sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7098: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (1): No princípio, era o convento... de Mafra



(...) "Encontrou alguns dos seus colegas de seminário, desistidos anos antes e nunca mais vistos: O Vítor, um óptimo hoquista, de Espinho; o Luís Barros, o José Ramos Canito, de Vila do Conde. Outros mais haveriam de aparecer já nas quentes paradas do religioso convento, convertido em quartel e escola de guerra." (...) . Imagem: Origem desconhecida.




1. Texto do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins, (Como, Cachil, Catió, 1964/66)

Assunto: Futuro Palmeirim de Catió

Olá,  Luís!

Como não podia ser doutra maneira, continuo a sr um assíduo e interessado leitor do teu/nosso monumental blog. Duma riqueza incalculável. Se não fosse a tua feliz ideia, mais umas dezenas de anos volvidos, um valiosíssimo tesouro patriótico ficaria, para sempre, sepultado no desconhecido e na ignorância das gerações futuras. Aquela guerra que nós vivemos, com bons e maus momentos, palpita com uma surpreendente e autêntica vivacidade nos milhares de posts que já foram escritos e irão seguir-se.

Mais uma vez e sempre a minha admiração e reconhecimento pelo teu empenho e o dos nossos co-editores.

O texto que segue sai da autobiografia que fiz para os meus netos lerem, um dia...sobre os verdes anos do seu avô...Dela sairam as crónicas dos Palmeirins de Catió (*). Agora, penso de algum interesse partilhar a minha vida, nos tempos preliminares da guerra que nos foi imposta e que cumprimos sem discutir...( absolutamente impensável nos tempos que correm...).

Fica à tua/vossa disposição para serem lançadas no Blogue.

Um grande abraço

Joaquim Mendes Gomes


2. Futuro Palmeirim de Catió (1) > No Convento de Mafra
por J.L. Mendes Gomes

Num dos primeiros dias de Agosto de 1962, munido da guia de marcha militar, tomou a carreira mais madrugadora do Cabanelas, às 6 da manhã, em Pedra Maria,( Felgueiras) para ir apresentar-se, nesse dia, na longínqua vila de Mafra, sua conhecida, só das páginas escolares da história portuguesa.

Naquela manhã, uma vez mais, acompanhado pelas badaladas da torre de Pedra Maria, agora, em jeito de adeus, um dos seus filhos partia para a tenebrosa e imposta aventura militar. O cortejo dos que tinham a mesma sorte foi engrossando, ao longo do caminho, longo, primeiro, na tão familiar estação de São Bento, no Porto. Depois, sempre no ronceiro comboio correio que parava em tudo quanto era sítio, até às paragens verdejantes da linha do Oeste, a partir da simpática estação de Alfarelos, com bela azuleijaria azul a revestir-lhe as paredes com cenas de vindimas e pomares da região.

O nervosismo que toldava todos os mancebos ficava mascarado pela irrequietude e pelas irreverentes gargalhadas que se desprendiam, permissivas e sem controle, dominando as carruagens do comboio, como se já fossem as, ainda só, imaginadas casernas que os esperavam.

Encontrou alguns dos seus colegas de seminário, desistidos anos antes e nunca mais vistos: O Vítor, um óptimo hoquista, de Espinho; o Luís Barros, o José Ramos Canito, de Vila do Conde. Outros mais haveriam de aparecer já nas quentes paradas do religioso convento, convertido em quartel e escola de guerra.

O famigerado Simão, por exemplo, lá apareceu, em fatídica surpresa, qual sombra sinistra e teimosa, escondido na larga farda cinzenta, onde lhe sobrava muita fazenda. Só a comprida pála do barrete lhe acompanhava, até à ponta, em sintonia perfeita, o seu característico nariz rubicundo. Tão furtivamente como apareceu, assim desandou, ao cabo de umas breves semanas da recruta, dura de roer…

Soube, através de outro ex-seminarista, o pachorrento, mas d`olho vivo, Bernardino Teixeira de Carvalho, que ele tinha dado baixa ao hospital e que, por artes mágicas, se livrou, definitivamente, da tropa, escassas semanas depois…Que inveja!…Era sobrinho dum abade influente. …Bênçãos que caem e sempre hão-de cair, apenas, sobre certos telhados, sabe-se lá porquê… Talvez o diabo saiba…

Pode dizer-se que uma grossa turma de ex- seminaristas portucalenses lá estava transferida, agora, espalhada e bem tresmalhada, pelas muitas companhias do regimento, de velha "mauser" ao ombro, e fato zuarte, em vez do terço e da cândida sobrepeliz branca…

A pouco e pouco, já de noite, a longa fila dos noviços soldados-cadetes desfilava por um dos muitos infindáveis corredores do convento colossal, para ir desnudar-se, pela derradeira vez, à vista de todos os olhos surpresos, só para que dúvidas não restassem sobre a masculinidade genital, perante os clínicos anfitriões…

Era a primeira cena, simiesca, das muitas que haveriam de suceder, durante os anos seguintes, perante a máxima e confortante hilariedade, em que todos eram participantes. Olhos surpresos? Sim. Se é certo que quem vê caras não vê corações, também se confirmou, ali e doravante, que quem vê grandes e másculas corpulências não pode garantir-lhes correspondentes intumescências…

Dir-se-ia até que a lei da natureza, sobre masculinidade, se rege pela razão inversa dos tamanhos…numa linha de equilibradas compensações. Ali se patenteava, aos olhos de todos, com toda a verdade, pelo menos, naqueles tempos, as grandes surpresas e os desencantos de tantas noites de núpcias…

O Sampaio, um castiço tripeiro, de cabelo alourado e espetado, numa cara sardenta e afilada, com olhos pequeninos e fundos, um inexcedível palrador e barraqueiro, desde a estação de S. Bento, bêbado de cerveja, que nem um cacho, ali estava a tentar pele 4ª ou 5ª vez, enfiar, perna a perna, nas largas calças da farda acabada de receber, com algumas idas ao chão, pelo meio, sem esboçar um sorriso.

Por acaso, foi parar ao mesmo pelotão da 2ª Companhia de Infantaria, comandada pelo mais garboso e convencido capitão, Óscar Gomes da Silva, de bivaque de altas proas na cabeça e de elegantes polainas pretas de couro preto, sempre a luzir, e à mesma caserna monacal.

Tal como o Mendonça, a quem a longa escola da boémia de Coimbra rapara todo os temores que nos enlaçam sempre, nestes primeiros contactos, em novos ambientes.

Totalmente ambientado, desde logo, se manifestou pronto a enfrentar e derreter, em gozo geral, os frequentes assomos da maluqueira militarice profissional.Parecia que estava ali para se divertir, à grande, com a requintada habilidade de um bobo na côrte.

Também quis a sorte que ele fosse parar ao mesmo pelotão, companhia e caserna. A prová-lo, relembra um dos muitos episódios, que teve a sorte de presenciar. Seguia o Mendonça, a seu lado, magricelas, dentro do fato zuarte cinzento, esbordante no tamanho, por um dos muitos corredores que percorrem o interior do convento-quartel, do tamanho de altas e largas avenidas, com o braço engessado ao peito. Uns metros após terem passado por aquele superior hierárquico, imediato, o zelozo capitão, comandante de companhia, parou, estacado e dirigiu-se ao subordinado rastejante:
- O nosso cadete não cumpriu o dever de saudação ao seu comandante!…

A resposta brotou, pronta, do Mendonça, já em sentido:
- Saiba Vossa Senhoria, que não foi feita a bem merecida continência, por impossibilidade física, (só os olhos baixaram para o braço desditoso) mas volvi, respeitosamente, ao flanco…

Desarmado e sem palavras, o comandante retomou, impertigado, a sua caminhada bem timbrada sobre o lajedo de mármore gasto pelo uso secular das multidões profanas que o convento continuava a albergar.

Só quando o vulto esguio do satisfeito superior se desvaneceu à distância, por entre outros militares, transeuntes, estoiraram, sem réplica, as gargalhadas, a muito custo retidas por ambos.

O seio hermético do mundo militar começava a revelar-se em catadupa, nas duras semanas que se seguiram, infindáveis. Era um autêntico internato, movido a sonoros toques de cornetim. Cada um tinha o seu significado e, aos recém-soldados cadetes era-lhes vedado alegar desconhecimento.

Às seis da manhã, de verão e de inverno, o toque da alvorada obrigava-os a descerem lestres dos beliches de três, para o escutarem, em sentido, junto aos ferros das camas, ainda em traje de dormir.

As luzes acendiam-se, à 1ª nota do cornetim, e dentro de 20 minutos toda a caserna deveria estar arrumada, camas feitas, com a higiene pessoal e as sagradas botas pretas a reluzir, para que na 1ª inspecção do formar da companhia, o olhar de lince do capitão Óscar, não desfechasse um doloroso corte de dispensa, no final do dia.

Hoje, é inimaginável como tudo se conseguia.

O castiço Mendonça era sempre o último a chegar à parada, com os três pelotões e respectivos comandantes instrutores, à frente, alferes de carreira, de cada uma das três companhias, já bem perfiladas, de capacete e espingarda ao ombro, em posição de descanso.

Vinham depois os três imponentes capitães postar-se à frente da sua companhia, recebendo a devida, continência, à voz de " Ombro, arma!", erguida por cada um dos alferes.

Logo a seguir, era a vez de os capitães renderem continência da sua unidade ao comandante, ainda mais imponente, do Batalhão que o toque de cornetim, anunciava uns instantes antes.

Fazia-se a chamada por companhia; o comandante de batalhão fazia as advertências patriótico-militares, da ordem, e toda a mística estudada nos anais das ciências militares ia sendo transmitida aos futuros comandantes de pelotão nos teatros de guerra colonial que os aguardavam.

Vinha a seguir o pequeno almoço, nos amplos refeitórios do convento, depois da ordem de dispersar.

O próximo toque obrigava à formatura das companhias, perante os seus comandantes e, a partir daí, era a partida em marcha cadenciada pelo alferes, para a mata de castanheiros frondosos, a uns dois km. dali, no seio da vastidão da cerca mítica do convento de Mafra.

Ensarilhadas as armas, segundo a norma tradicional, começavam, em cada manhã, os exercícios de ginástica, desenvolvida numa corrida em círculo. Ali, surgiu a 1ª experiência do esforço físico exigido, sem limites, pela imaginação e comando supremo do alferes do pelotão. As suas ordens eram indiscutíveis, até à exaustão. O cansaço das primeiras semanas fez ver quão doces eram uns escassos minutos de intervalo, entre cada sessão. Nunca as folhas caídas dos castanheiros, à mistura com ouriços espinhosos, foram tão apetecidos colchões, secos ou molhados pela chuva, para um saboroso restauro de forças.

Quando chegava a hora do almoço, era o regresso, até aos imensos refeitórios, de mesas de mármore branco, em salas imponentes. O feijão, o macarrão ou o arroz, acompanhado de gordurentos pedaços de carne de cabra, nunca foram tão saborosos…regados com um pequeno púcaro de vinho tinto carrascão, a granel, ou da água da caneca.

Ordem unida, instrução militar, e o esventrar das mil peças que formam a expedita e obsoleta espingarda Mauser, da bazooca e do morteiro, era o temas da 5 horas de aulas que preenchiam as tardes, sempre, algures, debaixo dos frondosos castanheiros, na mata de Mafra.

A religiosa manutenção da sua Mauser, os crosses semanais, de comprimento crescente, ao longo da estrada da Ericeira, até aos oito km, mais umas sessões de acção psico-pedagógica militar, ocupavam todo o período de recruta daqueles soldados-cadetes. Tratados abaixo de cão, pelas cadeias da hierarquia cinzentona, desde os simples cabos, sargentos ao distante e sisudo comandante do regimento, jamais seriam capazes de imaginar-se, volvidas umas breves semanas, como futuros oficiais milicianos.

O certo, porém, é que terminada a recruta, intensa na preparação física e mentalização militar, com uma semana de campo, nos montes escalvados das cercanias da Malveira, veio a chamada especialidade de atirarador de infantaria, que iria ser exercitada no fantasma da guerra de África. A preparação infindável, terminou nos rigorosos frios de inverno ventoso e chuvento de Mafra lamacenta. Quem por lá passou, bem o pode testemunhar. Mafra, nunca mais. Vê-la, nem de longe.

As guias de marcha para as férias de Natal, na casa de cada um, foram distribuidas em folgosa e frenética algazarra de caserna, companhia a companhia, depois da meticulosa entrega do material distribuido no início.

Nunca se roubou tanto, como nesses dias finais. Capacetes, bivaques, bornais, cinturões, tudo corria perigo ameaçador, numa desconfiança sem excepções, a começar no colega mais próximo. Com recurso a lojas especializadas, abastecidas sabe-se lá como, que prosperavam nas ruelas de Mafra, tudo acabava por dar certo, na hora final

J.L. Mendes Gomes

[Continua]

[Fixação / revisão de texto / título: L.G.]
_______________

Nota de L.G.;

(*) Vd. postes de:

24 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5006: O segredo de... (8): Joaquim Luís Mendes Gomes: Podia ter-me saído caro aquele pontapé no...

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia  

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
 
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
 
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
 
11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
 
29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Guiné 63/74 – P7097: FAP (55): Fuzileiro por um dia (António Martins de Matos)


1. O nosso Camarada António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74, hoje Ten Gen PilAv Res), enviou-nos, em 7 de Outubro último, uma mensagem narrando-nos mais uma das suas hilarientes peripécias, com que se “divertia” na Guiné:

Camaradas,

Queixou-se o Eduardo Magalhães Ribeiro do silêncio da malta da destemida e heróica Marinha Portuguesa, em não nos contarem as suas histórias, em nada contribuindo para o blogue.

E afirma, “Será que os seus protagonistas pensam que essas suas histórias são pouco, ou nada, interessantes?”

Pois, não sei, mas já que eles não contam nada e dado que, por laços familiares até tenho duas ou três costelas de marinheiro, vou eu contar na vez deles, pode ser que assim se encham de vergonha...
“Fuzileiro por um dia”
A minha missão era simples, consistia em voar até ao quartel do Cacheu e aí fazer embarcar no DO-27 (masculino, os aviões são masculinos), um Oficial dos Fuzileiros que ia comandar (de cima) uma operação.

E assim foi, depois de perguntar ao homem do Serviço Postal Militar (SPM) se havia alguma carga de oportunidade para aquele quartel e metido o saco do correio a bordo, lá segui rumo à pista do Cacheu, viagem sem história, a pista nem era mázita, lá me apareceu o Fuzo para comandar a operação, o restante pessoal já tinha saído nos botes (acho que os fuzileiros lhes chamam outra coisa, para mim são botes) rio acima em direcção à Caboiana.

Cabe aqui um parêntesis para dizer como as “coisas da guerra” funcionavam: O oficial comandante da operação, normalmente Major, Capitão Tenente, nestes casos de marinheiros, levava todo o seu equipamento, prancheta, punaises, mapas plastificados, marcadores, correctores, lápis e borracha, enfim, todo o material necessário e suficiente para que, em cima dos ditos mapas, pudesse ir desenhando a evolução da operação.

O rádio, os auscultadores e os sacos de enjoo eram fornecidos pela FAP.

A missão do piloto consistia em voar até à área das operações e a partir daí ir seguindo as direcções que o douto passageiro indicava, mais para a esquerda, mais para a direita, mais alto, mais baixo, tão baixo também... NÃÃOOO... que me assustei... e por aí fora, parecendo fácil, não tinha nada de difícil.

E o passageiro lá ia comunicando com a tropa no chão, pedindo informações e dando ordens e indicações, umas vezes em perfeita harmonia, outras vezes em completo desentendimento.

Com o decorrer das operações o aviador ia-se apercebendo de algumas incongruências que volta não volta iam aparecendo, por vezes o passageiro perdia-se, o sinal era quando começava a dar voltas ao mapa como se fosse um volante, por vezes a tropa nem sempre estava onde dizia que estava.

E como disse num outro texto, se havia “comandantes” que davam de imediato pela “falcatrua”, havia outros que eram completamente enganados e nem davam por tal.

Que essas incongruências não incomodavam o piloto, se o homem estava ali para ser enganado o problema era dele, só que, se por qualquer motivo, era preciso chamar os aviões de alerta para darem um apoio de fogo imediato, nesse momento a coisa complicava-se, o não ter a certeza do local por onde a tropa estaria estacionada era um pesadelo dos grandes, dos muito grandes.

A partir desse momento o “passageiro” calava-se e era o piloto do DO-27 que tomava o controlo da guerra, esperando a chegada dos Fiats, encaminhando-os para o local, dando-lhes a perceber onde estavam “os bons e os maus”, a maneira fácil de proteger os nossos era voar em círculos apertados à sua (deles) vertical, não gostavam os de baixo mas era única maneira de não levarem com uma roquetada, à segunda volta o passageiro começava a gastar os sacos de enjoo, às vezes não chegavam, seguia-se o plástico que continha os dados da guerra e terminava com o próprio mapa.

Voltando à história.

Descolados da pista do Cacheu lá fomos nós em direcção à Caboiana, a missão dos Fuzos consistia em patrulhar alguns afluentes da margem esquerda do rio, dois botes aqui, outros dois acolá, “operações normais” a coisa a correr bem.

Eis senão quando desataram todos aos tiros, granel, durante alguns minutos ninguém se entendeu, nós cá de cima sem saber quem tinha emboscado quem.

Quando a coisa serenou foi hora de contabilizar os estragos, os Fuzos tinham um ferido.

Logo o Comandante da Operação deu por terminada a progressão, regresso imediato dos botes ao Cacheu, e, acto seguinte, pediu-me se não me importava de aguardar que o ferido chegasse ao quartel a fim de ser transportado de imediato para Bissau.

“Claro que não, estou aqui para ajudar”, 5 minutos depois já estávamos aterrados no quartel do Cacheu à espera do ferido.

Foi aqui que a coisa se complicou.

Como a tropa para retirar da Caboiana ainda levava algum tempo, tinham que recolher algum pessoal que andava por lá espalhado, alguém sugeriu que saísse um bote do quartel do Cacheu a fim de ir buscar o ferido.

Meu dito meu feito, até que outro alguém voltando-se para mim, perguntou: “Ó Tenente, quer vir connosco no bote?”

E eu, periquito da merda, devia era estar calado, logo disse: “Claro que quero”.

Saiu-me, peço desculpa, era jovem e não pensava...

E pronto, um bote, três Fuzos e um piloto, três G-3 e a minha Walter PPK calibre .22, lá fomos rio Cacheu acima em direcção à Caboiana.

Vejam só, podia ser em direcção ao Pelicano, ou à casa do Mário Soares em Pirada, ou ao meu amigo libanês de Bafatá de quem não me lembro o nome, mas não… em direcção à Caboiana!!!!!.

Ao princípio e enquanto subíamos o rio a coisa até correu bem, era como andar de barco ali pela baía de Cascais, claro que os Fuzos não se podiam comparar às Tias da Linha, mas o motor era potente, já me estava a imaginar no ski...

O pior foi quando entrámos pelo afluente do rio Cacheu, riozito de merda, nem 20 metros de largura teria, os Fuzos a meterem bala na câmara, velocidade reduzida, o menor ruído possível, encostados ora a uma margem ora à outra, não tinha a ideia que o tarrafo fosse tão alto, lá de cima a coisa parecia bem diferente, no mínimo eram dois metros de arbustos, mesmo ali junto à água.

E o meu pensamento: “Se está por aqui algum turra escondido nem precisa de me dar um tiro, agarra-me à mão pelos colarinhos e pronto... estou feito. E como explicar um piloto averbado num bote de fuzileiros… se calhar ainda levo uma porrada a título póstumo.”

Eis que de repente e numa das curvas do riozito descobrimos um outro bote onde vinha o ferido, um pequeno alívio, a servir de consolação, pelo menos já não tínhamos que ir mais em frente, xiça...

Chegou o ferido, sorridente, mas com um sorriso estranho, um tiro tinha-lhe furado a bochecha e partido um dente, a bala saiu sem mais estragos, o sacana devia ter a boca aberta, houvesse euromilhões na altura e saía-lhe de certeza.

O regresso foi no mesmo ritmo, silenciosos até chegar ao rio Cacheu e depois gás à tábua que se faz tarde.

E pronto, regressei ao meu ambiente, o admirável ar, lá levei para Bissau o Fuzo da bochecha furada e dente partido.

Foi uma experiência cinco estrelas mas para fuzileiro chegou, que isto de andar entre o tarrafo tem que se lhe diga.

Um Abraço,
António Martins de Matos
Ten PilAv da BA12
Foto: © Site da Associação de Fuzileiros (2010). Direitos reservados.
__________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
6 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7088: FAP (54): O papel da Força Aérea na Guiné nos anos de 1972 e 1973 (Gil Moutinho)

Guiné 63/74 – P7096: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (23): Os Filhos d'um Deus Menor

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 3 de Outubro de 2010:

Caro Carlos Vinhal e Editores
Escrever pela manhã é porque algo se escapou ao normal.
Desta vez foi o Outono, não como prenuncio de "inverno do nosso descontentamento" mas chove. Não me alegra o suficiente para sair a chover assim. É natural e ciclo normal.

Vim ao blogue, li parabéns ao Hélder em alegria e, como o dia envio-te um texto molhado, não de lágrimas, na data desta emboscada já as perdera, talvez alguém, menos desumanizado do que eu tenha deixado cair alguma.

Aí vai o engenheiro e as desigualdades entre os homens... até na morte???. Não. Isso não. Até... fica para depois.

Um abraço e bom domingo.
Torcato

Vamos andando e rindo


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 23

Os Filhos d’um Deus Menor

Chegou cansado, sujo, farto.
Depois de deixar o Grupo foi direito ao comando.
Entrou e viu gentes de fora. Sobre a mesa papeis e desenhos.
Depois dos cumprimentos, informou o capitão de que tudo tinha decorrido como o previsto e ia tomar um banho.

- Vá e depois venha ver isto. E, “isto”, eram os desenhos e papéis.

À saída ainda agarrou numa “White Horse”.

Após o banho estendeu-se na cama. Bebia pequenos goles da “cavalo branco”. Aquietava, assim, os bichos que por dentro o devoravam, os medos, e, deixando-se embalar nas saudades, adormeceu.

Sentiu que o chamavam. Olhou para o telefone sobre o caixote, pomposamente apelidado de mesa-de-cabeceira, soltou um palavrão e ficou a saber que o capitão o queria ver, já. Vestiu, pouca roupa, soltando palavrões e dando, nos intervalos, um ou outro gole de uísque.

Voltou a entrar na “sala do abrigo” multiusos; comando, messe, bar, tudo e nada ou muito naquele deserto de desconforto onde, o aproveitamento de um caixote ou similar eram luxos.

- Aqui o engenheiro trouxe o projecto de sanitários e balneários novos. Até fossa céptica tem. A água saída de lá é melhor da que aqui bebemos. Capitão disse!

Olhou para a papelada e trocou breves palavras com o engenheiro. Homem de calvície precoce, olhar e palavra calma e triste, aspecto, naquele local, de peixe fora de água.

- Nós temos balneários, bidões ligados em entre eles, chuveiros por debaixo e, se o IN não os furar, funcionam como em hotel de cinco estrelas. Não de hotel, temos sanitários rudimentares e nada privados; valas abertas em paralelo e umas tábuas a atravessá-las. Depois, bem depois com a pá deita-se terra por cima e está concluído. Funciona.
O engenheiro da calvície precoce disse:

- Mais primitivo não deve haver. Eu já visitei tudo e estou a par das instalações que têm. Depois de abrirem, conforme o projecto, o terreno, avisam e mandamos o material.

- Tudo bem respondeu.

O capitão já enrolava papéis e desenhos. O jantar vinha aí e a mesa iria sofrer mais uma transformação. O que nunca sofreu qualquer transformação foram os balneários e sanitários.

No outro dia, com a madrugada a chegar, sentiu-os partir. Lá ia a escolta ao engenheiro e a materiais diversos na véspera trazidos.
Pouco tempo depois, ainda Morfeu não tomara conta dele, sentiram-se sons de rebentamentos e tiros. No abrigo todos se ataviavam na confusão habitual e ouviam-se gritos: - emboscada… bora… bora…

Meio vestido, G3, cartucheiras e sacola (dilagramas e afins) na mão tomou lugar na viatura e lá foram.
Chegaram rápido com o som de poucos tiros ainda a ouvirem-se.

Viu o engenheiro, sentado e com o olhar ainda mais triste. O Grupo da escolta estava em posição pouco habitual e foi falar com o alferes. Sentiu então chamarem-no e viu alguns, mais rápidos que ele, a fugirem estrada acima. Lá no alto, no local habitual das emboscadas, estava quem a sofrera. Uma secção reforçada do Pelotão de Milícia 145 caíra naquela emboscada com mina comandada e forte potencial de fogo. O IN só parara a frente da coluna.

A mina comandada provocara dois mortos, três feridos, um militar que foi apanhado à mão e o Sargento tinha desaparecido. Houve quase corpo a corpo, troca de palavras, em fula certamente, sobre a “Lança Afiada” que o IN tentava vingar e, nesta emboscada o “libertador” que accionou a mina faleceu, vítima de tiro na cabeça.

Como prova deixou miolos. Sofreram cinco mortos, confirmados pelo cabo Milícia Laminé que conseguiu fugir e apareceu três ou quatro dias depois. Talvez os obuses 10.5 tenham sido responsáveis por algum dano.

Dano forte sofreu o Pelotão 145 com dois mortos destroçados pela picada e, em parte, no cimo das árvores, certamente para gáudio dos jagudis.

O Sargento, desaparecido, desistiu da perseguição, estava ferido, e regressou ao quartel.

Tempo, muito mas muito tempo depois leu algures, onde, não sabe ao certo ou seria só o vento ou o sonho a trazerem-lhe recordações? Seria esta emboscada? Talvez. Dizia assim, se bem se lembra:

- A Virgem Maria (ou um Ente Superior), protegera, mais uma vez, aqueles homens.

Claro, os do Grupo da escolta e, todos eles, saíram ilesos.

Felizmente, digo eu.

Só que, também digo, infelizmente, outros, talvez Filhos de um Deus Menor, sofreram na carne a violência, a dor, a morte, o horror de uma guerra fratricida. Sim mortes de ambos os lados em gentes que, talvez, anos antes conviviam como irmãos.

É a guerra. O estúpido desentendimento entre os homens e, porque não, entre os deuses.

Mansambo, aos 02 de Abril da ano da Graça de 1969
__________

(*) Vd. poste de 6 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7090: Blogoterapia (159): Paradoxo e uma Orquídea (Torcato Mendonça)

Vd. último poste de 2 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7070: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (22): A morte no final da comissão, Bissau, em 3 de Outubro de 1969

Guiné 63/74 - P7095: (In)citações (11): O arroz nosso de cada dia nos dai hoje... (Cherno Baldé)




Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > 6 de Junho de 2010 > Região de Cacheu > Barro > Foto tirada em 22 de Abril de 2010 > Palavra chave: segurança alimentar > Legenda: "O ano de 2009 foi um mau ano agrícola, especialmente com a redução da produção de arroz de bolanha salgada, responsável por cerca de 75% da colheita deste cereal na Guiné-Bissau.  Daí que, neste ano de 2010, tenha havido uma mobilização geral dos agricultores para recuperar antigas bolanhas (arrozais) abandonadas e voltar a cultivá-las.  Mulheres e homens meteram-se ao trabalho numa bolanha perto de Barro,  no norte da Guiné-Bissau, contribuindo para a construção de uma barragem que impeça a água salgada de invadir os terrenos de cultivo".

Foto (e legenda): © AD - Acção para o Desenvolvimento (2010). (Com a devida vénia...)


1. Comentário de Cherno Baldé ao poster P7073, com data de 3 do corrente:

Há vários factores que estão a contribuir para o abandono gradual da produção do arroz na Guiné:


A partir dos anos 80, com a liberalização do comércio e das importações, aliado à descida de preços do amendoím no mercado internacional, o cajú transformou-se no principal produto de exportação da Guiné contribuindo, neste momento, com mais de 90% do PIB e ocupando mais de 80% da população activa.

A partir do momento em que há uma grande procura deste produto no mercado internacional, sobretudo indiano, e na condição de uma troca directa cajú/arroz, prevaleceu a lógica do mais fácil, ou seja, as famílias/populações preferiram aumentar os campos de plantação de cajú em detrimento da produção do arroz que, como sabem, é muito exigente em água, técnicas de cultivo e mão de obra intensiva.

Pouco a pouco o cajú transformou-se no concorrente e substituto directo do arroz numa altura em que se verifica uma certa diminuição e irregularidade das chuvas assim como um crescente êxodo da mão-de-obra mais jovem para as cidades.

As nossas autoridades estão confrontadas com o dilema do preço do arroz. Não podem perfilar pela subida do arroz importado para não prejudicar as populações (real politique exige)mas, também, não o podem diminuir muito porque o estado não é actor comercial directo.


Cherno AB.

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Nota de L.G.:

6 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7089: (In)Citações (10): Vídeos produzidos pela AD - Acção para o Desenvolvimento na área do Ambiente e Desenvolvimento (Pepito)

Guiné 63/74 - P7094: Notas de leitura (155): Polón di Brá, de João Carlos Gomes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Outubro de 2010:

Queridos amigos,
Foi graças ao Francisco Henriques da Silva, antigo embaixador na Guiné-Bissau e nosso camarada na Guiné que tive acesso a este documento publicado graças à ASDI – Agência Sueca para o Desenvolvimento Internacional.
É compreensivelmente um documento muito datado e incompleto, é um apanhado de acontecimentos aos olhos de um jornalista que juntou os dados que lhe pareceram mais óbvios e evidentes.

Um abraço do
Mário


Poilão de Brá

Uma guerra devastadora, desnecessária e injustamente imposta ao povo

Beja Santos

“Polón di Brá”, de João Carlos Gomes (Bissau, 1998) é um livro singular. João Carlos Gomes é um jornalista guineense credenciado que trabalhou na Rádiodifusão Nacional da Guiné-Bissau e nas Nações Unidas. Em 1998, entrou pela fronteira do Senegal e veio cobrir os acontecimentos do chamado levantamento armado iniciado em 7 de Junho. O Polón di Brá foi o marco de separação entre as posições militares das forças leais ao presidente Nino e as posições da Junta Militar sob o comando do brigadeiro Ansumane Mané. O poilão é uma árvore muito respeitada na Guiné, usada mesmo para cerimónias da etnia papel, à sua sombra reúnem-se os guineenses para conviver.

Os acontecimentos descritos por João Carlos Gomes iniciam-se com o levantamento armado e vão até ao acordo celebrado em Banjul (Gâmbia) e Abuja (Nigéria), em que se previa a retirada total das tropas estrangeiras que tinham vindo em auxilio de Nino Vieira, uma força de interposição garantiria a segurança entre a Guiné-Bissau e o Senegal, ir-se-ia formar um Governo de unidade nacional e haveria eleições gerais e presidenciais o mais tardar até fins de Março de 1999. É escusado dizer que este acordo foi ultrapassado pelos acontecimentos, as forças leais a Nino Vieira acabaram derrotadas, este pediu exílio a Portugal e Ansumane Mané viria, tempos depois, a ser assassinado.

O autor coteja alguns dos acontecimentos que estiveram por detrás do motim militar: queixas persistentes dos antigos combatentes que se sentiam desprezados; revelações feitas por Ansumane Mané de um ambiente degradado no interior das Forças Armadas, revelando que no círculo presidencial estariam os principais cabecilhas ligados ao tráfico de armas para o Casamansa; o presidente Nino destituiu Ansumane Mané; inicio dos confrontos militares que rapidamente se intensificaram e que se saldaram na fuga de muitos habitantes de Bissau quer para o estrangeiro quer para o interior do país. Mas, como é evidente, o pano de fundo é muito mais denso, tem camada estrutural. Por detrás de uma revolta que levou a negociações políticas, em que os revoltosos tiveram uma arma eficaz no Rádio Bombolon, a degradação económica e social era profunda: desmoralização do aparelho de Estado, anarquia em todas as cadeiras de comando, penúria, desastres completos nos investimentos, incapacidade para prestar serviços de saúde e manter o sistema educativo em funcionamento; a própria cidade de Bissau era a vitrina de todo este abandalhamento: buracos nas ruas, desaparecimentos dos jardins, ausência absoluta de higiene, casas degradadas, uma oligarquia a exibir escandalosamente o seu arrivismo perante um povo a viver em condições deploráveis. Os antigos combatentes viam as suas condições de vida a deteriorar-se, o plano de liberalização da economia agravou as já péssimas condições de vida da generalidade da população. O PAIGC perdera totalmente a sua força mobilizadora, dera-se uma cisão profunda entre as forças armadas e o aparelho político.

É nesta atmosfera de desalento que as confrontações militares e as destruições que provocaram levaram ao êxodo das populações de Bissau. as imagens publicadas em Polón di Brá são eloquentes: a população em fuga, viaturas e tanques carbonizados, edifícios destruídos ou severamente atingidos, museus e estabelecimentos pilhados.

João Carlos Gomes disserta sobre o progressivo abandono de Nino, a necessidade que ele teve em, abruptamente, pedir a colaboração do Senegal e da Guiné Conacri, sem medir que tal iniciativa podia ter levado a uma eventual desestabilização de toda esta região da costa ocidental: havia a questão do Casamansa, o cenário de uma guerra civil envolvendo grupos étnicos ou do aparecimento de uma ditadura militar, até à anexação da Guiné pelo Senegal e Guiné Conacri. Sobretudo o comportamento das tropas senegalesas atingiu as raias da infâmia com pilhagens de postos de gasolina, hotéis, estabelecimentos comerciais, violações, etc. O impacto psicológico dos militares estrangeiros foi extremamente negativo, deixou sequelas que irão demorar muitos anos a sarar.

Por via diplomática, iniciou-se o processo de reconciliação nacional. Enquanto se escolhiam os promotores oficiais e os locais para negociações que levassem a um compromisso entre as duas grandes facções, internamente buscavam-se as soluções possíveis para resolver as preocupações imediatas dos deslocados e refugiados (Portugal teve aí um peso indesmentível); começou a discutir-se a necessidade de uma reforma geral e global das forças armadas e uma democratização do aparelho de Estado, controlado com a mão de ferro de Nino e o seu círculo próximo; durante este período que culminou com os acordos de Banjul/Abuja houve manifestações de paz, movimentaram-se os líderes muçulmanos e católicos apelando ao termo de todos os contenciosos.

O jornalista incluiu em anexos o conjunto de documentos de grande importância para a compreensão desta fase da guerra civil: Tratado de Amizade e Cooperação entre a República do Senegal e a República da Guiné-Bissau; manifesto da Junta Militar para consolidação da democracia, justiça e paz; memorandos das negociações entre as duas partes, actas de reuniões conjuntas e um documento reivindicativo de Combatentes da Liberdade da Pátria denunciando a corrupção e nepotismo nas Forças Armadas.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7087: Notas de leitura (154): Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau, de Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7093: (De) Caras (4): Eu também estive lá (Carlos Fernandes, ex-1º Cabo Pára-Quedista, CCP 122/BCP 12, 1971/74)



Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCP 122 / BCP 12 > 2 de Abril de 1972 > O 1º Cabo Pára-quedista Carlos Fernandes, apontador de MG 42, fotografado com um casal feito prisioneiro: em primeiro plano, a criança,  filha do casal, completamente nua, levada pela mão do Carlos; em segundo plano, a mulher, de peito desnudo e com um simples pano à cinta, entre dois páras, vendo-se ainda o ombro do homem, à direita... Um foto, de guerra,  que capta um momento de grande expressão dramática, e que tem um real valor documental.  Quem terá sido o fotógrafo ? Seguramente um camarada do Carlos, da CCP 122, que "também estava lá"...

Foto: © Carlos Fernandes (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do ex-1º Cabo pára-quedista, Carlos Fernandes, CCP 122 / BCP (Bissalanca, BA 12, 1971/74), remetida em 30 de Setembro último:

Assunto: Eu estive lá também

Luis Graça:

Eu,  Fernandes,  ex-Pára da 122, estive lá na Guiné entre Novembro de 71 a Agosto de 74 e estive no grupo do Marcelino da Mata entre Janeiro de 74 até eu vir embora,  muito depois do 25 de Abril.

A minha arma na Guiné foi a MG 42 sempre, desde o início da comissão até ao 25 de Abril, onde fui condecorado com a Cruz de Guerra 4ª classe pelo Marcelino. Só a recebi em 2006 em Chelas. Também recebi a Medalha das Campanhas da Guiné.

Mas antes estive em Moçambique,  em Nacala,  no BCP32, entre Março de 1970 a Janeiro de 71. Participei em várias operações,  a melhor foi a Nó Górdio, em que a minha Companhia,  a 1ª , apanhou para cima de 27 mil kilos de armamento junto ao Rio Rovuma.

Tomámos a Base Moçambique perto de Nangulolo, onde nessa altura morreu o tal Capitão das Chaimites e o pessoal que ia dentro dela, pois o Capitão, burro, colocou a Chaimite a abrir caminho, como arrebenta- minas. Eu ia nessa coluna.

Junto duas fotos do antigo,  com a MG ao ombro,  em Aldeia Formosa,  e outra tirada o ano passado.  Estou reformado. O meu posto foi 1º Cabo Pára-quedista. Vivo aqui na Ilha da Madeira por opção.

Meu contato é canico2009@hotmail.com

Irei dando noticias. Tenho fotos de alguns tempos e bons.

Um abraço amigo a todo o pessoal deste blog dos amigos da Guiné

Carlos Fernandes
TM 937743321

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Carlos, pelas tuas notícias e pelo abraço que mandas a todo o pessoal do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Tomei boa nota do teu interesse em continuar a dar-nos notícias tuas e mandar-nos fotos do teu álbum. Não foste, porém, explícito na manifestação do teu eventual interesse em fazer parte da nossa Tabanca Grande e subscrever as nossas regras de sã convívio e de boa ética. Presumo que sim, e nessa medida serás bem vindo, na tua qualidade de antigo combatente no TO da Guiné.

Sei que eras conhecido como o Fernandes da MG 42, e que terás pertencido ao 4º Gr Comb da CCP 122. Espero que encontres malta da tua subunidade, desse tempo.

Se bem leste e compreendeste as nossas regras, sabes que não fazemos juízos de valor sobre nenhum camarada, em termos de comportamento operacional. A missão fundamental do nosso blogue é criar condições, de liberdade intelectual e de conforto psicológico,  parar partilharmos uns com os outros, e com os demais  leitores que nos seguem de muitas partes do mundo (de Portugal, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Brasil, Estados Unidos, etc.), as histórias das nossas vidas no TO da Guiné, entre 1963 e 1974.

Não preciso, pois, de lembrar-te que não gostamos de chamar "burro" a ninguém, mesmo quando camaradas nossos tenham feito eventualmente asneiras fatais, no teatro de guerra, como terá sido o caso do tal capitão das Chaimites em Moçambique que tu não identificas (e ainda bem).

Sobre a foto com os prisioneiros, que publicamos acima, devo dizer-te que é forte e, para alguns dos nossos leitores, até poderá ser chocante, podendo ferir eventuais susceptibilidades e sensibilidades. Mas não vale a pena ignorar, escamotear ou branquear a realidade da guerra que nos tocou em sorte. Não quero que essa foto se vire contra ninguém: nem contra ti nem contra nós, os antigos combatentes portugueses, os pára-quedistas. Nem contra nós nem contra o PAIGC,  o inimigo de ontem... Também a minha CCAÇ 12 fez prisioneiros, mulheres, crianças e idosos, em estado andrajoso, miserável, as crianças nuas e subnutridas... Essa foto teve o condão de mexer comigo e com algumas das memórias mais dolorosas da guerra...

Se quiseres e puderes, conta-nos pormenores dessa operação realizada na região de Aldeia Formosa, em Abril de 1972, as circunstâncias em que foi apanhada a criança e os seus pais, o destino que foi dado aos prisioneiros, etc... Muitos dos nossos camaradas e amigos gostariam, muito provavelmente, de conhecer mais pormenores desses acontecimentos de que foste actor e testemunha. E, já agora, lembras-te de quem foi o autor da foto ?

Enfim, feita a tua apresentação sumária como ex-1º Cabo Pára, falta-te contar pelo menos uma história da tua/nossa guerra, como mandam as nossas regras. Sobre o teu BCP 12, já temos no nosso blogue mais de 60 referências. E sobre a tua CCP 122 há já uma dezena de postes com referências. Um Alfa Bravo (abraço) para ti em meu nome e dos demais co-editores do blogue. Luís Graça

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Nota de L.G.:

Último poste desta série > 30 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7058: (De) Caras (3): A emboscada em Malandim e a descontrolada reacção do 1º Cabo Costa, na noite de 3 de Agosto de 1969:Branco assassino, mataste uma mulher (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7092: Parabéns a você (161): Jorge Rosales, ex-Alf Mil da 1.ª CCAÇ (Guiné, 1964/66) Tertúlia / Editores)

Neste dia 7 de Outubro de 2010, estamos a festejar pela primeira vez no Blogue o aniversário do nosso camarada Jorge Rosales*, ex-Alf Mil da 1.ª CCAÇ, Porto Gole, 1964/66.

Para nos ajudar nesta árdua tarefa, tivemos alguns voluntários que enviaram os seus textos, além da colaboração plástica do nosso designer gráfico privativo, Miguel Pessoa.


Postal ilustrado: Miguel Pessoa (2010)

Os textos, da responsabilidade exclusiva dos seus autores, seguem-se pela ordem de chegada ao Blogue

1. De Buarcos, Vasco da Gama

Jorge Rosales, este também um grande Homem e um muito bom Amigo, penso que o último a chegar ao “Bando do Cadaval”.

Conheci-o no dia em que o nosso Belarmino nos franqueou as suas portas para uma reunião onde conseguimos dar vida a um projecto que há algum tempo nos prendia a atenção.

Discutia-se a questão monetária, pois era necessário adiantar dinheiro à editora, cada um de nós facultara o possível e logo o Rosales emprestou o que faltava, sem discursos bacocos, sem pergunta alguma, sem conhecer o autor e alguns de nós.

Não foi a quantia que ele disponibilizou, mas sim a forma autêntica, genuína, leal, sincera como o fez, que me mostrou estar em presença de um ser humano de primeira apanha como felizmente venho tendo a oportunidade de constatar nos encontros que vamos tendo ou nas conversas telefónicas que vamos mantendo. De todos nós, ele apenas conhecia o José Dinis mas de imediato, sem vacilar, estava integrado no Bando.

Homem de farda amarela, com muitos anos de África e outros tantos de jogador de futebol do Estoril Praia, com uma passagem muito rápida pela Académica de Coimbra, (as tricanas não o deixavam concentrar) cativa de imediato quem o conhece.
Aliás, a malta da Guiné e em particular a nossa Tabanca Grande tem isto: não nos conhecemos e ao fim de duas horas somos amigos de e para toda a vida.

Com o Jorge não são necessárias duas horas, bastam dois minutos!

Aqui vos deixo duas fotografias do nosso querido Jorge Rosales.

A primeira, na Guiné em 1964 de calça de camuflado moderno(?) em Porto Gole; a segunda, na minha companhia, para vos mostrar o “cabedal” e a disposição natural para o bem do nosso aniversariante de hoje e já agora, mostrar também como esse grande escultor que é o tempo transforma em quarenta e quatro anos (para melhor) um combatente da Guiné.


 Do meu Buarcos lindo te envio votos de muitas felicidades neste dia e nos outros todos, manifestando-te a minha amizade e agradecendo-te por seres meu amigo.

Vasco A. R. da Gama


2. Do Zé Brás recebemos estas palavras:

O Jorge nasceu adiantado à verdadeira ideologia da bola.
Jogou pela camisola e por ela ganhou e perdeu.
Perdeu algum tempo, talvez, porque mais ganharia pontapeando a dignidade.
Contudo, aguentou, cerrou o dente e manteve o direito à altivez.
E é nessa postura de jogador limpo que o vemos hoje na esperança de continuar a vê-lo marcar o seu golito e a receber os nossos parabéns por mais esta vitória.
Eu, guarda das redes antigas, me junto aqui confessando a minha admiração plena.
José Brás


3. O Belarmino Sardinha também botou faladura assim:

Uma vez mais o Comandante dá o disparo da partida para a partida que todos queremos pregar ao Rosales neste dia do seu aniversário.

Podia começar por sublinhar tudo o que o Vasco já escreveu, mas ficava o texto riscado e era uma pena.

O Rosales, com a sua farda amarela é, para mim, quase como o padrão dos descobrimentos, tal o tempo que mediou entre a passagem dele e a minha por aquelas paragens. Ele esteve no início e eu no fim.

Conheci o Rosales tal como o Vasco, mas de imediato se estabeleceu uma relação que foi como se nos conhecêssemos há décadas e tivéssemos partilhado o mesmo espaço e ao mesmo tempo na Guiné.

O importante, contudo, é ele ser como é, estar sempre disponível para partilhar com os outros as preocupações e as causas, sejam elas quais forem desde que perspectivem uma melhoria.

É de facto bom podermos contar com amigos como o Rosales. Obrigado Rosales por sermos amigos.

Que este seja apenas mais um dia feliz dos muitos que esperamos poder ainda partilhar contigo.

Um grande abraço de parabéns.
BS


4. Da Linha, do Zé Dinis, chegou este texto

Camaradas,
Sei da existência do Jorge Rosales desde os meus dez anos, pois frequentámos a ESSA, embora ele já com algum avanço. Mas o irmão dele, o Zé, esse foi da minha turma, e corria para os campos de futebol nos intervais das aulas. Eu dividia-me entre o ténis, o futebol e, mais raramente, o voley. O Jorge, hoje felicitado por meio mundo, não me passava cavaco. Nem me lembro de ele me ter arriado, como é seu (dele) costume gabar-se. Mas eu, puto, ainda beneficiei, sofri, e voltei a beneficiar, por ter sido confundido como irmão do Rola, considerado o melhor futebolista da escola (o Jorge já andava no estrelato). Mais tarde, já ele tinha prestígio consolidado no Estoril Praia, e jogámos contra, porque a minha equipe, os putos do CAC (Clube Académico de Cascais) íamos lá pôr à prova as capacidades daqueles tratores (este "c" de tratores deixei-o na nova convenção sobre a língua portuguesa). Quem ganhava, perguntarão vocências. Pois encaminho a pergunta para o festejado.

Coisas da vida: o irmão raramente o via, e ao Jorge encontrei-o muito recentemente.

No almoço da Ortigosa do ano passado, vi sentado, com aquele sorriso fininho, um gajo forte a quem tratavam por Rosales. A ampliação era grande. Mesmo assim arrisquei e fiz uma pergunta parva:

- És o Rosales? O vaidoso que está a abrir as prendas, retorquiu que sim. Mas a dúvida persistia: - O do Estoril? Ombre! claro que sim!

A partir desse acontecimento notável, em que dois caminheiros da velhice se encontraram ao fim de quarenta anos, sem rancores, nem outras mazelas que travassem o conhecimento, passei a sentir-me favorecido e protegido pelo homenageado, na medida em que ele tem tido uma carreira apoteótica, e já alcançou o posto de Comandante. Claro, porque o posto lhe confere poder, já levei alguns caldos a que sorrio para não lhe desenvolver a raiva.

Depois? Bem, depois disso vocês têm acompanhado o Rosales como eu, e não precisam de influências regionais para lhe atribuírem muito boa nota.

Parabéns Camarada, e que tenhas muitas alegrias por muitos e bons anos.

Embaraços fraternos, que isto de nos chegarmos todos ao festejado, pode dar confusão.
JD


5. Da outra banda, assim fala Hélder Sousa:

O Jorge Rosales faz anos…
Não conhecia o Jorge Rosales.
Sou um bocadito mais novo (pouco, é certo, mas ainda assim, mais novo), não vivia na Linha.

E, de repente, por via da Guiné, por via do facto de algures no tempo termos estado ambos na Guiné, por consequência disso acompanharmos o Blogue que em tão boa hora o Luís Graça entendeu fazer, alguns dos nossos passos acabaram por se cruzar. Era inevitável.
Mas isso foi facilitado pelas diligências do Zé Dinis que, aquando da nossa surtida a Peniche, para aquele encontro com o Vasco da Gama, me foi dando referências e mais referências sobre a excelência de carácter do Rosales. Daí que, quando o Grupo do Cadaval se reuniu nesse local, em espaço gentilmente cedido pelo Belarmino, tendo em vista a discussão do que haveria a fazer para concretizar a missão a que nos tínhamos proposto, no âmbito do Blogue, de facilitar o dar à estampa da famosa “História de Portugal em Sextilhas” do nosso camarada Maia, o Rosales aparece-me pela primeira vez de corpo inteiro.

É justo que diga que foi fácil, foi imediata a criação de empatia, não estivéssemos ali irmanados num único e mesmo propósito. O Rosales convenceu-me logo da sua disposição incondicional para colaborar na medida das suas possibilidades e capacidades com tudo o que era necessário fazer. E tudo isto com modos serenos, tranquilos, emanando uma grande firmeza de decisões.

Hoje é o seu dia de aniversário e à semelhança do que aqui se tem feito, é oportuno deixar umas palavras sobre o que dele pensamos.
Por mim, o melhor possível!
Amigo, solidário, companheiro, firme. Dá gosto contá-lo como amigo!

Parabéns!
Hélder Sousa


6. Os editores também têm que fazer valer os seus direitos para que a homenagem fique completa. Assim somos a dizer:

Caro Rosales, atravessaste as portas virtuais da nossa Tabanca em Junho de 2009*. Daí para cá, graças à tua simpatia e carácter, conquistaste verdadeiros amigos entre a tertúlia. (Ponho só algumas reticências nas palavras do Zé Dinis, lá no fundo deve haver recalcamentos de infância, porque parece teres gostado de molhar a sopa, ou seja dar uns caldinhos, no puto. Esperemos que esteja a ser sincero e já te tenha perdoado. Pelo sim pelo não, tem algum cuidado, é que ele agora é mesmo grande).

Face ao que acima disseram de ti, resta-nos desejar-te o melhor da vida para os próximos 30 anos. Chegados lá, veremos como será o teu futuro. Passa um alegre dia de anos junto da família e dos amigos, sempre, mas sempre com a melhor saúde, algum dinheiro para gastos e o indispensável amor. Afinal um homem de pouco precisa para ser feliz, está mesmo ao alcance da mão.

Caro Jorge, recebe um abraço de amizade destes teus mais de 450 amigos e camaradas.

Pela Tertúlia e pelos editores
Carlos Vinhal
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4488: Tabanca Grande (151): Jorge Rosales, ex-Alf Mil, Porto Gole, 1964/66, grande amigo do Cap 2ª linha Abna Na Onça

Vd. último poste da série de 4 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7078: Parabéns a você (160): Artur Conceição, ex-Soldado de TRMS da CART 730, (Guiné, 1965/67) (Tertúlia / Editores)

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7091: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (36): Desastre de viação de um T6

1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2010:

Caro Carlos:
Embora me esteja a dirigir a ti, enviando mais uma estória para a série “A Guerra Vista de Bafata”, é também para dar conhecimento aos restantes camaradas que vão continuar a ter que me aturar com os meus escritos.
Na Tabanca de Matosinhos foram vários os camaradas que me perguntaram se tinha deixado de escrever. A estes já dei a explicação do meu silêncio temporário, aos restantes direi o que tu também já sabes: Tenho andado a preparar a publicação no Blogue, e não só, da já anteriormente anunciada estória “NA KONTRA KA KONTRA”, com quarenta e oito episódios. Porém, por motivos de ética literária, esta publicação tem que aguardar mais algum tempo.

Um abraço a todos.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATA (36)

Desastre de viação de um T6

Há dias um amigo, a propósito das inúmeras vezes que tinha andado de avião, referia-se à perigosidade inerente a descolagens e aterragens, pois é sabido que é nestas situações que acontecem mais desastres. Pessoalmente, nunca tinha pensado nas muitas vezes que já andei nas mais diferentes aeronaves. Verifiquei que foram muitas mais do que as que eu supunha, contribuindo para isso as viagens para, e na, Guiné.

Resolvi fazer uma lista das vezes que levantei voo. Os dois últimos voos foram entre Portugal e a Guiné. Pelo meio ficam muitas viagens para diversos lugares e, inclusivamente, um voo de parapente no Brasil. Diga-se de passagem que a primeira experiência de voo foi em Bragança, quando tinha dezoito anos, num biplano velhíssimo que não ultrapassava os duzentos quilómetros por hora.

Mas fixando-me na Guiné e concretamente no Comando de Agrupamento de Bafata, onde estive dois anos, referirei que para além da minha principal actividade, ligada às Informações, também tinha entre outras, a função de contactar os pilotos que chegavam e de os encaminhar para os locais das refeições ou de pernoita, para o Esquadrão de Cavalaria, ali ao lado, ou para a sede do Batalhão, pois no Agrupamento não havia condições para isso.

Por essa razão tive oportunidade de voar de Dakota, de DO e de helicóptero, em RVIS, ou quando tinha de ir a Bissau por qualquer motivo.

Não posso deixar também de referir as vezes que voei de “Eron”. Um quadrimotor civil, que por vezes utilizei em viagens de férias, quando falhava o Dakota. Lembro-me que uma vez, já o avião no fundo da pista para levantar, o motor, roncou, roncou e o piloto, achando que o avião não estava em condições, mandou sair todo o pessoal mais os animais que lá iam e partiu para Bissau vazio. Tive que pedir um táxi aéreo da capital, que julgo ter sido um “Cessna”.

Ainda sobre o “Eron”, só há pouco tempo, quando falava com o António Pimentel sobre este avião, desconhecendo ele a sua existência na Guiné, soube uma coisa interessante. Para tirar a limpo a existência ou não desse avião resolveu telefonar a um seu amigo que tinha sido piloto da aviação civil nesse tempo, na Guiné. Quarenta anos depois ambos ficámos a saber que o dito “Eron” pertencia a uma “companhia” de aviação cujo dono era Moisés Tchombé.

Mas voltando ao título desta crónica. Ao contrário de muita gente, sempre gostei de andar lá em cima. Na Guiné tentei voar o máximo que pude. De “Fiat” nunca me passou pela cabeça voar, tanto mais que não pousavam em Bafatá, mas de T6, isso sim. Um belo dia chega um T6 com um piloto “porreiraço”. Como era minha obrigação fui à pista para lhe dar apoio. A primeira coisa que me pergunta é se não tinha ouvido um rebentamento minutos antes de ele chegar, pois faltava-lhe uma bomba, daquelas de 50kg que traziam debaixo das asas. Disse-lhe que não e ele achou que tinha sido muito antes que lhe tinha caído a bomba. Adiante. Conversa puxa conversa e, como eu estava a precisar de ir a Bissau, perguntei-lhe se me levava, a mim e a um saco pequeno. Resposta afirmativa, que não havia problema.

Ia voar num T6.

Quando os pilotos passavam a noite em Bafatá e os aviões ficavam na pista era necessário destacar um grupo de militares para fazer a sua segurança. Porém, muitas vezes para obviar a isso, os pilotos levavam os aviões da pista até junto das portas de armas do Esquadrão de Cavalaria e do Agrupamento, ao longo de um caminho de uns trezentos metros não sendo pois necessário segurança suplementar, além da habitual à porta de armas.

Foi o que aconteceu nesse fim de dia. Roncando lá veio o T6 pelo caminho em direcção ao local de pernoita. Fosse pelo escurecer do fim de tarde, ou pela falta de visibilidade a partir do “cockpit” o que aconteceu foi que o piloto enfiou uma roda do avião num boeiro do caminho, batendo com a ponta da asa no chão.

O T6 em que não cheguei a voar

Tiveram que vir mecânicos de Bissau consertar o aparelho e lá se foi a única oportunidade que tive de voar numa autêntica relíquia da aeronáutica.

Fernando Gouveia
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6668: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (35): Diário da ida à Guiné - 17/03/2010 - Dia catorze

Guiné 63/74 - P7090: Blogoterapia (159): Paradoxo e uma Orquídea (Torcato Mendonça)

PARADOXO e uma ORQUÍDEA
por
Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)

Como é possível, um militar e graduado, operacional, praticante da “arte” da guerra e paradoxalmente detestá-la, não acreditar nela, ir quase ao desespero por nela continuar? Que transformação sofreu?

Ou, hoje, tantos anos depois, questionar-se do porquê de aqui escrever, recordar, engolir em seco ou em amargo de boca depois de ler certos textos e comentários?

Que o leva, a ele e a outros. O sentirem o camarada, o amigo, a solidariedade de forma tão intensa, de forma ou de tal forma que, de quando em vez sinta a “espinha da posta de pescada” – na frase feliz de um excelente camarada, melhor de um duplo camarada, que eu concordo e, por isso mesmo lha roubo – e retira-a, a dita espinha claro, não em protesto mas em sorriso?

Malhas que o Império tece ou, camarada, amigo é algo indefinível ou só se tenta definir em palavras ditas e bem ditas mas, isso sim, principalmente ou sempre, se praticam na convivência salutar de um quotidiano que outrora foi risco de vida, união forte e hoje, agora, é recordação de amizade e convivência a divergir para, convenhamos, quase sempre, a convergir mais forte, mais una, mais tudo o que só certos homens (homens e mulheres) têm o privilégio de sentir. Mesmo no conhecimento só através da Net, da conversa ao telefone, do fugaz encontro de um almoço, de um abraço breve mas caloroso – no encontro, para minoria semanal e para a maioria anual.

Pode efectivamente ter havido a tal metamorfose, a tal “lavagem ao cérebro” – forte o conceito – a que o treino, e bem, obrigou.

A tal união, a tal força, a amizade e camaradagem é, mais reforçada ainda, para os que entraram em combate ou estiveram em zonas de guerra, ou mais ainda se viveram perigos juntos.

Talvez tudo isto e um “ramo de rosas”. Não. Nem rosas, nem cravos devido a hipotética analogia bacoca. Digamos então… orquídeas.

Por isso Paro, Escuto e Olho.
Não.
Paro, Leio e Penso.

Concordo, discordo, gosto, não gosto e faço compasso de espera. Esqueço de pronto tolos e petulantes e vou caminhando, agora, na rota do voo outonal das aves. Porque não ao correr de uma agradável dose de loucura.
E,
Talvez, porque não, ofereça então uma orquídea a alguém.

************

Em tempo:

- A guerra é, como tudo na vida, como uma moeda tem o verso e o reverso. Uns estão num lado e outros no outro. Uns são amigos, camaradas e outros, que o são igualmente, tornam-se ambos, em troca de verso e reverso, em inimigos. No mais brutal e desumano comportamento do ser humano tentam, uns e outros eliminarem-se.

Simples e primário. Pode eventualmente haver excesso, não de zelo mas de deformação. São excepções. Lastimável é certo.

Mas o normal acontece. Guerra é guerra e o inimigo é abatido. Por quem? Que interessa isso. Acontece. Camarada não transportes esse farto como um mal. Deixa e vai esquecendo pois não há qualquer imoralidade. No acto, nesse que te preocupa, eventualmente quantas vidas de camaradas salvaste?

TM
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6929: Parabéns a você (147): Torcato Mendonça, 66 anos, uma referência do nosso blogue, um português pré-esforçado, um orgulhoso ex-combatente (Luís Graça)

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7021: Blogoterapia (158): A Nossa Pátria (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P7089: (In)Citações (10): Vídeos produzidos pela AD - Acção para o Desenvolvimento na área do Ambiente e Desenvolvimento (Pepito)


Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desevolvimento > Foto da semana >
Título da foto:  Vamos Produzir Sal de Qualidade! > Data da foto:  23 de Abril de 2010 > Data de publicação: 10 de Julho de 2010 >Palavras-chave: Tecnologias amigas do ambiente

Legenda: As mulheres de Barro [ na região de Cacheu,] as melhores produtoras de sal do país, começam a abandonar as suas técnicas antigas e a aderir a formas de produção mais rápidas, que exigem menos esforço físico e que valorizam os recursos naturais em vez de os castigar.


O sistema tradicional baseia-se na “cozedura” da água salgada através de fogões de três pedras altamente consumidores de lenha, que as mulheres têm de ir buscar a longas distâncias, cada vez mais longe devido ao desaparecimento do mato.


Agora, elas estendem no solo que nivelam uma folha de plástico escuro, deitam uma camada de água salobra, vão à sua vida e cinco horas depois regressam para fazer a colheita de sal.

Foto (e legenda): © AD - Acção para o Desenvolvimento (2010) (com a devida vénia...)


1. Dos nossos amigos da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau:


Data: 6 de Outubro de 2010
Assunto: Acesso a Videos produzidos pela AD

Caros Amigos:

A partir de hoje podem aceder a curtos videos produzidos pela AD no nosso site (http://www.adbissau.org/), referentes ao Ambiente e Desenvolvimento, onde constatarão uma série de tecnologias amigas do ambiente que a nossa ONG vem incrementando nas zonas rurais onde intervém:


  







(i) Produção solar de flôr de sal (vídeo: 9' 01''; em francês, Sel solaire; vídeo: 9' 00''; em crioulo, Sal solar) (Maio de 2010)


  


~  (ii) Construção de fogões melhorados (vídeo: 4' 18''; em francês: Foyer amélioré; vídeo: 4' 26''; em crioulo, Fogão Melhorado) (Maio de 2010)






 (iii) Fumagem de ostras (vídeo: 5' 01''; em crioulo; Transformação e conservação de ostra) (Maio de 2010)







 (iv) Repovoamento do mangal (vídeo: 3' 18''; em francês,  Reboisement de la Mangrove; vídeo: 3' 26''; em crioulo: Repovoamento de Tarrafe  (Maio de 2010).


Os filmes são produzidos pelas duas televisões comunitárias ligadas à AD, Klélé em Bissau e Bagunda em S. Domingos.

Em breve serão abertas novas rúbricas:

- Saúde e Higiene
- Itinerários Técnicos Agrícolas
- Transformação de Produtos

Cumprimentos  

Carlos Schwarz
Director Executivo da AD
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Nota de L.G.:

Último poste desta série > 21 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7016: (In)citações (9): Rosinha, preservemos o que temos de melhor em comum, na história das relações entre os nossos povos: a língua, os fortes laços afectivos (Nelson Herbert)

Guiné 63/74 – P7088: FAP (54): O papel da Força Aérea na Guiné nos anos de 1972 e 1973 (Gil Moutinho)

1. Mensagem de Gil Moutinho, ex-Fur Mil Pilav, BA12 (Guiné, 1972/73), com data de 26 de Setembro de 2010:

Caro Carlos Vinhal e Luís Graça
Como já tinha este texto pronto, envio-vos e se acharem conveniente ou não, podeis juntar à minha apresentação

Será muita informação junta?

Achei oportuno, dar uma ideia breve e resumida do papel da Força Aérea, na Guiné, nos anos 72/73, na minha óptica de Piloto Miliciano (furriel no meu caso), pois amiúde, me questionam o porquê de termos deixado de voar no período pós-Strellas.

Assim mesmo, com estas palavras. Claro que contesto veementemente pois está totalmente errada a ideia que têm e explico porquê.


Uma vista de Bissau a partir de um T6


PAPEL DA FORÇA AÉREA NOS ANOS DE 1972 E 1973

1- Até Março /Abril de 1973, o espaço aéreo da Guiné estava por nossa conta,não havendo grande oposição do IN, salvo em alguns pontos fronteiriços onde tínhamos alguns cuidados para não passar para o lado de lá, pois podíamos ser abonados. Houve alguns casos de atingidos por armas ligeiras sem grandes danos.

Cada tipo de aeronave e respectiva tripulação tinha as missões determinadas em função das suas vocações e especificidades.

O Nordatlas e o Dakota prioritariamente tranportava tropas e carga em volume elevado,também evacuações em que se justificava o seu uso e sempre só em meia dúzia de pistas no TO.

Os Fiat’s faziam apoios de fogo, a aquartelamentos que fossem abonados, bombardeamentos em zonas pré-determinadas, reconhecimentos visuais complementados por fotografia e só a presença no ar era dissuadora.

Os helicópteros eram fundamentais na guerrilha, principalmente em operações no terreno, com colocação de tropas, a sua recolha, evacuação de feridos, etc. e então o heli-canhão era terrivelmente eficaz no apoio às tropas no terreno, sendo temidos pelo IN e benvindos pela NT.

Também partilhavam os tranportes de pessoas, carga geral e evacuados, com os DO’s, principalmente em aquartelamentos sem pista.

Os mesmos DO’s, tinham algumas dezenas de pistas onde aterravam, todas diferentes e com as suas limitações operacionais, quase todas em terra batida, com inclinações, com curvas, árvores na entrada ou saída, animais, a terminar na fronteira (caso de Buruntuma onde aterrávamos e descolávamos sempre para o mesmo lado não interessando a força e direcção do vento) etc. e onde levávamos cargas diversas, tropas correio (sempre muito apreciado) etc. e as evacuações sempre que solicitado, tanto de tropas como civis.

Também fazíamos reconhecimentos visuais e de Posto de Comando Aéreo em apoio de operações em curso no terreno com chefia de graduados do Exercito, armados por vezes com dois ninhos de foguetes de 37mm para apoio imediato às mesmas.

Um T6 em Cufar

Os T6, armados com vários tipos de bombas, de fragmentação, demolição e outras, executavam missões de Bombardeamento em pré preparação de operações, demantelamento de estruturas controladas pelo IN ou em zonas previamente declaradas, por um período de tempo, como de intervenção.

Armados com foguetes (72 divididos em dois ninhos de 36, um em cada asa)dávamos apoio a colunas em permanência no ar ou aterrados numa pista próxima e em alerta máximo. Também acompanhávamos navios da Marinha permanecendo no ar até terminar o trajeto. Lembro-me do percurso entre o Geba largo até Xime.

É difícil descrever todas as missões que se executavam no TO, a memória também não está fresca.


2-Depois de Abril de 73 alteraram-se algumas coisas.

A História dos Strellas já foi descrita e dissecada suficientemente.

Quando foi abatido o Ten. Pessoa, sendo o primeiro, não tínhamos noção alguma de que arma seria e muito menos das suas características, o que nos ajudaria nas contramedidas. Nesse mesmo dia, fui um dos primeiros a fazer buscas pois estava em Aldeia Formosa noutra missão, a acompanhar a coluna de Buba para Aldeia.

Tendo sido alvejado com um primeiro míssel, e tendo escapado (ainda não tenho explicação) e o asa da parelha Fur. Carvalho alvejado com mais 2 a 4 mísseis em tiro directo, nunca seria atingido pois os rastos dos mísseis eram bastante visíveis, e isso é que foi importante pois pela primeira vez já se adivinhava que não era uma mera arma convencional, apesar de já ter havido um ou dois episódios anteriores sem consequências e até se atribuíram a outra armas.

A esta distância no tempo, penso, que nesse dia, por precipitação, inesperiência ou azelhice, esgotaram o stock de mísseis existente para os tempos que se seguiram, pois no mesmo dia os ares de Guileje e arredores foram sobrevoados por variadas aeronaves nas buscas do Pessoa, a altitudes de morte certa, e mais nenhuma foi alvejada.

O que foi observado nesse dia foi descrito no respectivo relatório de voo, obrigatório em todas as missões.

Até ao abate do Ten. Cor. Brito, nosso Chefe Operacional, não houve alterações significativas dos procedimentos de voo, não tínhamos informações seguras de que arma e as suas características, para proceder conforme.

Houve a hecatombe do dia 6 de Abril, na zona de Guidaje, onde foram abatidas três aeronaves, tendo morrido as tripulações e passageiros, Maj. Mantovani, Fur’s. Baltazar e Ferreira como pilotos.

Nos dias imediatos (2 dias?), com a morte de uma grande percentagem, num pequeno universo de pilotos na Guiné e aeronaves abatidas, sem sabermos com rigor qual a arma, as suas características, que contramedidas adoptar, em choque, e porque não éramos “Kamikase”, paramos para análise da situação e para definição das estratégias a executar. Estavam em questão a nossa segurança, eventuais passageiros e das aeronaves.

A partir destas datas, houve alterações significativas nos procedimentos e parâmetros de voo.

Parelha de T6

Os bombardeamentos de Fiat e T6 passaram a ser feitos a altitudes superiores às habituais o que lhe retirou alguma precisão.

Houve a recomendação para evitar a altitude de voo entre os ~50 pés (~15 a 20m) e os ~7500 pés (~2500m), pois eram os parâmetros de eficácia dos Strellas. Os hélis continuaram em altitudes baixas (a rapar) pois não precisavam de alguma altitude para aterrar. Nos DO’s, inicialmente subíamos em espiral à vertical das pistas, até atingir a altitude de segurança, e descíamos à vertical dos destinos. Rapidamente abandonamos esse procedimento, pois com cargas máximas, temperaturas elevada do ar e dos motores e com uma demora de 30 minutos a atingir a altitude, já apareciam alguns problemas técnicos, e começamos a rapar as bolanhas e os rios.

Aqui quando a experiência e conhecimentos do terreno eram verdes poderia haver problemas de navegação e na época seca a visibilidade também era escassa.

Nesta modalidade, as comunicações com a Sala de Operações da BA12 (Marte era o indicativo) tornaram-se difíceis e resolveu-se o problema pondo T6 no ar a altitudes elevadas que faziam ponte às comunicações com as aeronaves que andavam a rapar.

Do início de Abril de 1973 ao início de Julho não voei, entre 2 meses inoperacional, às custas de um acidente em 2 rodas e 1 mês de férias. Contudo prestei serviço de terra na sala de operações com o control das aeronaves no ar.

De Julho ao fim do ano, quando terminei a comissão, ainda fiz 161 vôos operacionais em T6 e DO’s o que perfez cerca de 215 horas de voo.

Daqui se conclui que o ritmo operacional se manteve, mesmo com a presença das novas armas no TO, com alterações dos parâmetros de voo e condicionalismos de alguns locais.

De realçar o desempenho de toda a equipa de Especialistas, das diversas áreas, que nos colocavam os aviões operacionais com todo o profissionalismo e competência.

Também as Enfermeiras Pára-quedistas que nos acompanhavam, com abnegação e profissionalismo, em inúmeras evacuações merecem o nosso reconhecimento e carinho.

Resumindo, a Força Aérea continuou a voar.

Tentei resumir, muito fica por dizer, outros podem dar a sua achega e corrigir-me, posso falhar nos pormenores e a memória não é eterna.

Gil Moutinho
Fur Pil Mil. T6’s e DO’s
1972/73
Guiné
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7060: Tabanca Grande (246): Gil Moutinho, ex-Fur Mil Pil Av, BA12 (Guiné, 1972/73)

Vd. último poste da série de 5 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7082: FAP (53): Estatística das minhas missões em DO-27 e FIAT G-91 (Miguel Pessoa)

Guiné 63/74 - P7087: Notas de leitura (154): Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau, de Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2010:

Queridos amigos,
O nome de Calos Lopes enquanto cientista social é incontornável no panorama das ideias da Guiné-Bissau.
Este trabalho de índole científica é de uma imaturidade e fanatismo incríveis. Não sei se o autor já repudiou o que escreveu ou se, sobretudo, clarificou a teimosia (e fatuidade) do seu pensamento na juventude.

Um abraço do
Mário



Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau

Beja Santos

O ensaio “Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, do sociólogo guineense Carlos Lopes (Edições 70, 1982), foi inicialmente apresentado em provas científicas pelo autor no Instituto Universitário de Estudos do Desenvolvimento, em Genebra e só depois publicado em língua portuguesa.

O investigador que acompanhou este trabalho justifica a sua necessidade para encontrar uma explicação que nos permita compreender como é que uma luta de libertação nacional acabou por conduzir ao controlo do poder político e económico pela burocracia do aparelho de Estado. O ensaio de Carlos Lopes, diz o investigador, é uma peça de “literatura comprometida”, faz-nos partilhar as interrogações e críticas do pesquisador o que, sem desvirtuar os rigores da investigação, acaba por ser uma originalidade em trabalhos científicos desta índole. Acresce que Carlos Lopes procurou ter em consideração as formas tradicionais dos antigos Estados Africanos no quadro da problemática actual do Estado. Comprova-se que existe um conflito entre as duas lógicas e lança-se a questão de como é que o Estado actual pode fazer-se triunfar ultrapassando-se as contradições das formas tradicionais, até da vida tribal. Nessa óptica, este texto é encarado como um simples “ponto de espera” ou uma primeira etapa de toda a tese de investigação que Carlos Lopes se propôs fazer em Genebra.

Estou convicto que no essencial Carlos Lopes, hoje um funcionário altamente credenciado das Nações Unidas, repudiará a generalidade das opiniões que aqui registou, na crítica que faz à actuação do PAIGC enquanto Partido vanguarda da Guiné-Bissau, entre a independência e os acontecimentos dilacerantes de Novembro de 1980, que levaram à ruptura na Direcção do PAIGC e à cisão Guiné – Cabo Verde.
Carlos Lopes parte da constatação de um conflito profundo entre duas formas de organização social altamente diferenciadas: a conjugação interétnica originada na luta armada e a ideologia do aparelho de Estado nascido após a independência. Foram duas lógicas que se confrontaram com resultados explosivos. Como nota introdutória, Carlos Lopes diz defender uma concepção marxista para a definição da situação a que se compromete estudar, e apela a que outros, defensores ou opositores das suas teses, continuem a apreciação que ele enceta neste esforço de análise.

Primeiro, enquadra o Estado, indo da origem dos povos guineenses, passando pela génese do movimento de libertação nacional e sintetizando as principais etapas da luta armada até ao reconhecimento jurídico efectuado em 1974.

Segundo, espraia a sua observação sobre a relação entre a etnicidade e o modo como se expressa o poder. O autor recorda que algumas etnias, caso dos Fulas e dos Mandingas, se mostraram como aliados incondicionais dos portugueses e que mais tarde participaram na construção do novo Estado. Carlos Lopes descreve minuciosamente a evolução histórica dos fulas, o sentido da sua hierarquia e contra-propõe com as inovações desencadeadas pelo factor político das regiões libertadas que, segundo o autor, teriam contagiado as etnias mais reticentes em colaborar com o PAIGC. No fundo, a colaboração prestada por algumas etnias ao colonialismo português tinha a ver com a procura de segurança na manutenção de privilégios, na perpetuação de uma economia semi-feudal e numa aliança de conveniência para que as estruturas tradicionais não fossem tocadas. O modo de produção capitalista fez uma introdução incipiente no século XIX e só encontrou estabilidade depois das chamadas guerras da pacificação. Para o autor, o Estado africano emanado do PAIGC era profundamente democrático com os seus diferentes órgãos participativos: Conselho Superior da Luta (Comité Central), Conselho de Guerra (secretariado geral) dirigido por uma comissão permanente. O partido, a partir de 1964, tinha posto em marcha estruturas administrativas dignas de um aparelho de Estado. O Governo era compósito, com cabo-verdianos e guineenses de diferentes etnias. Era a Assembleia Nacional Popular quem nomeava o conselho de Estado e o conselho dos comissários de Estado. No plano dos princípios, democracia não faltava.

Terceiro, o novo Estado foi-se deixando submergir por falhas imperdoáveis: falta de conhecimentos em matérias de administração, nepotismo e clientelismo, adopção de projectos megalómanos, lutas no interior do Partido entre aqueles que eram favoráveis à radicalização da experiência da luta e os partidários de uma solução próxima do neocolonialismo. Em escassos anos de independência, a orientação política passou a andar completamente à deriva, avançava-se e recuava-se na industrialização, abraçaram-se projectos transnacionais sem o mínimo de qualidade. A situação do camponês na Guiné-Bissau degradou-se. A ajuda exterior foi mal gerida e o comércio passou a favorecer alguns quadros partidários. A Guiné-Bissau continuou sem infra-estruturas.

Quarto, tudo conjugado, importa analisar pormenorizadamente a decadência do Partido vanguarda. Para o autor, o grande falhanço do PAIGC foi ter-se acomodado à vida da capital colonial, ter esquecido a vida dura do movimento de libertação e as experiências de uma economia autosustentada no mato. Os governos do presidente Luís Cabral passaram a privilegiar projectos favoráveis à região de Bissau e a desinteressar-se do equilíbrio inter-étnico. Carlos Lopes socorre-se de um discurso agressivo falando de dirigentes corruptos, traidores, reaccionários. Nunca questiona como é que um movimento político, ideológico e militar com as características do PAIGC mudou radicalmente de postura, mal chegou a Bissau.

Responsabiliza os antigos funcionários coloniais, atribuindo-lhes participação em tal processo deletério, sem nunca explicar quem eram tais antigos funcionários coloniais. O militantismo relaxou-se e a mobilização das massas desapareceu. Carlos Lopes recomenda que se volte a analisar a obra de Amílcar Cabral e se debata a dialéctica entre a luta de libertação nacional e a cultura que serviu de base à consciencialização dos militantes, selando a chamada unidade nacional. Para o sociólogo, a pequena burguesia, que tinha comandado o processo revolucionário durante a luta armada, tinha agora dois caminhos possíveis: trair a revolução ou assumir-se enquanto tal.

Protegido por esta linguagem redutora, Carlos Lopes recorda o papel do Estado no desenvolvimento e a necessidade de criar uma classe dirigente aberta aos desafios da integração nacional. O Estado é indispensável ao processo de desenvolvimento mas a contradição etnia-Estado continua presente (em 1982, claro) e terá um papel importante na evolução desta formação social.

Este estudo é uma profunda decepção, um exercício imaturo, simplista e cruel. Toda a realidade foi muito mais complexa e, goste Carlos Lopes ou não, o movimento que dá pelo nome de PAIGC devia ter apreciado a tempo e horas as responsabilidades da governação, o processo duradouro da convivência inter-étnica e o uso responsável dos dinheiros públicos. É inadmissível esquecer as próprias responsabilidades doutrinais de Amílcar Cabral, no caminho que se seguiu e que desembocou com a chegada da direcção do PAIGC a Bissau, em Setembro de 1974.
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Notas de CV:

Vd. poste de 3 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7073: Notas de leitura (153): Memórias e Reflexões, de Juvenal Cabral (II) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7086: Em busca de... (147): Ademar Rodrigues, ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BART 6521 procura camaradas

Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Canchungo > Pelundo > 2008 > Restos do antigo quartel português, ao tempo do BART 6521/72 (Pelundo, 22/9/1972 - 27/8/1974), a unidade que fez a transferência de soberania para o PAIGC, e que era comandado pelo Ten Cor Art Luís Filipe de Albuquerque Campos Ferreira.
Foto: © António Alberto Alves (2008). Direitos reservados.
 


EM BUSCA DE...

1. No dia 28 de Setembro de 2010, o nosso camarada Ademar Rodrigues deixou este comentário no Poste 5143*:

Caro amigo e camarada. Também estive na Guiné na CCS/BART 6521, onde fui 1.º Cabo Escriturário.
É muito bom manter a memória para os nossos netos, bisnetos e outros, a memoria futura vai ser importante neste mundo globalizado.

Eu quero fazer parte deste blogue pois estive ausente de Portugal durante 32 anos e agora que regressei à minha Pátria preciso de me informar.

Força amigos, mantenham-se vivos e não deixem cair isto, porque é muito importante para todos.

Enviem-me contactos da CCS/BART 6521.

Um forte abraço, sou o Ademar Rodrigues da CCS e quero que vocês saibam que ando muito triste porque não tenho contactos de ninguém e queria mesmo dar uma festa aqui na minha terra para os meus camaradas da CCS/6521 BART.

Despeço-me com um até breve.


2. Como o Ademar não deixou nenhum contacto, no mesmo dia foi deixado este comentário no mesmo poste:

Caro Ademar
Se não deixares o teu email, não podemos contactar-te.
Um abraço
Carlos Vinhal


3. Ademar Rodrigues voltou assim ao nosso contacto no dia 30:

Olá amigos,
Fiz asneira porque não deixei o meu contacto.

Sou o Ademar Rodrigues e moro em Santa Cruz do Douro, Baião - CP 4640-431.
O meu n.º de telefone é 934 955 328 e o meu email ai vai: ademarrodrigues@iol.pt.

Mais uma informação, fui Escriturário da CCS/BART 6521.

Ajudem-me a encontrar camaradas dessa Companhia pois preciso muito desses contactos. Quero fazer parte disto. Estive fora muito tempo e ando muito emocionado por não poder fazer aqui na minha terra um grande convívio com essa malta que foi do melhor.

Paz aos nossos mortos.

Um grande abraço
Ademar


4. Comentário de CV:

Caro Ademar, bem regressado a Portugal e a Baião, arredores do Marão, tua terra natal, ao que supomos.

Com respeito ao teu pedido, encontrei na página do nosso camarada Jorge Santos um pedido de contacto de um camarada do teu Batalhão. Trata-se de Alfredo Veiga com o endereço alfveiga@netcabo.pt.

Faz parte da nossa Tabanca o ex-1.º Cabo da 1.ª CART/BART 6521, António Faneco** que tem o endereço antoniofaneco@sapo.pt e o telefone 917 620 722.

São pontos de partida para começares as tuas pesquisas no sentido de reunires os teus antigos camaradas. Qualquer notícia que chegue até nós será encaminhada para ti.

Se quiseres aderir à nossa Tertúlia ou Tabanca Grande, como é também conhecida, basta que nos mandes uma foto actual e outra do teu tempo de Escriturário, uma pequena história e algumas fotos, legendadas, a acompanhar.

Recebe um abraço
CV
__________

Notas de CV:

(*) Vd, poste de 23 de Outubro de 2009
Guiné 63/74 - P5143: Os nossos médicos (7): Prof Doutor José Madeira da Silva, otorrino, em busca dos ex-camaradas de Bula e Pelundo, 1973/74

(**) Vd. poste de 4 de Junho de 2010
Guiné 63/74 - P6531: Tabanca Grande (224): António Faneco, ex-1.º Cabo da 1.ª CART/BART 6521/72, Pelundo, Cadique, Jemberém, Ilha de Jete, 1972/74

Vd. último poste da série de 29 de Setembro de 2010
Guiné 63/74 - P7054: Em busca de... (146): Luís Henrique Martins de Castro, ex-Fur Mil TRMS da CCS / BCAÇ 2861 (Bula e Bissorã, 1969 / 1970) (Armando Pires)