terça-feira, 26 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10075: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (24): O Soldado Lua

1. Em mensagem do dia 20 de Junho de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias, desta feita falando da irreverência do Lua.

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (24)

O Lua

JPC – para “nós o lua” porque tinha (e tem graças a Deus) um frontespício arredondado, tipo lua cheia – era um soldado da CCaç 675.

Nasceu no concelho de Porto de Mós precisamente ao lado do “campo da batalha” onde Nuno Álvares Pereira “tratou da tosse” aos invasores castelhanos - hoje são ”nuestros hermanos”.

Estatura abaixo da média, era entroncado e bastante resistente – era! Frequentemente desleixado ou até um tanto abandalhado; conversava barato mas fluente… na asneira; tinha bom poder de argumentação mas não convencia ninguém. Eram falazes, regra geral, os seus argumentos. É daqueles a quem a tropa fez bem… mas pouco!

O Lua era até um bom rapaz, porque… não há rapazes maus. Não sendo frontalmente contrariado até era fácil convencê-lo a entrar nos eixos, mas por pouco tempo. Na tropa porém, a voz de comando tem de ser igual para todos – se não for, provoca indisciplina … contagiosa e perigosa – aí o Lua fazia das suas. E como ele sabia fazê-las!

Umas vezes por tudo ou por nada, outras com ou sem motivo, brigava com tudo e com todos mas nunca – creio mesmo que nunca! – se saiu bem dos conflitos pessoais em que deliberadamente se envolveu: levava sempre… para não variar!

A breve trecho os seus companheiros de secção descobriram a maneira de não despoletar as irascibilidades do Lua: - não contrariar, mas apoiar… verbalmente, pelo menos na aparência.

Quando desembarcámos em Bissau, os soldados (praças) foram alojados nuns armazéns velhos e imundos próximos da saída do cais e que não tinham as condições mínimas de habitabilidade; nem uma janela havia! Soldado sofria… p’ra burro!

Corria o mês de Maio; o calor sufocava; respirava-se mais água que ar. Ali cheirava muito a…, muita gente junta. Fora dos muros havia um terreno – terra batida e poeirenta – onde os cozinheiros distribuíam a comida. Não havia mesas nem bancos… “piquenicavam" a todas a refeições. Os soldados, marmita na mão, passavam em fila indiana em frente da cozinha improvisada e recebiam o desejado alimento, na presença atenta do oficial de dia.

Eu estava de serviço nesse dia; o almoço constava de sopa, batatas guisadas com carne, pão, vinho e fruta – um luxo!, só faltava o bagaço e o café. Os géneros pareciam em bom estado e a comida agradou dum modo geral a quem a utilizou! Era o que se escrevia no relatório do oficial de dia nas “guerras” de cá, naqueles tempos. Tudo corria normalmente, mas a certo momento apercebi-me que um cozinheiro (o Sines) e o Lua altercavam nervosamente. Perguntei qual era o motivo daquela contenda sem nexo; o cozinheiro esclareceu:
- Estou a dar uma concha de batatas a cada um e depois há repetição para os interessados; o Lua pretende receber agora a repetição; é o único que levanta problemas… procura sempre sarilhos; inventa-os quando não existem!
- Ouviste?!, perguntei eu ao Lua – vais comer o que tens na marmita e depois vens à repetição; há comida quanto baste para todos! Ninguém sairá daqui com fome!

O Lua virou costas mas, apercebendo-se que eu me afastei do local, voltou até junto do cozinheiro, barafustando por mais comida sem ter ingerido, ainda, a que já tinha recebido.

Interferi de novo, aconselhando-o a cumprir o que lhe havia sido transmitido. O Lua, porém, não era capaz de cumprir o quer que fosse à primeira; minutos mais tarde, sem ter comido, ainda a primeira dose, voltou à carga e já havia discussão brava; antes que a conversa azedasse definitivamente entre eles, aproximei-me de novo e transmiti ao Lua com ar irritado e em voz mais audível:
- Já te disse que, enquanto não comeres o que tens na marmita, não receberás mais guisado; vai-te embora!

O Lua permaneceu imóvel, a olhar para mim com ar estranho. Peguei-lhe no braço, fi-lo dar meia volta, empurrando-o levemente em direcção ao local onde devia comer. O Lua voltou-se rapidamente com ar agressivo; apercebi-me que ele iria sacudir a marmita; depreendi logo: - “aí vêm batatas”! E vieram mesmo! Baixei-me de imediato, mas algumas “aterraram” na minha boina. O Lua fugiu! Eu iniciei a perseguição; a fuga não tinha qualquer hipótese de sucesso, porque o recinto estava cercado de arame farpado e o portão, do mesmo material, estava fechado. Eu corria “por dentro” o que ajudava bastante, e o Lua até nem era grande velocista. Mal me coloquei a seu lado dei rapidamente um quarto de volta para o lado dele (à esquerda) e, em simultâneo, “assentei-lhe” uma valente bofetada de frente naquela sua cara bolachuda; apareceu sangue no nariz e na boca; levou mais uns tabefes – o Lua apenas tentou proteger-se; não vislumbrei qualquer tentativa de ataque. Ficou apenas com o “almoço”!!! Que eu lhe dei… nem pediu repetição!

Fui almoçar à messe dos oficiais (como habitualmente) lá para as bandas do Quartel-General, local onde hoje funciona um hotel; quando encontrei o comandante da companhia, relatei-lhe o que tinha acontecido.

O capitão comentou:
- Agiu corretamente! Faça a participação para se instaurar um processo disciplinar! Tem havido muitas contendas! Temos de travar a fundo! Os soldados ficaram abalados, tristes e nervosos porque, em vez de aportar a Moçambique, vieram parar à Guiné! Temos sido condescendentes mas isto parece que não vai lá com panos quentes! A bem ou a mal vão entrar nos eixos!

Eu respondi:
- Meu capitão! Se considera necessário e conveniente, eu participo; em meu entender, uma segunda punição, não é necessária; ele já tem quanto baste. Além disso, eu entendo que o castigo na hora é o mais eficiente. Algo mais que se lhe dê… é excesso!
- Assim sendo, não participe! Na verdade devemos evitar os castigos em O.S. (Ordem de Serviço) – o castigo oficial que vai “sujar” a caderneta individual – tanto quanto possível; os castigos na tropa não deverão ter consequências na vida civil.

Mas tinham! Devo informar que um soldado com castigos oficiais não podia vir a ser funcionário público; as empresas do Estado e as grandes empresas privadas seguiam a mesma via. Por outro lado, não há nada mais eficiente que o castigo no momento. Que sentido faz um castigo aplicado anos depois de se ter cometido a infração?!

De acordo com a minha proposta, o caso ficou sanado.
Tivemos um caso de um furriel que tendo sido punido na Guiné, quando chegou à sua terra já não tinha o lugar que antes ocupara na Repartição de Finanças local..

Uns dias mais tarde chegámos a Binta; o perímetro do aquartelamento, para efeito de defesa do mesmo, foi dividido pelos três grupos de combate; cada pelotão devia preparar a defesa da sua zona abrindo valas, construindo abrigos, postos de vigia; sempre que um pelotão não ia para o mato, tratava da defesa da sua zona; Cada secção abria uma determinada extensão de vala para “homem de pé”; concluída a tarefa os soldados refrescavam-se no rio de águas turvas e salgadas e ainda sobraria tempo para escrever carta à garota, antes do almoço.

O Lua “ditava logo as suas leis” aos companheiros de secção impondo como a vala devia ou não devia ser aberta. Os ouros soldados sentavam-se e apenas comentavam:
- O Lua é que sabe! Ele é que tem os livros!

Então era vê-lo a trabalhar (quase sozinho) por três ou quatro, mas resmungando sempre:
- Pensam que são doutores! O dinheiro não cai do céu aos trambolhões! Nunca serão nada na vida! Hão de ter um bonito enterro!

Os companheiros descobriram em pouco tempo como evitar sarilhos; se alguém contrariasse o Lua… haveria briga pela certa. Um dia no refeitório que construímos em Binta, travou-se de razões com o soldado Castro, de outro pelotão, por causa de um bocado de pudim; O Castro encheu a mão com pudim e “afinfou-lhe” uma sonora bofetada na cara que ficou argamassada com o pudim. O Lua foi lavar a cara imediatamente… refrescou as ideias. Não houve contenda… porque o Castro era um grande matulão… abrutalhado até… e um poço de força.

No dia 4 de Julho de 1964, no regresso de Lenquetó, o nosso batismo de fogo, 2 grupos de combate foram emboscados e tivemos logo 2 feridos graves; veio o heli mas não podia aterrar devido ao fogo inimígo. Estávamos cercados. No meio de uma confussão infernal o Lua rastejou até junto do enfermeiro, o nosso JERO, com o fim de pedir um comprimido para as dores de cabeça. Não haveria comprimidos suficientes para todos! Seríamos uns oitenta com intensas dores de cabeça. O JERO lá conseguiu, não sei como convencê-lo a voltar ao seu posto. Depois de evacuados os feridos e com apoio de dois “T6” mandámos as dores de cabeça… às malvas e, debaixo de fogo farto, abandonámos corajosamente aquele local, provocando numerosas baixas ao inímigo.

Desde 1967, o Lua foi um frequentador assíduo das nossas confraternizações anuais; de início, cada ano trazia mais um filho. Era um dos indefectíveis. Regra geral não lhe cobrávamos os almoços dado que vivia com certas dificuldades. Quando os filhos se tornaram adultos… passaram a pagar, pois todos trabalhavam para o mesmo monte. Há cinco anos reunimos em Campo Maior, nas instalações da Delta. Como sempre o Lua estava lá! Na hora de pagar anunciou que ia ao multibanco; foi… e não voltou! Por descargo de consciência informei o capitão do sucedido que logo sentenciou:
- No próximo ano, se ele comparecer, não come sem pagar os dois almoços!

No ano seguinte, no terreno do “JERO,” (Alcobaça) o Lua compareceu… com ar comprometido; “esqueci” a ordem do grande chefe e só lhe cobrei o almoço desse ano! Não lhe falei do seu comportamento anterior; mas coloquei-lhe a mão no ombro, e, sem que ninguém ouvisse, transmiti-lhe amigavelmente:
- Deves comportar-te como adulto! Lembra-te que já tens netos e deves dar-lhes bons exemplos! Pensa nisso!

O Lua desfez-se em desculpas! Tudo terminou ali!

O seu único filho do sexo masculino veio sempre com os pais às reuniões da companhia. Já casado, estava sempre presente. Um dia conversou mais demoradamente comigo e fez-me a seguinte proposta:
- Como calcula, um dia o meu pai deixará de comparecer a estas confraternizações que eu considero muito especiais; eu nasci e cresci sempre neste ambiente. Eu gostava de, por impedimento de meu pai, ocupar o lugar dele; posso contar com o seu acordo?
- Oh! João!, tu já participaste em mais reuniões que alguns dos nossos ex-combatentes; por direito próprio, tu já és um dos nossos! A partir de agora eu não esquecerei de enviar a convocatória também para ti, independentemente da que enviarei ao teu pai; oxalá as envie, por muitos e bons anos aos dois.

O filho do Lua foi comparecendo na companhia do pai até que, num acidente de caça… desapareceu de entre os vivos!

O bom do Lua aguentou mais esta “bomba”! Com muita coragem… muita resignação… muita valentia; portou-se heroicamente. Elas não matam… mas nunca mais foi o mesmo… nem física nem moralmente! Tem andado com a borda um tanto debaixo de água… talvez também pelos excessos antes cometidos. A saúde começa a abandoná-lo.

A mãe do Lua era massagista do clube lá da terra. Um dia, já casado e pai de vários filhos, foi à bola; desentendeu-se com um GNR e tentou agredi-lo; para não variar… levou das boas e passou algumas horas no posto; pagou não sei quanto para não pernoitar lá – o que desequilibrou ainda mais o seu, já de si parco, orçamento familiar – esposa sofre!

O Lua telefona-me com frequência… assiduamente mesmo; é certamente o soldado que mais vezes me telefona; não ficou zangado comigo… nem podia! A briga foi entre o soldado e o alferes… não envolveu o C nem o T. Há que saber separar as águas! E ele tem sabido!

Recentemente telefonou-me eufórico; foi há poucos dias: queria experimentar se o seu novo telefone por cabo funcionava devidamente; aderiu à TDT via cabo e quis comemorar com o amigo!

Mais recentemente, 2 semanas depos do nosso almoço – convívio, telefonou-me a informar que a CCaç 674, a irmã gêmea da CCaç 675 ía realizar mais uma confartenização a 27 de Maio; o organizador informou que era o 18.º Convívio. Nós levamos 46 noutros tantos anos soubemos também pelo ex-1.º Cabo Oliveira que aquela companhia teve na Guiné mais de 15 mortos (já lhes perdeu a conta).

Pobre rato! Os excessos que cometeu na vida e os imponderáveis trazem-no acabrunhado… de rastos! Não admira! Também depois do que sofreu com a morte prematura do filho… daquela maneira! Bem tenta parecer o mesmo… mas não consegue. Não deixa de ser um bom rapaz! – nem podia!

Que Deus o ajude!

Maio de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9933: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (23): A TV na nossa guerra

Guiné 63/74 - P10074: Em bom português nos entendemos (8): O angolês, termos angolanos que podem dar jeito integrar no nosso léxico (Luís Graça, com bué de jindandu para o Raul Feio e os demais kambas kalus)



Página da AAAPFFEUL - Associação dos Antigos Alunos, Professores e Funcionários da Faculdade de Economia da Universidade de Luanda, alojada no Sapo, donde constava um pequeno Dicionário de Dialectos Angolanos [.infelizmente desaparecido porque entretanto o Serviço de Alojamento Gratuito de Páginas Pessoais do SAPO foi descontinuado, em dezembro de 2015] (LG).


Nessa página podia ler-se:


"Esta é uma página para todos recordarmos, partilharmos e aprendermos. Aqui divulgaremos os termos dos linguajares da terra angolana, apelando à participação de todos os associados e amigos, residentes em Portugal, em Angola ou em qualquer outro lugar do planeta Terra. Enviem as 'mukandas' com os vossos contributos para aaapffeul@gmail.com ".



A página tinha, em rodapé, o seguinte convite:


"Colabora connosco na recolha, registo, partilha e ensino de termos dos vários dialectos falados em Angola. Manda-nos a tua mukanda e diz-nos como se falava com os nossos cambas e com os nossos candengues, sem armar maka!"...







Angola > Luanda > 20 de junho de 2012 > A cidade, vista da Ilha de Luanda... cada vez mais cosmopolita, internacional, igual a tantas outras grandes cidades, cosmopolitas, internacionais, da nossa aldeia global... Foto de L.G.



1. Infelizmente desta vez fiz poucas fotos no exterior. Tirei mais fotos em sala de aula, na Clínica da Sagrada Esperança. Também não tive oportunidade de passear. Trabalhou-se de sol a sol... A única excepção foi uma visita, muita rápida (de 2 horas), à baixa de Luanda, de jipe e a pé... A partir das 16h, o trânsito complica-se.

Os kaluandas (ou "caluandas", ,julgo que o termo, da época colonial, está em desuso,) gastam muito tempo e energia em transportes... Por outro lado, em véspera de eleições gerais, legislativas (a 31 de agosto), Luanda e as capitais provinciais são um imenso estaleiro... Pela televisão e os jornais, percebe-se que o governo e a oposição já estão em pré-campanha eleitoral.


Do lado do regime, dá-se início a um vasto programa de inaugurações: hospitais, escolas, estradas... Aqui não é diferente dos outros Estados. Todo o poder gosta de mostrar obra feita, ao "povão"... 

Por outro lado, em 2004, ainda apanhei um pouco, por tabela, a paranóia securitária da polícia local... e andei fugido de jipe, com um polícia atrás de nós, armado de kalash... Só porque eu estava com um máquina fotográfica digital (ingenuidade a minha!), na mão, no "lugar do morto", ao lado do condutor, num jipe do ministério da saúde, na confusão do trânsito, a caminho do Futungo de Belas... Desobedecemos à ordem de parar, o jipe não levou nenhuma rajada, mas apanhámos um susto... Claro que o diligente "pobre polícia" queria apenmas ganhar uns trocos para o "mata-bicho"...

Julgo que as coisas melhoraram, pelo menos a esse nível... Mas não andei mais, confesso, armado em turista, tanto em Luanda com na ilha de Luanda... Pelo menos nessa sermana... Fintei os tiros de kalash na Guiné, em 1969/71, não tinha piada nenhuma ir apanhá-los em Luanda, em 2012, para mais em missão de paz e cooperação...



2. Para os muitos portugueses (tugas, pulas, em angolês) que hoje vivem e trabalham em Angola (ninguém sabe ao certo quantos, 100 mil ?, 200 mil ?, os aviões da TAP e da TAAG andam sempre cheios, para cá e para lá...), mas também para aqueles como eu que lá têm amigos (kambas) entre os kaluandas, e que lá vão de tempos a tempos em missões públicas ou de interesse público (cooperação, formação, investigação, etc.), é útil a consulta desta página, inserida no sítio da AAAPFFEUL.


A língua portuguesa não é mais do que o fruto (delicioso, gostoso, viçoso, saboroso, multicolorido, riquíssimo...) do linguajar das mais desvairadas mas boas gentes que a têm como língua materna ou língua oficial...  

A(s) influência(s) é (são) mútua(s), desde há muitos anos, o tempo em que convivemos. Falamos aqui de saudáveis interdependências, simbólicas, linguísticas, culturais, afetivas: o português de Portugal é também ele devedor do angolês, o português de Angola... (Claro que os mais "radicais", os indefectíveis antitudo... anticolonialistas, anti-imperiaçlistas, anticapitalistas, antissumpramacistas..., o portuguès é a língua do !"poder",l do "colon", do "tuga"...).

Estive recentemente na Ilha de Luanda, com uma curta passagem por Luanda (uma tarde). É a minha terceira ida a Angola, desde 2003. Sempre breve (uma semana, quinze dias). E todas as vezes que lá vou fico fascinado pelo português, doce, musical, pausado, bem soletrado, que se fala naquela terra. Para mim, são eles, os angolanos, que falam o melhor português da "lusofonia"... Não consigo entender como é que Angola esteve envolvida em 40 anos (!) de guerra, desde 1961 a 2002. Por que é um povo pacífico e intrinsecamente bom, hospitaleiro, amante da paz, que gosta de música, poesia, boa vida...


Em Angola não há o crioulo. A língua oficial é o português. O quimbundu (eles gistam de escrever kimbundo, com o tal K que aidna não faz parte do alfabeto português, não sei porquê...) é o maior grupo etnolinguístico de Angola (c. 25% da população na costa oeste e no norte), a seguir ao ovimbundu (c. 37%, a sul), mas à frente do bacongo (13%). Estes são os três principais grupos etnolinguísticos de Angola, todas eles pertencentes ao povo bantu.


quatro línguas nacionais: o côkwe (leia-se, tchocué), o kikongo (ou quicongo), o kimbundu (ou quimbundu) e o umbundu, a língua do grupo ovimbundu, a mais falada a seguir ao português (sem esquecer outras línguas africanas e inúmeros "dialetos")... O terreno é minado e as questões etnolinguísticas desencadeiam paixões...


À lista de vocábulos do angolês que encontrei neste sítio, da AAAPFFEUL - Associação dos Antigos Alunos, Professores e Funcionários da Faculdade de Economia da Universidade de Luanda, acrescentei uma série de outros vocábulos (e expressões) que aparecem no livro do meu colega sociólogo angolano, Paulo de Carvalho (n. Luanda, 1960), doutorado pelo ISCTE - Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, a minha escola-mãe, bem como no livro do Ondjaki, Os da minha rua: estórias.




Angola > Luanda < Ilha de Luanda > 20 de junho de 2012 > Luís Graça e Raul Feio (à direita), juntos numa acção de formação para pessoal de gestão de uma clínica local, a Clínica da Sagrada Esperança, do Grupo Endiama. uma unidade de saúde de referência não só em Angola como em África... Foto de L.G.


3. Esta pequena recolha, feita em cima do joelho, dedico-a ao mô kamba Raul Feio, Raul Jorge Lopes Feio, de seu nome completo, angolano do Huambo, filho de pais angolanos (com ADN português do lado do pai ou avô...), médico desde janeiro de 1974, (inscrito na Ordem dos Médicos com o nº 19,) e que pagou, com a liberdade, o amor que tem à sua terra. 

Enquanto estudante de medicina da Faculdade de Medicina de Lisboa, foi preso e condenado, em tribunal plenário, por motivos políticos, tendo passado 18 meses em Caxias (1971/72). Diplomou-se, também em Portugal, em saúde pública e medicina tropical, antes de regressar ao seu país natal na véspera da independência.  Como todos os médicos angolanos dessa época, foi militar e conheceu os horrores da guerra ("a guerra da segunda independência" ou "dipanda").

Foi ele, o Raul Feio, quem me levou pelo circuito, pedestre, das livarias da baixa luandense (Chá de Caxinde, Lello, ABC) no passado dia 21 do corrente. Comparativamente a setembro/outubro de 2004 (data da minha última visita), há hoje mais produção literária angolana, nos escaparates das livrarias angolanas, incluindo não apenas ficção mas também livros científicos e técnicos nas mais diversas áreas (da saúde à antropologia, do direito à gestão, da história à política, da arquitectura à literatura de viagens). 

Obrigado, Raul, pelo passeio e pelos livros. Para o melhor e para o pior, Luanda está irreconhecível.

Um afetuoso kandandu, daqui de Lisboa, ainda cheia do azul dos jacarandás e do cheiro dos manjericos dos santos populares... Até ao próximo outubro ou novembro. LG.



Termos do angolês: dialetos, gíria e calão


[Foto à esquerda: N'bondo ou imbondeiro, trabalho artístico em arame, s/d, s/n,  Angola, Ilha de Luanda, Condomínio da Clínica da Sagrada Esperança, 22 de junho de 2012. Foto de L.G.]

A / B


Abuamada. Espantada, atordoada pelo pasmo.


Aká (**). AK47, a espingarda automática russa.


Alembamento. Quimbundo. Pagamento feito aos pais da noiva.


Ambi (*). Diminuitivo de ambicioso. Pessoa gananciosa ou que só se preocupa consigo própria.

Antílope. Animal africano, espécie de veado.

Arimo. Umbundo. Lavra, terra de lavoura.

Avilo, avila (*). Amigo, amiga.


Bagre (*). Peixe de água doce.


Banga (**). Estilo, vaidade.


Bassula. Rasteira, derrubar outro usando sobretudo as pernas.

Batuque. Quimbundo. Tambor.

Bazar (*). Fugir, ir embora.

Bigue (**). Grande. Corruptela do inglês big.


Bina (*). Bicicleta.

Bitacaia. Também chamada bicho-do-pé ou pulga penetrante; pequeno insecto que se fixava na zona das unhas dos pés, por baixo da pele; era removido, por norma, com um alfinete, abrindo a pele e retirando-o sem rebentar o seu minúsculo saco de pus.

Boelo. Ridículo, fora de moda, ultrapassado.

Bôer, bure ou africânder. Comunidade de origem holandesa que ocupou vastas regiões da África do Sul, donde foi expulsa pelos ingleses, acabando por se fixar e definir novos territórios, como os estados do Orange e do Transval, bem como no sul de Angola.

Bombo. Mandioca.

Bondar (**). Matar, atingir (alguém).

Bué (*). Muito, em grande quantidade.

Braga. Homem branco (pejorativo); o mesmo que pula.

Bumbar. Trabalhar.


C (e/ou K)


Ca-barriga (*). Barriga pequena. 

Ca-dinheiro (*). Dinheirinho.


Ca-sorte (*). Um pouco de sorte. (O prefixo ka-, diminuitivo em quimbundu, agrega-se à palavra portuguesa para dar o sentido de "pequena sorte").


Cabra do mato. Espécie de bambi africano.

Cabiri. Rafeiro.

Cachico (*). Criado (Pejorativo).

Cacimba. Ifiote, Quimbundo. Poço de água, pequena lagoa.

Cacimbo. Ifiote, Quimbundo. Época das chuvas, nevoeiro.

Caíngas. Polícias de turno.

Caluanda ou kaluanda. Quimbundo. Habitante de Luanda. Vulgarmente, usa-se o termo kalú, diminuitivo.

Calulú. Prato típico da costa, com peixe seco, íresco, quiabos, folhas de batata doce ou outras ramas e cozinhado com óleo de palma. Acompanha o funje ou pirão.

Camanga ou kamanga. Tráfico ilícito de diamantes.

Camanguista ou kamanguista. Indivíduo que se dedica à camanga.

Camba ou kamba (**). Quimbundo. Amigo, camarada.


Cambaia (**). De pernas arqueadas.

Cambulador(es), Calão luandense. Vem de cambular, enganar. ludibriar, aldrabar

Candengue ou kandengue (**). Quimbundu. Criança, miúdo.

Cangulo. Carro de mão para transportar mercadorias.

Cangando. Homem branco (pejorativo).

Canhangulo. Espingarda.

Capim. Erva alta, colmo.

Capota. Nhaneca. Espécie de galinha selvagem.

Cassule, cassula (*). Mais novo, mais nova.

Cassumbular. Quimbundu. Tirar violentamente o que outrem leva nas mãos.

Cará. Nhaneca. Espécie de babata-doce da região sul.

Catanhó. Homem cabo-verdiano (pejorativo).

Catinga (**). Mau cheiro do suor.


Catorzinha (*). Adolescente luandense (em geral, tem sentido pejorativo:  prostituta muito jovem).

Caxexe. Às escondidas, disfarçadamente.

Caxico. Lacaio (depreciativo).

Caxinde. Folhas de que se faz uma infusão muito aromática. (Chá de Caxinde é o nome de uma conhecida associação e livraria de Luanda; foi fundada em 1989).

Cazucuta. Uma dança, originalmente; acabou por ganhar o sentido de contusão, ban­dalheira.

Cazumbi. Espírito, fantasma.

Chana. Planície típica do Leste de Angola, de capim pouco alto.

Chefe (*). Tratamento dado a pessoa de status social mais elevado.

Chimba. Tribo do sul de angola.

Chuinga (**). Pastilha elástica; corruptela do inglês chewing gum.

Cochito. Um pouco, um pedacito.

Comba ou Komba. Velório na casa do morto, em que se come, bebe e dança.

Cota ou Kota (**). Pessoa mais velha.

Cotótó. Pessoa avarenta.

Cuamato. Tribo do sul de angola.

Cuancala. Tribo do sul de angola.

Cuanhama. Tribo do sul de angola.

Cubar. Dormir.

Cubico (*). Quarto de dormir, casa, cubículo.

Cuduro (ou Kuduro). Dança popular dos bairros pobres de Luanda, surgida após a independência.

Cumbú (ou Kumbú) (*). Dinheiro.

Curibota (ou Kuribota/Kuributice). Mexericos (calão urbano).


D/ E / F / G


Dibinga (**). Fezes.


Ditumbate (*). Erva usada para prevenir e curar o paludismo (ou malária).


Esculú (**). Muito bom.


Esquebra (**). Excedente.


Esquindivar. Evitar, esquivar.


Esquindiva (**). Fuga.


Estigar (**). Ridicularizar o outro através de jocoso jogo de palavras.


Fantasma (*). Falso, que não existe (Falsos nomes que figuram em listas administrativas - combatentes, professores...).


Fezada (*). Sorte.

Fuba ou fubá. Farinha de milho.

Fugar (**). Faltar às aulas.

Funje ou funji (*). Quimbundo. Massa de fuba de mandioca, de batata ou de milho, dissolvida em água a ferver; o mesmo que pirão no sul.

Ganguela. Quimbundo. Tribo que habita a região do Bié.

Ganza. Estado em que se fica quando se usa drogas.

Garina. Moça ou mulher.

Gasosa. Dinheiro dado para corromper uma autoridade; hoje pode significar também gorjeta.

Gindungo (ou Jindungo) (**). Fruto picante, usado em tempêros, na alimentação.

Ginguba. Amendoím, mancarra (na Guiné-Bissau).

Goiaba. Fruta tropical.

Gombelador. Violador, tradicionalmente; hoje significa homem exageradamente assediador.

Grogue. Aguardente de Cabo Verde.




Angola >  Luanda > Ilha de Luanda > Condomínio da Clínica da Sagrada Esperança > 22 de junho de 2012 > A baía de Luanda > Luís Graça e Raul Feio (à direita),  em contraluz...  Foto de L.G. 


H / I / J / K / L


Haka. Umbundo. Reclamação de admiração.

Humbe. Tribo do sul de angola.

Ilha das Cabras. Antiga designação da ilha de Luanda.

Imbambas. Haveres pessoais.

Imbumbável. Pessoa que se recusa terminantemente a trabalhar.

Jiboiar (**). Estar ocioso, sonolento.

Jindungo. Quimbundo jin+dungo. [Dungo significa baga; jin é prefixo do plural]

Kabuenbas (*). Peixe pequeno; em sentido figurado, coisa pouca, negócio pequeno.

Kaluanda. Quimbundu. Antigo habitante de Luanda; diminuitivo: Kalu.

Kandandu. Quimbundu. Abraço (Plural: Jindandu).

Kandonga (*). Negócio, comércio informal.

Kandongueiro (*). Motorista de táxi ou de carrinha de transporte de passageiros.

Kafeluka (*). Copos ('Vou beber os meus kafeluka').

Kapurroto (diminuitivo Kapuka) (*). Aguardente caseira, feita a partir de cana de açucar, açúcar ou milho.

Kimbombo (*). Bebida fermentada, feita a partir de cereais.

Kissangua (*). Refresco feito a partir de cereais ou frutas.

Kitaba (**). Espécie de pasta feita com amendoim torrado.

Liamba (*). Cannabis.

M

Maboque. Fruta tropical.

Maca (ou maka). Quimbundo. Conversa, conflito, discussão, problema, cena.

Machimbombo. Quimbundo. Autocarro urbano.

Macuta. Antiga moeda colonial feita de cobre.

Maianga. Bairro de Luanda onde se situa o Hospital Josina Machel / Maria Pia

Malaico (ou malaiko) (**). Ordinário, grosseiro, que não é bom

Malaiko (*). À toa, abandalhado

Malembe. Ifiote. Devagar, calma.

Mamão. Fruta tropical, semelhante à papaia.

Mambos (*). Assuntos, casos, problemas, cenas.

Manauto. Amante.

Manga. Fruta tropical.

Maqueiro. Quimbundo. Indivíduo conflituoso, que arma macas.

Maruvu (ou maluvu) (*). Bebida fermentada, feita a partir da seiva da palmeira

Massambala. Sorgo; cereal de grão redondo e redondo, que também servia para fazer uma cerveja local. 

Matabicho (*). Pequeno almoço.

Mato (*). Interior, meio rural.

Matumbo. Pessoa do mato, considerada pelos citadinos como ignorante.

Micate. Doce frito, espécie de sonho.

Milongo ou bilombo. Remédio; substância, normalmente de origem vegetal, a que se atribui poder curativo.

Mirangolo. Fruta tropical, do tamanho duma cereja.

Missanga. Contas coloridas, em plástico, usadas para fabrico de adornos (colares, pulseiras).

Mô (**). Meu

Mona. Filho; usa-se carinhosamente para rapaz.

Monangamba. Termo depreciativo para trabalhadores forçados no tempo colonial. 

Muadiê (**). Senhor ou patrão, na terminologia colonial; pessoa, tipo/a.

Muata. Chefe tradicional, hoje usa-se para qualquer responsável.

Mucanda ou mukanda. Quimbundo. Carta, bilhete. Fig. Recado.

Múcua. Quimbundo. Fruto do Imbondeiro.

Mucubal. Tribo que habita a parte sul da região entre Moçâmedes e a serra da Chela.

Muíla. Membro da tribo nhaneca.

Mujimbeiro (**). Fofoqueiro.

Mujimbo (**). Tchokue. Notícia; ultimamente ganhou a conotação de boato, fofoca.

Mulemba. Quimbundo. Figueira africana.

Mundombe. Tribo que habita a parte norte da região entre Moçâmedes e a serra da Chela.

Mungué. Quimbundo. Até à amanhã.

Musseque. Quimbundo. Originalmente a areia vermelha; mais tarde, os bairros periféricos (e pobres) de Luanda, com construções precárias feitas de chapa, adobe e colmo.

Mutamba (*). Parte central da baixa de Luanda.


Mutiati. Nhaneka. Espécie de árvore muito comum no sul de Angola.

Muxima. Quimbundo. Coração. Plural, Mixima.


N


N´bondo. Imbondeiro.

Naite (*). Cigarro.


Naka. Umbundo. Horta à beira de um rio.


Ndengue. Quimbundu. Miúdo.


Ngonguenha (**). Mistura de água com farinha de pau (farinha fina feita a partir da mandioca) + açúcar.

Nhaneca. Tribo que habita a região da Huíla, no sul de Angola.

Njango. Umbundu. Construção circular, aberta, onde se realizam reuniões.

Nocha. Fruta tropical.

Nona. Fruta tropical.

Nunca ningi (*). Nunca mais.


Nunce. Umbundu. Espécie de antílope com 50 kg e 75 cm de altura em média; também chamado sembo no sul.





Angola >  Luanda > Ilha de Luanda > Condomínio da Clínica da Sagrada Esperança (CSE) > 19 de junho de 2012 > A hora da bica... numa dos sítios mais bonitos e tranquilos da ilha, com vista para o porto de Luanda > Da esquerda para a direita: José Vasconcelos (ENSP/UNL), Jorge Lima (CSE e FMUAN - Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto), Conceição Araújo (a nossa anfitriã, CSE) e Luís Graça (ENSP/UNL)...  Foto de L.G. 


O / P / Q


Ocipama. Umbundu. Aula, lição.

Onkhako. Nhaneca. Sandálias

Olongo (**). Umbundu. Espécie de antílope com 300 kg e 1,5m de altura em média. Também chamado ungiri no sul.

Pacaça. Animal africano; espécie de búfalo vermelho africano.

Pai (*). Tratamento de deferência ou de respeito, dado a pessoa mais velha ou de status social mais elevado.

Palanca. Animal africano; espécie de veado.

Papaia. Fruta tropical, semelhante ao mamão, mas mais doce.

Paracuca (**). Amendoím torrado, envolto em açúcar,  vendido na rua em canudos de papel.


Parar (*). Morrer.

Pato. Gíria. Pessoa que entra numa festa sem ser convidada.

Pirão. Umbundo. Farinha de mandioca ou de milho cozida; o mesmo que funje (ou funji) no norte.

Pitanga. Fruta tropical.

Pitar (*). Comer.

Pito. Pessoa bonita, desejável.

Porrinho. Moca.

Poster (**). Estilo.


Pré-cabunga (**). Última classe do ensino pré-escolar.


Primo como irmão (*). Filho da tia (nos sistemas de parentesco matrilineares), ou filho do tio (nos sistemas patrilineares).


Protecção (*). Protecção física, guarda, segurança.

Pula. Pessoa branca (pejorativo). O mesmo que braga, cangando, tuga.

Quedes (**). Sapato desportivo, em lona e borracha


Quijila ou kijila. Interdito, proibição de usar ou comer alguma coisa por razões religiosas.

Quilapi ou kilapi. Dívida, calote.

Quimbanda ou kimbanda. Quimbundo. Curandeiro, adivinho.

Quimbo ou kimbo. Quimbundo. Aldeia, pequeno povoado.

Quimbundo ou kimbundu. Língua das tribos do centro-norte de Angola, nomeadamente da região de Luanda.

Quinguila ou kinguila. Mulher que troca divisas (dólares por kwanzas) na rua.

Quinhunga ou kinhunga. Pénis.

Quionga ou quionga. Cadeia, prisão.

Quisaka ou kisaka. Esparregado de folhas de mandioca cozidas em óleo de palma.

Quissama. Nome do parque nacional situado a 75 km de Luanda, e delimitada pelo Oceano Atlântico e os rios Cuanza e Longa, uma da área de grande variedade de fauna e flora protegida desde 1957.

Quissange. Instrumento musical.

Quitata ou kitata. Prostituta.

Quiteta (**). Espécie de molusco, comestível.

Quitute. Doce, presumidamente de origem brasileira.


R / S / T / U / V / X / Z


Roboteiro. Pessoa que faz transporte de cargas, ou com cangulo ou às costas.

Ruça. Carro.

Rusga (*). Alistamento compulsivo de jovens em idade militar; por extensão, recolha de pessoas, em casa, na rua, na escola, no local de trabalho,  que tenham cometido uma infracção ás leis do país.

Saio. Trabalho.

Salalé. Formiga branca e carnívora, da família das térmitas.

Sembo. O mesmo que Nunce.

Soba. Chefe tradicional, autoridade máxima numa tribo ou aldeia.

Sobeta. Chefe tradicional, adjunto de um soba.

Sukuama. Exclamação de admiração ou raiva.

Tciriquata. Umbundo. Pequeno pássaro comum no planalto central.

Tipóia ou machila. Umbundo. Rede usada no transporte de pessoas ou bens.

Tissagem. Acréscimos de cabelo, muitas vezes de cores diferentes do próprio.

Tremunos. Jogos de futebol, na rua ou em terrenos vagos.

Tuga (*). Português do tempo colonial.


Tunda, tunda! (*). Desaparece, vai-te embora.

Umbundo. Língua falada no centro-sul de Angola.

Ungiri. O mesmo que Olongo.

Xambeta. Coxo.

Ximbeco. Habitação mal feita, de materiais precários.

Zongola. Bisbilhoteiro.

Zunga (*). Venda de comida ou bebida nas ruas.


Zungueira (*). Mulher que pratica a zunga.

Fonte: Adapt. de AAAPFFEUL. "Muitos dos termos e definições deste dicionário foram recolhidas em obras do escritor Pepetela [ n. Benguela, 1941], cujo contributo aqui agradecemos e rendemos a nossa homenagem". 


Vd. também vocábulos e expressões recolhidos por nós, em 2004, em Luanda (re)visitada



(*) Referido ou também referido por Paulo de Carvalho [, foto à esquerda, cortesia da Wikipédia]- 'Até você já não és nada!...' Luanda: Kilombelombe. 2007.342 pp. (Colecção Ciências Humanas e Sociais, Série Sociologia e Antropologia, 4).

(**) Referido ou também referido por Ondjaki [, pseudónimo do escritor angolano Ndalu de Almeida, n. Luanda, 1977 ] - Os da minha rua: estórias. Lisboa: Caminho. 2007, 125 pp.  (Colecção Outras Margens, autores estrangeiros de língua portuguesa,63).

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P6015: Em bom português nos entendemos (7): O kapuxinho vermelho, contado aos nosso netos, de Lisboa a Dili, de Bissau a S. Paulo (Nelson Herbert / Luís Graça)

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10073: Tabanca Grande (346): Fernando Sucio, ex-Condutor Auto do Pel Mort 4275 (Guiné, 1972/74)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Fernando Sucio, ex-Soldado Condutor do Pel Mort 4275, com data de 20 de Junho de 2012:

Chamo-me Fernando Sucio, nasci no dia 20 de Outubro de 1951 e fui Soldado Condutor no Pelotão de Morteiros 4275.

Cheguei à Guiné no dia 14 de Outubro de 1972.
Após as apresentações no Cumeré,  fui para Bula onde fui integrado na CCS do BCAV 8320.

Permaneci em Bula e São Vicente onde fizemos o destacamento.

Locais que me lembro de ter percorrido: Có, Ponta Augusto Barros, Pelundo, Teixerira Pinto, Cacheu, Binar, Nhamate, Pete, Ponta Consolação, Bissorã, Mansoa, Catió, Mansabá, Capunga e Bissau aonde me deslocava muitas vezes.

Regressei no dia 8 de Agosto de 1974.

As viagens de ida e volta foram feitas nos aviões dos TAM


Agora  a história.

Há bons e maus momentos para lembrar.

Tivemos logo duas mortes trágicas: a do 1.º Cabo Mecânico Realinho e a de outro Mecânico, quando tentaram ir a Binar, sem protecção, para reparar uma viatura civil da Casa Gouveia.
Foram mortos com um tiro cada um e o empregado da Casa Gouveia ficou sem as pernas, saindo ileso um rapaz que veio ao quartel dar a triste notícia.

Outras coisas aconteceram, de bom ficaram os amigos que lá fizemos.

Lembro-me de um pequeno a quem chamávamos Batatinha que queria vir comigo para Portugal. Não consegui despedir-me dele na hora do regresso, mas espero um dia vir a encontrá-lo.

Tenho muito mais para contar mas fica para mais tarde.

Envio um abraço muito grande a todos os ex-combatentes e agradecer a oportunidade que me deram para fazer parte desta grande página.


VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > Monte Real > Palace Hotel > 21 de Abril de 2012> Na foto: à esquerda Leonel Olhero (Ermesinde / Valongo) e à direita Fernando Súcio (Vila Real)


2. Comentário de CV:

Caro Fernando, bem-vindo à Tabanca Grande onde não és de todo desconhecido como prova a foto acima. Estiveste connosco no VII Encontro de Monte Real, e eu próprio já te encontrei na Tabanca dos Melros recentemente.

Seguindo as normas habituais, estás agora formalmente apresentado à tertúlia. Assim, a partir de hoje assumes a responsabilidade de colaboração escrita, ou em fotos, para aumentar o valioso espólio deste Blogue.

Ainda de acordo com o habitual, recebe um abraço em nome da tertúlia, dos editores e demais colaboradores desta págia.

Recebe um abraço pessoal do camarada e amigo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10063: Tabanca Grande (345): O nosso camarada Miguel Pessoa deu uma queda, fracturou o úmero, estando internado em Santa Maria para colocação de uma prótese

Guiné 63/74 - P10072: O Mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (58): O reencontro, 38 anos depois, de dois camaradas da Ponte Caium, o Cristina e o Pinto, 3º Gr Comb, CCAÇ 3546, Piche, 1972/74 (Cristina Silva, Funchal)




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) >Destacamento da Ponte Caium > A suite, os aposentos, os bu...rakos em que nós vivemlos... As camas, com rede mosquiteira (!), eram em beliche, e eram um luxo, como se pode ver na foto...
Este abrigo era o mais pequeno do destacamento de Caium: tinha apenas quatro camas... Ao lado era o depósito de géneros (que roubou espaço ao abrigo). Na foto, o nosso camarigo Jacinto Cristina, com o 1º cabo Pinto, o apontador do morteiro 10.7, assinalado com um círculo a vermelho...

Havia quatro abrigos, dois em cada lado do tabuleiro da ponte. Os outros três eram todos maiores (de 6 a 8 camas). Os abrigos eram ladeados por fiadas de bidões cheios de terra, dando alguma protecção em caso de ataque.



Foto: © Jacinto Cristina (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > CCAÇ 3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > 3º Grupo de Combate (Os Fantasmas do Leste) > Destacamento da Ponte de Caium > 1973 > Álbum fotográfico do Florimundo Rocha > Foto nº 8 > A famosa equipa de futebol...

"Em primeiro, ao centro, o Rocha, o dono da bola, à direita o José Alberto, à esquerda o Pinto [, assinalado com um círculo a vermelho]. De pé, na segunda fila, à direita, o Barbeiro, o furriel Barroca, o Santiago que tem a fita na cabeça, e o furriel Ribeiro" (Legenda: Carlos Alexandre, Peniche).


Foto: © Florimundo Rocha (2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.





Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Destacamento da Ponte Caium > Da esquerda para a direita: O 1º Cabo Pinto (assinalado com um círculo a vermelho), e os soldados Ramos, Jacinto Cristina (segurando granadas de morteiro 60), o Wolkswagen, o Fernandes, de pé (outro que morreu na emboscada de 14/6/1973) e o Silva ("que percorreu 18 km com um tiro no pé!")... Foto e legenda do Jacinto Cristina.


Fotos: © Jacinto Cristina (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Não sei se foi graças ao nosso blogue, mas a verdade é que dois camaradas do 3º Gr Comb da CCAÇ 3546 (1972/74), que estiveram juntos na famosa Ponte Caium, o Jacinto Cristina e o Pinto, encontraram-se finalmente, 38 anos depois do seu regresso a casa, de avião dos TAM, em 23 de junho de 1974.

Quem me deu a notícia, foi a engª Cristina Silva, minha amiga, filha única do Jacinto Cristina e da Goretti, e casada com o meu amigo Rui Silva, médico (o casal vive e trabalha na Madeira).

A Cristina, que estava em Coimbra, para o concerto da Madonna (uma prenda de amor do seu esposo, que não pode vir por razões profissionais), deu-me a notícia, por telemóvel, com grande regozijo, ao saber da emoção com que o pai Jacinto acabava de receber, de braços abertos, o ex-1º cabo Pinto, o apontador do morteiro 10.7 e seu companheiro de abrigo (o Cristina, além de padeiro, era também o municiador do morteiro).

Para a emoção ser ainda maior, esse reencontro deu-se precisamente a 23 de junho de 2012, sábado passado, data que o Pinto fez questão de recordar, com pompa e circunstância...

Não sei de pormenores, mas fiquei com a ideia de que o Pinto fora visitar, no sábado passado, o Cristina na sua terra, Figueira dos Cavaleiros, concelho de Ferreira do Alentejo.

Quanto ao Pinto, não sei onde vive, nem muito menos sei o seu nome completo. De qualquer modo, através do blogue, o Jacinto tem tido notícias de outros camaradas da Ponte Caium, nomeadamente o Florimundo Rocha (Olhão), o Carlos Alexandre (Peniche) e o Ribeiro (Braga)... É caso para dizer, mais uma vez, que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande! Agora falta o ex-1º cabo Pinto apresentar-se aos demais amigos e camaradas da Guiné.


Um beijinho para a Cristina [, foto à direita quando era mais pequenina, folheando o álbum do papá], e um alfa bravo para o camarada Jacinto, que eu não vejo há já uns bons tempos (*)

PS - Como é sabido, a Cristina Silva representa, e muito bem, o seu pai, Jacinto, na Tabanca Grande, não tendo ele nem email nem computador nem o hábito de blogar...

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Nota do editor:

Útimo poste da série > 23 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10062: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca...é Grande (57): Tenho na minha colecção peças de fardamento, de 1961, de António Sousa Teles, Major de Infantaria (Miguel Andrade)

Guiné 63/74 - P10071: Patronos e Padroeiros (José Martins) (28): S. Mateus, Patrono da extinta Guarda-Fiscal




1. Em mensagem do dia 16 de Junho de 2012, o nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos mais um trabalho para a série Patronos e Padroeiros.






Patronos e Padroeiros XXVIII

PATRONO DA GUARDA-FISCAL

São Mateus
Imagem da colecção de Manuela Martins
© Foto de José Martins.


São Mateus

Com a data e local de nascimento desconhecida, o filho de Alfeu, Mateus, ou Levi como também era conhecido, e sobre quem há pouca informação, situa-o na cidade de Cafarnaum com a profissão de publicano, termo que designa o cobrador de impostos ou “homem de negócios”, mas com sentido pejorativo.

Cafarnaum, que possuía uma alfândega e uma guarnição romana, cujo comandante se mostrava bastante amistoso com os judeus, tendo, inclusivamente, construída uma sinagoga, sugere que se tratava de uma cidade fronteiriça.

Da Bíblia podemos retirar a forma como foi descrito o encontro de Jesus com Mateus, e como este se tornou seu seguidor.

Em Marcos (2.14) “Ao passar viu Levi, filho de Alfeu, sentado na coletoria, e disse-lhe; Segue-me. Ele levantando-se, o seguiu”; em Lucas (5.27,28) “Depois disto, saiu ele e viu sentado na colectoria um publicano chamado Levi, ao qual disse: Segue-me. Ele, deixou tudo, levantou-se e o seguiu”; e no texto do próprio Mateus (9.9) “Partindo Jesus dali, viu um homem que estava sentado na colectoria, chamado Mateus, e disse-lhe: Segue-me. Ele, levantando-se, o seguiu”. Numa linguagem “dos nossos dias”, devemos entender que este homem, Mateus, seria um funcionário tributário ou um técnico de contabilidade que, com base na lei e nos rendimentos, calculava e cobrava os impostos, uma das razões que o elevaram a Patrono dos Contabilistas.

O facto relatado, deu-se quando Jesus, depois de atravessar o Lago Tiberíades, na sua missão de pregação e quando procurava encontrar os apóstolos para que continuassem a pregação.

Seguiu Jesus durante a vida pública deste, estando presente na Última Ceia, na Ascensão e no Pentecostes, partindo em missão de evangelização, para as regiões da Palestina e da Etiópia, acabando por escrever o que é considerado o primeiro Evangelho, para assim mais facilmente ser difundida a mensagem junto da comunidade cristã recém-saída do judaísmo.

Morreu cerca do ano de 70, e tem o seu dia festivo em 21 de Setembro. São Mateus foi declarado Patrono da Guarda Fiscal, por breve de Sua Santidade o Papa Paulo VI, de 25 de Março de 1964, sendo o Dia da Guarda Fiscal comemorado em 21 de Setembro de cada ano, data da celebração litúrgica do Santo

 
Nota do Autor:

A Guarda Fiscal era uma força policial dependente do Ministério das Finanças, criado em 17 de Setembro de 1885, substituindo na função o Corpo de Guarda-Barreiras, tendo por missão a fiscalização fronteiriça e aduaneira. Foi extinta em 26 de Junho de 1993, tendo sido criada uma brigada, junto da Guarda Nacional Republicana para as mesmas funções. Mais tarde passou a ter a designação de Unidade de Acção Fiscal.


Pesquisa e texto de José Marcelino Martins
17 de Junho de 2012

© Foto do militar da Guarda-Fiscal de Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10057: Patronos e Padroeiros (José Martins) (27): Bartholomeu Costa, Patrono do Serviço de Material

Guiné 63/74 - P10070: Notas de leitura (372): Obra Escolhidas de Amílcar Cabral (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 7 de Maio de 2012:

Queridos amigos,
Para que conste, os dois volumes das obras escolhidas de Amílcar Cabral, pelo critério experiente de Mário Pinto de Andrade, estão esgotados.
Trata-se de uma antologia que garante um conhecimento dos dotes invulgares de Cabral como pensador revolucionário, estudioso, conferencista e cientista, por um lado, e autor de notícias, palavras de ordem, mensagens, improvisos e textos curtos da mais variada índole.
Tudo escrito em português de primeira água, a sua comunicação de que tanto se orgulhava, a língua que ele deu como indiscutível para unir os povos que quis libertar.

Um abraço do
Mário

Obras escolhidas de Amílcar Cabral

 Beja Santos

Trata-se, sem margem para dúvida, de uma seleção representativa do pensamento e da atividade militante de Amílcar Cabral, uma escolha feita por Mário Pinto de Andrade, um amigo e um intelectual de indiscutível mérito que conheceu o líder do PAIGC como poucos outros dirigentes africanos: “A arma de teoria, unidade e luta” e “A prática revolucionária, unidade e luta II”, ambos os volumes editados pela Seara Nova, em 1977 e 1978. Obra infelizmente esgotada e não se compreende a sua reedição. O leitor interessado no pensamento de Cabral tem disponível a antologia “Documentário” organizada por António Duarte Silva e editada pela Cotovia, em 2008, a preço muito acessível.

No primeiro volume, Mário Pinto de Andrade selecionou escritos da juventude, textos relacionados com o trabalho que Cabral desenvolveu num recenseamento agrícola da Guiné, em 1953, seguem-se textos incontornáveis como o material de divulgação de uso internacional aqui intitulado “A dominação colonial portuguesa”; depois procede-se a uma sumula dos trabalhos sobre a estrutura social da Guiné, os princípios do PAIGC e a prática política, as lições positivas e negativas da revolução africana, textos indispensáveis para se perceber a preocupação de Cabral com o unitarismo numa paisagem de fracassos consecutivos; os textos “A arma da teoria” revelam o pensador brilhante e também, para que dúvidas não houvesse, uma certa ligação ao leninismo; e, por último, as suas considerações, por vezes fulgurantes, sobre o conceito de libertação nacional e cultura.

Se o leitor me pedisse opinião sobre o que é de todo imprescindível conhecer deste pensamento e com base nas escolhas de Mário Pinto de Andrade, recomendaria sem hesitar “A dominação colonial portuguesa", texto escrito em inglês com o pseudónimo de Abel Djassi, que apareceu em Londres em Junho de 1960; “A arma da teoria” o famoso e controverso discurso que pronunciou em Havana, em 6 de Janeiro de 1966; e “A cultura nacional” conferência pronunciada na Universidade de Syracusa, EUA, em 20 de Fevereiro de 1970. Aqui nos quedamos, por uns instantes.

“A dominação colonial portuguesa” é um libelo explicativo do que move os movimentos de libertação nas colónias portuguesas. Cabral começa por pôr na mesa os argumentos enunciados pelo regime de Salazar como os direitos históricos, a missão de civilização, a assimilação, a unidade nacional e depois rebate-os ponto por ponto, usando argumentos muito caros à corrente principal, à escala mundial, que advoga a descolonização. Tome-se a situação social, como ele a descreve: "99,7 % da população africana de Angola, Guiné e Moçambique é considerada não civilizada pelas leis coloniais portuguesas e 0,3 % é considerada assimilada. Para que uma pessoa não civilizada obtenha o estatuto de assimilada, tem de fazer prova de estabilidade económica e gozar do nível de vida mais elevado do que a maior parte da população de Portugal. Tem de viver à europeia, pagar impostos, cumprir o serviço militar e saber ler e escrever corretamente o português. Se os portugueses tivessem de preencher estas condições, mais de 50 % da população não teria direito ao estatuto de civilizado ou de assimilado". É uma argumentação contrastante, cortante, como vai aparecer no trabalho forçado: “Na Guiné, em Moçambique e Angola existe o trabalho forçado para os trabalhos públicos. Mas nestes dois últimos países estende-se também às companhias privadas. Todos os anos são alugados 250 mil angolanos para as plantações, sociedades mineiras e empresas de construção. Todos os anos 400 mil moçambicanos são submetidos ao trabalho forçado; entre eles 100 mil são exportados para as minas da África do Sul e das Rodésias. Henrique Galvão, um ex-inspetor da administração colonial, declarava que a situação atual é pior do que a criada pela escravatura”. Depois do quadro explicativo, enuncia as suas pretensões: “Nós, africanos das colónias portuguesas, lutamos contra o colonialismo português, para defender os direitos do nosso povo. Exigimos que Portugal siga o exemplo da Inglaterra, da França e da Bélgica e reconheça o direito dos povos que domina à autodeterminação e à independência. As organizações africanas anticolonialistas das colónias portuguesas, que representam as aspirações legítimas dos seus povos, querem restabelecer a dignidade humana dos africanos, a sua liberdade e o direito de decidirem do seu futuro”.

O discurso “A arma da teoria” é considerado pelos estudiosos do pensamento de Cabral como uma das suas peças superiores. Dirige-se ao auditório para informar os presentes sobre a situação concreta da luta nas três colónias portuguesas. Para incómodo de uma boa parte da assistência diz coisas como esta “A deficiência ideológica, para não dizer a falta total de ideologia, por parte dos movimentos de libertação nacional, constitui a maior fraqueza da nossa luta contra o imperialismo”. E introduz um novo conceito da luta de classes, de acordo com o prisma africano, lembra a quem o ouve o que é o modo de produção e como se estão a processar as transformações na estrutura social. E certamente perante um auditório já confuso com tanto anátema à vulgata marxista-leninista fala sobre o papel da pequena burguesia como o dinâmico impulsionador da vanguarda da consciência revolucionária e profere: “A pequena burguesia só tem um caminho: reforçar a sua consciência revolucionária, repudiar as tentações de emburguesamento, identificar-se com as classes trabalhadoras. Isto significa que, para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar-se como classe, para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence”.

“A libertação nacional, ato de cultura” é outro expoente do seu pensamento. Associa a libertação nacional a um ato de cultura. Como observa, o colonizador nega o processo histórico do colonizado, é o colonizador que determina o modo de produção. Este modo de produção representa o resultado da pesquisa incessante de um equilíbrio dinâmico entre o nível das forças produtivas e o regime de utilização social dessas forças. E aqui a história é também cultura. E escreve: “A cultura, seja quais forem as características ideológicas ou idealistas das suas manifestações, é um elemento essencial da história de um povo. É talvez a resultante dessa história como a flor é o resultado de uma planta. Como a história, ou porque é a história, a cultura tem como base material o nível das forças produtivas e o modo de produção. Mergulha as suas raízes no húmus da realidade material do meio em que se desenvolve e reflete a natureza orgânica da sociedade, podendo ser mais ou menos influenciada por fatores externos. Se a história permite conhecer a natureza e a extensão dos desequilíbrios e dos conflitos (económicos, políticos e sociais) que caracterizam a evolução de uma sociedade, a cultura permite saber quais foram as sínteses dinâmicas, elaboradas e fixadas pela consciência social para a solução desses conflitos, em cada etapa da evolução dessa mesma sociedade, em busca de sobrevivência e progresso”.

Deixa-se para o próximo texto um conjunto de referências a documentos mais datados, panfletos, palavras de ordem e as suas derradeiras mensagens.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10061: Notas de leitura (371): "Bissau, Entre o Amor e a Guerra", de Leonel C. Barreiros (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10069: Cartas do meu avô (10): Oitava carta: finalmente, jurista da CGD (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

[Imagem  à esquerda: cartaz  comemorativos dos 40 anos do MRPP -  Movimento Reorganizativo do Proletariado Portugues, cortesia do blogue Restos de Colecção, de José leite



Segundo  este blogue, o MRRP  [que em 26 de dezembro de 1976 deu origem ao PCTP / MRPP]  "publica 'Bandeira Vermelha' em 1970, como órgão teórico,  e 'Luta Popular' em 1971, como órgão de massas e órgão central ". 


(...) "O MRPP foi um partido muito activo antes do 25 de Abril de 1974, especialmente entre estudantes e jovens operários de Lisboa e sofreu a repressão das forças policiais, reivindicando como mártir Ribeiro Santos, um estudante assassinado pela polícia política durante uma manifestação ilegal em 12 de Outubro de 1972. Arnaldo Matos era o seu Secretário Geral" (...).


O MRPP, influente nessa época na academia portuguesa, e em particular na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (segundo o testemunho do nosso camarada J. L. Mendes Gomes, trabalhador-estudante até 1974/75), terá sido também a primeira das organizações políticas a liderar, a seguir ao 25 de abril de 1974, uma primeira manifestação de boicote ao embarque de soldados para o Ultramar, mais exatamente em 4 de Maio de 1974: 


 "O MRPP organiza a primeira manifestação de boicote ao embarque de soldados para as colónias. A Junta de Salvação Nacional previra a necessidade de envio de alguns batalhões de militares para substituirem a tropa portuguesa ainda em território africano e cujo período de mobilização já terminara. Pensava-se também que seria importante manter as Forças Armadas Portuguesas em África até final das negociações com os Movimentos de Libertação Africanos, com vista à independência dos territórios". [ Centro de Docu,entação 25 de Abril da Universidade de Coimbra]



A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à direita, com os netos]. 


As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)

B. Oitava quadra > O Quadro Técnico


Finalmente, a feroz irreveverência e espírito de luta maquiavélica e arrasadora dos MRPP conseguiu apoderar-se da universidade. 



Arquitectaram um curso impregnado das doutrinas de Mao e abriram de novo as portas, com professores oriundos dos mais variados sítios. Bastava-lhes jurar fidelidade aos ideais que reinavam e eram aceites como professores.

A competência não contava. O que importava era que tinham conseguido a aprovação do poder político reinante. Os cursos eram válidos. E as licenciaturas também.

Era preciso acabar o curso, de qualquer maneira. O resto da preparação que faltava, ficaria para depois. Com a experiência prática.


Naquele ano e meio de convulsão escolar, houve alunos que fizeram dezenas de cadeiras em catadupa. Com passagens administrativas à farta. Na faculdade de direito, nas clássicas e, pasme-se, em medicina.


Esse tsunami de licenciados à pressão entrou portas dentro das empresas e serviços públicos. 


Em 1974, na CGD [, Caixa Geral de Depósitos ] , havia meia dúzia de trabalhadores a frequentar cursos superiores e, alguns, o de direito.

Em 1976, irrompeu, nos quadros da Caixa, um movimento interno de trabalhadores recém-licenciados, chefiados pelos MRPP. Reivindicaram ao seu modo, junto da administração, o seu imediato ingresso no quadro técnico.



A pusilanimidade da administração, por receio do saneamento imediato, abriu - lhes as portas. De repente, a lista dos licenciados atingiu os trinta e tal.

O administrador encarregou-os de elaborarem o seu próprio escrutínio, para preenchimento da dúzia e meia de vagas abertas de propósito. Por causa da decidida descentralização de crédito à habitação, agricultura e pescas. Por todo o país.

A administração queria colocar um núcleo jurídico em cada filial de distrito. 



De novo, se desencadeou uma luta selvagem entre os candidatos. Havia-os com dois ou três anos de Caixa, acabadinhos de concluir o curso. Eu era o mais antigo, em todos os sentidos: Tinha já uns onze anos de serviço na Caixa. Tinha mais cadeiras obtidas dentro da normalidade escolar, antes das convulsões.


Apareceram e defenderam-se as mais desavergonhadas e aberrantes propostas oportunistas. Desde a abolição do critério de antiguidade na obtenção do curso, à da classificação final.

No final, felizmente, consegui ingressar no quadro técnico. Este feito representava uma melhoria enorme na minha condição. Só por isso, estava reparado e bem, todo o sofrimento e esforço para obter a licenciatura.



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Nota do editor:

Último poste da série > 20 e junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10052: Cartas do meu avô (9): Sétima carta: A universidade, o 25 de abril... (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)