sexta-feira, 6 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3990: Diário de uma tuga (Luís Graça) (1): Quando o meu relógio parou às 13h30h, Nhabijões, 13 de Janeiro de 1971

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1971 > A viatura Unimog 411 em que perdeu vida o Sol Cond Autor Manuel Almeida Soares, da CCAÇ 12 à saída do reordemento e destacamento de Nhabições, às 11h25 do dia 13 de Janeiro de 1971... O que restou da viatura (foto) foi rebocado para Bambadinca, sede do BART 2917 (1970/72), a que a CCAÇ 12 estava afecta como subunidade de intervenção.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada de Bambadinca - Mansambo - Xitole > 1969 > Efeitos da explosão de outra mina anticarro...

Fotos: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


Diário de um tuga (Luís Graça) (1):

Nhabijões, 13 de Janeiro de 1971.

E de súbito uma explosão. O sol dos trópicos desintegra-se. O céu torna-se bronze incandescente. O mamute de três toneladas dá um urro de morte ao ser projectado sob a lava do vulcão. E depois, silêncio...

Era uma hora e meia da tarde quando o meu relógio parou, na estrada de Nhabijões-Bambadinca…

A viatura vai despenhar-se num abismo imaginário. Volatizar-se como uma aeronave ao reentrar na atmosfera. Sou projectado ao lado do condutor, batendo violentamente com a cabeça na chapa do tejadilho e depois com a testa e os joelhos na parte da frente. Consigo equilibrar-me mas não vejo nada. Há uma espessa nuvem de pó que me envolve, exalando um forte cheiro a enxofre. Ainda consigo pensar: o ar está rarefeito e eu vou sufocar dentro desta maldita cabina.

Foi então que se produziu uma espécie de curto-circuito no meu cérebro, como se eu tivesse sido electrocutado. Fiquei rigidamente colado ao assento, a G3 estranhamente entrelaçada nas minhas pernas, e a vaga sensação de que a massa encefálica me tinha saltado da caixa craniana. O olhar vidrado de quem mergulhou nas profundezas da terra. O gélido terror de quem vai entrar num mundo desconhecido.

Nunca saberei ao certo quantos segundos se passaram, mas houve um solução de continuidade (essa fracção de tempo em que a consciência esteve bloqueada) até compreender que a velha GMC tinha accionada... uma mina.

Outra mina, meu Deus!, e instintivamente agarro-me àquela carcaça de mamute, mal refeito da surpresa de estar vivo.

Quando salto para o chão, o que se me depara como espectáculo são os destroços duma batalha: há corpos por todo o lado, juntamente com espingardas, cantis, quicos, canos de bazuca e de morteiro, granadas, bocados de chapa e de borracha, numa profusão indescritível. Corpos que gemem, que gritam, ou que talvez já sejam cadáveres.

Mortos! Tudo mortos, mi furiele! – grita-me o Umaru [, aqui na foto comigo,] , o puto, como lhe chamamos (e o que é ele, de resto, senão uma criança violentada pela guerra que aos dezasseis ou dezassete anos trocou a mauser das milícias pelo morteiro 60 de uma companhia de carne para canhão!?), os braços abertos, o pânico estampado no seu belo rosto de efebo, fula, filho de régulo. Era a primeira vez porventura que o via sem o seu inseparável pequeno cachimbo, que ele, fumador inveterado, usava para lhe dar o ar sério de homem grande.

O primeiro ferido que reconheço é o transmissões, todo encolhido junto à viatura destruída, numa atitude instintiva de defesa, e sob forte estado de choque. Abeiro-me depois do comandante da 1ª secção, meu companheiro de quarto, o Marques, mas ele já não reage à minha voz nem às bofetadas que lhe dou no rosto.

Aparentemente não tem qualquer fractura exposta mas de um dos ouvidos corre-lhe um fio de sangue. Procuro desesperadamente os sinais de que ainda está vivo: a sua respiração é cada vez mais fraca e não é sem um calafrio que tacteio este pulso que se me escapa.

Trágica ironia, a de mais este banal episódio de guerra: minutos antes, ao subirmos para a viatura, de regresso a Bambadinca, eu havia disputado amigavelmente o 'lugar do morto', com o Marques [ aqui na foto comigo]:
- Vais tu, vou eu, vais tu, vou eu!...

Acabei por ir eu ao lado do condutor. Mas daquela vez, e para sorte minha, a mina rebentaria sob um dos rodados duplos traseiros da GMC, embora do meu lado. O condutor tinha acabado de fazer a inversão de marcha, para regressarmos ao quartel.


Outra puta de mina, meu Deus! - que fora não detectada
pelos nossos picadores, accionada na berma da estrada,
às portas do reordenamento de Nhabijões, a escassos
metros da anterior.

Estávamos de piquete, quando duas horas antes uma viatura nossa , que ia buscar, a Bambadincao almoço para o pessoal afecto aos trabalhos de reordenamento, accionara uma mina. O nosso condutor, o Soares, teve morte imediata. Pobre do Soares, aos 20 meses de comissão...

O Furriel Fernandes, meu camarada da CCAÇ 12 (foto à esquerda, ao lado do Levezinho), ficou gravemente ferido. O alferes sapador Moreira e outro militar da CCS do BART 2917 ficaram também feridos… O Moreira, ao que parece, com gravidade. (Foto, à direita, em cima)

Mas só agora reparo no velho Tenon, no Ussumane, no Sherifo, mesmo ao meu lado, a meus pés, sem darem acordo de si. E ainda no Quecuta, no Cherno e no Samba, nosso bazuqueiro, arrastando-se penosamente sobre os membros superiores, como lagartos cortados ao meio.

As duas secções que seguiam atrás, na GMC, tinham sido literalmente projectadas pela vulcão de trotil, como se fossem cachos de bananas. Se o rebentamente da mina fosse seguido de emboscada, então seria um massacre. Eu era o único que tinha uma arma na mão, sem bala na câmara, como de costume, mas desta vez provavelmente inoperacional, devido ao choque sofrido… E, de facto, não deixo de sentir um arrepio ao imaginar-me sob a mira certeira dos RPG e o matraquear das costureirinhas e das Kalash.

Felizmente, tínhamos acabado de fazer o reconhecimento das imediações, detectando o trilho dos elementos da guerrilha que, durante a noite, tinham vindo pôr as minas assassinas… Esse trilho, mais fresco, acabava por confundir-se com os trilhos usados pela população de Nhabijões que, como é sabido, não morre de amores por nós… Por outro lado, o sítio, descapinado, não seria o mais indicado para montar uma emboscada...

É possível, entretanto, que haja mais minas pela estrada fora, mas não posso perder nem mais um segundo. Ainda hesito em mandar picar ou não o terreno, mais alguns metros em redor, mas não posso perder tempo, para logo seguir , de imediato, para o heliporto de Bambadinca com os feridos mais graves. Foram pedidas várias evacuações Ypsilon, via rádio.

Mais até do que a solidariedade entre camaradas de guerra e a minha amizade pelo Marques, o que me parece mover, correr feito louco, com os feridos a gritar pela picada fora, é talvez o sentimento do absurdo da morte, do absurdo desta guerra, a raiva contra esta guerra...

É uma corrida louca, esta, na fronteira incerta que separa a vida da morte na estrada de Nhabijões, no primeiro Unimog que me apareceu à mão, e que leva um carregamento de feridos. Três deles estão em estado de coma e têm como destino outro inferno: o hospital de Bissau, a incerteza do desfecho da luta entre a vida e a morte aos vinte e poucos anos (***)...

_____________________

Notas de L.G.:

(*) Já publicado, na I Série do blogue, sob outro título: 2 de Dezembro 2005 >
Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

Vd. também postes de:

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)

6 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3989: Agenda cultural (2): O pintor Manuel Botelho expõe no Porto e homenageia o malogrado Sold Cond Soares, da CCAÇ 12 (Beja Santos)

(**) O Luís Moreira é hoje membro da nossa tertúlia. Era então alferes miliciano sapador da CCS do BART 2817. Depois de recuperado ficou no BENG, em Bissau. Vim a reencontrá-lo como professor de matemática do ensino secundário. Já deve estar hoje reformado.

(***) O Marques sofreu politraumatismos que o puseram à beira da morte. Saído do coma, ao fim de duas semanas e meia, tinha uma perna gangrenada... A sua recuperação foi lenta e difícil, tendo conhecido o longo calvário dos hospitais militares (Bissau e depois Lisboa). É hoje mais um DFA (deficiente das forças armadas), além de bem sucedido comerciante na cidade de Cascais, já reformado. Infelizmente, não é membro da nossa Tabanca Grande. O Manuel Almeida Soares, por sua vez, está sepultado na sua terra, Oliveira de Azeméis. Não tenho, infelizmente, nenhuma foto dele. Dos meus camaradas guineenses da CCAÇ 12, também gravemente feridos nesta mina, perdi o rasto...

Guiné 63/74 - P3989: Agenda cultural (3): O pintor Manuel Botelho expõe no Porto e homenageia o malogrado Sold Cond Soares, da CCAÇ 12 (Beja Santos)

Aguarela do pintor Manuel Botelho > 2008 > Título: "A viatura Unimog era conduzida pelo soldado Soares". Cortesia do autor. Agradecimentos ao Beja Santos que nos fez chegar a imagem.



Galeria Fernando Santos> Espaço 531 > Aerograma (***)

Rua Miguel Bombarda, 5264050 – 379 Porto / Portugal
Tel + 351 22 606 10 90 / Fax + 351 22 606 10 99

Email: geral@galeriafernandosantos.com

Página na Net: http://www.galeriafernandosantos.com/

1. Duas mensagens do nosso camarada Beja Santos, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70):

(i) 5 de Março de 2009:

Luis, o Manuel Botelho tem frequentado assiduamente o nosso blogue, como sabes, aqui se inspira para as suas obras-primas. Adora as fotografias do Humberto Reis, muito justamente. Não tens tido paciência para os meus escritos, mas desta vez peço-te encarecidamente que divulgues esta iniciativa do único grande nome das artes plásticas que vai beber à nossa fonte .Ele é o autor da aguarela onde vemos o Unimog 411 em que morreu o soldado-condutor Soares.

Recebe um abraço do Mário

Comentário de L.G.:

Mário: Já te tinho dito que precisava de tempo para dar um pouco mais de atenção ao teu encarecido pedido... A nossa equipa de editores tem estado um pouco desfalcada, por razões da vida pessoal de uns ou da saúde de outros... Estando a meio gás, não é possível dar imediata resposta a todos os pedidos dos camaradas e amigos da Guiné. E depois há que definir prioridades em termos editoriais.

Como te prometi, não te esqueci nem te podia esquecer, a ti, ao Botelho e ao Soares. Dá um grande abraço ao teu amigo pintor. Diz-lhe que ficamos sensibilizados e agradecidos por ele, como artista plástico, saber e poder encontrar motivos de inspiração no nosso blogue e na fotogaleria do Humberto Reis. A malta de Bambadinca do nosso tempo, e em especial os camaradas da CCAÇ 12, sentem-se honrados por esta justa homenagem à memória do Manuel Soares, morto quase na recta final, a 20 meses de comissão... à saída do reordenamento de
Nhabijões (entre Bambadinca e o Xime).

Não sei se sabes (já estavas em Lisboa nessa altura), nesse dia o meu relógio parou às 13h3O no mesmo local onde o pobre do Soares encontrara a morte duas horas antes. Havia uma segunda mina anticarro à espera do pelotão de intervenção em que eu estava integrado. Voei literalmente numa velha GMC. Nunca mais consegui esquecer esse e outros dias negros... Foi um dia trágico, esse 13 de Janeiro de 1970 (*).

Boa sorte para a exposição no Porto. Vamos convidar a nossa malta (e em especial a da Tabanca de Matosinhos) a dar lá um salto à Galeria Fernando Santos. O Soares era nortenho, de Oliveira de Azeméis.


Um Alfa Bravo. Luís

(ii) 27 de Janeiro de 2009:

Luís, esta obra de arte [vd. imagem acima] envolve um acontecimento doloroso, a mina nos Nhabijões que vitimou mortalmente o nosso querido Soares e feriu vários camaradas teus (*).

O pintor Manuel Botelho, de quem sou profundo amigo, realizou uma exposição de fotografia no Museu da Electricidade, em 2008, que teve a singularidade de versar ambientes ficcionados da Guerra Colonial (**). Aqui há uns meses convidou-me a ir ao seu estúdio ver os trabalhos que irá expor nas suas próximas exposições. Uma tem a ver novamente com fotografia, outra prende-se com aguarelas baseadas em temas da guerra.

Comoveu-me profundamente esta obra de arte derivada de uma fotografia que vem no Tigre Vadio e cujo autor é o nosso extremoso Humberto Reis. Pedi licença ao Manuel Botelho para publicarmos em primeira-mão esta imagem de um Unimog 411 destroçado. Estou comovido por sermos dignos da atenção de um grande pintor português, o querido Soares passa assim à posteridade nas artes plásticas.

Mas estou também comovido por que ele é um dos mortos da CCaç 12, camaradas de tantas andanças.

Recebe um grande abraço do Mário


____________

Notas de L.G.:

(*) Mário: froam duas minas, com um intervalo de duas horas... Manuel da Costa Soares, "morto na sequência de ferimentos em combate por rebentamento de uma mina em Nhabijões" [ou melhor, teve morte instantânea], no dia 13 de Janeiro de 1971, às 11h25, aos 20 meses de comissão... Era natural de Oliveira de Azeméis, concelho que perdeu doze filhos só no TO da Guiné. Era Sold Cond Auto da CCAÇ 2590, mais tarde CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971).

Vd. os seguintes postes:

13 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3451: O Nosso Livro de Visitas (43): A. Almeida da Liga dos Combatentes de Oliveira de Azeméis

19 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2454: PAIGC - Instrução, táctica e logística (8): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VIII Parte): Minas III (A. Marques Lopes)

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)

(...) "O dia 13 seria uma data fatídica para as NT, e em especial para a CCAÇ 12 cujos quadros metropolitanos estavam prestes a terminar a sua comissão de serviço em terras da Guiné. Eis o filme dos acontecimentos:

"(i) Às 5.45h o 1º Gr Comb detectou, durante a batida à região de Ponta Coli, vestígios dum grupo IN de 20 elementos, vindos em acção de reconhecimento aos trabalhos da TECNIL na estrada Bambadinca-Xime e locais de instalação das NT.

"(ii) Às 11.25h, na estrada de Nhabijões-Bambadinca, uma viatura tipo Unimog 411, conduzida pelo Sold Soares (CCAÇ 12) que ia buscar [a Bambadinca] a 2ª refeição para o pessoal daquele destacamento, accionou uma mina A/C. O condutor teve morte instantânea. Ficaram gravemente feridos 1 Oficial (CCS / BART 2917)[Alf Mil Moreira], 1 Sargento (Fur Mil Fernandes/CCAÇ 12) e 1 Praça (CCS / BART 2917).

"(iii) Imediatamente alertadas as NT em Bambadinca, o Gr Comb de intervenção (4º, CCAÇ 12) recebeu a missão de seguir para o local a fim de fazer o reconhecimento da zona, enquanto outras forças acorriam a socorrer os sinistrados.

"Ao chegar junto da viatura minada, o Cmdt do 4° Gr Comb [Alf Mil Rodrigues] deixou duas praças a fazer a pesquisa, na estrada e imediações, de outros possíveis engenhos explosivos, no que foram apoiados por alguns elementos do destacamento, seguindo depois uma pista de peugadas recentes, detectadas nas proximidades, e que se dirigiam para a orla da mata.

"Aqui, a 50 metros da estrada, atrás duma árvore incrustada num baga-baga, encontraram-se vestígios muito recentes. Seguindo os rastos através da mata, foi dar-se à antiga tabanca de Imbumbe [um dos cinco núcleos populacionais de Nhabijões, agora transferidos para o reordenamento], mas nas proximidades do reordenamento (Bolubate) aqueles passaram a confundir-se com os do pessoal que trabalha na bolanha.

"(iv) Regressado ao local das viaturas, o Gr Comb pelas 13.30h recebeu ordens para recolher, tendo o pessoal tomado lugar no Unimog e na GMC em que tinha vindo. Esta última [onde vinham as secções, comandadas pelos Fur Mil Marques e Henriques] , entretanto, ao fazer inversão de marcha, e tendo saído fora da estrada com o rodado trazeiro, accionaria uma outra mina A/C colocada na berma, a 10 metros da anterior, e que não havia sido detectada pelos picadores.

"Em resultado de terem sido projectados, ficaram gravemente feridos o Fur Mil Marques e os Sold Quecuta, Sherifo, Tenen e Ussumane. Sofreram escoriações e traumatismos de menor grau o Alf Mil Rodrigues, o Sold Trms Pereira e os Sold Cherno e Samba" (...).

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

(...) "E de súbito uma explosão. O sol dos trópicos desintegra-se. O céu torna-se bronze incandescente. O mamute de três toneladas dá um urro de morte ao ser projectado sob a lava do vulcão. E depois, silêncio... Era uma hora e meia da tarde quando o meu relógio parou, na estrada de Nhabijões-Bambadinca" (...).

(**) 23 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2875: Agenda Cultural (1): A Guerra Colonial na Pintura, Cinema e Literatura.

(***) Vd. Recortes de imprensa (Público > Guia do lazer > Exposições)

Aerograma

Depois de três grandes séries fotográficas dedicadas à Guerra Colonial, Manuel Botelho regressa ao desenho, sobre o mesmo tema. Até 14 de Abril na Galeria Fernando Santos, no Porto.

"Aerogramas" eram mensagens, cartas trocadas entre militares em serviço em Angola, Guiné e Moçambique e as respectivas mães, namoradas, esposas e madrinhas de guerra. Os desenhos desta nova série de Manuel Botelho (n.1950, Lisboa) conjugam texto e imagem - lemos excertos de "aerogramas" originais, como por exemplo, "casei-me pelo civil com uma fotografia que estava em cima da mesa".

Em 2008, Botelho apresentou em três locais distintos, na Lisboa 20 Arte Contemporânea, no Museu de Arte Contemporânea de Elvas e na Fundação EDP, uma extensa série de fotografias sobre a Guerra Colonial.

Guiné 63/74 - P3988: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (13): Hugo Gerra, que lutou contra Nino e os cubanos

1. Comentário do Hugo Guerra ao Poste P3951 (*). O Hugo foi Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60, (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70); hoje é Coronel, DFA, na reforma. 

 A Visão de ontem, nº 835, de 5 a 11 de Março de 2009, já trouxe uma nota de "rectificação", assinada pelo jornalista Luís Almeida Martins, que é também um pedido de desculpas aos ex-combatentes que se sentiram indignados com um parágrafo do seu artigo "Portugal e o passado". 

O nosso blogue irá dar por encerrada esta série, com a publicação, este fim de semana, de uma anterior resposta do jornalista a todos os que lhe escreveram, resposta essa que eu, em nome da Tabanca Grande e dos meus co-editores, aceito e considero como razoável, suficiente e civilizada (LG). 

  2. Olho por olho... (**) por Hugo Guerra 

 Camaradas e amigos e já agora Senhores Jornalistas Eu gosto muito de futebol, mas como só fui uma vez a um jogo ver a despedida do [José] Travassos, já lá vão mais de 55 anos(?), limito-me a ver pela TV e não mando bitaites sobre um assunto onde não pesco nada. 

 Vai daí que me seja difícil entender algumas barbaridades que profissionais da comunicação social escrevem como se percebessem alguma coisa do que falam. Claro que me estou a referir ao artigo da Visão (**) e também à solidariedade manifestada pela Diana Andringa com a classe jornalística, tentando pôr água na fervura num panelão que ainda está em ebulição. 

 Não escrevam disparates ofensivos para toda uma geração que por lá passou, e ouçam todas as partes que viveram o verdadeiro conflito. Todas as noites quando me deito e tiro o meu "olho de vidro" para meter num copo de água (magoa-me dormir com aquele caco há 38 anos), não posso deixar de me sentir revoltado e indignado com o que acontece à nossa volta e o que é escrito com alguma leviandade quase 40 anos após Março de 1961. 

 Quando embarquei no cargueiro Ana Mafalda em Setembro de 1968, fiquei escandalizado por ver, no mesmo camarote que o meu, a bagagem de um Alferes que levava uma raquete de ténis. Aquilo mexeu comigo e senti-me como se tivesse apanhado o comboio errado. Só depois soube que ele era de Administração Militar e ia fazer Contabilidade no QG de Bissau. Ficámos muito amigos e nunca deixei de sentir um pouco de raiva pela malvada sorte. Possivelmente foi com ele que o Senhor Jornalista da Visão falou para estar tão bem informado da Guiné. Mas, como eu calculo que ele venha ler o nosso blogue, vou aqui descrever um pequeno apontamento dessa mesma altura em que o General Spínola vivia em Bissau e este pobre escriba, mais os outros largos milhares, foram colocados frente a frente com os turras. 

 A mim calhou-me o Nino Vieira e sus muchachos cubanos, pois fui parar em Gandembel. E, se ele tem dúvidas dos contactos entre as NT e o IN, só lamento que não me tenha acompanhado numa incursão ao Corredor de Guileje onde vi, ouvi e assisti à morte de vários soldados do PAIGC, fortemente armados e que as tropas pára-quedistas emboscaram com êxito. 

 Mas esta foi uma confrontação minha em terreno aberto, sem napalm nem massacres,( que também os houve mas noutros palcos), deve ser a bem da verdade multiplicada por n vezes no TO da Guiné. Para não restarem dúvidas sobre os contactos que o "marciano" da Visão nunca viu, ainda lhe digo, na continuação, que nessa noite fomos cercados dentro do nosso aquartelamento de Gandembel e a tão pouca distância uns dos outros que dava para rir, se não fosse tão sério, a troca de insultos entre eles e nós (filho da puta e outros), antes e durante o fogachal que nessas noites só acabava de madrugada, quando chegava a força aérea; e lá vinha também o nosso General Spinola que para dar ânimo às tropas subia para cima duma caserna e desafiava o IN a vir lá para se haver com ele, coisa difícil de acontecer pois os sobreviventes já tinham recolhido para lá da fronteira. 

 Quanto aos acidentes de viação sem mais, é duma brutalidade a sua afirmação que só me admiro que nenhum dos sobreviventes feridos gravemente não tenha ainda mandado com uma perna postiça ao Senhor Jornalista. Pela minha parte vou só enviar-lhe um "olho de vidro" que não uso agora, que sempre é mais leve que uma perna e que pode colocar num copo de água todas as noites à cabeceira da cama para ver se começa a perceber que aquilo não foi a guerra do Solnado e nós na Guiné combatíamos como homens e não como assassinos. 

 Um abraço do Hugo Guerra 

 PS: De Setembro de 1970 a Setembro de 1974 vivi e trabalhei em Angola. Aí a história é outra e, embora como civil, corri Angola de carro do Zaire a Nova Lisboa e do Ambriz a Negage. Um dia poderei falar dessa minha experiência, se for considerado conveniente. 

 _______________ 

 Nota de L.G.: 

 (*) Vd. poste de 28 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3951: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (8): Diana Andringa, jornalista e cineasta 


quinta-feira, 5 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3987: Recortes de Imprensa (14): Soldados mortos na guerra colonial terão memorial no Porto, JN de 5/3/2009 (Jorge Teixeira)

1. Mensagem de Jorge Teixeira com data de 5 de Março de 2009:

Caros amigos
Leiam esta notícia. Pelo menos a minha cidade vai ter um Memorial recordando os nossos mortos.

Ao Carlos Vinhal, se achar por bem, pode colocar lá na Tabanca Grande um poste.
Na nossa de Matosinhos já lá está.

Um abraço de amizade para todos.


2. Com a devida vénia, transcrevemos uma notícia inserida no Jornal de Notícias de hoje, 5 de Março de 2009




Porto

Soldados mortos na guerra colonial terão memorial no Porto.
Os 167 militares do Porto que morreram em combate nas ex-províncias ultramarinas portuguesas vão ser recordados num Memorial que será construído nas imediações do Castelo de S. João da Foz, revelou Miguel Lencastre, um dos promotores da iniciativa.

"Na cidade do Porto não há nenhum memorial que recorde os combatentes que nasceram neste concelho", frisou Miguel Lencastre, acrescentando que "alguns camaradas de armas desses combatentes não se conformaram com a situação e propuseram-se a reparar a omissão",

Nesse sentido, em meados de 2008, foi criada a Associação para o Monumento de Homenagem aos Militares do Porto que Combateram no Ultramar, cujo único objectivo é a construção do Memorial.

O projecto deste monumento, da autoria do arquitecto Rodrigo Brito, vai ser apresentado publicamente a 12 de Março, numa cerimónia que terá lugar no Castelo de S. João da Foz.

"O monumento não será majestático nem sumptuoso, mas será digno", salientou Miguel Lencastre, da direcção da associação promotora da iniciativa.

O Memorial, basicamente constituído por placas de bronze onde serão gravados os nomes dos militares portuenses que morreram em combate nas antigas colónias portuguesas, será instalado num local situado no exterior das muralhas daquele castelo, situado junto à Foz do Douro.

Segundo dados oficiais do Estado-Maior General das Forças Armadas, são 167 os militares naturais do Porto que perderam a vida na guerra colonial.

Miguel Lencastre salientou que a associação não recebeu qualquer promessa de apoio das entidades oficiais que contactou, pelo que vai contar com a solidariedade dos portuenses para reunir os fundos necessários para a construção do monumento.

"Acreditamos que será uma questão de honra para os portuenses contribuir para este memorial, que pretende homenagear os que se sacrificaram pela Pátria", afirmou.

A Associação para o Monumento de Homenagem aos Militares do Porto que Combateram no Ultramar conta como membros dos órgãos sociais, entre outros, o coronel António Feijó de Andrade Gomes, que é o presidente da direcção, e o tenente-general Carlos de Azeredo, que preside à mesa da assembleia-geral.


3. Comentário de CV

Ainda bem que o concelho do Porto vai perpetuar a memória dos seus ex-combatentes da guerra do ultramar.

Esperamos (espero) que este exemplo se multiplique pelos concelhos do País onde ainda não existe um memorial lembrando o esforço da nossa geração.

Espero que os autarcas do Concelho de Matosinhos resolvam a curto prazo homenagear os seus munícipes ex-combatentes, enquanto ainda vivos, porque já são volvidos 35 anos após o fim da guerra e nós não duraremos muitos mais.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste de 14 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3738: Recortes de Imprensa (13): A minha Guerra - José Paulo Pestana, Correio da Manhã, de 4/1/ 2009 (José Martins)

Guiné 63/74 - P3986: O Nosso Livro de Visitas (57): Tony Grilo, Canadá: Artilheiro, apontador de obus 8,8 (Bissau, Cabedu, Cacine, Cameconde,1966/68)


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cantanhez > Cabedu > Restos (arqueológicos...) do antigo destacamento de Cabedu... Por aqui passaram, em 1963/56, os valorosos e esforçados militares portgueses da CCAÇ 555, comandados pelo Cap Inf António Ritto e de que fazia parte o Fur Mil At Inf Norberto Gomes da Costa, hoje mestre em história, e que passa a integrar a nossa Tabanca Grande.

Foto: © José Teixeira(2008). Direitos reservados.

1. Mensagem de Tony Grilo com data de 26 de Fevereiro de 2009 dirigida ao nosso Blogue

Amigo Graça:

Desculpa o meu começo Pois eu sigo os teus conselhos. Na tabanca todos nos tratamos por tu, e aí vai.

Caro amigo Graça, primeiro que tudo quero felicitar-te pela tua obra.

Agora se me dás licença, vou-me apresentar: O meu nome é Tony Grilo, cumpri o serviço militar, um ano e meio, em Portugal, e em 1966 fui mobilizado para a Guiné.

Saímos, no dia 31 de Maio de 1966, do cais de Alcântara no navio Alfredo da Silva. A viagem demorou 6 dias, percorremos 3666 milhas marítimas e chegámos no dia 6 de Junho de 1966.

O navio ficou ao largo, à espera do capitão de porto para o rebocar para o cais. E ali também vinham 6 pessoas.

Isto é apenas uma pequena história que sucedeu.

Agora vou contar-te algo mais sobre a minha pessoa!

Estive 24 meses na Guiné, era Apontador do obus 8,8 e a nossa Bateria, estava situada no QG em Bissau.

Estive ali só 2 semanas, pois fui enviado logo para o mato, Cabedu, ao Sul da Guiné, na célebre mata do Cantanhez.

Estive lá longos 18 meses, onde a vida era difícil, muita fome aí passávamos.

Ao fim desse tempo regressei a Bissau.

Como era bom rapaz e o capitão engraçou comigo, disse logo ao Primeiro para me marcar viagem para o mato. O motivo foi por me desenfiar do quartel. Não havendo sítio melhor, fui logo para Cacine e Cameconde, também ao Sul, na área do Cantanhez.

Graça, isto é só um pequeno apontamento, pois agora que tenho o vosso E-Mail, já é mais fácil contar as minhas histórias da passagem pela Guiné.

Actualmente vivo no Canadá, já há 38 anos, estou reformado e estou a pensar regressar ao nosso lindo Portugal em fins de Maio deste ano.

Graça, em breve vou-te enviar as minhas fotos.

Queria pedir-te um especial favor: gostaria de saber como contactar com camaradas da [CCAÇ] 1427, [CART] 1614 e da BAC que estiveram nos anos 1966 a 1968.

Um grande abraço a todos os camaradas da Tabanca Grande.

Para o Graça um forte abraço, deste teu camarada que terá muito gosto em conhecer-te pessoalmente.

Talvez em breve aquando do meu regresso a Portugal!

Até breve, caro AMIGO!

Tony Grilo

2. Mensagem de Luís Graça para Tony Grilo, com data de 27 de Fevereiro de 2009:

Tony:

Sê bem-vindo. Vou publicar (eu ou o Carlos Vinhal) a tua mensagem. Presumo que queiras figurar no nosso blogue (e na nossa Tabanca Grande) com as fotos da praxe (pelo menos uma antiga, do teu tempo de artilheiro) e outra actual.

Então vives no Canadá... Em que sítio? Toronto? E já agora, em que terra nasceste ou aonde costumas vir, de férias?

Olha, tenho ideia que me mandaste mais dois mails, a seguir a este. Pode ter acontecido eu tê-los eliminado sem querer, pensando tratar-se de Spam... Podes fazer o favor de os reencaminhar de novo para mim ?

Um bom fim de semana, camarada e amigo Tony. Vai gozando a tua reforma com saúde.
Recebe um abração do Luís


3. Comentário de CV

Caro Tony, esperamos as tuas notícias e as fotos da praxe.

Suponho que foste em rendição individual para seres colocado na Artlharia (BAC]em Bissau.

Hás-de contar-nos mais pormenores das tuas aventuras durante a tua estadia no mato, disparando aquelas velhas, mas eficazes peças.

Como diz o Luís Graça, gostaríamos de saber mais de ti, como por exemplo, o teu antigo posto militar, onde é a tua terra natal e outras coisas mais que nos possas contar.

Recebe um abraço em nome da tertúlia.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3792: O Nosso Livro de Visitas (56): Paulo Botelho procura fotos da CCAÇ 2789, Guiné, 1970/72

Guiné 63/74 - P3985: Da Suécia com saudade (9) (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (9): Por que não fui desertor

Guiné > Região controlada pelo PAIGC, possivelmente na Região de Tombali, no Cantanhez > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas (leia-se: sob controlo do PAIGC) > Novembro de 1970 > Foto nº 45 > Trabalhadores (inevitavelmente balantas) no cultivo do arroz. (Como é sabido, o sul da Guiné era tradicionalmente, e ainda é, o grande celeiro do país).
Sabemos hoje que parte da população controlada pelo PAIGC vivendo dentro do território da Guiné, nas chamadas regiões libertadas (estimada em 80 mil pelas autortidades portuguesas) tinha que ser reabastecida, em arroz, alimentação-base, por não ser autosuficiente. A Inter-Região Sul (à excepção da Frente Bafatá/Gabú Sul) era auto-suficiente na produção de arroz, enquanto a Inter-Região Norte era deficitária.
O fotógrafo norueguês Knut Andreasson e antiga deputada e ex-Presidente do Parlamento sueco, Birgitta Dahl, juntamente com uma delegação sueca, visitaram, a convite do PAIGC, as regiões libertadas na Guiné-Bissau, em Novembro de 1970. Nessa visita tiveram a oportunidade de falar com Amílcar Cabral, na sua casa, entre a sua gente, e obter um conhecimento mais aprofundado da luta pela independência.

Andreasson e Dahl fizeram mais tarde um livro, em sueco, sobre a sua histórica viagem. O Andreasson, por sua vez, fez uma exposição fotográfica com o objectivo de informar a opinião pública dos países nórdicos sobre a luta do PAIGC.

Não só a exposição, mas como a maioria das fotos deste período foram, posteriormente, doadas ao INA - Instituto Nórdico para a África [NAI - Nordic Africa Institute] pela viúva de Andreasson, entretanto falecido . A exposição foi doada à Fundação Amílcar Cabral pelo INA e apresentada por Birgitta Dahl, ex-presidente do parlamento sueco, por ocasião da celebração do 80º aniversário do nascimento do Amílcar Cabral, em Setembro de 2004.

As fotografias tiradas por Knut Andreasson mostram a vida do dia-a-dia das populações e dos guerrilheiros do PAIGC, nas chamadas regiões libertadas. No sítio do NAI, diz-se expressamente que, sendo a Guiné um intrincada rede rios e braços de mar, "a canoa é um importante meio de transporte nestas regiões, tanto mais que os portugueses fizeram explodir (sic) a maior parte das pontes existentes"...

Não há, contrariamente às fotos do húngaro Bara, qualquer alusão à utilização de napalm contra as populações civis, por parte da Força Aérea Portuguesa.

Uma das célebres fotos de Bara István, o fotógrafo húngaro que esteve 'embebed' com forças do PAIGC, no mato, em 1969/70. (Hoje é um vulgaríssimo fotógrafo comercial). Nesta imagem, da sua fotogaleria, mostram-se os efeitos do napalm. É difícil provar ou negar a sua autenticidade. Presume-se que seja uma vítima dos nossos bombardeamentos.

(A foto ilustra um dos poemas do nosso José Manuel Lopes, que está neste momento a atrevessar a Gâmbia, de regresso a casa, com mais malta da Expedição Humanitária 2009 que foi á Guiné-Bissau). Não se diz exactamente onde foi tirada. A legenda (em húngaro) é a seguinte: Bara István: Napalm áldozata [vítima de napalm, traduzindo para em português].Guinea-Bissau, 1969. Julgamos tratar-se de uma imagem copyleft... De qualquer modo, reproduzimo-la com a devida vénia e agradecimento ao autor e citando a sua página (comercial). Foto: Foto Bara (com a devida vénia...)
Retomando o sítio do INA - Instituto Nórdico para a África, faz-se igualmente referência à histórica taxa de analfabetismo ("mais de 99% da população era analfabeta, quando a luta começou em 1963"), daí a importância atribuída pelo PAIGC à educação. Várias fotografias mostram escolas no mato, tanto para crianças como para adultos adultos.
É referida então "a existência de 75 dessas escolas, sendo uma das primeiras a Escola Piloto em Conacri". É referido também o novo manual escolar, financiado por estudantes noruegueses e impresso na Suécia (*). As imagens, disponíveis no sítio da NAI, mostram também aspectos da organização sanitária do PAIGC e da vida comunitária, de resto em maior núemro do que as fotos de guerra...

Recorde-se que o
Nordic Africa Institute é uma agência dos países nórdicos, com sede na Suécia, em Upsala.

Fonte:
Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI ou INA,. dada por escrito ao editor) (As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda) (LG)

1. Mensagem do José Belo, ex-Alf Mil, CCaç 2381, Guiné/68-70/, Ingoré-Buba-Aldeia Formosa-Mampatá-Empada, hoje Cap Inf Ref, na diáspora, na Suécia (**) [Não possuímos infelizmente qualquer foto do José Belo]

(Peço desculpas aos camaradas por erros ortográficos resultantes de dislexia, que, aparentemente, se vai agravando com o passar doa anos, não tendo o meu computador sueco possibilidades de correcção automática da língua portuguesa).
[Revisão e fixaçãop do texto, bem como bold, a cor: Editor L.G.]

Surpreendeu-me que um senhor jornalista português necessite de esclarecimentos quando descreve a guerra colonial em generalidades incorrectas e falaciosas. Não sei a idade ou experiências de vida do sr. jornalista (***), e tenho que reconhecer que, afastado há já muitas décadas do meu querido Portugal, talvez me seja difícil de compreender determinadas "evoluções" descritivas.

Sou um, entre milhares, dos que combateram na Guiné ao lado de Camaradas de todos os recantos de Portugal, e sem nunca esquecer os Guineenses que envergavam com orgulho fardas portuguesas (estes não só ao nosso lado, mas muitas das vezes, literalmente à nossa frente!).

Como tão bem escreveu, na Tabanca Grande, Diana Andringa, não se deve ferver em pouca água, ou perder perspectivas de fundo. Mas não é fácil perante o simplismo do sr. jornalista. Na guerra colonial, como infelizmente em todas as guerras, existiram massacres. De ambos os lados. E que se não esqueça Angola/61! (****). E, apesar de qualquer massacre ser sempre um massacre a mais(!), se tivermos em conta os três teatros de operacões, o número de forças em presença e a duração do conflito, foram miraculosamente poucos!

A esmagadora maioria de nós, os que sacrificaram a juventude em guerra de antemão politicamente perdida, procurou ajudar de alma e coração as populações locais. Como felizmente muitos ainda estamos "vivos", os srs. jornalistas que não saibam...tenham a humildade de perguntar!

Se me desculparem o "pessoalismo", recordo o ano de 1980, quando ainda havia um relativamente grande interesse por parte da sociedade sueca para com os acontecimentos relacionados com Portugal da guerra colonial e de Abril.

Fui procurado por um grupo de jornalistas suecos que, sabendo ter eu sido o Oficial de Segurança e representante do MFA no Depósito Geral de Material de Guerra de Beirolas, procuravam alguns detalhes de histórias relacionadas com acontecimentos dos anos 74/75 passados...do outro lado dos espelhos!

Um deles, representante de um conhecido jornal de esquerda do Norte da Suécia, Norlandsk Flamma, perguntou-me com ironia evidente:
- Se eram assim tão contra a política governamental porque é que cumpriam o serviço militar em África e não desertavam em números substanciais?

Confesso que, no momento, senti vontade de lhe explicar que tendo passado todo o PREC numa guarnição em plena cintura industrial de Lisboa, tinha mais do que um curso completo em grupos, grupelhos e tudo o que de esquerdalhada se tratava quanto a perguntas provocadoras!
Mas como explicar-lhe o facto de, desde o nascimento, nos colocarem sobre os ombros os tais quinhentos anos passados de colonialismos épicos?

Como explicar que desde o Minho aos Açores, todos tínhamos Bisavós , Avós, Pais, Tios Irmãos, Primos, Amigos, conhecidos que cumpriram o seu servico militar algures no império?

Como explicar que o meu Avô, Republicano e anti-salazarista convicto, se orgulhava de ter defendido o Norte de Moçambique aquando dos ataques Alamães da primeira guerra mundial?

Como explicar que o meu Pai estivera voluntariamente como médico no Norte de Angola aquando dos massacres de 61?

Eu, que pretenci aos democratas do antes do 25 deAbril, … desertar? Quando todos os que conhecia com idades próximas da minha se encontravam algures em África?


Por infeliz ignorância, ou produto do nosso forçado isolamento cultural, o desertar era identificado como cobardia para com a Pátria, e não como uma legítima forma de luta política contra o regime. E, francamente, acabaram por ser bem poucos os que o fizeram… por razões extritamente políticas.

Procurando situar-me ao nível da ironia barata do jornalista sueco, nascido, criado, educado numa sociedade livre que não participa em nenhuma guerra nos últimos 360(!) anos, decidi procurar dar alguns detalhes da sociedade da minha Lisboa dos anos sessenta.

Acreditaria ele que estavam colocados polícias da segurança pública à porta dos liceus femininos de uma capital do Ocidente Europeu para afastar (menos delicadamente) os pobres dos namorados de 15/16/17 anos de idade quando as iam esperar à saída das aulas?

Acreditaria ele que a sra. Reitora do Liceu Maria Amália de Lisboa percorria os recreios com uma régua na mão medindo o comprimento moralmente adequado das saias e batas das meninas?

Compreendia ele o que lhe queria mostrar com estes ridículos exemplos de uma sociedade que hoje nos parece incrível?

Serão respostas deste tipo, e deste nível, que o sr. jornalista português necessita para melhor compreender… "enquadramentos"?

Estocolmo 1/3/09.

Um grande abraço amigo para os Camaradas
__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3928: PAIGC: O Nosso Livro da 1ª Classe (Manuel Maia, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4610, Cafal Balanta / Cafine, 1972/74)

(**) Vd. postes do nosso compatriota e camarada José (ou Joseph) Belo:

17 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2954: A guerra estava militarmente perdida? (18): José Belo

6 de Agosto de 2008 >Guiné 63/74 - P3115: Blogpoesia (22): No mesmo navio, piscina e música em camarote de 1ª, suor nos porões...(José Belo).

(***) Vd. poste de 24 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3935: O Spínola que eu conheci (2): O artigo da Visão e o meu direito à indignação (Vasco da Gama)

(****) Veja-se o comentário do Jorge Fontinha, que hoje vive na Régua, e cuja guerra começou bem cedo, aos 12 anos, em Nambuangongo (na Guiné, for Fur Mil Inf, CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, CCaç 2791, Set 1970 / Set 1972) .

Eu sou dos que criticam a política Ultramarina de Salazar. Senão fosse ele ter ignorado quem por diversas vezes o aconselhava, na resolução dos problemas Ultramarinos, antes de 1961, a Guerra nem sequer tinha começado.

Já não estou de acordo dizer-se que os militares Portugueses praticaram massacres e tenham sido os únicos.

Infelizmente tinha eu 12 anos, quando a exemplo de outras, a fazenda do meu pai em NAMBUANGONGO, foi massacrada e lá ficou o meu único irmão morto à catanada. Nove anos mais tarde fui militar na Guiné e em zonas de intensa actividade operacional.

Que tenha sido do meu conhecimento, não vi massacres nossos. Sei que houve e sobretudo em Moçambique algumas acçõess desnecessárias. Talvez na Guiné possa também ter havido algumas semelhantes. Todavia se vamos falar de massacres comecemos pelo 15 de Março de 1961!

Os meus cumprimentos à Diana Andringa, jornalista com "J" grande, que ao londo dos anos aprendi a respeitar.É um exemplo a seguir pelos seus colegas.

Jorge Fontinha

Outro combatente, que andou por Angola, Júlio Pinto, membro da nossa Tabanca Grande, também ironiza:

Li agora, no blogue, o parágrafo do artigo da Visão e fiquei convencido de que a juventude que andou na guerra do Ultramar, andou lá a fazer tiro ao alvo aos elementos das populações locais e depois, para justificar que andavam na guerra, desataram a disparar uns contra os outros.

Fizeram explodir minas só para inglês ver e espetaram com as viaturas umas contra as outras, para dizerem que foram minas.

Então de acordo com esta atitude, morreram milhares de jovens, desapareceram em combate outras dezenas deles e milhares de muitos outros são hoje deficientes das forças armadas.

Claro que o jornalista que escreveu esta aberração de artigo, no tempo em que por lá andávamos, ainda devia andar no c... dos franceses. [Ele] evia ter lá andado, como nós, e com alguns de nós, que passaram as passas do Algarve, sem ter de comer, com água da pior qualidade, muitos sem sequer terem material de guerra, para poder responder ao IN (inimigo para ele saber o que isto quer dizer).

Não há dúvida, nós fomos os maus e os outros foram os bons. No entanto são os maus da fita que organizam expedições, como esta que partiu agora de Coimbra com destino à Guiné, para levar algo útil àquele povo.

Pergunto onde estava a Visão que deste belo acto não viu nada? O que este jornalista merecia sei-o eu (...). Além de tudo, (...) só demonstrou uma enorme falta de respeito por uma geração que deu tudo à Pátria.

Júlio Pinto
Ex-Combatente em Angola
como 2º Sargento de Artilharia
pinto.jvp@gmail.com

Vd. último poste da série de: 24 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3512: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (8): Proposta de Bordel Móvel de Campanha...

Guiné 63/74 - P3984: Nuvens sobre Bissau (17): Curvo-me à memória do Nino, o homem que nos fez a vida negra em Gandembel/Balana (Idálio Reis)

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Janeiro de 1969 > Foto 415 > "Uns dias antes do abandono de Gandembel/Balana [, em 28 de Janeiro de 1969,] Spínola também viria cá despedir-se".

Foto e legendas: ©
Idálio Reis (2007). Direitos reservados

1. Mensagem do Idálio Reis (*), ex-Alf Mil
da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835, Gandembel
e Ponte Balana 1968/69), engenheiro
agrónomo reformado, residente
em Cantanhede.


Para os novos membros da Tabanca Grande,
direi só que o Idálio Reis e os seus homens deveriam figurar na lista dos recordes da guerra da Guiné: têm só à sua conta 372 ataques e falagelações contra Gandembel / Balana, entre Abril de 1968 e Janeiro de 1969 (*); destes homens pode-se dizer-se que o 'Nino' fez-lhes a vida negra, transformando Gandembel num dos maiores símbolos, na Guiné, da tenacidade, da resistência, da camaradagem, de capacidade de sofrimento de tropas portuguesas comandadas... por milicianos (O Sr capitão da companhia, oficial do QP que chegará a general, será poupado ao pesadelo de Gandembel / Balana...) (**)

Meus caros Luís, Virgínio e Carlos.

Com um caloroso abraço para todos os companheiros, alinhavo este pequeno texto, quanto aos acontecimentos de Bissau, preocupantes, e que nos deixa muito tristes.

Porventura o maior guerrilheiro dos movimentos independentistas que lutaram contra os combatentes da potência colonial portuguesa, tomba de forma assassina.

Bissau foi, mais uma vez, palco sangrento de actos hediondos e cruéis, onde morrem o Presidente da República - Nino Vieira- e o Chefe das Forças Armadas -Tagmé Na Waié-. Curvo-me respeitosamente em suas memórias.

Foram vítimas de uma luta fratricida, a fervilhar a todo o momento, onde grassa um inusitado número de homens armados, qual bando sem comando ou hierarquia, pronto a cometer as maiores atrocidades.

E este ror de funestos acontecimentos que em geral se circunscrevem nos limites da capital Bissau, vêm desprezando um pobre povo, pedinte de uma paz ansiada, e em que quase todos os requisitos mais essenciais a uma vida digna lhes continuam a ser vedados. Para além da paz, os homens, mulheres e crianças da Guiné-Bissau são carentes dos bens primários, como o pão, a saúde, a educação.

É com uma profunda mágoa que neste reconhecimento de um país à beira da agonia, haja uma população serena e digna, abandonada a si-própria, sem vislumbrar no seu limitado horizonte uma réstia de esperança.

As vidas ceifadas a 2 dos maiores dignitários do País, a forma como os crimes foram perpetrados, não são bons indicadores, para os que, como nós, se procuram inteirar dos acontecimentos que lá ocorrem quotidianamente.

No momento em que escrevo estas linhas, felizmente parecem não existir quaisquer focos de rebelião, e na cidade de Bissau há acalmia e serenidade.

Oxalá que emirjam o bom senso e a frieza bastantes para que não se agrave ainda mais o ‘status’ que prevalecia, e que a comunidade internacional manifeste toda a solidariedade possível, para que de vez as instituições singrem em busca dos seus mais nobres propósitos.

As informações dos companheiros que há dias partiram de Coimbra, alivia os nossos espíritos. Para eles que, numa altruísta manifestação de boa vontade, demandaram aquele torrão que conhecem, desejo-lhes que esta sua dádiva seja a mais frutuosa possível, e que tudo decorra à medida dos seus e nossos desejos. Bem-hajam por este enlevado exemplo.

Muito provavelmente alguns deles, se confrontaram com os grupos de guerrilha sob o comando daquelas 2 figuras, cujas acções de combate primaram pela excelência e a quem presto a minha homenagem, enquanto tal.

Relembro o que a minha Companhia sofreu com o empenho manifestado pelo bigrupo de Nino Vieira; a argúcia, o destemor, a valentia. Este brioso combatente foi um dos baluartes no caminho para a independência da sua pátria.

Não desejo tecer nenhum pronunciamento quanto às suas funções como estadista, mercê de circunstancialismos diversos, pois reconhecidamente foi ele um dos principais fautores no recrudescimento da violência do variado mosaico étnico da Guiné-Bissau.
Que a paz se assuma em definitivo, para aquele martirizado povo.

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 19 de Julho de 2007 Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques

Vd. último poste da série > 4 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3983: Nuvens negras sobre Bissau (16): O Nino e o Luís Cabral que eu conheci, em 1979-1993 (António Rosinha)

Vd. todo o dossiê do Idálio Reis (11 postes, profusamente ilustrados) sobre Gandembel/Balana (que merecia ser publicado em livro): 10 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)

(...) Comentário do editor L.G.:

1. Querido amigo e camarada Idálio:

Não há, na guerra, um fim feliz, como no cinema. Mas gostei de saber que os últimos meses dos homens-toupeiras de Gandembel/Balana permitiram-vos retemperar as forças para o regresso à Pátria, à Mátria ou à Madrasta da Pátria...

Continua a dar-nos notícias da tua/nossa gente, cuja epopeia tão bem soubeste evocar e descrever nesta fotobiografia... O teu testemunho honra-nos a todos e orgulha os editores e autores do blogue bem como todos membros da nossa Tabanca Grande.

A fotobiografia da CCAÇ 2317, escrita pelo teu punho, foi um dos momentos altos do nosso blogue. Faço daqui um veemente apelo a um editor português que arrisque publicar, em livro, esta extraordinária aventura de 9 meses no corredor da morte. Porque não o Círculo de Leitores ? L.G.


(***) Informação do Idálio Reis:

A Companhia sai para a Guiné, com 158 homens: 5 oficiais, 17 sargentos, 35 cabos e 101 soldados. A bordo do Uíge, a 10 de Dezembro de 1969, sob o comando de um único oficial (este escriba), chegam à unidade mobilizadora, o RI 15 de Tomar, 121 militares, com 11 sargentos, 29 cabos e 80 soldados; ficaram na Guiné, para a entrega do material, 1 alferes e 3 sargentos.

Há as perdas: 9 mortos (1 alferes, 1 furriel e 7 soldados), 18 evacuados para Lisboa (7 feridos graves, 5 por doença e 6 feridos menos graves), e 4 não regressam por mudança de Companhia. Há ainda 2 elementos, que saem antecipadamente: 1 cabo — o nosso Lamego e o Comandante de Companhia, para continuar a sua carreira militar como oficial superior de Infantaria.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3983: Nuvens negras sobre Bissau (16): O 'Nino' e o Luís Cabral que eu conheci, em 1979-1993 (António Rosinha)

1. Mensagem do António Rosinha, nosso amigo e camarada, ex-Furriel Miliciano em Angola (1961) , topógrafo na TECNIL, na Guiné-Bissau, entre 1979/93 (*), membro da nossa Tabanca Grande desde Novembro de 2006: 

  Assunto - Nino, Luís Cabral, Amílcar Cabral, Spínola... 


 Amigos editores e bloguistas, [Bold, da responsabilidade do editor, L.G.] Só pretendo emitir uma opinião neste momento histórico para a Guiné, com a morte de NINO, pelo simples facto de tentar explicar o que me foi dado perceber o que o povo da Guiné, o povo simples, pensava dos principais obreiros da independência da Guiné e Caboverde. Isto durante 1979-1993. E só faço este esforço de análise, porque sempre achei curioso o que pensavam os nossos colonizados, angolanos e guineenses, destas figuras. Gostava era de ler algo analisado por guineenses (**). 

 Caboverdeanos que tive inúmeros como colegas e superiores profissionais, e da boémia de juventude em Luanda, nunca os tive como colonizados. A maioria estão em Portugal, como eu. A propósito, temos que lembrar que o que se passa na Guiné, tirando os fuzilamentos dos nossos comandos africanos, e nunca escrevem os fuzilados em Conakri com o assassinato de Amilcar, tudo o resto de violência é entre os grandes, uns e outros, porque noutros paises, Serra Leoa, Ruanda, Congo, e mesmo Conacri, etc., não se contam pelos dedos, como na Guiné. 

 Voltando à Guiné, conheci e cumprimentei mais que uma vez, tanto Nino como Luis Cabral. O Luis Cabral visitava constantemente obras públicas onde eu andava. E aí, como eu vivia rodeado de trabalhadores braçais, era privilegiado em informações, só precisava de compreender o crioulo. E os guineenses, quando queriam que eu compreendesse, discutiam em crioulo aberto, caso contrário falavam cerrado e eu, patavina. Eu e qualquer um. 

 E uns meses antes do golpe do Nino, no 14 de Novembro de 1980, o povo já vivia numa revolta surda, em que diziam que o Luís mandava tudo e o Nino, coitado, não mandava nada. Os bormelho mandavam tudo e os filho da terra, nada. O Spinola tinha razão, a Guiné é dos guinéus! E não havia dúvidas, para quem via os dois constantemente passar de carro (estrada do aeroporto durante 1 ano), nunca se viam os dois juntos. 

 Outra coisa que o povo detestava no Luis em favor do coitado do Nino, é que para obter pão e vianda em geral eram bichas (forma) de 24 horas e mais. E de vez em quando lá vinham frases velhas do Spínola. Mas eu só compreendia o à vontade do Luis Cabral, porque de facto ele conseguia subvenções e ajudas e financiamentos mais incríveis, de que só dou duas(2) amostrinhas: 

 (i) Uma fábrica no Cuméré, de transformação de óleo de amendoim e outros, que bombava o óleo directamente para o navio no porto de Bissau para exportação. Eu vi a fábrica, e vi a extremidade do pipe-line no cais de Bissau. (financiamento francês); 

 (ii) Uma fábrica de montagem da Citröen, em frente aos quartéis de Brá. Vi e orientei uns trabalhos da minha especialidade nessa fábrica. Até umas casas para residência de fins de semana das familias dos funcionários, eu vi o projecto (só projecto). Esta ainda chegou a produzir alguns carros...

Mas ainda mais perigoso para Luís Cabral era o à vontade com que preparava um congresso do partido em que ia ser consagrado o sonho de Amilcar, a UNIDADE GUINÉ CABO VERDE. Partido e País Único. E vinha sempre a conversa do Spínola, a Guiné dos Guinéus. E o Nino, coitado, não manda nada. Até que, uns dias antes do tal congresso, se dá o 14 de Novembro, e para o povo, foi como que um tirar a pressão a uma panela, um respirar fundo, em que constantemente se ouvia que agora eram independentes. 

 Sem estarmos em Bissau, e pondo-nos a imaginar, será que foi outra panela de pressão que se abriu para aquele povo? Mas aquela imagem que se quer dar por nós, europeus, sobre Nino, como grande militar mas politicamente pelo contrário, não é bem assim para os africanos, e até se pode considerar que internacionalmente conseguiu muitos sucessos. Copiando o que viu fazer ao Amílcar e ao Luís, conseguiu toda a cooperação que eles conseguiram, ou seja os financiamentos Suecos, Soviéticos, Franceses (com estes teve muita classe), com Portugal não nos ficou barato, TAP, agricultura, bolsas, etc.. 

Com os políticos africanos esteve sempre em casa. O nosso ponto de vista (brancos, europeus) está nos antípodas dos africanos. Por exemplo, para nós, dentro da nossa lógica, bom seria o SENGHOR, menos seria SEKOU TOURÉ, para os guineenses. Mantive discussões, principalmente com gente do partido, que bom era o Sekou Touré, pois que o Senghor era um lacaio dos franceses, e lá vinha a conversa do neocolonialismo e do paternalismo, etc. Aliás, isso era um dos tópicos do Amílcar. 

 E quando se fala entre os europeus de Mandela ou Mugabe, não é a mesma coisa que entre os africanos. Mas com a Inglaterra os africanos não brincam... Outra ideia que me ficou do povo da Guiné, é que, sem excepção, todos queriam a Independência, não eram só os membros do Partido, mas isso já eu tinha compreendido em Angola, só que o povo tem a sua sabedoria, e usaram um cepticismo à espera de qualquer coisa

 Mas uma coisa é certa, os nossos ex-colonizados não nos podem acusar de ter preparado uma elite: E aí não produzimos Mobutus, Idi Amin's, Mandelas, nem Mugabes, nem Senghors Bokassas, etc. porque se os produzíssemos não tinhamos força militar nem política para os proteger como fez a França, a Inglaterra e até América e Rússia. 

 Eu como vi milhares de sanzalas em Angola, absolutamente incrédulas quanto aos três movimentos mais as franjas, sem Salazar ou com Salazar, com comunismo ou sem, achava que não podiamos fazer o que fizeram os vizinhos Belgas, porque todos os cooperantes internacionais que vim encontrar de máquina fotográfica a tiracolo na Guiné, já os tinha visto no Congo Belga, 30 anos antes. Ainda continuam lá. Então, a ONU, em África onde aparece atrai raio! 

 Um abraço Antº Rosinha 

______________ 

 Notas de L.G.: 


Guiné 63/74 - P3982: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (7): Ferreira da Silva, ex-Capitão Comando, novo comandante do COP 5 a partir de 31/5/1973

Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Uma Lancha de Desembarque Média (LDM) com militares e populares no Rio Cacine, fugindo do inferno... Há pontos (polémicos) que o antigo Cap Comando Ferreira da Silva poderia ajudar-nos a esclarecer como: (i) a debandada de Gadamael; (ii) a alegada ordem de Spínola para 'metralhar' os desertores...

Foto: © Delgadinho Rodrigues /
Manuel Rebocho (2006). Direitos reservados.


1. Mensagem de Ferreira da Silva, Cor Cmd Ref, que passa a ser um novo membro da nossa Tabanca Grande (Aguardamos que nos mande as fotografias da praxe, e que nos conte algo mais sobre os meses que passou em Gadamael entre 31 de Maio de 1973 e princípios de 1974)


Caro Luís Graça, amigos e combatentes (*)

Antes de mais os meus parabéns ao vosso blogue, e as minhas desculpas por ainda não ter participado, mas encontro-me a frequentar um curso de informática face às minhas dificuldades nestas novas tecnologias.

Em segundo lugar, quero salientar que tenho muita honra em ter sido combatente, como centenas de milhar de portugueses, que fizeram a guerra nas condições difíceis que todos conhecemos, a quem a Pátria ainda não prestou o devido reconhecimento.

Considero ainda a batalha de Gadamael, como uma das mais decisivas da nossa Guerra em África, e como estive aí colocado como comandante e adjunto durante vários meses tenho muito gosto em dar a minha opinião.

Todos os intervenientes tiveram uma actuação importante face à difícil situação verificada.

Relativamente a um artigo do jornalista Eduardo Dâmaso (**), publicado no jornal “Público”, de 26/6/2005, em que refere que no dia crítico de 1 de Junho de 2003 fiquei sem oficiais, informo que lhe enviei na altura um texto escrito, em que digo que fiquei sem capitães, o que foi verdade pois ficaram feridos e foram evacuados, o que ele confirma no desenvolvimento do artigo.

Para os mais interessados neste tema informo que o livro “Guerra Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros”, de Manuel Amaro Bernardo, contêm a minha opinião sobre Gadamael e que a intervenção dos paraquedistas consta do livro “A Geração do Fim”. (***)

Para terminar, para avivar a minha memória, gostaria de contactar com combatentes que estiveram em Gadamael em 1 de Junho de 2003. O meu contacto, para além do mail, é o 965772007.

Queria reiterar ao Luís Graça os meus parabéns e agradecimentos, e aos combatentes a minha solidariedade, respeito e admiração.

Ferreira da Silva
____________

Notas de L.G.:

(*) 1 de Março de 2009 >Guiné 63/74 - P3954: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (6): A posição, mais difícil do que a minha, do Cap Cmd Ferreira da Silva (João Seabra)

(...) O [então capitão, hoje Coronel, ] Ferreira da Silva foi inicialmente colocado no Batalhão de Comandos da Guiné, numa operação no Morés, a sua viatura (um Unimogue) rebentou uma mina que matou os demais ocupantes, tendo ele sofrido fracturas nos dois braços e mais ferimentos, e sido obrigado a pedir a sua própria evacuação.

Evacuado para Portugal, pediu para terminar a sua comissão na Guiné, sendo colocado no CIM [Centro de Instrução Militar] de Bolama.

No dia 31 de Maio de 1973, foi recolhido de helicóptero e depositado em Cacine, seguindo-se uma viagem de sintex para Gadamael onde foi despejado ao fim da manhã, para substituir o Sr. Coronel (hoje Major General) Durão, com quem teve uma brevíssima conversa, onde lhe foi sugerido que o Sector estava calmo e controlado.

Este último oficial, seguiu imediatamente para Cufar, via Cacine, no mesmo sintex.

O Cap Ferreira da Silva nem teve tempo para reconhecer o aquartelamento, e mal conheceu os capitães das duas Companhias [ ali estacionadas ].

Ao princípio da tarde desse mesmo dia começaram as flagelações a Gadamael, e no dia seguinte de manhã os dois capitães foram evacuados.

O Cap Ferreira da Silva não conhecia os demais oficiais e, naquela confusão, não sabia onde os encontrar.

Dito isto, o proverbial “tratamento jornalístico” encontra logo um grande motivo de interesse: “ficou sem oficiais”.

(...) O então Capitão Comando Ferreira da Silva ficou em Gadamael até 1974, e pode contar-nos coisas muito interessantes sobre aquele sector, no pós JUL 73.(...)


(**) O trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso foi publicado em dois postes:

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

Vd. também igual trabalho sobre Guileje (com erros factuais já corrigidos) > 27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça)


(***) Sobre a batalha de Gadamael, vd. entre outros os seguintes postes:

27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

14 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3623: Recortes de imprensa (11): A guerra do J. Casimiro Carvalho, pirata de Guileje e herói de Gadamael (Correio da Manhã)

16 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2949: Convívios (67): Pessoal da CCAV 8350, no dia 7 de Junho de 2008, na Trofa (J.Casimiro Carvalho/E.Magalhães Ribeiro)

7 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2729: Estórias de Guileje (10): os trânsfugas de Guileje, humilhados e ofendidos (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso M.F. Sousa / Serafim Lobato)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

2 Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73)(Magalhães Ribeiro)

Guiné 63/74 - P3981: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (1): Aprender a ser solidário

1. Mensagem de Helder Sousa(*), ex-Fur Mil de Transmissões TSF (Bissau e Piche, 1970/72), com data de 21 de Fevereiro de 2009:

Caros amigos e camaradas Editor e co-Editores

Em anexo envio um texto com uma história que, se eventualmente encontrarem algum interesse, podem publicar no nosso Blogue.

Ocorreu durante a Especialidade (2.º Ciclo do CSM) e tem o mérito de, para além do anedótico da situação, revelar a capacidade que havia de se gerarem laços de solidariedade e de resistência, já prenunciadores da disposição que se ia aos poucos alastrando, e também aborda (ao de leve) um outro aspecto que já foi também aflorado num outro texto do Blogue, que é a situação de alguns elementos profissionais irem vivendo e alimentando esquemas remuneratórios alternativos resultando tal, muitas vezes, em prejuizo do pessoal comum.

Cumprimentos
Hélder Sousa


APRENDER A SER SOLIDÁRIO OU UM SALAME DE CHOCOLATE ESPECIAL

A história que quero partilhar convosco teve lugar durante o período do meu 2.º Ciclo de Instrução do CSM o qual, por ser da Especialidade TSF, foi efectuado no então Batalhão de Telegrafistas (BT) à Graça, em Lisboa, decorrendo do final de Setembro de 1969 a Janeiro de 1970.

Fui testemunha directa e parte interessada e envolvida, do acontecimento que a seguir relato, que se passou na segunda quinzena de Outubro de 1969 (em plena época de eleições, lembram-se?) e relembro-o agora principalmente para salientar e reforçar a ideia que a tomada de consciência de cada vez mais elementos da nossa juventude questionando a guerra de África foi sendo feita de modo progressivo e com base em situações com que se viam confrontados, de que o episódio que se segue é um exemplo.

Os dois personagens que acabaram por ser as vítimas desta história foram o Fernando Cruz e o Mário Miguel Rodrigues que foram Fur Mil Transmissões TSF em Nampula, Moçambique. Ambos homens do norte, o Cruz do Porto e o Mário de Barcelos, que foram músicos nos seus tempos de juventude (o Cruz confessou-me que se encontra on de road again), são dois bons amigos, que também seguem o nosso Blogue e que, por via disso, conversando sobre tempos passados, relembraram este episódio que agora passo então a relatar.

O que é que o poderá tornar interessante?

Antes do mais porque, estando eu já em Bissau, portanto em 1971 ou 1972, não sei agora precisar, acabei ouvindo a história, deturpada, como é natural, pois é sabido que quem conta um conto aumenta um ponto e quem a relatava não sabia que eu tinha sido contemporâneo e que por tal poderia fazer correcções ao seu relato, mas também não me dei ao trabalho de o desdizer, já que tenho a ideia de que estava muito mais bem composta, romanceada e bastante lisonjeira para toda a rapaziada do Curso, transformados em verdadeiros heróis, contra as arbitrariedades e desmandos da hierarquia e seus lacaios.

Além disso nem sempre havia disposição, mesmo estando em Bissau, longe do Vietnam, como o Luís Graça escreveu naquela carta dirigida ao seu amigo e que já foi publicada no Blogue, não havia disposição, dizia eu, para grandes discussões. Assim deixei passar as deturpações naquela época e já nem me lembrava da história não fosse o Blogue e os amigos que o lêem.

Depois, porque para lá do caricato da situação, podemos encontrar muitas coisas que devem merecer reflexão e até, porque não, discussão sobre o que se perdeu ou não desde esses tempos, como sejam a solidariedade, o espírito de grupo, a unidade contra situações opressoras, bem assim como relembrar os tais desmandos que ocorriam muitas vezes em nosso prejuízo e muitas mais em benefício dos prevaricadores.

O caso em questão aconteceu, porque já vinha sendo hábito desaparecerem coisas das nossas mesas junto às camas e também dos nossos armários, sendo a vítima principal o Mário Miguel Rodrigues que tinha por norma comprar umas bolachas de chocolate que vinham em caixa metálica de formato rectangular. Andávamos todos aborrecidos com a situação, que ocorria por norma durante a nossa permanência nas aulas, num edifício distante da caserna, e as desconfianças iam, naturalmente, para quem fazia a faxina ou a supervisionava.

Deste modo, tiveram uma ideia para apanhar o ladrãozeco e resolveram passar aos actos. Mas vou deixar o Cruz relembrar os factos. Escreveu-me ele o seguinte:

“…quanto ao incidente na Graça, em Lisboa, as bolachas eram roubadas do armário metálico e eu, numa hora de inspiração intestinal, substitui as bolachas na caixa por um apropriado excremento e coloquei a mesma na parte superior e exterior do armário. Ainda mais fácil do que quando as guardava dentro dele e ao mesmo tempo evitava algum odor menos agradável que ficasse no interior. Mas foi tiro e queda. Não me lembro da marca das bolachas mas eram boas com certeza. Sei que a caixa era rectangular e do trabalho complicado que foi acertar na dita sem danificar a mesma. Obra de arte! (hoje talvez a pudesse expor em Serralves!!! ) Bem...

Nós fomos para as aulas e nessa mesma manhã perto da hora do rancho o Sargento A quis saber quem tinha colocado a caixa em cima do armário. Claro que na altura ninguém se acusou e só eu e o Mário Miguel sabíamos do facto e fomos disfarçando como podíamos.

O tipo (acho que era um Cabo RD) levantou a tampa e, sem ver o conteúdo, pois já era hábito sacar as bolachas, meteu a mão e... sujou os dedinhos. Chamou o Sargento, alegou que tinha ido lá porque cheirava mal, que andava a ver se a camarata tinha sido limpa e que nunca tinha roubado bolachas etc., etc. O Sargento leva a novidade ao Capitão. O Capitão, de que neste momento não sei o nome, quando mais tarde nos inquiriu, quis saber quem foi, começou com um ar muito sério, riu, gozou com o assunto, que nunca tinha tido um caso semelhante, de tal forma que cheguei a pensar que estava safo, mas perante a pressão do Sargento A que era um cara de pau, nos prendou com 3 dias de detenção por autoridade do Comandante Ca FT/BT (Companhia Formação Transmissões/Batalhão Telegrafistas) em 31 Outubro 1969 “por haver introduzido dejectos na camarata infringindo os n.ºs 4 e 9 do Art.º 4 do RDM”.

Esta brincadeira fez com que ficasse de faxina às latrinas pelo menos durante uma semana. Ainda hoje me lembro bem de lavar aqueles poleiros e os azulejos com ácido de baterias (o detergente da época para as pôr a brilhar) e ainda hoje me admiro como alguns gajos tem tão fraca pontaria, mesmo sendo ele cego... E o buraco não era tão pequeno assim...! Acho que o Miguel apanhou castigo igual.

O Capitão deu uma descasca no RD, acreditou que as bolachas estavam a ser repetidamente roubadas mas, perante os factos e falta de provas de roubos anteriores, só eu e o Miguel nos lixámos. O Cabo ficou conhecido pelo Cabo da merda.

Mas nós só nos acusámos como autores materiais e cúmplices do sucedido na aproximação do fim-de-semana, porque havia os camaradas casados, o Reis e o Marques, que queriam muito ir a casa e enquanto não aparecessem os infractores não havia fim-de-semana para ninguém. Todos ficavam no quartel a fazer serviços. Não me lembro bem quanto tempo durou a nossa resistência, (eu e o Miguel discutimos a situação várias vezes até chegarmos a uma decisão), mas perante o quadro que se apresentava e num espírito de camaradagem assumimos a autoria e o fim-de-semana foi radioso para todos... menos para nós. Levei tudo na maior. Afinal três dias passam depressa. E ainda nos divertimos com o truque de deixar cair as moedas no muro do Quartel que era contornado pelo passeio exterior e pela abertura na vedação ficar a ver as pessoas na parte de fora a procurar no chão pelas moedas que achavam tinham deixado cair! Por vezes não controlávamos o riso e lá vinha palavrão como moeda de troca.

Só o toque a detidos a horas inesperadas e a lenga-lenga que tínhamos de dizer ao Oficial de Dia... “apresenta-se o Soldado Miliciano n.º 18489568 que se encontra detido... blá, blá, blá...” não era música para os meus ouvidos nem a letra era agradável. O estar detido não impediu que fosse várias vezes comer qualquer coisa (o bitoque lisboeta) tomar café e beber uns copos na tasca que ficava mesmo em frente da porta de armas. Os Sargentos que estavam na porta normalmente eram compreensivos e os Oficiais eram milicianos e nós não íamos fugir. Ser TSF era outra coisa!...”

Desta história o que eu quero ressaltar são, essencialmente, duas coisas:

- a solidariedade (cumplicidade) que se conseguiu gerar entre nós, um grupo de jovens que só se conheciam há apenas 5 semanas, que, eventualmente, teriam as suas rivalidades, pois faziam-lhes crer que a posição relativa numa lista de classificação podia ser motivo para uma não mobilização (de facto isso aconteceu para os 2 primeiros classificados que eram os 2 que eram casados na altura, lá os conseguimos colocar aí) e que aguentaram sem vacilar, sem bufar, todas as pressões para que houvesse denúncia dos delinquentes;

- a situação de relativa, chamemos-lhe assim, corrupção, com o Sargento A a gerir os serviços a matar (dizia-se) e portanto com os seus homens de mão sempre prontos para o que fosse preciso e protegidos quanto bastasse, com o tal Cabo RD em serviço permanente e que obviamente mereceu todo o empenho do A em sua defesa junto do Capitão que, realmente, perante os factos, e com a impossibilidade de provar que tinham havido roubos anteriormente e que tinham sido efectuados pelo mesmo faxineiro, não tinha outra alternativa, face aos regulamentos, senão aplicar a tal porrada.

E a vida continuou, mais fortes e solidários e em plena época de eleições, as eleições de 1969!

Um abraço!
Hélder Sousa
Fur Mil Trms TSF

Miguel Rodrigues e Fernando Cruz em Nampula
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3926: Efemérides (17): Piche, 22 de Fevereiro de 1971 ou... Carnaval, nunca mais! (Helder Sousa)

Guiné 63/74 - P3980: Convívios (98): Pessoal da CCAÇ 816, Estalagem Zende, dia 9 de Maio de 2009 em Esposende (Rui Silva)

1. Mensagem de Rui Silva(*), ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67, com data de 4 de Março de 2009:

Caro Luís:
Recebe um grande abraço.
Abraço extensivo ao Briote e ao Vinhal. Desejo a melhor saúde nas Vossas pessoas assim como na de todos os nossos camaradas ex-Combatentes na Guiné e que ultimamente (nós todos) foram vítimas de ofensa da parte de um pseudo-jornalista que, em minha opinião, veio à procura de protagonismo (insuficiências) mas não à minha custa.

Junto envio o programa do próximo Convívio da 816 que este ano tem como promotor o nosso camarada de luta o Carlos Salsa e que te peço o publiques no Blogue da Tabanca Grande cada vez mais abrangente cada vez mais interessante e que tu tão sabiamente sabes coordenar, sem esquecer os préstimos valiosos do Briote e do Vinhal.
Bem hajam! Parabéns.

Mais uma vez convido-te a estares presente (era um grande prazer); muita gente da 816 já sabe quem tu és.

Rui Silva
Ex-Fur Mil
CCaç 816


__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3806: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (2): Golpe-de-mão a Morés

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3945: Convívios (96): Pessoal da CCAÇ 2679, na Pérola do Atlântico no dia 2 de Maio de 2009 (José Manuel M. Dinis)