram no mês de Dezembro. Fomos a pé desde Elvas até aos arredores de Sta. Eulália. Ai montámos o bivaque, nome que se dá à disposição das tendas pela sua forma geométrica.

Cada homem levava um pano de tenda. Cada tenda, ou bivaque, era montada por um grupo de três homens. Arranjavam-se duas estacas. Um pano de tenda fazia uma água, o segundo a água oposta e o terceiro pano fazia o fecho de um dos lados e cobria o chã. Os panos eram ligados por cordas que passavam pelos olhais.

A parte aberta ficava obviamente virada contra o vento. Naqueles três dias que dormimos no campo passei o maior frio da minha vida. De manhã as poçaas de agua estavam geladas.

No B.C. 8 fiz lá dois grandes amigos, ambos também Aspirantes. Um era o Sobreiro, a quem nunca mais vi, ew o outro o Baptista, do Porto, que embora tenha também seguido para a Guiné, nunca mais me cruzei com ele.

TANCOS

De Elvas segui para o Polígono de Tancos, para tirar a especialidade de Minas e Armadilhas. Aí passei um tempo agradável. As formalidades militares estavam reduzidas ao mínimo. A porta de Armas do Centro onde tínhamos instrução, costumava lá estar uma praça de vez em quando, não era sempre. Ali aprendi a manusear todos os tipos de explosivos e detonadores com o maior a vontade. Perdi o medo mas não o respeito àquele material.

Frequentemente visitávamos os nossos vizinhos paraquedistas, que nos recebiam sempre da melhor maneira. Várias vezes nos convidaram para saltar da Torre, mas não tiveram voluntarios.


ABRANTES

De Tancos segui para Abrantes, aonde fomos formar o nosso Batalhão [BCAÇ 2852].

A minha companhia era a 2405, comandada pelo Capitão miliciano Jerónimo, natural de Lourenço Marques. Quanto a Alferes havia o David e o Felício, para além de mim. Eram ambos de Coimbra e, como tinham andado nas greves estudantis, passaram por Lamego para tirarem o curso de operações especiais. Coitados, penaram bem por lá.

Por último o Alferes Rijo, que passou a ser o primeiro por questões de antiguidade (na tropa a antiguidade é um posto) e veio substituir um rapaz que deu baixa. Antes de começar a guerra já estava cansado.

Quanto a Furriéis havia-os de todas as proveniências, mas muito amigos. No que diz respeito aos soldados, eram na sua maioria Beirões, leais, sãos e generosos. Tínhamos ainda dois Sargentos.

O médico que mais tempo nos acompanhou, foi o Carlos Pereira Alves, hoje famoso cirurgião nos Capuchos. Era e é um grande amigo.

Por último tínhamos o capelão, o Padre Zé, que era da nossa idade. Costumávamos meter-nos com ele, por causa das revistas de toda a espécie que por lá apareciam. Nunca mais soube dele.

Ali começou a fase de adaptação de uns aos outros.

Uma companhia de caçadores é constituída por 4 grupos de combate. Cada grupo de combate era comandado por um Alferes e era dividido em três secções. Cada secção era constituída por 9 homens e comandada por um Furriel.

Quanto a armamento, cada homem tinha uma espingarda automática G3 e cada secção tinha uma arma pesada. A primeira secção tinha uma G3 com cano reforçado HK, a segunda secção tinha um morteiro 60 mm e a terceira secção tinha um cano de lançaamento de granadas de bazuca.

Veio-se a provar depois na Guiné, devido à densa vegetação, que a melhor de todas as armas era o dilagrama. O dilagrama era um sistema que se adaptou à G3. Colocava-se na G3 uma munição sem projéctil e no topo do tubo da arma colocava-se uma granada de mão apoiada num dispositivo.

O disparo fazia de catapulta que lançava a granada de mão a bem uns 30 metros e rebentava em cima do inimigo. Houve muitos acidentes fatais com este sistema (2) pois os soldados às vezes colocavam munições com projéctil e então a granada rebentava-lhes no tubo.

Os meus Furriéis eram o Ferreira, de Anadia, o Nogueira, de Soure, e o Tavares, de Pinhel. Eram os melhores.

Todos os anos nos vamos reunindo, somos como se fosse uma família. Os almoços que fazemos de confraternização duram quase sempre a tarde toda. À entrada colocamos uma caixa onde cada um põe o valor do almoço. Coloca-se o que se quiser, e se se quiser. Sobra sempre dinheiro. Não há gente como esta.

Cada ano aparece sempre mais um, por efeito de passa-palavra. Neste ano de 1997, o Baptista veio de Paris para estar presente ao almoço. Há alguns em França e na Alemanha.

Como o quartel de Abrantes não comportava com todos os rapazes, a mim e a alguns outros, deram-nos um subsídio de pernoita, e passámos a dormir na cidade.

Na cidade aluguei um quarto, na casa de uma senhora viúva, a meias com outro rapaz, também Aspirante, que já estava mobilizado para a Guiné.

Como a nossa vida no Quartel era dura, em virtude da instrução que estavámos a dar aos soldados, à noite, depois do jantar, era tiro e queda. Assim que púnhamos a cabeça na almofada não ouviamos mais nada.

Acontece porém que aquele rapaz com quem partilhava o quarto, tinha um dormir muito agitado. Como já estava mobilizado para a Guiné, todas as noites gritava como se já estivesse na guerra.

Passados três meses, depois de eu ter sido mobilizado, e ele já ter seguido para a Guiné, foi a minha vez de começar a ter noites agitadas, que duraram ate alguns anos após o meu regresso.
Era a rotina dos tempos de guerra.

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Notas de L.G.

(1) Vd post de 12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

(2) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12

(...) "Foi nessa altura que um dilagrama, ao ser descavilhado, rebentou à boca da arma, por deficiência da alavanca de segurança, tendo atingido o prisioneiro Malan Mané e o Soldado Iero Jau (2º Gr Comb) que o conduzia e que teve morte quase instantânea. Entretanto já tinham sido feridos o 1º Cabo Mateus (3º Cr Comb) com um tiro no joelho e dois picadores da milícia [do Xime]" (...).

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24531: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (2): CIOE / Rangers - Especialidade em Lamego (Parte 2)

Guiné > Olossato > Secretaria > Abril de 1970 > João Moreira


"A MINHA IDA À GUERRA"

2 - CIOE / RANGERS - ESPECIALIDADE (Parte 2)

João Moreira


Como não acabei a especialidade, e só estive lá durante 3 ou 4 semanas, não sou a pessoa mais qualificada para descrever a vida dum "Ranger" durante a especialidade.
A distância de 55 anos também não ajuda. Portanto, peço já desculpa e a vossa compreensão para qualquer descrição que não corresponda à realidade de então.

Continuando, direi que o dia "normal" começava pela alvorada.
Vestidos, passávamos pela cozinha/refeitório, onde os cozinheiros nos davam um ladrilho de marmelada, ou um bocado de queijo, ou meia tablete de chocolate para o estômago não estar vazio na hora seguinte, porque teríamos um crosse ou aplicação militar ministrada pelo diretor do curso, que era o capitão Fonseca.

Na parada exterior, formavam os 4 pelotões - 1 do COM e 3 do CSM, - com os respetivos comandantes de pelotão, que os apresentavam ao comandante de companhia, que era o capitão Rino. Este, por sua vez apresentava a companhia ao diretor do curso que estava num estrado à frente dos pelotões - Os 2 capitães tinham feito o curso de "rangers" nos Estados Unidos da América.

E começava a sessão. Não eram emitidas ordens. Como num jogo de sombras, todos repetiam o que diretor do curso fazia.
O comandante de companhia tirava a roupa do tronco e colocava-a no chão. E todos os outros militares repetiam.

Começava a sessão com os exercícios que o capitão Fonseca executava e que o resto do pessoal repetia, independentemente do chão em terra batida estar seco, molhado, com lama ou com neve ou com qualquer outra situação menos agradável.
Terminada a sessão íamos tomar banho, cortar a barba e vestir a farda que estava indicada.
Corretamente fardados, formávamos e seguíamos para o refeitório tomar o pequeno almoço.

Em mesas para "?" pessoas, e acolitados por soldados de casaco branco, tomávamos o pequeno almoço que era constituído por café ou cevada, leite, manteiga e pão à descrição. Também havia Ovomaltine, que já não me lembro se pertencia à dieta diária ou se só era servido de vez em quando, como os ovos estrelados.

Seguia-se o descanso dos guerreiros com 1 ou 2 horas de teoria, ou armamento e voltava-se ao exercício fisico.

O almoço e o jantar eram muito bem servidos, do género arroz, bife com ovo a cavalo, batatas fritas, pão, vinho e fruta. "Só faltava o café e o whisky"!!!

Numa ocasião o comandante da unidade disse-nos que a dotação para a alimentação era o dobro do normal, ou seja 22$50x2=45$00 e que ainda acrescentavam dotações suplementares do CIOE, porque para poderem fazer aquele esforço físico tinham que nos dar condições.

Depois do jantar podíamos sair até às 22(?) horas, sem qualquer documento e no regresso podíamos ir descansar ou tínhamos sessão de cinema, com filmes de guerra. Tenho ideia que estes filmes eram comentados pelos oficiais da unidade.

Numa ida à Carreira de Tiro, em Penude, saímos depois de almoço com cerca de 10 cunhetes para G3. (Penso que eram mais de 10 cunhetes, mas não tenho a certeza).
Como cada cunhete tinha 1.000 balas, levamos 10.000 balas, que divididas por 33 instruendos ficava a média de 333 por instruendo.
Após fazermos os exercícios de tiro previstos, sobraram alguns cunhetes e o nosso comandante de pelotão propôs gastar as balas que sobravam para não termos que voltar a Lamego carregados.

Então as balas que sobravam foram gastas por atiradores "voluntários".
Com muita organização e segurança, ia 1 militar de cada vez fazer tiro no estilo que quisesse - em pé, sentado, de joelhos - e também escolhia a cadência: tiro a tiro ou rajada.
Para garantir a segurança o "atirador" só ia para a pista à ordem do comandante de pelotão.

Fiz várias centenas de tiros nas mais diversas posições e nas 2 cadências. No final até já conseguia fazer tiro a tiro, com a patilha em rajada. Resumindo, numa sessão de tiro em Lamego, fiz mais tiros que durante toda a recruta nas Caldas da Rainha.

Também tinha o lado negativo para nós.
Ao fim de 3 ou 4 semanas, quando fui para o Hospital Militar, ninguém tinha saído do quartel.
Não tinha havido fim de semana para ninguém.

"ERA JÁ A PREPARAÇÃO MENTAL PARA UMA IDA PARA O ULTRAMAR".


(continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior de 27 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24507: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (1): CIOE / Rangers - Especialidade em Lamego (Parte 1)

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23450: A nossa guerra em números (18): o consumo de munições e granadas pelo exército

A granada defensiva M26A1
m/63 (
Luís Dias, 2010) (**)
 

1. Quantos milhares de toneladas de munições,  granadas, minas, bombas e outros engenhos mortíferos consumiu a guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial (1961/74) ? (*)

Ninguém saberá responder a essa pergunta, nem do nosso lado nem muito menos do lado do IN de outrora...  

Quando muito,  há dados  parciais das NT, para alguns anos e teatros de operações (nomeadamente, Moçambique, 1970, 1971 e 1972), no que respeita ao número e tipo de munições e granadas consumidas por (e/ou fornecidas a) o exército.

Lá teremos que recorrer, mais uma vez, a um estudioso como o ten cor na reserva, Pedro Marquês de Sousa, doutorado em história pela FCSH / Universidade NOVA de Lisboa (2014), autor do livro "Os números da Guerra de África"(Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 381 pp.).  Escreve o Pedro Marquês de Sousa (op. cit., pág. 300): 

" O fornecimento de munições às tropas era um dos grandes desafios para a logística militar, pelo elevado peso e volume deste tipo de cargas, cujo transporte exigia ainda medidas especiais de segurança." 

Sabe-se, por outro lado, que "os depósitos de armazenamento em cada uma das frentes tinham de manter os níveis adequados em face do consumo elevado (sic) pelas unidades de combate".  Só em Moçambique, por exemplo, existiam oito complexos logísticos (Lourenço Marques, Beira, Tete.Vila Cabral, Mocuba, Nampula, Porto Amélia e Mueda), cada um deles devendo ter um "stock" crítico de material de guerra (munições, granadas e minas) (Op cit., pág. 302).

Ignora-se, por exemplo, quantos complexos logísticos deste tipo (ou depósitos de munições) existiam no TO da Guiné e onde estavam localizados... Pelo menos, deveria haver um ou mais em Bissau...

2. Ficamos com uma ideia aproximada dos consumos médios de munições e granadas, também por via dos  fornecimentos. 

Veja-se, por exemplo, para o caso de Moçambique, e para o ano de 1972, um resumo das quantidades das principais munições e granadas fornecidas, em milhares de unidades (por arredondamento por excesso ou defeito) (Adaptado por nós, op cit, pág.301):
  • Munições 7,62 mm > 2152,3
  • Granadas de mão defensivas > 4,2 
  • Granadas de mão ofensivas > 41,8
  • Granadas de morteiro 60 mm > 6,3
  • Granada de morteiro 81 mm > 5,7
  • Minas A/P (antipessoais) > 43,2 
No entanto, o consumo em operações era muito superior a estas quantidades (Vd. Quadro 1)_




Com base nestes números (Moçambique, em 1970 e 1971), o autor faz (indevidamente, quanto a nós, já que a média estatística pode ser altamente enganadora) uma estimativa do consumo médio anual de munições e granadas de uma "companhia operacional do Exército" (tipo "companhia de caçadores") (Op cit., pág. 302):

  • Munições 7,62 mm > 34000
  • Granadas de mão > 260
  • Granadas de morteiro > 200
  • Granadas foguete bazuca 8,9 > 30
Embora o autor ressalve que estes "valores médios" (sic)  "variavam naturalmente conforme a zona e a (...)  condição"  da unidade ou subunidade operacional  (companhia de intervenção, companhia de quadrícula, etc.), achamos que são valores que tanto podem pecar  por excesso como por defeito...  Não nos parece, todavia,  que se possam extrapolar, facilmente  para um teatro de operações na Guiné, com as suas especificidades... 


3. O consumo de munições podia variar conforme o tipo de acção  do IN e a sua duração, o treino, a disciplina de fogo das NT,  o armamento, a missão, etc.

Por exemplo, numa emboscada de vinte minutos, no mato, numa picada ou numa estrada, uma companhia ou destacamento (em geral, três grupos de combate), 60/70 (e nunca 90) G3 podiam despejar no máximo 4 carregadores de 20 cartuchos cada uma, o que daria uma média de 4800/5600 cartuchos...  

Depois havia, por cada grupo de combate (estou a pensar numa companhia de intervenção como a minha, a "africana" CCAÇ 12),  mais as seguintes armas com os respetivos apontadores e municiadores (estes também equipados, em geral, com a G3, enquanto o apontador levava uma pistola Walther 9mm):

  • 3 apontadores de dilagrama (um por secção de 9 ou 10 elementos);
  • 1 apontador + 1 municiadores de metr lig HK 21 (de fita);
  • 1 apontador + 1  municiador de LGFog 8,9;
  • 1 apontador + 1 municiador de LGFog 3,7;
  • 1 apontador + 1 municiador de morteiro 60...

Em resumo, três Grupos de Combate (mesmo completos) nunca queriam dizer 80 ou 90 espingardas automáticas G3, uma arma poderosa e fiável, melhor que a AK47, na opinião do antigo sargento 'comando', com 4 comissões, na Guiné e em Angola, o nosso querido amigo e camarada, Mário Dias (***), e que tinha com uma cadência  (teórica) de 600/650 tiros por minuto (****).

Por sua vesz, e desde que não encravasse, a HK 21 (melhor só a MG42, mas muito mais pesada, c. 12 kg.) podia despejar  centenas de munições 7,62 mm na resposta a uma emboscada... Mas em geral a malta tinha que saber  gerir as munições, para poder chegar ao quartel com segurança...

Já na resposta aos ataques ao quartel, destacamento ou tabanca em autodefesa, de uma hora, cada G3 podia facilmente consumir 8 ou mais carregadores, de 20 munições cada... Milícias e civis em autodefesa tinham muito menos disciplina de fogo do que os miliatres... 

Por outro lado, nas flagelações à distância (com morteiro 82 e 120, canhão s/r,  foguetões 122 mm), era disparatado fazer tiro com a G3 (cujo alcance prático era de 300 metros)... Mas a verdade é que não havia cão nem gato (sem ofensa para nenhum camarada...)  que não aproveitasse para fazer o gosto ao dedo, entrincheirado nos abrigos ou valas...

No mato, nos golpes de mão ou ataques das NT a objetivos IN (acampamentos, bases, etc.), a história era outra, e a disciplina de fogo era fundamental.

E depois havia a instrução e o treino na carreira de tiro... Não me lembro de alguma vez ter sido feito tiro na carreira de tiro de Bambadinca, depois de nós termos vindo do Centro de Instrução Militar de Contuboel em 18 de julho de 1969... Nem me lembro, no meu tempo,  de haver restrições ao consumo de munições 7,62 mm... Tal como não me lembro quantas munições 7.62 mm levava (e quanto pesava) o respetivo cunhete de madeira... Pode ser que algum dos nossos quarteleiros se lembre... (e tenha fotos que nos possa facultar).

Pedro Marquês de Sousa cita, nas páginas 302/303 do seu livro, a Op Nó Górdio, que decorreu no Norte de Moçambique,  de 1 de julho e 6 de agosto de 1970, que terá envolvido mais de 8 mil militares, e uma complexa logística. Aponta para os seguintes consumos nessa operação:
  • Géneros alimentícios >  590 toneladas;
  • Rações de combate > 260 toneladas / 130 mil rações;
  • Gasolina > 340 mil litros;
  • Gasóleo > 460 mil litros;
  • Munições > 158 toneladas.

4. Sabe-se que uma companhia (160 homens, em média) precisava de cerca de 880 toneladas de abastecimentos ao fim de uma comissão de 22 meses (40 em média por mês), incluindo 15,4 toneladas de munições (0,7 t por mês), o que em termos relativos representava apenas 1,75% do total (*****).


 Enfim, ainda falando de consumos de munições, granadas, minas, etc., não temos números relativamente à artilharia no CTIG (no final da guerra, havia mais de uma centena de obuses 10,5e 14  e peças de artilharia 11,4, espelhados pelo território), nem relativamente à FAP e à Marinha...  

Pode ser que alguma camarada destas armas satisfaça a nossa curiosidade (que é meramente intelectual, ao fim destes anos todos)...

Falaremos, entretanto,  de alguns consumos parcelares  da FAP (bombas, cartuchos, foguetes, napalm...) num próximo poste desta série.

__________



(...) É muito vulgar e frequente tecerem-se comentários depreciativos à espingarda G3, quando comparada à AK47. Em minha opinião, nada mais errado. Analisemos, à luz das características de cada uma e da sua utilização prática, os prós e contras verificados durante a guerra em que estivemos empenhados em África:

Comprimento: G3 - 1020mm |  AK47 - 870mm;

Peso com o carregador municiado: G3 - 5,010Kg |  AK 47 – 4,8Kg;

Capacidade dos carregadores: G3 – 20 cartuchos | AK47 – 30 cartuchos;

Alcance máximo: G3 – 4.000m |  AK47 – 1.000m;

Alcance eficaz (distância em que pode pôr um homem fora de combate se for atingido):
G3 – 1.700m |  AK47 – 600m;

Alcance prático: G3 – 400m |  AK 47 – 400m

(...) Se, por um lado, temos mais tiros para dar sem mudar o carregador, por outro lado esse mesmo facto leva-nos facilmente, por uma questão psicológica, a desperdiçar munições. E todos sabemos como o desperdício de munições era vulgar da nossa parte apesar de os carregadores da G3 serem de 20 cartuchos.

O usual era, infelizmente, “despejar à balda” sem saber para onde nem contra que alvo. Sem pretender criticar a maneira de actuar de cada um perante situações concretas, eu, durante todas as acções de combate em que participei ao longo de 4 comissões, o máximo que gastei foi um carregador e meio (cerca de 30 cartuchos). Por tal facto, em minha opinião, a dotação e capacidade dos carregadores da G3 é mais que suficiente, além de que os próprios carregadores são mais maneirinhos e fáceis de transportar que os compridos e curvos carregadores da AK47. (...)

(****) Vd. poste de 23 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5690: Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras (Luís Dias)

(*****) Vd. poste de 11 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22707: A nossa guerra em números (4): Cada militar necessitava em média, por mês, de 240 kg de abastecimentos (no essencial, víveres e artigos de cantina, mais de 70%)... O consumo "per capita" mensal de outros artigos era o seguinte: 50 kg de combustíveis; 4,4 kg de munições; 3,1 kg de medicamentos; 1,6 kg de correio... E, miséria das misérias, tínhamos direito a... 520 gramas de víveres frescos por dia!

quinta-feira, 29 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P923: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (2): Bambadinca


Guiné > Zona Leste > Bambadinca > Março de 1972 > O Caco [General Spínola] de visita à carreira de tiro de Bambadinca. À sua direita, o Polidoro Monteiro, ten-cor, comandante do BART 2917. À direita do Polidoro segue o Coronel Costa, do CAOP 2. À minha frente [eu estou de bigode e óculos escuroso], de farda nº 2 está o comandante do BART que substituiu o 2917.

A carreira de tiro situava-se 1 a 2 Km para lá da ponte de Undunduma, indo em direcção ao Xime. Imagina os arrepios que eu e o Vacas (era o oficial de tiro) sentíamos quando havia instrução de tiro nocturno. Era um local para cacimbados. Esta foto e a seguinte, a da formatura foram tiradas em meados de Março de 1972" (PS)

Esclarecimento adicional: Em Março de 1972 houve a sobreposição do BART 2917 com o BART comandado pelo velhinho (parece que foi um termo utilizado pelo Caco) que aparece de farda nº 2 na
foto. No dia seguinte àquela ser tirada, o Polidoro foi levar-me a Galomaro, para eu ir para o Saltinho. Nunca mais o vi. Penso que regressou a Portugal com o BART 2917 em fins de Março ou princípio de Abril de 1972 (PS).


Guiné > Zona Leste > Bambadinca > Março de 1972 > Visita de Spínola a uma nova companhia de milícias, formada em Bambadinca.



Guiné > Zona Leste > Bambadinca > Finais de 1971 ou princípios de 1972 > Noite de copos. Ao lado do Paulo, de bigode, de camuflado, na ponta da mesa, está o Alf Mil Machado, à civil, de óculos, a fumar, da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). Era minhoto, natural de Riba d'Ave. Antes da tropa, trabalhava numa cooperativa local. Daí a gente chamá-lo "Bilocas da Cuprativa". Tinha um excelente relacionamento com a malta da CCAÇ 12. Tocava viola. (LG). "O alferes magrinho, à esquerda do Machado, já não me recordo do nome dele, mas era da CCS" (PS)



Guiné-Bissau > Bafatá > Fevereiro de 2005 > ZA> tia do Pedro, mãe dos dois miúdos. Ele, por sua vez, é filho de uma fula e de um balanta, antigo guerrilheiro, e hoje oficial superior das Forças Armadas Guineenses. A moça muito bonita é irmã do Pedro. O João e o Sado estão no lado direito.



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambinca > Fevereiro de 2005 > O reencontro do Paulo Salgado com um antigo soldado do Pel Caç Nat 53, o Bubacar, o Buba . O Paulo esclareceu o seguinte:

"Cheguei a Guiné em 27 de Outubro de 1970 e regressei em 12 de Agosto de 1972 . Nunca estive com o 53 em Bambadinca. O Pel Caç Nat 53 estava e continuou em reforço da CCAÇ do Saltinho. Andámos em operações por Dulombi, Galomaro e Aldeia Formosa (...). Fui em Out de 1971 para Bambadinca para comandar a instrução da Companhia de Milícias que terminou em 24 de Dezembro de 1971, dia em que apanhei uma boleia do Spínola para o Saltinho onde fui passar o Natal. Regressei a Bambadinca no início de Janeiro de 1972 para comandar outra companhia de instrução até meados de Março, tendo regressado de seguida ao Saltinho".

Fotos: © Paulo Santiago (2006)


II parte do relato da viagem do Paulo Santiago e de seu filho João Francisco à Guiné-Bissau em Fevereiro de 2005, na semana do Carnaval....

Há um mês atrás (24 de Maio de 2006), o Paulo tinha-me enviado a seguinte mensagem que não cheguei a inserir no blogue:

Camarada

O teu blogue permitiu-me ter uma conversa cibernética com o Vacas de Carvalho. Há muitos anos, mais de 25, possivelmente, que não falava com aquele amigo. Diz-me o Zé Luis que será possível encontrar mais amigos através do teu blogue.

Como não sou grande expert nisto da Net, não sei se recebeste umas fotos que enviei para o blogue.

Manga de cumprimentos

Paulo Santiago
(ex- Alf Mil Pel Caç Nat 53, Saltinho,1970/72)

PS - O nome Cabral diz-me alguma coisa  Já li algumas "estórias cabralianas" Será que foi ele que me falou na história do cajado do Beja ? Não havia também um Furriel Duque muito cacimbado que roía noz de cola?

Lembro-me da cara do David Guimarães. As companhias do Xitole e Saltinho tinham contrato com uma avioneta que ía todas as semanas levar correio e transportar pessoal que vinha ou regressava de férias
Comentário de L.G.: Num mês o Paulo já está aqui a blogar connsco e a enviar-nos material (textos e fotos) muito interessante, fazendo-nos partilhar as emoções do seu regresso, em Fevereiro de 2005, à sua/nossa amada Guiné... Bem hajas, Paulo, pela sua generosidade e disponibilidade. L.G.
__________________


Dia 5 de Fevereiro de 2005, Sábado

O meu amigo, Ten-Cor Rui Ferreira, ex-Alf Mil da CCAÇ 1420, de 1965 a 1967 e mais tarde Capitão Miliciano - no comando da CCAÇ 18, altura em que o conheci, estacionada no Quebo -, pediu-me para visitar o ex-Furriel Mil Carlos Solai,  daquela companhia.

Sábado fui com o meu filho, João, e o Sado ao estabelecimento comercial que o Rui me tinha indicado, propriedade daquele ex-Furriel. Fomos informados por um funcionário que o patrão estava em casa com problemas de saúde. Procurámos na morada indicada, encontrando o Solai,  lúcido, a recuperar de um AVC, que o deixou muito diminuído fisicamente.

Apesar disso falámos de uma viagem amalucada que ele, o Rui e mais dois ou três quadros da CCAÇ 18, fizeram do Quebo (Aldeia Formosa) para Bafatá com passagem pelo Saltinho, deixando-me durante três dias uma mini-moto Honda, que utilizei para andar por locais onde podia andar e também por outros onde não deveria passar...Era o cacimbo a fazer efeito.

Falámos também da viagem, que ele, Solai, fez a Portugal e da passagem pela casa do Rui, em Viseu. O João gravou na camâra uma mensagem para o Rui.

À tarde não saímos da residencial. Devido ao Carnaval fecham ao trânsito grande parte das ruas de Bissau. É só desfiles. Não é época boa para ir à Guiné.

 Dia 6 de Fevereiro de 2005, Domingo
O meu amigo Sado pediu um Land-Cruiser a um primo para irmos ao Saltinho. Às 8 horas foi buscar-me à residencial e demos início a uma jornada que me marcou profundamente.

Além do João e do Sado, ía o Pedro, um moço impecável, filho de um balanta e de uma fula, o pai guerrilheiro, hoje oficial superior das FA. O Pedro foi o nosso condutor e também cameraman. A pergunta que tinha na cabeça ao sair de Bissau era:
- Como vamos, por estrada, chegar a Bambadinca, a Bafatá, ao Xitole e ao Saltinho ?

Passamos o aeroporto. Daqui para a frente nunca tinha transitado de viatura auto. Passamos por locais, cujos nomes não me são estranhos: Nhacra, João Landim, Jugudul... Aparece uma placa a indicar Portogole, à direita.

Andamos mais uns quilómetros e uma placa indica Circunscrição Florestal do Oio, e lembro a fama desta zona no meu tempo de militar. Outra placa: Matecão. A pulsação acelera-se. Mando parar o jipe. Eu estive aqui nesta zona, talvez em Dezembro de 1972, após a ocupação do Matecão [Mato Cão, na carta de Bambadinca].

A favor da maré, utilizando um Sintex com motor de 80 CV, eu, o Polidoro Monteiro, o Vilar, o Alferes do Pelotão de Morteiros e o soldado barqueiro, descemos a toda a velocidade o Geba, de Bambadinca para o Matecão. Penso que seriam dois grupos de combate da CCAÇ 12 que lá se encontravam [no destacamento]. Os ataques eram quase diários e, por vezes, mais que um, não havia abrigos nem valas, unicamente buracos individuais, dispostos em círculo, onde cabiam os colchões.

Regressamos com a maré, tendo ficado no destacamento o Ten-Cor Polidoro (1). Abro um parêntesis para dizer que conheci vários tenentes-coronéis, mas só dois me mereceram respeito: o Polidoro e o Agostinho Ferreira, de Aldeia Formosa, mais conhecido por Metro e Oito.

Voltemos a 6 de Fevereiro de 2005. Quando menos esperava entramos em Bambadinca, por um sentido completamente desconhecido para mim. Seguimos para Bafatá. Quero ir visitar o Sanhá. Esta estrada já me é familiar, vejo uma placa a indicar a cortada para Cossé (Galomaro). O Sanhá foi cabo no Pel Caç Nat 53 e actualmente é militar da GF [Guarda Fiscal]. Está em serviço para Pirada, fico com pena por não o encontrar.

São horas de almoço, em Bafatá não há restaurantes,voltamos a Bambadinca onde o Sado conhece um. Almoçamos bife e muita cerveja. O Sado, como bom muçulmano, bebe sumo.

Voltamos à estrada e começamos a subir para a parte mais elevada de Bambadinca, dizendo-me o Sado que o quartel continua a ter militares. Peço ao Pedro para virar e parar aí uns 50 metros da porta de armas, a mesma do nosso tempo. Nenhum deles acredita que nos deixem entrar no quartel. Há um militar que se me dirige, e informo-o que estive naquele quartel em fins de 1971 e início de 1972. Será que posso fazer uma visita ? Manda-nos entrar.

Pergunto se podemos filmar e, após consulta a um oficial, autoriza que utilizemos a câmara. Visito, com o Pedro a filmar, a zona ocupada pela messe e quartos. Estou muito emocionado.

Chega entretanto um senhor à civil que me apresentam como Comandante. Muito simpático. Falamos da Bambadinca dos anos 70 e do Xime e do Saltinho. Falamos a mesma língua, diz-me ele. Despedimo-nos com um forte abraço.

O grande centro populacional situa-se agora na parte mais elevada de Bambadinca, na estrada para o Xitole.

O Sado tinha uma surpresa para mim. Manda parar o jipe e pede-me para o acompanhar. Dirigimo-nos a uma casa e eis que aparece o meu antigo soldado Bubacar, o Buba. Vêm-me as lágrimas, trinta e três anos. Estamos os dois muito emocionados. Andamos os dois a pé à beira da estrada. Ele é motorista de camião. Pergunto se há por ali mais algum elemento do 53. O Iero Seidi viveu ali mas já morreu, quem vive perto é o Mamadu Jau. Peço-lhe para o avisar, quando regressar do Saltinho, pararei ali para estar com eles. Acabamos a falar de futebol para descontrair. Despedimo-nos até ao dia seguinte.

Estamos no início da tarde de 6 de Fevereiro de 2005 e vou deixar o resto do dia para outro Post.

Um abraço
Paulo Santiago
ex Alf Mil do Pel Caç Nat 53
SPM 3948

_____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P914: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (1): Bissau

O Sado é oficial superior da Guarda Fiscal da Guiné-Bissau e grande amigo do Paulo, visita da sua casa quando vem a Portugal.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3189: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (17): Instrutor de milícias em Bambadinca (Out 1971).


Mensagem do Paulo Santiago, com um pedido à memória dos Camaradas:

É uma pena não conseguir lembrar-me do nome dos Fur Mil instrutores, só ficou o Dinis, talvez por ter sido do 53.
Lamento não me lembrar do nome daquele estupidamente morto no regresso, lá para os lados de Nova Lamego.
Talvez apareça algum tertuliano que se lembre do episódio e do nome. Agradecia essa lembrança.

Abraço,
Paulo Santiago
__________


Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (17)


Texto e fotos do Paulo Santiago
ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 53
Saltinho 1970/72


Encerramento do curso e...tragédia

Em 24 de Dezembro de 1971, terminou com cerimónia oficial, a formação da companhia de milícias.
Do programa constava, início com formatura geral, pelotões ainda enquadrados pelos instrutores, a fim de prestar honras militares ao Com-Chefe, General Spínola, seguindo-se demonstrações de combate, demonstração de tiro, encerrando a cerimónia com nova formatura, já sem os instrutores, substituídos pelos comandantes de pelotão, perante a qual o General fazia um discurso.



formatura da Companhia de Milicias.




General Spínola em revista.


na carreira de tiro no dia de encerramento.


Aqui metia três intérpretes, um fula, um mandinga e um balanta, que à vez iam traduzindo as frases proferidas pelo ComChefe. Era um momento interessante, onde até meteu um "que se passa com esta merda da aparelhagem?" que não foi traduzido.
Na tribuna encontravam-se as autoridades tradicionais, comandantes de batalhão, comandante do CAOP 2, oficiais superiores do QG e da Amura. À volta do campo de futebol, onde se realizava a cerimónia, espalhavam-se civis das tabancas próximas.
Como era altura do Natal, e o General andava na visita aos quartéis do CTIG, tudo foi abreviado havendo apenas a formatura final para o respectivo discurso.




Ten. Cor Polidoro Monteiro, Gen Spínola, Alf Mil Paulo Santiago e de costas o Fur Mil Dinis. Este ia agora conhecer o Saltinho e integrar-se no PelCaçNat53.


Apanhei boleia para o Saltinho, onde o Spínola ia dar as Boas-Festas, sabendo que no início de Janeiro, regressava a Bambadinca, onde tinha outra companhia de instrução a aguardar.
Soube, já no Saltinho, que tinha havido um problema gravíssimo com um dos pelotões de milícia, lá para os lados de Nova Lamego, com vários mortos incluindo um Fur Mil e vários desaparecidos. Só no regresso a Bambadinca soube da dimensão da tragédia.
No dia seguinte, após terminarem o curso de milícia, veio uma viatura (Berliet?) a fim de transportar um dos pelotões para a zona de Nova Lamego, seguindo também o Fur Mil instrutor. Os milícias iam fardados, mas desarmados. Foram emboscados, parte foi morta, incluindo o Fur Mil, outra foi apanhada à mão ou desapareceu. Responsabilidades, não sei a quem foram atribuídas.

No encontro de Monte Real, houve um camarada que me falou neste desastre, e perguntou-me se sabia o nome do Furriel.
Não sei, haverá algum tertuliano que tenha conhecimento?

Em Janeiro retorno a Bambadinca, via Bissau. Já contei no blogue que no dia do meu aniversário (24º) apanhei um heli no Saltinho até Bissau, onde passei três ou quatro dias na boa vida.

O médico está preso

De Bissau para Bambadinca vou num DO 27 e seguia também na aeronave o Major Anjos de Carvalho que tinha vindo tratar de um qualquer assunto. Quando saímos do avião, tínhamos o Polidoro Monteiro à nossa espera.
- "Estou aqui para vos informar que o médico apanhou dez dias de prisão, estando preso no quarto, donde sairá para outra unidade", disse-nos.
Atendendo a vários antecedentes, esta "porrada" não me causou estranheza.

Conflito resolvido à pancada

Nesta 2ª companhia que comandava, havia dois pelotões Fulas e um Balanta. Dos dois primeiros, um destinava-se a Galomaro, outro a Mampatá (Saltinho), sendo que o Balanta tinha como destino a Ponta Luís Dias.
Numa noite da segunda semana de instrução, após o jantar, noto que na formatura, antes da instrução nocturna, apenas se encontra o pelotão de Balantas. Os dois pelotões de Fulas resolveram ficar na caserna, como forma de protesto, informa-me o meu soldado Amadú Baldé, monitor e futuro comandante do pelotão de Mampatá.
Qual era a causa do protesto? Simplesmente os Fulas não queriam estar juntos, na mesma caserna, com os Balantas, porque se embebedavam, perturbavam as orações, etc.
A caserna situava-se a seguir às instalações do Pelotão de Cavalaria. Disse ao Amadú "vai lá dentro chamar os gajos para virem formar de imediato".
Foi o Amadú e voltou sem conseguir convencer os "revoltosos".
Tinha a G3 às costas, e a mostarda chegou-me ao nariz, entrei na caserna e o pessoal deitado em cima das camas, dei-lhes um minuto para se levantarem e virem formar.
Os gajos nada, agarro na arma pelo cano e começo a varrer, à coronhada, todos os que se encontram em cima das camas. Ficaram convencidos, vieram formar de seguida.
No dia seguinte na formatura da manhã, resolvi fazer uma pequena palestra, procurei apelar ao espírito de corpo, ali não podia haver conflitos entre etnias, eram todos "guinéus".
Em Fev. de 2005, em Cansamange, a caminho do Quirafo, vêm ter comigo, com alegria nos olhos, três antigos instruendos daquela companhia, um deles o Mussa diz-me:
-"Santiago, tu eras muito duro, mas preparaste-nos bem, nunca te esquecemos".
Na despedida deram-me duas galinhas e três ovos...quanta falta lhes fariam.



Em Fev/05. Cansamange. O Paulo Santiago junto do Mussa e dos outros dois antigos instruendos de há trinta e três anos atrás.


Ex-guerrilheiro maneta

O pelotão Balanta tinha um instruendo especial, o Fafe Nkumba, há nomes que não esqueço, haverá alguma razão para que isso aconteça? Não sei...
O Fafe era um ex-guerrilheiro, comandante de grupo, tinha sido ferido em combate, levado para Bissau para o HM, onde lhe tinha sido amputado o braço esquerdo devido aos ferimentos. Estava ali para ser o futuro comandante do pelotão.
Apesar da deficiência física, era respeitado pelos outros instruendos, também, apesar da diferença, era um óptimo instruendo e um excelente atirador na carreira de tiro. Tinha preferência por uma AK, não sentia a G3 como boa para ele. O caso foi resolvido quando um dia apareceu o Spínola com o Fabião e quiseram saber da evolução do instruendo Fafe Nkumba.
Em conversa falei-lhes na arma. Passado pouco tempo chegou uma AK e respectivas munições.
Procurei falar bastante com o Fafe, saber das condições no mato, como tinha sido tratado para ler-lhe alguns pensamentos.
Não consegui saber muito, falava muito bem comigo, gostava de conversar, mas quanto aqueles assuntos mais importantes, fechava-se em copas.
Constou-se que após a instrução voltou para o PAIGC juntamente com outros instruendos, milicias já na altura.

Não acertaram...sorte

Penso que a partir de fins de Fev. de 1972, já se encontrava em Bambadinca o batalhão para substituir o do Polidoro, havendo já serviços a serem feitos pelos "periquitos".

As instruções nocturnas eram feitas fora do quartel, mas nas imediações, tendo sempre o cuidado de avisar o oficial de dia do local para onde ia.
Em determinado noite, avisei o oficial de dia "periquito" que tinha uma instrução nocturna nas traseiras da casa do Rendeiro, pelo que teria que avisar o posto de sentinela sobranceiro a essa zona.
Não sei explicar, estava com um pressentimento, pelo que procurei sempre manter-me numa zona iluminada pelos holofotes, para que a minha cor se notasse.
Não adiantou nada. Repentinamente, zumbe uma saraivada de balas por cima das nossas cabeças. Tudo para o chão a gritar "filhos da puta somos nós, milícias"!
Mais uma rajada a passar. O local era fodido, o posto de sentinela lá no alto e nós no fundo da barreira completamente a descoberto. Parece ter passado uma eternidade, até que alguém começou a gritar por nós.
Entrei no quartel com instinto para pregar um tiro em alguém, aparecendo-me o Polidoro que me agarra com vigor. Estava de cabeça perdida, podia ter morrido gente estupidamente. O Alf oficial de dia diz que avisou o sargento de dia, este diz que avisou o sentinela, este ficou com medo ao ver tantos pretos à noite e armados, parecendo fazer manobras de aproximação ao quartel que carregou no gatilho da Breda (?).
Será que houve os avisos, ou alguém se esqueceu?

Despedida

Em fins de Março de 1972, mais uma cerimónia de encerramento do curso de milícias, sendo que desta vez se cumpriu todo o programa.

Gostei destes seis meses em Bambadinca. Pela primeira vez tinha tido uma flagelação, ligeira, no Xime, em tarde de futebol. Tinha visitado o "buraco" chamado Mato do Cão e, após a reocupação, tinha andado pelas "meninas" de Bafatá.
Ia regressar ao Saltinho e ao PelCaçNat 53, não imaginando os maus tempos que me aguardavam.
__________

Notas:
Vd. artigos anteriores da série, em

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13361: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (30); Mafra, a EPI, 1967: "Aquele Convento de Mafra era sem dúvida uma fábrica de oficiais"...(Paulo Raposo, ex-alf mil inf, CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852, Mansoa e Dulombi, 1968/70)


Mafra > EPI (Escola Prática de Infantaria) > 2º incorporação de 1967 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra, "a garande fábrica de oficiais"
Foto ( e legenda) : © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados [Edição:_ LG]


1. O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 
1968/70) - I Parte: Mafra (*)



[ Foto à direita: Paulo Enes Lage Raposo, Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Setor L1, Bambadinca, 1968/70); a CCAÇ 2405 passou por Mansoa, sendo depois colocada em  Galomaro e Dulombi; perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, Op Mabecos Bravios, 6 de fevereiro de 1969; o Paulo Raposo foi o organizador do nosso  I Encontro Nacional, em 15 de outubro de 2006, na Quinta da Ameira, Ameira, Montemor-O-Novo.]



Entrei para a E.P.I, no Convento de Mafra,  como soldado cadete, na 2ª incorporação do ano de 1967, mais precisamente no dia 10 de Abril. Escolhi esta incorporação para não apanhar os rigores do inverno dentro daquele grande Convento.

O choque da entrada foi grande, passar de civil a militar não é fácil. Após a entrada, só podiamos sair depois de saber marchar, conhecer as patentes e saber fazer a continência.

Aquela primeira semana parecia que nunca mais acabava.

Na parte de trás do Convento, na grande parada, formava-se o Batalhão de Instrução. O seu comandante era o major Rocha, que passava o tempo a dizer:
– Comigo não há figos.

 Devia estar apanhado pelo clima de África nalguma Comissão de serviço que lá devia ter feito. Encontrei-o mais tarde na Messe de Bissau e logo Ihe perguntei:
–  Então, meu major, não há figos?
–  Comigo não há – respondeu ele de seguida.

O comandante da companhia era o capitão Ferro, com quem nunca mais me cruzei. O adjunto do comandante era o irrequieto  ten Garcia Lopes, a quemn voltei a encontrar na Guiné a comandar uma companhia de Comandos. O nosso instrutor era um rapaz da nossa idade, o alferes Leonel de Carvalho, sempre muito aprumado. Vi-o na televisão já como coronel, a comandar as forças militares que estavam na ponte 25 de Abril, aquando do grande bloqueio de 1994. Coitado, deve ter passado por situações muito desagradáveis.

Uma vez passada a primeira impressão entramos na rotina de um quartel. Há horas para tudo, no fundo também nos educa e auto-disciplina.

Recordo aqui alguns momentos que me custaram bastante.

O primeiro foi a dor que me causou, nos tímpanos, o estampido que a G3 dava quando fazia fogo. Até nos habituarmos, aqueles primeiros momentos passados na carreira de tiro eram dolorosos.

O segundo foi o lançamento de uma granada de mão, também na carreira de tiro. Só olhar para a granada me metia medo, quanto mais agarrá-la, tirar-lhe a cavilha e lancá-la.

Foi o ten Garcia Lopes que me acompanhou. Disse-me:
– Agarra a granada com a mão direita, tira a cavilha de segurança com a esquerda e lança-a; vê onde a granada cai e depois é que te metes no buraco.

Assim foi, mas não foi fácil.

O terceiro foi o campo de obstáculos que havia na Tapada Real, a que chamávamos a Aldeia dos Macacos. Havia dois obstáculos que eram difíceis de vencer. No fundo, o propósito era o de nos libertar dos medos e de nos vencermos a nós próprios.

Um deles era o salto ao galho. Este obstáculo era constituído por uma plataforma que ficava elevada a uns três metres do chão. À frente da plataforma, a uma distância de um ou dois metros, estava um poste que tinha no topo um galho. Tínhamos, portanto, de nos lançarmos para o galho. Se falhássemos, caíamos, agarrados ou não, ao poste.

O outro obstáculo era o pórtico. Era constituído por uma vigas que faziam um quadrado, que tinha uma largura de 40 cm e estava a uma altura do chão de 6 metros. Tínhamos de subir por uma corda, trepar para a viga, fazer o perímetro e descer pela mesma e única via.

Outro era o trabalho de estrada. Uma vez por semana fazíamos este exercício: íamos a correr de Mafra ao João Franco, no Sobreiro, e regressávamos. As subidas eram feitas em passo rápido, o resto do percurso a correr, com as belas botas que nos enchiam os pés de bolhas, mais os 3,9 kg da G3 que levávamos às costas.

O dia da Infantaria é o dia 15 de Agosto. Este dia representa a vitória da Infantaria (rainha de todas as batalhas) no célebre quadrado da Batalha de Aljubarrota, em 1385, realizado por D. Nuno Alvares Pereira. Naquele momento, D. Nuno implorou a protecção de Nossa Senhora. Em seu louvor foi construído o Mosteiro da Batalha.

Durante a batalha, D. Nuno e os soldados passaram tanta sede naqueles dias de Agosto, que, simbolicamente, D. Nuno mandou lá colocar uma bilha com água que está junto a uma pequena capela, para mais ninguém ter sede naquele local.

Esta vitória representa também e acima de tudo a força de vontade popular (Infantaria) contra a aristocracia espanhola (Cavalaria) e, de um certo modo, também contra a aristocracia portuguesa vendida aos espanhóis.

Foi feito um convite aos cadetes para irem até Fátima pelo dia 13 de Agosto. Fomos alguns. Fardados como cadetes, acompanhámos o andor de Nossa Senhora. Terminada a cerimónia fomos todos dormir para casa de um rapaz, nosso colega, que tinha a sua quinta perto de Ourém. Uns dormiram em camas e outros no chão.

Foi uma noite passada cheia de alegria, com o José Megre a animar o serão, a contar as suas histórias das corridas de automóvel, por que tinha passado em Inglaterra. É um excelente contador de histórias.

Tudo se passou. Aquele Convento de Mafra era sem dúvida uma fábrica de Oficiais. (**)

Paulo Raposo
______________

Notas do editor:

(*) Extratos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 4-7. Reproduzido na I Série do blogue, em poste de 12 de abril de 2006.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4013: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (V): Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)

(Continuação da publicação do Diário de Guerra, de Cristovão Aguiar)
Lisboa, 17 de Abril 1965

Sábado de Aleluia

Com repiques ao contrário den­tro de mim. Acabei de embar­car com a minha Companhia Independente de Caça­dores número oitocentos. Vamos com destino marcado para a Guiné. O "Ana Ma­falda" vai cheio de carne para canhão e ainda se encontra atracado no Cais da Ro­cha.
São três as companhias de caçadores e parte de uma de coman­dos e serviços de um batalhão. No salão de primeira classe, há pouco, houve discursos e vinho do Porto e uísque e sal­gadinhos.
Uma falta de respeito. Mal acabou a cerimónia, en­fiei-me no meu ca­ma­rote de primeira, pois en­tão! Morra Marta, mas morra farta! Estou para aqui so­zi­nho, la­vado em lágrimas, en­quanto os outros oficiais meus ca­ma­radas, talvez mais corajosos, se en­contram na amu­rada do navio nos últimos acenos de despedida. Puta de Pátria a minha!

Já fora Barra do Tejo, no mesmo dia, à noite

BARCO DE ESPERANÇA

Fizeste um barco de esperança e partiste
Ao longo de um mar verde de ternura.
Ficou no cais ainda o eco triste
Do mar acalentando a aventura...

Geme agora o mar contra a noite escura,
Num beijo sincopado de segredo...
E a alma num alentejo de secura
Cai de joelhos tran­sida de medo.

Medo da longa noite onde me canso,
Comprida noite onde nunca há descanso,
Nem estrela, nem barco ou gaivota...

E o mar que nos meus olhos cabia inteiro,
É agora um soluço de guerreiro,
Caindo em duas lágrimas de derrota.

18 de Abril

Mar e céu

neste Domingo de Páscoa triste, cele­brada com amêndoas amargas que nos serviram à sobremesa do almoço para que hou­vesse sabor a festa. O navio não dá um balanço sequer. No porão, os soldados jo­gam às car­tas e fazem algazarra. Ouço-os do deque de primeira. À mesa, o capitão só diz as­neiras com ar compenetrado e sábio.

22 de Abril

Véspera de chegada
.

Ainda se não adivinha terra nem rumor dela. Após a última refeição, passeio no deque, obstinada­mente, como um burro à roda da nora. Houve mudança súbita de ventos, o que fez com que logo cor­resse o boato de que estaríamos mudando de rumo.
Ainda se não perdeu a crença num súbito milagre que nos leve à Ilha do Sal, nosso primordial destino! Só assim, so­n­han­do, se aguenta esta patriótica estopada.


23 de Abril

Bissau

Evola-se desta terra avermelhada e ressequida um bafor que se transmite ao corpo e o faz destilar rios de suor. Logo após o de­sem­bar­que e com as tropas já aquarteladas na Amura, fomo-nos apresentar ao co­mando mili­tar. Desconhe­cia pura e simplesmente a nossa existência. Que não nos des­tiná­vamos a esta guerra, mas à da Ilha do Sal − foi-nos dito na secre­taria, antes de apresentarmos cumprimentos ao comandante.
Ainda olhámos uns para os outros com um pequeno clarão nos olhos, mas depressa nos desiludiu SEXA, refastelado no seu gabinete, com ar condicionado, onde pouco depois en­trámos, perfilados. Ti­nha na verdade havido um pequeno deslize de informação, mas iria ser ime­diata­men­te remediado. Ficaríamos, para compensar, à or­dem do comando-chefe. Uma honra para a nossa com­panhia, que tinha vindo da me­trópole para defender este tão pátrio chão.

26 Abril

Carreira de tiro

Fomos todos para a carreira de tiro treinar a ponta­ria e experimentar pela primeira vez as espingardas G3, que se utilizam nesta guerra. Nos cur­sos de preparação, em Mafra, Tavira e Santarém ainda se treina o pessoal com a Mauser da última guerra mundial. Que se divide em dez partes, a saber: cano com es­trias, coronha, gatilho, guarda-mato, etcetra e tal.

29 de Abril

Ordem unida na Amura

Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustra­da rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões ope­ra­cio­nais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não béli­cas, oito horas se­guidas de ordem unida, entremeada com passo de cor­rida.
Para que não hou­vesse que­bra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes des­sem, à vez e na ordem in­versa da sua antiguidade, duas horas de in­s­trução cada um. Ainda se acre­dita pia­mente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtu­des mili­tares, sobretudo da disci­plina.
No quartel da Amura, os velhos de caqui amarelo, que aguardam em­bar­que de regresso após dois anos de comissão, olharam para nós, maçaricos, vesti­dos de verde-bilioso-vomitado, como se pertencêssemos a outra ga­lá­xia.

5 de Maio

Primeiras baixas, nos arredores de Bissau
,

O nosso capitão e o seu guarda-costas foram feridos numa operação-treino nos arredores de Bissau. Foram ambos transportados de ur­gên­cia, de helicóptero, para o hospital militar. O primeiro, com estilhaços fin­ca­dos por todo o corpo; o último, sem as duas pernas dos joelhos para baixo e com as tri­pas de fora e sujas de terra. Como oficial mais antigo, tomei o co­mando da com­pa­nhia.


8 de Maio

Em Bissau, como Cmdt da CCaç 800

Recebi um rádio do gabinete do comando-chefe, anun­ciando a transferência para a metrópole do capitão e do seu soldado guarda-costas. Es­tou fragilizado e com muito medo. Não nasci para comandar tropas.
Para me sen­tir mais aconchegado e protegido no meio de toda esta engrenagem de inse­gurança e de morte pressentida, escrevi uma longa carta a meu tio Fran­cisco, que mal conheço, de­vido às zangas fraternais entre ele e meu Pai que se estenderam du­rante quase toda a minha vida. Agora estão de bem um com o outro. Fizeram as pa­zes há cerca de dois meses, após meu tio ter frequentado, durante três dias, um Curso de Cris­tan­dade na Ilha, na estância termal do vale das Furnas.
Soube-me bem acolher-me ao robusto tronco fami­liar, durante as duas breves horas de escrita epistolar, regada a lágrimas sa­borosas. Pressinto a morte, muito perto, rondando-me os gestos, as pa­la­vras e os pas­sos.


10 de Maio de 1965

No HM 241

Hospital Militar de Bissau, para uma pequena in­ter­venção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.
Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século. Saí do hospital pouco depois e vim para o quartel da Amura, sem sequer sentir necessidade de me ir recostar na tarimba. Fui antes para o bar dessedentar-me e dar umas boas tragaças, que o cigarro tem sido para mim um ex­celente camarada de armas...

24 de Maio de 1965

Bambadinca

Veio a companhia por aí a cima, sob o meu co­mando, escoltada por outras tropas e por brigadas especializadas na de­tecção e le­van­tamento de minas e armadilhas, atravessando terra-de-ninguém de Man­soa até aqui, em não sei quantas viaturas, abarrotando de tudo quanto é ne­ces­sário para ins­talar uma companhia operacional no mato, desde tarimbas de ferro até tachos e pa­nelas, pas­sando por móveis para a secretaria, que, na guerra, a papelada tem grande impor­tân­cia. Chamam-lhe mesmo a guerra dos papéis, por vezes ainda mais renhida do que a sua irmã colaça.
Chegámos à margem esquerda do rio Geba, es­tava um capitão, Ga­briel Tei­xeira de sua graça, com duas secções à nossa es­pera. Pertencem ao batalhão ao qual vamos ficar logisticamente ad­s­tritos, uma vez que, operacional­mente, conti­nuamos à ordem do comando-chefe.
Ainda temos, porém, de atravessar tudo de jan­gada para a outra mar­gem, incluindo as viaturas, a fim de seguirmos para Bafatá e de­pois para Con­tu­boel, nosso des­tino. O rio Geba está su­jeito ao regime das marés, nesta altura vivas, aqui chamadas macaréu, de forma que vamos demorar muito tempo até nos passar­mos to­dos para o lado de lá.

Bambadinca, 25 de Maio de 1965

A TUA AUSÊNCIA


A tua ausência
É este estar nu por dentro,
E ter um rosto velho
Gretado de suor
Do sol dos prados
E das manhãs
Que nunca tive...

Em cada segundo te habito
Como a loira canção das abelhas
O indomável cio
Das flores abrindo-se
Loucas de tesão...
__________

Notas:

1. Destaques da responsabilidade de vb

2. Último artigo do "Diário de Guerra", do Cristóvão de Aguiar em

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22626: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte V: Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)


N/M "Ana Mafalda" (1951-1975): navio misto (mercadorias e passageiros), que tinha o comprimento (fora a fora) de um campo de futebol... Alojamentos para 16 passageiros em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira classe, no total de 52... Nº de tripulantes: 47...


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada  dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote. 

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

1965

Lisboa, 17 de Abril 1965 - Sábado de Aleluia

Com repiques ao contrário den­tro de mim. Acabei de embar­car com a minha Companhia Independente de Caça­dores número oitocentos. Vamos com destino marcado para a Guiné. O "Ana Ma­falda" vai cheio de carne para canhão e ainda se encontra atracado no Cais da Ro­cha.

São três as companhias de caçadores e parte de uma de coman­dos e serviços de um batalhão. No salão de primeira classe, há pouco, houve discursos e vinho do Porto e uísque e sal­gadinhos.

Uma falta de respeito. Mal acabou a cerimónia, en­fiei-me no meu ca­ma­rote de primeira, pois en­tão! Morra Marta, mas morra farta! Estou para aqui so­zi­nho, la­vado em lágrimas, en­quanto os outros oficiais meus ca­ma­radas, talvez mais corajosos, se en­contram na amu­rada do navio nos últimos acenos de despedida. Puta de Pátria a minha!

Já fora Barra do Tejo, no mesmo dia, à noite

BARCO DE ESPERANÇA

Fizeste um barco de esperança e partiste
Ao longo de um mar verde de ternura.
Ficou no cais ainda o eco triste
Do mar acalentando a aventura...

Geme agora o mar contra a noite escura,
Num beijo sincopado de segredo...
E a alma num alentejo de secura
Cai de joelhos tran­sida de medo.

Medo da longa noite onde me canso,
Comprida noite onde nunca há descanso,
Nem estrela, nem barco ou gaivota...

E o mar que nos meus olhos cabia inteiro,
É agora um soluço de guerreiro,
Caindo em duas lágrimas de derrota.


18 de Abril - Mar e céu

Neste Domingo de Páscoa triste, cele­brada com amêndoas amargas que nos serviram à sobremesa do almoço para que hou­vesse sabor a festa. O navio não dá um balanço sequer. No porão, os soldados jo­gam às car­tas e fazem algazarra. Ouço-os do deque de primeira. À mesa, o capitão só diz as­neiras com ar compenetrado e sábio.

22 de Abril - Véspera de chegada.

Ainda se não adivinha terra nem rumor dela. Após a última refeição, passeio no deque, obstinada­mente, como um burro à roda da nora. Houve mudança súbita de ventos, o que fez com que logo cor­resse o boato de que estaríamos mudando de rumo.

Ainda se não perdeu a crença num súbito milagre que nos leve à Ilha do Sal, nosso primordial destino! Só assim, so­n­han­do, se aguenta esta patriótica estopada.


23 de Abril - Bissau

Evola-se desta terra avermelhada e ressequida um bafor que se transmite ao corpo e o faz destilar rios de suor. Logo após o de­sem­bar­que e com as tropas já aquarteladas na Amura, fomo-nos apresentar ao co­mando mili­tar. Desconhe­cia pura e simplesmente a nossa existência. Que não nos des­tiná­vamos a esta guerra, mas à da Ilha do Sal − foi-nos dito na secre­taria, antes de apresentarmos cumprimentos ao comandante.

Ainda olhámos uns para os outros com um pequeno clarão nos olhos, mas depressa nos desiludiu SEXA, refastelado no seu gabinete, com ar condicionado, onde pouco depois entrámos, perfilados. Ti­nha na verdade havido um pequeno deslize de informação, mas iria ser ime­diata­men­te remediado. Ficaríamos, para compensar, à or­dem do comando-chefe. Uma honra para a nossa com­panhia, que tinha vindo da me­trópole para defender este tão pátrio chão.

26 Abril - Carreira de tiro

Fomos todos para a carreira de tiro treinar a ponta­ria e experimentar pela primeira vez as espingardas G3, que se utilizam nesta guerra. Nos cur­sos de preparação, em Mafra, Tavira e Santarém ainda se treina o pessoal com a Mauser da última guerra mundial. Que se divide em dez partes, a saber: cano com es­trias, coronha, gatilho, guarda-mato, etcetra e tal.

29 de Abril - Ordem unida na Amura

Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustra­da rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões ope­ra­cio­nais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não béli­cas, oito horas se­guidas de ordem unida, entremeada com passo de corrida.

Para que não hou­vesse que­bra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes des­sem, à vez e na ordem in­versa da sua antiguidade, duas horas de in­s­trução cada um. Ainda se acre­dita pia­mente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtu­des mili­tares, sobretudo da disci­plina.

No quartel da Amura, os velhos de caqui amarelo, que aguardam em­bar­que de regresso após dois anos de comissão, olharam para nós, maçaricos, vesti­dos de verde-bilioso-vomitado, como se pertencêssemos a outra ga­lá­xia.


5 de Maio - Primeiras baixas, nos arredores de Bissau

O nosso capitão e o seu guarda-costas foram feridos numa operação-treino nos arredores de Bissau. Foram ambos transportados de ur­gên­cia, de helicóptero, para o hospital militar. O primeiro, com estilhaços fin­ca­dos por todo o corpo; o último, sem as duas pernas dos joelhos para baixo e com as tri­pas de fora e sujas de terra. Como oficial mais antigo, tomei o co­mando da com­pa­nhia.


8 de Maio - Em Bissau, como Cmdt da CCaç 800


Recebi um rádio do gabinete do comando-chefe, anun­ciando a transferência para a metrópole do capitão e do seu soldado guarda-costas. Es­tou fragilizado e com muito medo. Não nasci para comandar tropas.

Para me sen­tir mais aconchegado e protegido no meio de toda esta engrenagem de insegurança e de morte pressentida, escrevi uma longa carta a meu tio Fran­cisco, que mal conheço, de­vido às zangas fraternais entre ele e meu Pai que se estenderam du­rante quase toda a minha vida. Agora estão de bem um com o outro. Fizeram as pa­zes há cerca de dois meses, após meu tio ter frequentado, durante três dias, um Curso de Cris­tan­dade na Ilha, na estância termal do vale das Furnas.

Soube-me bem acolher-me ao robusto tronco fami­liar, durante as duas breves horas de escrita epistolar, regada a lágrimas sa­borosas. Pressinto a morte, muito perto, rondando-me os gestos, as pa­la­vras e os pas­sos.


10 de Maio de 1965 - No HM 241


Hospital Militar de Bissau, para uma pequena in­ter­venção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.

Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século. Saí do hospital pouco depois e vim para o quartel da Amura, sem sequer sentir necessidade de me ir recostar na tarimba. Fui antes para o bar dessedentar-me e dar umas boas tragaças, que o cigarro tem sido para mim um ex­celente camarada de armas...

24 de Maio de 1965 - Bambadinca


Veio a companhia por aí a cima, sob o meu co­mando, escoltada por outras tropas e por brigadas especializadas na de­tecção e le­van­tamento de minas e armadilhas, atravessando terra-de-ninguém de Man­soa até aqui, em não sei quantas viaturas, abarrotando de tudo quanto é ne­ces­sário para ins­talar uma companhia operacional no mato, desde tarimbas de ferro até tachos e pa­nelas, pas­sando por móveis para a secretaria, que, na guerra, a papelada tem grande impor­tân­cia. Chamam-lhe mesmo a guerra dos papéis, por vezes ainda mais renhida do que a sua irmã colaça.

Chegámos à margem esquerda 
[, o autor queria dizer direita.. ] do rio Geba, es­tava um capitão, Ga­briel Tei­xeira,  de sua graça, com duas secções à nossa es­pera. Pertencem ao batalhão ao qual vamos ficar logisticamente ad­s­tritos, uma vez que, operacional­mente, conti­nuamos à ordem do comando-chefe.

Ainda temos, porém, de atravessar tudo de jan­gada para a outra mar­gem  [, a esquerda...] , incluindo as viaturas, a fim de seguirmos para Bafatá e de­pois para Con­tu­boel, nosso des­tino. O rio Geba está su­jeito ao regime das marés, nesta altura vivas, aqui chamadas macaréu, de forma que vamos demorar muito tempo até nos passar­mos to­dos para o lado de lá.

Bambadinca, 25 de Maio de 1965

A TUA AUSÊNCIA

A tua ausência
É este estar nu por dentro,
E ter um rosto velho
Gretado de suor
Do sol dos prados
E das manhãs
Que nunca tive...

Em cada segundo te habito
Como a loira canção das abelhas
O indomável cio
Das flores abrindo-se
Loucas de tesão...

(Continua)
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Notas do editor: