domingo, 8 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3999: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (5): Justamente recordadas no Dia Internacional da Mulher (Miguel Pessoa)

Fotogaleria > Sítio do Ministério da Educação Nacional > Dia Internacional da Mulher

(Reproduzido com a devida vénia...)

1. Mensagem do Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanaca, 1972/74):

Luís

Mando-te (espero eu, que nunca fiz isto antes...) a folha do MDN [Ministério da Defesa Nacional]que reporta a cerimónia de hoje, comemorativa do Dia Internacional da Mulher.

As enfermeiras pára-quedistas (*) foram convidadas mas, talvez por terem sido avisadas em cima da hora (6ª feira), só seis estiveram presentes (a Giselda foi lá). Nas fotos pode ver-se, na de baixo à esquerda, Céu Pedro; na de baixo, à direita, Zulmira.

Abraço. Miguel

2. Excerto da 1ª página do MDN, de hoje:

Ministro da Defesa Nacional comemora Dia Internacional da Mulher com mulheres da Defesa Nacional e das Forças Armadas

(...) No âmbito do Dia Internacional da Mulher, o ministro da Defesa Nacional, Nuno Severiano Teixeira, convidou um conjunto de mulheres para uma cerimónia dedicada às “Mulheres na Defesa Nacional e nas Forças Armadas”.

Esta iniciativa teve lugar no Forte São Julião da Barra, em Oeiras, pelas 12h15 de 8 de Março, e contou com uma intervenção da professora Helena Carreiras, figura de referência na investigação sobre esta matéria.

Entre as convidadas, civis e militares do universo da Defesa Nacional e das Forças Armadas, encontravam-se algumas das primeiras mulheres que aderiram às Forças Armadas. Trata-se das enfermeiras pára-quedistas que, voluntariamente, prestaram serviço em África, entre Maio de 1961 e Junho de 1974.

Hoje, são mais de cinco mil as militares que integram os três Ramos das Forças Armadas, o que representa 14% do seu universo. Onze atingiram já o posto de Tenente-Coronel/Capitão de Fragata.


3. Comentário de L.G.:

Obrigado, Miguel. Parabéns, Giselda. Não me esqueci do dia (que se celebra desde 1910). Pessoalmente, comemorei o dia, homenageando as mulheres que se dedicam às artes plásticas, um campo que também foi durante muito tempo um bastião dos homens...

Fico feliz por o Ministro da Defesa Nacional ter também convidado as nossas queridas enfermeiras pára-quedistas do tempo da guerra colonial, para a cerimónia evocativa do Dia Internacional da Mulher.

Afinal, elas foram as primeiras a dar o exemplo, a abrir uma brecha nas fileiras das Forças Armadas, começando pela Força Aérea... (Fileiras que - lembre-se - eram 'cerradas' pelos machos, nosso tempo...). Tanto quanto sei, elas começaram por ser enfermeiras civis, graduadas... E ao todo, não ultrapassavam a meia centena... O seu exemplo pioneiro deve ser aqui justamente recordado.

Hoje somos, ao que parece, um dos países da NATO com maior taxa de feminização (14%) das Forças Armadas.

De acordo com a investigadora Helena Carreiras (Igualdade de oportunidades nas Forças Armadas Portuguesas - O papel das políticas de integração de género. Comunicação apresentada no Institituto Nacional de Defesa, em 27 de Junho de 2007), era a seguinte a taxa de feminização dos militares, por ramo, excluindo o serviço militar obrigatório (2006): Força Aérea (16,0%), Exército (13,5%), Marinha (6,%)...

Mesmo assim, estamos longe dos 47% de mulheres médicas, dos 50% de mulheres advogadas, dos 47% de mulheres magistradas judiciais - dados de 2006 - ou até mesmo dos 28% de mulheres diplomatas (em 2005)... Fonte: CIG - Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 7 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3994: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (4): Uma civil, e transmontana de Sabrosa, na tropa (Giselda Pessoa)

Guiné 63/74 - P3998: Tabanca Grande (124): José Belo, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2381 (Guiné, 1968/70), actualmente Cap Inf Reformado a viver na Suécia

José (Joseph) Belo, ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70:


1. Estamos hoje a apresentar formalmente o nosso camarada José (Joseph) Belo (*), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2381 que esteve na Guiné entre 1968 e 1970, que calcorreou Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada. Hoje encontra-se na situação de Cap Inf Ref e vive na Suécia.

A sua colaboração no nosso Blogue é já muito extensa, seja por contacto directo, quer por intermédio do nosso camarada e seu companheiro de Companhia José Teixeira, encarregue de corrigir a grafia do teclado internacional para o teclado português.

Como sabem, a nossa grafia tem muitos acentos que não são usados internacionalmente e os nossos camaradas da diáspora têm alguns problemas com isso. Quase diria que o problema é nosso, pois temos que corrigir toda a acentuação. Mas é sempre com o maior prazer que efectuamos esse trabalho.

Caro José, não te dou as boas-vindas, porque já és da casa, mas deixo-te os melhores votos de muita saúde e boa estadia na Suécia, país que escolheste para viver.

Infelizmente as fotos que enviaste não têm a melhor qualidade, talvez um dia te disponhas a enviá-las de novo, desta vez digitalizadas individualmente.

Um fraterno abraço da Tertúlia para ti.
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Notas de CV:

(*) Vd. alguns postes do nosso compatriota e camarada José (ou Joseph) Belo:
17 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2954: A guerra estava militarmente perdida? (18): José Belo 

Guiné 63/74 - P3997: Agenda cultural (3): O pintor Manuel Botelho no semanário "Sol". V. Briote
























Manuel Botelho na oficina.


A Arte da Guerra

por Manuel Botelho



Manuel Botelho, no semanário Sol. Revista “Tabu”, 28 de Fevereiro de 2009
Em Setembro de 2006, dirigiu-se ao Museu Militar. Recebido “calorosamente” pelo director, o Coronel Ribeiro de Faria, expôs o que o lá levava: fotografar tudo o que pudesse sobre o tema da Guerra.
Teve acesso às armas (“às tantas, o chão estava coberto delas”), e foi-lhe disponibilizada uma sala para trabalhar.
O seu local de trabalho foi ali, no Museu, até Novembro de 2007.
Fotografou G-3 e Kalashs, FNs e Mausers. Vestiu-se de soldado, encenou situações de guerra, num cenário de terra e plantas secas. Para compor o cenário, percorreu a feira da Ladra, à procura de camuflados, facas de mato, cantis..
Depois de expor o seu trabalho em três locais, Manuel Botelho continuou a aprofundar a temática da Guerra na sua casa, em S. Pedro do Estoril.
 
"A terra, ao contrário da nossa, é vermelha viva, cor de tijolo, a erva de um vermelho profundo..."

"Estou farto da cor verde: fardas verdes, viaturas verdes, paisagem verde, aviões verdes, camuflados verdes, tudo verde. A água dos autoclismos é verde limosa. A urina e o ranho são esverdeados, até o vinho é verde. As casernas são verdes também. E as portas e janelas. E o lado de dentro das paredes..."

Despedida ou reencontro?

Manuel Botelho inaugurou a 1ª exposição, a que deu o nome “Aerogramas”, no passado dia 7, no Porto, na Galeria Fernando Santos.

“São desenhos para olhar, mas também para ler – incluem excertos de depoimentos e correspondência de onde sobressai a presença ou o discurso feminino, visto tratar-se de mensagens trocadas entre os militares e suas mães, namoradas, mulheres ou madrinhas de guerra.”

“Madrinha de Guerra” é o título da 2ª exposição de fotografia a inaugurar no dia 14, no Centro Cultural de Lagos.
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Notas de vb:

1. Texto e fotos extraídos da Revista, semanário "Sol", de 28 de Fevereiro de 2009. Coma vénia devida aos autores.

2. Artigo referido em
6 Março 2009 > Guiné 63/74 - P3989: Agenda cultural (2): O pintor Manuel Botelho expõe no Porto e homenageia o malogrado Sold Cond Soares, da CCAÇ 12 (Beja Santos)
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Texto de Vladimiro Nunes e fotografias de António Pedro Santos.

“Manuel Botelho ganhou renome a desenhar e a pintar, mas para fazer arte com a guerra colonial, precisou do realismo da fotografia.”

“Nasci em 1950 e a guerra começou quando eu tinha 11 anos. Aos 12 ainda não tinha acabado, aos 13 também não, nem aos 14, aos 15, aos 16…O tempo ia passando, a guerra nunca mais acabava e eu vivia no terror do que ia acontecer quando fosse mobilizado. Só não fui porque estava a acabar o curso de arquitectura e tive a sorte monumental de, entretanto, ter vindo o 25 de Abril. Mas, quase até aos 24 anos, vivi num terror pavoroso de i para a guerra. Foi o pesadelo da minha adolescência”.

Manuel Botelho quis levar mais longe o tema da Guerra, que começara a tratar numa série de desenhos e pinturas que expôs em 2006, na Galeria Lisboa 20.

Guiné 63/74 - P3996: Nino: Vídeos (1): Ouvindo a versão do Coutinho e Lima sobre a retirada de Guileje (Luís Graça)


Guiné-Bissau > Bissau > Presidência da República > 6 de Março de 2008 > A audiência que o Presidente João Bernardo 'Vieira, 'Nino', de seu nome de guerra (1939-2009), deu a cerca de duas dezenas de participantes estrangeiros do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008), incluindo 2 cubanos, Oscar Oramas e Ulisses Estrada (acompanhados do respectivo embaixador)... 

 A maior parte dos membros da delegação (que foi constuída espontaneamente) eram portugueses (e antigos combatentes da guerra colonial)... A audiência foi decidida à última hora, ao que parece por interesse expresso do 'Nino' Vieira. Não estava sequer prevista no programa do Simpósio. 

Uma hora antes, fomos também recebidos pelo então 1º Ministro. Escusado será dizer que cada de um de nós se representava a si próprio. Estiveram também presentes o Dr. Alfredo Caldeira, da Fundação Mário Soares, a Diana Andringa, co-realizadora do filme "As Duas Faces da Guerra" (Portugal, RTP, 2007), e o José Carlos Marques, jornalista do Correio da Manhã

 À entrada do edifício da Presidência fomos todos cumprimentados -. o que pareceu estranho e nada protocolar - pelo Gen Tagmé Na Waie que, se bem me lembro, não assistiu à audiência. Não foram tomadas especiais medidas de segurança. Não fiz fotos com flash mas gravei grande parte da audiência, em condições deficientes de luz. A audiência decorreu ao fim da manhã. 

 Ficámos sentados numa mesa, comprida, em U. Ao lado de 'Nino', à sua esquerda estava um coronel, seu assessor (João Monteiro ?). À audiência assistiu também a então Ministra dos Antigos Combatentes da Liberdade da Pátria, Isabel Buscardini, bem como um elemento da comissão organizadora do Simpósio, presidente da Assembleia Geral da AD - Acção para o Desenvolvimento, o meu amigo Roberto Quessangue. 

 Neste vídeo, o Cor Art Ref Coutinho e Lima faz uma saudação ao presidente da República, e recorda a 'batalha de Guileje' bem como a sua decisão (polémica) de, como comandante do COP 5, mandar retirar as NT em 22 de Maio de 1973. Homenageou também todos os mortos desta guerra, guineenses, cabo-verdianos e portugueses, mas também cubanos. 

 Desta audiência há cinco pequenos vídeos que iremos aqui apresentar, sendo este o primeiro. Os restantes quatro são excertos da intervenção do 'Nino' Veira que, embora em pose de Estado, deixou transparecer o seu agrado e até prazer em estar no meio de antigos combatentes... 

 Embora de fraca qualidade, os vídeos terão algum interesse documental, agora que morreu e vai a enterrar o último dos grandes combatentes da luta de libertação levada a cabo pelo PAIGC, o partido do Amílcar Cabral. O malogrado Tagmé Na Waie, embora também um histórico, não tinha a mesma dimensão e estatura que o comandante Nino. 

 Vídeo (5' 10'): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. 

 Alojado em You Tube > Nhabijoes

sábado, 7 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3995: Memórias de Copá (2): Os bravos de Copá e um caso de... 'abuso de confiança' (António Graça de Abreu / António Rodrigues)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Ambulância, de origem russa, capturada ao PAIGC em Copá, Fevereiro de 1974. Foto de Joaquim Vicente Silva, soldado do BCav 8323, residente actualmente no concelho de Mafra.

Foto: Cortesia do nosso camarada António Graça de Abreu (2009)


1. Texto enviado pelo nosso amigo e camarada António Graça de Abreu, com data de 19 de Fevereiro último:

Para entendermos Copá, Fevereiro de 1974

por António Graça de Abreu

1. Em 22 de Fevereiro de 1974, em Cufar, eu escrevia no meu Diário:

Regressei (de Bissau) no Nordatlas, na viagem certinha até cá abaixo. Tudo calmo em Cufar. No nordeste da Guiné, em Copá, junto à fronteira, é que tudo vai mal. Mal para as NT, bem para o IN. Ouvi falar num ataque com cem foguetões, valha-lhes Deus! Começa a ser insustentável aguentar Copá.

Em Portugal as coisas também aquecem, com manifestações contra a carestia de vida organizadas pelos maoístas do MRPP. Houve pancadaria da grossa, três polícias feridos, um deles levou uma pedrada na cabeça. O povo não anda bom.

Em Bissau rebentou uma bomba no quartel-general. E que dizer do novo livro de António de Spínola Portugal e o Futuro? O antigo Caco Baldé, meu ex-comandante-em-chefe, propõe soluções federalistas para a resolução dos conflitos do Ultramar. O livro vai ter sucesso entre os liberais, o grupo do Balsemão e do Expresso, e também entre alguma da Oposição. Abençoadamente, agitará os espíritos de muitos portugueses.

O Marcello Caetano começa a ficar exasperado. No essencial, o mestre de Direito limitou-se a dar continuidade à política de Salazar e não sabe, ou esqueceu-se, como diz o Bob Dylan que “the times, they are a’changin” [os tempos estão a mudar]. O general Spínola aponta caminhos enviesados, é verdade, mas indica possíveis saídas para o pântano fétido em que vivemos.

Que futuro para Portugal?


Foi este o meu balanço do dia.


2. Que acontecera em Copá?

Reconheço que durante trinta e tal anos não soube ao pormenor com que linhas se coseram e descoseram as NT em Copá. Foi preciso o blogue do Luís Graça para regressar a muitas das interrogações que a guerra da Guiné me colocava (coloca ainda!) e para procurar encontrar respostas. Sempre no campo militar, porque quanto à natureza política da guerra, estamos entendidos. Sabia há trinta e cinco anos, como sei hoje que aquela guerra, injusta como quase todas, em termos puramente políticos estava perdida.

Tenho uma casinha humilde em S. Miguel de Alcainça, a meio caminho entre a Malveira e Mafra. Há quase um ano atrás, descobri que o homem do único talho existente na aldeia tinha na montra (o talho de Alcainça tem uma montra!) dois pratos de faiança pintada comemorativos de encontros do seu BCav 8323, que esteve na Guiné em 1973/74 (Paunca, Pirada, Bajucunda, Buruntuma, Copá).
- Então como é, meu caro amigo e camarada, conte-me estórias dessa fase final da guerra na Guiné. Eu também por lá andei e escrevi um livrinho sobre esse período que talvez tenha curiosidade em ler.

Acabei por trocar o meu Diário da Guiné por um quilo de bifes do lombo e um quilo de costoletinhas de borrego, tudo tenrinho e delicioso.

Selámos uma amizade.

E o soldado Joaquim Vicente Silva, meu camarada, dono do talho de Alcainça, fez-me chegar (fotocopiei tudo!) o testemunho escrito em 1984, dez anos após o regresso da Guiné, por um dos homens de Copá, o soldado condutor auto-rodas António Rodrigues. O texto chama-se Memórias de um Soldado e li as fotocópias de um fôlego.

Como tinha algumas dúvidas sobre pormenores da descrição do António Rodrigues, pedi ao Joaquim Vicente do talho de Alcainça o contacto do Rodrigues. Telefonei para o Porto, falei com o António Rodrigues e fiquei a saber que as Memórias de um Soldado do António Rodrigues haviam sido publicadas em livro “escritas” por um tal Benigno Fernando, sob o título O Princípio do Fim.

Com a justificação de corrigir um ou outro erro de português e melhorar o estilo, o Benigno Fernando, nascido em 1960 e que nunca foi à Guiné, apropriou-se da prosa excelente, sentida, do António Rodrigues e, quase sem mudar uma palavra do texto, transformou-a num livro em que passa por ser o autor, com o semi-bombástico título de O Princípio do Fim.

Para mostrar a sua “honestidade”, o Benigno Fernando, no fim da “sua obra”, pag. 75, numa linha do posfácio despercebida entre muitas outras, escreveu: "Esta história só foi possível ser escrita com a colaboração do António Rodrigues, ex-combatente da guerra colonial na Guiné”.


3. O António Rodrigues entendeu a sacanice que lhe fora feita e não gostou.

Leiam como o António Rodrigues descreve o seu regresso a casa, pós a Guiné, e o encontro com os pais e os irmãos:

“Eu aluguei um táxi (em Braga) para me levar a Gondizalves que fica a 3 km da estação. O meu pai e o amigo seguiam de motorizada, eu meti-me no táxi com a minha bagagem e lá fui em direcção a casa. Quando lá cheguei, não calculam qual foi a alegria da minha Mãe quando me viu entrar de novo a porta da casa. Ela veio ao meu encontro, abraçou-me e beijou-me com todas as suas forças e sentiu-se com certeza muito feliz, tal como o meu Pai e meus irmãos.”
António Rodrigues, Memórias de um Soldado, texto policopiado, pag 61.

Agora leiam a descrição do sucedido, pelo tal Benigno Fernando:

“ O Rodrigues também alugou um táxi para o levar a Gondizalves que ficava a 3km de distância da estação. O pai e o amigo seguiram de motorizada e lá foram em direcção a casa. Quando lá chegaram foi uma alegria para a mãe ao vê-lo entrar pela porta. Foram ao encontro um do outro, abraçando-se e beijando-se com todas as suas forças. Sentiram-se muito felizes bem como o pai e os irmãos.”
Benigno Fernando, O Princípio do Fim, Porto, Campo das Letras, 2001, pag. 72.

Creio que estamos entendidos quanto ao trabalho do “escritor” Benigno Fernando. Copiou todas palavras, mudando apenas o tempo verbal. Rodrigues escrevera na primeira pessoa, Fernando assume-se como narrador externo e reescreve tudo na terceira pessoa.

Sentido, amachucado, ludibriado, o António Rodrigues enviou-me o livro “escrito” pelo Benigno, um aldrabão intelectual, com a seguinte dedicatória:

Ao meu especial amigo António Graça de Abreu:

Este é um testemunho da minha participação na guerra colonial na Guiné, incorporado no Batalhão de Cavalaria 8323, formado em Estremoz, a que tive a honra de pertencer e cuja divisa era “Cavalaria p’rá Frente”.

O propósito desta narrativa é dar a conhecer às gerações vindouras que a possam vir a ler, que esta guerra existiu e teve episódios muito duros e violentos, nalguns dos quais eu participei no terreno, e que a minha geração e as que me antecederam tivemos de enfrentar com muito sofrimento, mas também com coragem, honra e dignidade.

Com um abraço amigo, ao dispor.

António Rodrigues, ex-combatente
Porto, 3 de Julho de 2008
 

4. O livro da “autoria” do Benigno Fernando

O livro teve recentemente breves abordagens no blogue, feitas pelo José Martins e pelo Hélder de Sousa, e foi já objecto de uma recensão literária da responsabilidade do Mário Beja Santos, poste 1409, a 8 de Janeiro de 2007. Aí lemos, nas palavras do Mário, o outro autor de um Diário da Guiné, (o dele mais completo do que o meu, porque tem dois volumes):

(…) Benigno Fernando dá-nos aqui o melhor relato com os ataques de fim do ano e os primeiros meses do cerco implacável do PAIGC. Copá é sistematicamente flagelada até os soldados enlouquecerem e fugirem para Pirada e Canquelifá. Em Março um avião português é abatido, as estradas minadas, as pontes destruídas.

(…) Quem amanhã fizer a história detalhada do desmoronamento do Leste precisará deste relato do Benigno Fernando.



5. Não quero entrar mais em polémicas com o Mário Beja Santos, nem com ninguém.

Interessa-me o que realmente aconteceu em Copá. Mas o Mário fala de um “cerco implacável” a Copá, (onde é que eu já ouvi falar em mais cercos que nunca existiram?...) dos soldados que “enlouqueceram”, do “desmoronamento do Leste”, etc.

Não nos entendemos. É sempre a tese falsa da superioridade militar do PAIGC na fase final da guerra da Guiné.

Vamos então ao relato verdadeiro, vivido e sentido pelo António Rodrigues.

Copá era um pequeno destacamento, menos de quarenta homens, no extremo nordeste da Guiné, junto à fronteira. Os aquartelamentos mais próximos eram Canquelifá, a 12 quilómetros, e Buruntuma, a 22 quilómetros de distância.

As estradas de terra batida entre Copá e os dois aquartelamentos costumavam ser feitas sem grandes precauções, embora todos soubessem que os guerrilheiros podiam aparecer a qualquer altura, nestes problemáticos destacamentos ou aquartelamentos junto à fronteira. Todos tinham consciência das minas nas picadas e das emboscadas, do muito sangue que já correra, mesmo em zonas relativamente calmas.

O soldado condutor António Rodrigues tinha um Unimog distribuído e conta, em finais de 1973:

“Outro serviço que também fiz muito com a viatura em Copá foi transportar o milho ou mancarra ou amendoim da população de Copá que vivia precisamente dentro do mesmo arame farpado que a tropa.

"Esse milho e mancarra ia eu com os respectivos donos africanos buscá-lo aos seus campos e trazíamos para junto das suas tabancas que eram casas feitas de barro, canas e palha, e posso dizer que aquelas populações eram na sua maioria pessoas de bem. Queriam sempre agradecer-me o serviço que lhes prestava com qualquer coisa, por vezes apesar das suas poucas posses ofereciam-me um frango ou uma galinha.

"Este serviço fazia parte da psícola do Exército Português em África e inserido nessa mesma psícola íamos também de vez em quando a outras populações vizinhas, nomeadamente a Orimonde e Oribode levar principalmente medicamentos. Estas povoações ficavam situadas entre Copá e Canquelifá"
(...).
António Rodrigues, Memórias de um soldado, pag. 19.



6. Em Janeiro de 1974, o PAIGC concentrou esforços sobre Copá.

Situada apenas a quatro quilómetros do Senegal, é de estranhar que em onze anos de guerra o destacamento (em que ano foi criado?), com apenas 30 a 40 homens de guarnição, tenha sido relativamente pouco incomodado. Em Janeiro e Fevereiro as coisas iam mudar e toda aquela terra ia ser sujeita a tremendas flagelações.

Vamos ler o testemunho do soldado António Rodrigues:

"Nessa noite de 7 de Janeiro de 1974 (…) teve início mais uma hora e cinco minutos horrorosos, infernais e terríveis de enfrentar. Aí o inimigo estava 10 metros à nossa frente e trazia uma táctica que estava muito bem montada, tinha junto ao arame farpado três secções separadas alguns metros, o que lhe permitia fazer fogo de armas ligeiras, ininterruptamente durante 1 hora e 5 minutos, porque o fazia por secções e quando uma estivesse sem munições, a outra já estava preparada para disparar, e assim sucessivamente.

"Mas, para além destas secções de homens armados de metralhadoras, tinham um auto-blindado junto a uma das secções a apoiá-la com os disparos do seu canhão e na retaguarda destas secções tinham toda a artilharia com que nos tinham atacado durante a tarde. Esta encontrava-se a 1 km também apoiada por outro auto-blindado.

idem, pag. 28.

Agora o meu comentário.

Com um tal poder fogo, com tal superioridade de meios (foguetões 122, morteiros 120, dois blindados, talvez até a ajuda de tropas regulares do exército do Senegal ou da Guiné-Conacri) poderíamos imaginar que os guerrilheiros do PAIGC arrasaram Copá e massacraram os trinta e tal militares portugueses que resistiram até ao sacrifício das suas vidas.

Nada disto aconteceu.

Continuemos com a sequência da descrição do soldado António Rodrigues:

"Mas agora a coisa mudava de figura, ainda estávamos todos vivos e de saúde, e por isso, como estávamos frente ao inimigo, tínhamos armas para lhes dar resposta adequada, embora tivéssemos poucas munições.

"Uma das primeiras coisas que fizemos, a mando de um furriel, foi lançar uma granada de bazuca de tipo iluminante que, na realidade, por uns momentos iluminava tudo por onde passava, o que nos permitiu ver claramente a posição do inimigo o que nos ajudou a cumprir a nossa missão com a maior objectividade possível.

"Começámos então a disparar na direcção adequada dilagramas, granadas de bazuca, de morteiro 81 e 60, além de todas as metralhadoras e G3. A luta era quase corpo a corpo e muito renhida. A secção que estava do lado norte apoiada pelo blindado estava já a abrir uma entrada para penetrar no nosso aquartelamento. É aqui que o meu camarada Antunes (sold Manuel Vicente Antunes) se enche de coragem, pega em meia dúzia de granadas de morteiro 60, salta para fora da vala, debaixo de fogo, e atira-as todas sobre o blindado que tentava entrar, o que o terá feito recuar, mas a confusão era enorme e não sabíamos bem o que se passava com o restante do nosso pessoal.

"A dado momento aproximou-se do nosso posto o Demba, um soldado africano do nosso exército, que nos disse que o alferes Brás (alf mil Manuel Joaquim Brás, que comandava o destacamento de Copá) já estava preso e nós ficámos ainda mais baralhados e confusos. Dissemos até uns para os outros: 'Se calhar esta noite vamos ser feitos prisioneiros pelo PAIGC'.

"Mas felizmente o alferes Brás não estava preso e ninguém, com a ajuda de Deus, estava ferido, aguentámos aquela hora infernal de tiros e granadas sobre as nossas cabeças e continuámos a defendermo-nos principalmente através de dilagramas e morteiro 81. Este último teve papel importante nessa noite, cujo artilheiro o tirou do tripé para o poder manobrar da melhor maneira e foi esse morteiro 81 que veio a causar os maiores problemas ao inimigo que ao fim de 1 hora e 5 minutos teve de retirar possivelmente com alguns mortos, (no dia seguinte os homens de Copá confirmariam dois mortos IN, fora do arame farpado do destacamento.) Em Copá ficavam enormes incêndios com tudo a arder em grandes chamas e nós, os militares e população tínhamos vivido horas amargas e terríveis.

"(…) O PAIGC não conseguiu os objectivos a que se tinha proposto".

idem, pag. 29.


7. Dois dias depois destes formidáveis combates – era mesmo guerra, meus amigos! -, aterram em Copá oito helicópteros carregados de mantimentos e munições.

Com eles vem um pelotão de tropas pára-quedistas. Os páras permanecem uma semana em Copá. Nestes dias, o destacamento não sofre nenhuma flagelação e do IN, nem cheiro. Talvez se tivessem ido reabastecer ao Senegal e à outra Guiné.

Depois, Copá volta a ser flagelada, com grande intensidade. Quatro militares de Copá, em pânico, fogem do destacamento e caminham até Canquelifá. Ao entenderem que deixaram sozinhos, a resistir heroicamente, os seus trinta e tal camaradas de armas, com a ajuda da tropa de Canquelifá, acabam por regressar a Copá.

As flagelações continuam.

Mas os comandos africanos, com o Marcelino da Mata, fazem uma operação em redor de Copá que se prolonga por vários dias. Aliviam a pressão do IN sobre Copá. É então capturada a famosa ambulância do PAIGC, com matrícula da Guiné-Conacri, que, apesar da sua cruz vermelha, de se destinar a evacuar os feridos da guerra, estava carregada de minas anti-carro e anti-pessoal, e ainda de alguns cadernos com a descrição exacta dos lugares no leste da Guiné onde os guerrilheiros haviam colocado minas.

A aviação continua a bombardear em volta de Copá. A 31 de Janeiro de 1974, um míssil Strela abate um Fiat pilotado pelo tenente Gil. O piloto ejecta-se, salva-se e consegue chegar a pé a um dos nossos aquartelamentos na zona.

O destacamento de Copá, menos de 40 homens, junto à fronteira, não justifica tamanhos sacrifícios. Os militares portugueses estão no limite da resistência. Os comandos-chefe de Bissau decidem retrair o dispositivo militar e ordenam o abandono de Copá. Todo o destacamento é armadilhado e, no dia 14 de Fevereiro de 1974, os resistentes de Copá vêem chegar os seus camaradas de Bajucunda que os vêm buscar e levar para um aquartelamento mais seguro.

Sofreram o inenarrável mas foram valentes, não tiveram um morto, graças também à sorte e à protecção de Deus, de Nossa Senhora, da imensidão dos deuses criados por Deus ou pelos homens. Os trinta e cinco homens, leram bem, 35 militares portugueses - um alferes, quatro furriéis, cinco 1ºs cabos e vinte e cinco soldados - foram todos louvados também porque, ao contrário do que acontecera no ano anterior num aquartelamento no sul da Guiné, não voltaram as costas ao inimigo.

Recordo as palavras já acima transcritas do soldado António Rodrigues, o meu amigo que viveu todo este tempo de Copá, na dedicatória no livro que me enviou: “Esta guerra existiu e teve episódios muito duros e violentos,(…) que tivemos de enfrentar com muito sofrimento, mas também com coragem, honra e dignidade”.

8. Mês e meio depois, a 31 de Março de 1974, partia de Bajocunda para Copá, a pé, uma grande coluna de tropas portuguesas.

Era uma operação de quatro dias da responsabilidade do BCav 8323. Seguiram dois pelotões da companhia de Pirada, dois pelotões de Bajocunda e um pelotão de milícias, cerca de 130 homens.

Um dos soldados que participou nessa operação chamava-se, chama-se, Joaquim Vicente Silva. É o meu camarada e amigo dono do talho de S. Miguel de Alcainça, Mafra, aqui a quatrocentos metros da minha casa na aldeia.

O Joaquim Vicente contou-me toda a história. Avançaram com dificuldade e algum receio, havia minas na picada, dormiram no mato, mas chegaram em paz a Copá. Para sua surpresa verificaram que os guerrilheiros não haviam entrado no destacamento. Continuava tudo armadilhado, os homens do PAIGC não haviam tocado em nada.

Patrulharam a região em volta de Copá e não só não encontraram ninguém como não tiveram qualquer contacto com o IN. Três dias depois, já no regresso, perto de Bajocunda foram flagelados com tiros soltos de Kalashnikov, disparados a partir de uma bolanha, sem quaisquer consequências.

Faltavam vinte dias para o 25 de Abril de 1974.

Agradeço aos meus camaradas soldados António Rodrigues e Joaquim Vicente Silva, do BCav 8323, as informações preciosas e detalhadas que me disponibilizaram para a elaboração deste texto. Qualquer erro factual que possa eventualmente surgir (nunca sabemos tudo!) é apenas da responsabilidade deste vosso camarada,

António Graça de Abreu
S. Miguel de Alcainça, 19 de Fevereiro de 2009
Ano do Búfalo
_____________

Nota de L.G.:

(*) Sobre Copá, vd. postes de:

11 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3871: Em busca de... (65): Pessoal de Copá, 1ª Companhia do BCAV 8323/73 (Helder Sousa)

28 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3810: Copá, abandonado em 14/2/1974 (José Martins) (3): Unidades de comando em Bajocunda

28 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3809: Os últimos dias do destacamento de Copá, Janeiro/Fevereiro de 1974 (Helder Sousa / Fernando de Sousa Henriques)

26 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3797: Copá, abandonado em 14/2/1974 (José Martins) (2): Unidades de intervenção no subsector de Bajocunda

26 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3795: Copá, abandonado em 14/2/1974 (José Martins) (1): O princípio do fim, a história do Soldado António Rodrigues

30 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3817: Copá, abandonado em 14/2/1974 (José Martins) (4): Unidades de coordenação na Zona Leste

Vd. ainda sobre Copá (destacamento das NT abandonado em 14/2/74):

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1410: Antologia (57): O Natal de 1973 em Copá (Benigno Fernando)

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)

30 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P3004: PAIGC: Op Amílcar Cabral: A batalha de Guileje, 18-25 de Maio de 1973 (Osvaldo Lopes da Silva / Nelson Herbert)

13 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2937: A guerra estava militarmente perdida? (16): António Santos,Torcato Mendonça,Mexia Alves,Paulo Santiago

26 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3795: Copá, abandonado em 14/2/1974 (José Martins) (1): O princípio do fim, a história do Soldado António Rodrigues

16 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P1958: Vídeos da guerra (1): PAIGC: Viva Portugal, abaixo o colonialismo (Luís Graça / Virgínio Briote)

(... ) Referência ao vídeo da televisão francesa, a antiga ORTF, disponível em INA - Institut National de l' Audiovisuel

GUINEE : LA GUERILLA AU GRAND JOUR MAGAZINE 52 ORTF - 04/07/1974 - Video 12' 32'' / DVD 3 €

Guiné 63/74 - P3994: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (4): Uma civil, e trasmontana de Sabrosa, na tropa (Giselda Pessoa)

Base Escola de Tancos > 1971 > 7.º curso de paraquedismo, para enfermeiras civis. Foto de grupo.

Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > 1972 > A Gidelda junto do AL-III, com a respectiva tripulação, durante um alerta a operações, com base em Aldeia Formosa.

Guiné > Bissalanca > BA 12 > 1972 > A Giselda (à direita), com um militar do Exército e a enfermeira Rosa Mota (Mendes pelo casamento).
Fotos: © Giselda Pessoa (2009). Direitos reservados.


1. Texto da Giselda Antunes Pessoa, ex-Sgrt Enf Pára-quedista (BA12, Bissalanca, Janeiro de 1972/Abril de 1974), novo membro da nossa Tabanca Grande:

As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (4) > UMA ENFERMEIRA CIVIL NA TROPA (*)

A minha formação como enfermeira foi iniciada na Escola de Enfermagem do Hospital de S. João, no Porto, em 1966. Ida de S. Martinho de Anta (**), perto de Vila Real, o Porto era o local mais lógico para tirar o curso. E por lá continuei em 1968, como enfermeira, tendo sido logo colocada no Serviço de Urgência do S.João, onde se trabalhava muito mas também se aprendia mais, e depressa.

Por essa altura ia tendo notícias da minha irmã Antonieta, também enfermeira, então integrada na Força Aérea como enfermeira paraquedista. Das suas deambulações por África ia-me dando notícias, mas não criou necessariamente em mim a vontade de lhe seguir as pisadas.

Foi um pouco por acaso que numa deslocação a Lisboa à Direcção do Serviço de Saúde da Força Aérea, alguns dos presentes me incentivaram a inscrever-me no novo curso que estava em preparação. Acabei por concorrer pois, no fundo, entusiasmava-me a possibilidade de desenvolver a actividade que tinha, num ambiente ainda mais exigente, e agradavam-me igualmente as características da vida militar.

Assim, em 1970, acabei por frequentar o curso de paraquedismo na Base Escola em Tancos, o 7º constituído por enfermeiras civis. Das nove que constituíam o curso acabaram oito, iniciando nós então um rodopio entre a base-mãe, os Açores, Guiné, Angola e Moçambique.

No meu caso pessoal, fui inicialmente colocada em Moçambique durante todo o ano de 1971, onde se pode dizer que tive um período de férias razoável, pois para além de curtos períodos em Nacala e Nampula, estive essencialmente baseada em Lourenço Marques. Aí prestava apoio no serviço de saúde, o que incluía deslocações periódicas a Lisboa, acompanhando e apoiando os militares evacuados, inicialmente no DC-6, mais tarde nos Boeing 707.

Deve dizer-se que em Lourenço Marques ainda se sentia menos a guerra do que em Lisboa e que este período não foi representativo para a minha formação militar, desgostando-me mesmo certos comportamentos que pude observar localmente, quer em alguma da população branca, quer em alguns militares mais acomodados a uma vida fácil e pouco arriscada.

Foi por isso com alguma expectativa que no início de 1972 me mudei, "com armas e bagagens", para a província da Guiné. Aí, finalmente, respirava-se um ambiente muito mais operacional, onde a solidariedade e a camaradagem eram bem visíveis e o trabalho puxado nos fazia sentir mais realizadas.

O contacto diário com as tripulações, as deslocações aos aquartelamentos perdidos no meio do mato, a sensação de se fazer algo de útil por quem precisava, deixaram-me até hoje recordações que dificilmente desaparecerão.

Ao longo dos anos têm surgido, aqui e ali, manifestações de carinho por parte de militares que socorri num momento extremamente delicado da sua vida e que se recordam ainda da enfermeira que os acompanhou e tentou minorar o seu sofrimento. São situações como essas, assim como o convívio que tenho tentado manter com pessoal que passou pelo mesmo no território da Guiné - pára-quedistas, pilotos e pessoal Especialista da Força Aérea, militares do Exército e da Marinha - que me fazem pensar que valeram bem a pena os anos que dediquei à Força Aérea como enfermeira paraquedista.

Giselda Pessoa
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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3914: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (1): Uma brincadeira (machista...) em terra dos Lassas (Mário Fitas)

24 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3931: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (2): Elementos para a sua história (1961-1974) (Cor Manuel A. Bernardo)

28 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3952: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (3): No fim do mundo (Giselda Pessoa)

(**) São Martinho de Anta, freguesia e vila do concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real. O seu filho mais ilustre é Miguel Torga, pseudónimo literário de Adolfo Correia Rocha (1907-1995), médico e um dos grandes escritores portugueses do Séc. XX. E, mais ao lado, já no concelho vizinho de Peso da Régua, tempos o miradouro, de cortar respiração, de São Leonardo de Galafura, que Miguel Torga celebrizou e é um dos mais falabusos miradouros de Portugal, com vista com o Rio Douro e os vinhedos da Região Demarcada do Douro.

Também é obrigatório saber que Sabrosa é a terra natal do primeiro homem que fez a primeira viagem de circum-navegação (1519-1521), Fernão de Magalhães (1480-1521). Morreu em combate nas Filipinas.

Estive há tempos em Sabrosa, onde descobri uma Rua Coronel Jaime Neves, atribuída em vida ao antigo capitão dos comandos que teve um papel-chave no 25 de Novembro de 1975 e que é um trasmontano dos sete costados, natural de Sabrosa....

Espero que da próxima vez que lá passe, encontre também uma rua com o nome das enfermeiras pára-quedistas, irmãs, Antonieta e Giselda Antunes, naturais de Sabrosa. Sr. presidente da Câmara de Sabrosa, José Marques, não perca essa oportunidade de homenagear todas as mulheres trasmontanas através destas duas suas conterrâneas que - não há muitas - foram os nossos 'anjos da guarda' na guerra colonial (1961/74).

Guiné 63/74 - P3993: (Ex)citações (19): Órfãos de guerra: Rogério Soares, aos dois anos, em Nhabijões (Gabriel Gonçalves, CCAÇ 12)

1. Comentário do Gabriel Gonçalves, ex-1º Cabo CriptoCCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71), a propósito da evocação da morte do Sold Cond Auto Manuel da Costa Soares, em 13 de Janeiro de 1971 , num mina anticarro, à saída do redordenameno e destacamento de Nhabijões (*)

Sobre este assunto, lembrei-me que escrevi no meu diário:

(...) “Existe quem não acredite no destino, mas só quem vive horas como esta, que eu e muitos vivemos, poderá pensar e acreditar na força do destino!

"Pois é, mais uma vez o destino actuou e por sinal num rapaz da minha companhia. Chamava-se Soares, era casado e tinha um filho de dois anos que era, como é natural, todo o seu enlevo.

"Lembro-me que, por vezes, nas nossas horas de ócio e à sombra amiga da caserna, falávamos sobre os mais diversos assuntos e ele, como todos nós, comentava os seus planos futuros e risonhos, para quando chegasse à metrópole, todo ele se ria quando falava no seu Gerinho. Rogério é o nome do seu filho.

"Sim, foi hoje, dia 15 [13] de Janeiro de 1971 que ele faleceu. Amanhã chegará o telegrama aos seus familiares anunciando o triste acontecimento. Que vai ser desses infelizes? “...

"Findo esta narrativa, triste é certo, mas que servirá para que quando mais tarde Itálicoalguém a leia, dê valor ao que sofremos aqui. Valerá a pena?"


Um abraço
GG

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 6 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3990: Diário de uma tuga (Luís Graça) (1): Quando o meu relógio parou às 13h30h, Nhabijões, 13 de Janeiro de 1971

Confirmei a data na lista dos mortos do Ultramar, no sítio da Liga dos Combatentes

Guiné 63/74 - P3992: Nuvens negras sobre Bissau (18): Um povo afável e generoso que ainda nos recebe com um sorriso... (Torcato Mendonça)

1. Mensagem do Torcato Mendonça, com data de 4 de Março:

Caros Editores: Ia começar a ler o blogue, são as 22H00 e parei.Como fiz um comentário, na manhã de hoje aos Postes do Carlos Scharz e do Luís Graça que virou, pela quantidade de palavras a escrito para arquivo. Acrescentei um cabeçalho agora e segue. Ainda hesito, mas...

Hoje de tarde fiquei bem melhor informado sobre a Guiné e o que se tem passado. Lastimo. Sejamos optimistas e acreditemos nos homens.

Abraços para vocês do Torcato

[Aqui, na foto, no Fundão, em 2 de Junho de 2007]

2. Guiné, Hoje (*)
por Torcato Mendonça

Escrever sobre determinados assuntos tem, de um modo geral, como destino o arquivo. Vão depois desaparecendo, nem todos é certo e, de quando em vez, encontro um ou outro. Verifico como pensava na altura do escrito.

O espaço do comentário é curto, embora indo além das sessenta palavras. Tentei fazê-lo hoje. O poder de síntese e o espaço iam ser limitativos. Por isso fui escrevendo. Se resolver enviar lá irá…

Li, caro Luís Graça, o que Carlos Schwarz escreveu em resposta a um mail teu. É a sua visão dos acontecimentos, a sua análise frontal e desassombrada, uma mais valia, para quem se preocupa ou gosta de ter conhecimento dos últimos acontecimentos ocorridos na Guiné. É um homem natural de lá, creio eu, e, mesmo que o não fosse, sempre esteve àquela terra ligado. Li e reli com interesse.

Mas, meu Caro Luís Graça, apesar da opinião valiosa - subjectiva como todas e até passível de melindres, o ser valiosa é adjectivação minha – e desassombrada, pois vem de homem que pensa livre.

A situação naquele País é bem mais complexa. Sempre foi. Mesmo durante a guerra colonial e com Amílcar Cabral vivo; depois de sua morte e das purgas e ajustes de contas ocorridos; pós-independência, não a de 73, claro que foi mera propaganda para servir a causa, mas o pós-independência com a saída de Portugal; no consulado (presidência) de um outro Cabral; as perturbações, os fuzilamentos de tantos que serviram o nosso País e não só; o golpe de João Bernardo Vieira e as perturbações posteriores. Não nos podemos intrometer. Melhor eu não posso, não devo e não me quero intrometer.

A História da Guiné terá que ser feita por Guineenses. Há, de minha parte e em muitos de nós que por lá passámos, não um saudosismo mas, isso sim, uma afectividade sentida por aquele Povo.

Curiosamente ou talvez não, um povo esquecido, um povo onde, no seu seio vivem, ex-combatentes, da chamada luta de libertação, vitimas do ostracismo imposto pelas elites saídas dessa tal luta. Vivem em harmonia com outros ex-combatentes que connosco estiveram, no meio do povo que connosco co-habitou.

É esse povo, afável e generoso, que recebe os antigos combatentes com um sorriso e um carinho enorme. Dizes, meu caro amigo… ”eles são, todos eles, os melhores filhos da Guiné”. Faltam muitos, muitos. Falta esse povo que vive nas tabancas, nas “cidades” em degradação ou, porque não na periferia de Bissau. Não posso escrever assim. Não posso ir além de. Posso, isso sim estar, concordante ou discordante com o que Carlos Schwarz descreve, como ele sabe e bem, o que é lógico, sobre a situação agora vivida e, muito levemente, levanta o véu de um ou outro porquê.

Posso ainda dizer que escreves um belo poema; que as canções do Anastácio me sensibilizam; que a música do korá do Braima Galissa me enternecem e sinto a nostalgia, pela poesia, prosa, canto e música de um passado, de uma parte do meu passado. E mais te digo amigo, espero só saltar um pequeno escolho e, agora sim, tenciono voltar á Guiné. Sem turismo, sem nada mais que não seja recordar, sentar-me na base de um poilão, debaixo da sombra de uma mangueira, ouvir o som dos pilões, o riso das crianças, as vozes das mulheres e, fechando os olhos sonhar. Ainda encontrar quem quero.

Agora fico expectante, desejando o bom senso, a determinação, a sabedoria dos “homens grandes” para ultrapassar a morte do General Tagma Na Waié, e estas mortes de não sei quantos guineenses, incluindo o seu Presidente.

O futuro é já hoje, meu caro amigo, o futuro está atrasado... recordas as carências sanitárias? Recordas as carências de tudo? Não sei se viste o documentário “Dar a Vida Sem Morrer” [, de Catarina Furtado, na RTP1,] e disso, das questões de saúde, sabes muito mais que eu. Só estamos próximo no sofrimento que vimos.

O futuro tem que ser feito com determinação e ser propiciador de um desenvolvimento abrangente. Isso será o Povo e os dirigentes que dele emanam, a construir. Sem nunca esquecer que de África sabem os africanos. E, se nós, europeus, pudermos ajudar que o façamos em igualdade. No fundo, bem lá no fundo, apelando, de quando em vez, à memória e tentando compreender como foi possível certo passado.

Isto foi um sentir, um pensar em voz alta, um leve comentário a uma situação que nós queremos ver rapidamente ultrapassada.

Procuro não comentar, nem ao de leve, o que chamo os 3 G – Guileje, Gadamael e Guidage. Comentei é certo mas pouco. Aqui parei.

Quanto a um jornalista e à revista onde escreve, para mim está quase tudo dito. “As Duas Faces da Guerra” da Diana Andringa/Flora Gomes, penso à minha maneira. Fiz um simples comentário e ponto.

Isto é um espaço de pluralidade opinativa e sempre em respeito pela opinião de todos. Nisso é que está a riqueza do pensamento…

Pode pensar-se que estou a falar de democracia. Não. A democracia pratica-se e hoje faz parte do nosso viver. È desnecessário. Não é?

Por vezes, em certas zonas deste nosso Mundo parece diferente…também a paisagem, os cheiros, o clima… variam!

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Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 5 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3984: Nuvens sobre Bissau (17): Curvo-me à memória do Nino, o homem que nos fez a vida negra em Gandembel/Balana (Idálio Reis)

sexta-feira, 6 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3991: (Ex)citações (19): Não quis antingir, nem ao de leve,a dignidade dos antigos combatentes (Luis A. Martins, Visão nº 835, 5/3/09)


O Luís Almeida Martins, jornalista da Visão, é um "rapaz da nossa idade" e, pelas palavras que escreveu no última edição do seu semanário (e que eu antecipo aqui, para apreciação dos nossos camaradas e amigos) merece mais do que o benefício da dúvida... Como eu costumo dizer, citando um velho provérbio do nosso povo (que não é estúpido), "os homens conhecem-se pelas palavras, e os bois pelos cornos"... (LG)
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"CORREIO DO LEITOR > Rectificação:

"Numerosos leitores, antigos combatentes da Guerra Colonial, escreveram-nos manifestando grande indignação por algumas frases do artigo 'Portugal e o passado' , sobre o livro do General Spínola (V833), em que tentei transmitir às gerações jovens os horrores de um conflito infelizmente hoje quase esquecido pelo poder político mas verdadeiramente marcante dos meados do nosso século XX - e em que só não participei por mero acaso, já que pertenço à geração que o fez.

"É claro que nunca foi minha intenção atingir [nem] ao de leve a dignidade dos antigos combatentes (afinal praticamente todos os jovens do sexo masculino da década de 60 e princípios da de 70), que, abandonados pelo poder político, guardam recordações gratas desse tempo marcado pelo sacrifício, a generosidade, a camaradagem e, retrospectivamente, a saudade.

"Mas se algum deles se considera ainda beliscado foi porque eu não soube transmitir o pretendido, e por essa inépcia peço, obviamente, desculpa".


Assinado: Luís Almeida Martins

(Visão, nº 835, 5 a 11 de Março de 2009, p. 10).

http://www.visao.pt/

Guiné 63/74 - P3990: Diário de uma tuga (Luís Graça) (1): Quando o meu relógio parou às 13h30h, Nhabijões, 13 de Janeiro de 1971

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1971 > A viatura Unimog 411 em que perdeu vida o Sol Cond Autor Manuel Almeida Soares, da CCAÇ 12 à saída do reordemento e destacamento de Nhabições, às 11h25 do dia 13 de Janeiro de 1971... O que restou da viatura (foto) foi rebocado para Bambadinca, sede do BART 2917 (1970/72), a que a CCAÇ 12 estava afecta como subunidade de intervenção.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada de Bambadinca - Mansambo - Xitole > 1969 > Efeitos da explosão de outra mina anticarro...

Fotos: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


Diário de um tuga (Luís Graça) (1):

Nhabijões, 13 de Janeiro de 1971.

E de súbito uma explosão. O sol dos trópicos desintegra-se. O céu torna-se bronze incandescente. O mamute de três toneladas dá um urro de morte ao ser projectado sob a lava do vulcão. E depois, silêncio...

Era uma hora e meia da tarde quando o meu relógio parou, na estrada de Nhabijões-Bambadinca…

A viatura vai despenhar-se num abismo imaginário. Volatizar-se como uma aeronave ao reentrar na atmosfera. Sou projectado ao lado do condutor, batendo violentamente com a cabeça na chapa do tejadilho e depois com a testa e os joelhos na parte da frente. Consigo equilibrar-me mas não vejo nada. Há uma espessa nuvem de pó que me envolve, exalando um forte cheiro a enxofre. Ainda consigo pensar: o ar está rarefeito e eu vou sufocar dentro desta maldita cabina.

Foi então que se produziu uma espécie de curto-circuito no meu cérebro, como se eu tivesse sido electrocutado. Fiquei rigidamente colado ao assento, a G3 estranhamente entrelaçada nas minhas pernas, e a vaga sensação de que a massa encefálica me tinha saltado da caixa craniana. O olhar vidrado de quem mergulhou nas profundezas da terra. O gélido terror de quem vai entrar num mundo desconhecido.

Nunca saberei ao certo quantos segundos se passaram, mas houve um solução de continuidade (essa fracção de tempo em que a consciência esteve bloqueada) até compreender que a velha GMC tinha accionada... uma mina.

Outra mina, meu Deus!, e instintivamente agarro-me àquela carcaça de mamute, mal refeito da surpresa de estar vivo.

Quando salto para o chão, o que se me depara como espectáculo são os destroços duma batalha: há corpos por todo o lado, juntamente com espingardas, cantis, quicos, canos de bazuca e de morteiro, granadas, bocados de chapa e de borracha, numa profusão indescritível. Corpos que gemem, que gritam, ou que talvez já sejam cadáveres.

Mortos! Tudo mortos, mi furiele! – grita-me o Umaru [, aqui na foto comigo,] , o puto, como lhe chamamos (e o que é ele, de resto, senão uma criança violentada pela guerra que aos dezasseis ou dezassete anos trocou a mauser das milícias pelo morteiro 60 de uma companhia de carne para canhão!?), os braços abertos, o pânico estampado no seu belo rosto de efebo, fula, filho de régulo. Era a primeira vez porventura que o via sem o seu inseparável pequeno cachimbo, que ele, fumador inveterado, usava para lhe dar o ar sério de homem grande.

O primeiro ferido que reconheço é o transmissões, todo encolhido junto à viatura destruída, numa atitude instintiva de defesa, e sob forte estado de choque. Abeiro-me depois do comandante da 1ª secção, meu companheiro de quarto, o Marques, mas ele já não reage à minha voz nem às bofetadas que lhe dou no rosto.

Aparentemente não tem qualquer fractura exposta mas de um dos ouvidos corre-lhe um fio de sangue. Procuro desesperadamente os sinais de que ainda está vivo: a sua respiração é cada vez mais fraca e não é sem um calafrio que tacteio este pulso que se me escapa.

Trágica ironia, a de mais este banal episódio de guerra: minutos antes, ao subirmos para a viatura, de regresso a Bambadinca, eu havia disputado amigavelmente o 'lugar do morto', com o Marques [ aqui na foto comigo]:
- Vais tu, vou eu, vais tu, vou eu!...

Acabei por ir eu ao lado do condutor. Mas daquela vez, e para sorte minha, a mina rebentaria sob um dos rodados duplos traseiros da GMC, embora do meu lado. O condutor tinha acabado de fazer a inversão de marcha, para regressarmos ao quartel.


Outra puta de mina, meu Deus! - que fora não detectada
pelos nossos picadores, accionada na berma da estrada,
às portas do reordenamento de Nhabijões, a escassos
metros da anterior.

Estávamos de piquete, quando duas horas antes uma viatura nossa , que ia buscar, a Bambadincao almoço para o pessoal afecto aos trabalhos de reordenamento, accionara uma mina. O nosso condutor, o Soares, teve morte imediata. Pobre do Soares, aos 20 meses de comissão...

O Furriel Fernandes, meu camarada da CCAÇ 12 (foto à esquerda, ao lado do Levezinho), ficou gravemente ferido. O alferes sapador Moreira e outro militar da CCS do BART 2917 ficaram também feridos… O Moreira, ao que parece, com gravidade. (Foto, à direita, em cima)

Mas só agora reparo no velho Tenon, no Ussumane, no Sherifo, mesmo ao meu lado, a meus pés, sem darem acordo de si. E ainda no Quecuta, no Cherno e no Samba, nosso bazuqueiro, arrastando-se penosamente sobre os membros superiores, como lagartos cortados ao meio.

As duas secções que seguiam atrás, na GMC, tinham sido literalmente projectadas pela vulcão de trotil, como se fossem cachos de bananas. Se o rebentamente da mina fosse seguido de emboscada, então seria um massacre. Eu era o único que tinha uma arma na mão, sem bala na câmara, como de costume, mas desta vez provavelmente inoperacional, devido ao choque sofrido… E, de facto, não deixo de sentir um arrepio ao imaginar-me sob a mira certeira dos RPG e o matraquear das costureirinhas e das Kalash.

Felizmente, tínhamos acabado de fazer o reconhecimento das imediações, detectando o trilho dos elementos da guerrilha que, durante a noite, tinham vindo pôr as minas assassinas… Esse trilho, mais fresco, acabava por confundir-se com os trilhos usados pela população de Nhabijões que, como é sabido, não morre de amores por nós… Por outro lado, o sítio, descapinado, não seria o mais indicado para montar uma emboscada...

É possível, entretanto, que haja mais minas pela estrada fora, mas não posso perder nem mais um segundo. Ainda hesito em mandar picar ou não o terreno, mais alguns metros em redor, mas não posso perder tempo, para logo seguir , de imediato, para o heliporto de Bambadinca com os feridos mais graves. Foram pedidas várias evacuações Ypsilon, via rádio.

Mais até do que a solidariedade entre camaradas de guerra e a minha amizade pelo Marques, o que me parece mover, correr feito louco, com os feridos a gritar pela picada fora, é talvez o sentimento do absurdo da morte, do absurdo desta guerra, a raiva contra esta guerra...

É uma corrida louca, esta, na fronteira incerta que separa a vida da morte na estrada de Nhabijões, no primeiro Unimog que me apareceu à mão, e que leva um carregamento de feridos. Três deles estão em estado de coma e têm como destino outro inferno: o hospital de Bissau, a incerteza do desfecho da luta entre a vida e a morte aos vinte e poucos anos (***)...

_____________________

Notas de L.G.:

(*) Já publicado, na I Série do blogue, sob outro título: 2 de Dezembro 2005 >
Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

Vd. também postes de:

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)

6 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3989: Agenda cultural (2): O pintor Manuel Botelho expõe no Porto e homenageia o malogrado Sold Cond Soares, da CCAÇ 12 (Beja Santos)

(**) O Luís Moreira é hoje membro da nossa tertúlia. Era então alferes miliciano sapador da CCS do BART 2817. Depois de recuperado ficou no BENG, em Bissau. Vim a reencontrá-lo como professor de matemática do ensino secundário. Já deve estar hoje reformado.

(***) O Marques sofreu politraumatismos que o puseram à beira da morte. Saído do coma, ao fim de duas semanas e meia, tinha uma perna gangrenada... A sua recuperação foi lenta e difícil, tendo conhecido o longo calvário dos hospitais militares (Bissau e depois Lisboa). É hoje mais um DFA (deficiente das forças armadas), além de bem sucedido comerciante na cidade de Cascais, já reformado. Infelizmente, não é membro da nossa Tabanca Grande. O Manuel Almeida Soares, por sua vez, está sepultado na sua terra, Oliveira de Azeméis. Não tenho, infelizmente, nenhuma foto dele. Dos meus camaradas guineenses da CCAÇ 12, também gravemente feridos nesta mina, perdi o rasto...

Guiné 63/74 - P3989: Agenda cultural (3): O pintor Manuel Botelho expõe no Porto e homenageia o malogrado Sold Cond Soares, da CCAÇ 12 (Beja Santos)

Aguarela do pintor Manuel Botelho > 2008 > Título: "A viatura Unimog era conduzida pelo soldado Soares". Cortesia do autor. Agradecimentos ao Beja Santos que nos fez chegar a imagem.



Galeria Fernando Santos> Espaço 531 > Aerograma (***)

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1. Duas mensagens do nosso camarada Beja Santos, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70):

(i) 5 de Março de 2009:

Luis, o Manuel Botelho tem frequentado assiduamente o nosso blogue, como sabes, aqui se inspira para as suas obras-primas. Adora as fotografias do Humberto Reis, muito justamente. Não tens tido paciência para os meus escritos, mas desta vez peço-te encarecidamente que divulgues esta iniciativa do único grande nome das artes plásticas que vai beber à nossa fonte .Ele é o autor da aguarela onde vemos o Unimog 411 em que morreu o soldado-condutor Soares.

Recebe um abraço do Mário

Comentário de L.G.:

Mário: Já te tinho dito que precisava de tempo para dar um pouco mais de atenção ao teu encarecido pedido... A nossa equipa de editores tem estado um pouco desfalcada, por razões da vida pessoal de uns ou da saúde de outros... Estando a meio gás, não é possível dar imediata resposta a todos os pedidos dos camaradas e amigos da Guiné. E depois há que definir prioridades em termos editoriais.

Como te prometi, não te esqueci nem te podia esquecer, a ti, ao Botelho e ao Soares. Dá um grande abraço ao teu amigo pintor. Diz-lhe que ficamos sensibilizados e agradecidos por ele, como artista plástico, saber e poder encontrar motivos de inspiração no nosso blogue e na fotogaleria do Humberto Reis. A malta de Bambadinca do nosso tempo, e em especial os camaradas da CCAÇ 12, sentem-se honrados por esta justa homenagem à memória do Manuel Soares, morto quase na recta final, a 20 meses de comissão... à saída do reordenamento de
Nhabijões (entre Bambadinca e o Xime).

Não sei se sabes (já estavas em Lisboa nessa altura), nesse dia o meu relógio parou às 13h3O no mesmo local onde o pobre do Soares encontrara a morte duas horas antes. Havia uma segunda mina anticarro à espera do pelotão de intervenção em que eu estava integrado. Voei literalmente numa velha GMC. Nunca mais consegui esquecer esse e outros dias negros... Foi um dia trágico, esse 13 de Janeiro de 1970 (*).

Boa sorte para a exposição no Porto. Vamos convidar a nossa malta (e em especial a da Tabanca de Matosinhos) a dar lá um salto à Galeria Fernando Santos. O Soares era nortenho, de Oliveira de Azeméis.


Um Alfa Bravo. Luís

(ii) 27 de Janeiro de 2009:

Luís, esta obra de arte [vd. imagem acima] envolve um acontecimento doloroso, a mina nos Nhabijões que vitimou mortalmente o nosso querido Soares e feriu vários camaradas teus (*).

O pintor Manuel Botelho, de quem sou profundo amigo, realizou uma exposição de fotografia no Museu da Electricidade, em 2008, que teve a singularidade de versar ambientes ficcionados da Guerra Colonial (**). Aqui há uns meses convidou-me a ir ao seu estúdio ver os trabalhos que irá expor nas suas próximas exposições. Uma tem a ver novamente com fotografia, outra prende-se com aguarelas baseadas em temas da guerra.

Comoveu-me profundamente esta obra de arte derivada de uma fotografia que vem no Tigre Vadio e cujo autor é o nosso extremoso Humberto Reis. Pedi licença ao Manuel Botelho para publicarmos em primeira-mão esta imagem de um Unimog 411 destroçado. Estou comovido por sermos dignos da atenção de um grande pintor português, o querido Soares passa assim à posteridade nas artes plásticas.

Mas estou também comovido por que ele é um dos mortos da CCaç 12, camaradas de tantas andanças.

Recebe um grande abraço do Mário


____________

Notas de L.G.:

(*) Mário: froam duas minas, com um intervalo de duas horas... Manuel da Costa Soares, "morto na sequência de ferimentos em combate por rebentamento de uma mina em Nhabijões" [ou melhor, teve morte instantânea], no dia 13 de Janeiro de 1971, às 11h25, aos 20 meses de comissão... Era natural de Oliveira de Azeméis, concelho que perdeu doze filhos só no TO da Guiné. Era Sold Cond Auto da CCAÇ 2590, mais tarde CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971).

Vd. os seguintes postes:

13 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3451: O Nosso Livro de Visitas (43): A. Almeida da Liga dos Combatentes de Oliveira de Azeméis

19 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2454: PAIGC - Instrução, táctica e logística (8): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VIII Parte): Minas III (A. Marques Lopes)

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)

(...) "O dia 13 seria uma data fatídica para as NT, e em especial para a CCAÇ 12 cujos quadros metropolitanos estavam prestes a terminar a sua comissão de serviço em terras da Guiné. Eis o filme dos acontecimentos:

"(i) Às 5.45h o 1º Gr Comb detectou, durante a batida à região de Ponta Coli, vestígios dum grupo IN de 20 elementos, vindos em acção de reconhecimento aos trabalhos da TECNIL na estrada Bambadinca-Xime e locais de instalação das NT.

"(ii) Às 11.25h, na estrada de Nhabijões-Bambadinca, uma viatura tipo Unimog 411, conduzida pelo Sold Soares (CCAÇ 12) que ia buscar [a Bambadinca] a 2ª refeição para o pessoal daquele destacamento, accionou uma mina A/C. O condutor teve morte instantânea. Ficaram gravemente feridos 1 Oficial (CCS / BART 2917)[Alf Mil Moreira], 1 Sargento (Fur Mil Fernandes/CCAÇ 12) e 1 Praça (CCS / BART 2917).

"(iii) Imediatamente alertadas as NT em Bambadinca, o Gr Comb de intervenção (4º, CCAÇ 12) recebeu a missão de seguir para o local a fim de fazer o reconhecimento da zona, enquanto outras forças acorriam a socorrer os sinistrados.

"Ao chegar junto da viatura minada, o Cmdt do 4° Gr Comb [Alf Mil Rodrigues] deixou duas praças a fazer a pesquisa, na estrada e imediações, de outros possíveis engenhos explosivos, no que foram apoiados por alguns elementos do destacamento, seguindo depois uma pista de peugadas recentes, detectadas nas proximidades, e que se dirigiam para a orla da mata.

"Aqui, a 50 metros da estrada, atrás duma árvore incrustada num baga-baga, encontraram-se vestígios muito recentes. Seguindo os rastos através da mata, foi dar-se à antiga tabanca de Imbumbe [um dos cinco núcleos populacionais de Nhabijões, agora transferidos para o reordenamento], mas nas proximidades do reordenamento (Bolubate) aqueles passaram a confundir-se com os do pessoal que trabalha na bolanha.

"(iv) Regressado ao local das viaturas, o Gr Comb pelas 13.30h recebeu ordens para recolher, tendo o pessoal tomado lugar no Unimog e na GMC em que tinha vindo. Esta última [onde vinham as secções, comandadas pelos Fur Mil Marques e Henriques] , entretanto, ao fazer inversão de marcha, e tendo saído fora da estrada com o rodado trazeiro, accionaria uma outra mina A/C colocada na berma, a 10 metros da anterior, e que não havia sido detectada pelos picadores.

"Em resultado de terem sido projectados, ficaram gravemente feridos o Fur Mil Marques e os Sold Quecuta, Sherifo, Tenen e Ussumane. Sofreram escoriações e traumatismos de menor grau o Alf Mil Rodrigues, o Sold Trms Pereira e os Sold Cherno e Samba" (...).

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

(...) "E de súbito uma explosão. O sol dos trópicos desintegra-se. O céu torna-se bronze incandescente. O mamute de três toneladas dá um urro de morte ao ser projectado sob a lava do vulcão. E depois, silêncio... Era uma hora e meia da tarde quando o meu relógio parou, na estrada de Nhabijões-Bambadinca" (...).

(**) 23 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2875: Agenda Cultural (1): A Guerra Colonial na Pintura, Cinema e Literatura.

(***) Vd. Recortes de imprensa (Público > Guia do lazer > Exposições)

Aerograma

Depois de três grandes séries fotográficas dedicadas à Guerra Colonial, Manuel Botelho regressa ao desenho, sobre o mesmo tema. Até 14 de Abril na Galeria Fernando Santos, no Porto.

"Aerogramas" eram mensagens, cartas trocadas entre militares em serviço em Angola, Guiné e Moçambique e as respectivas mães, namoradas, esposas e madrinhas de guerra. Os desenhos desta nova série de Manuel Botelho (n.1950, Lisboa) conjugam texto e imagem - lemos excertos de "aerogramas" originais, como por exemplo, "casei-me pelo civil com uma fotografia que estava em cima da mesa".

Em 2008, Botelho apresentou em três locais distintos, na Lisboa 20 Arte Contemporânea, no Museu de Arte Contemporânea de Elvas e na Fundação EDP, uma extensa série de fotografias sobre a Guerra Colonial.