Queridos amigos,
Avanço desde já que o livro do Manuel Lomba fará estalar alguma controvérsia, não propriamente pelo relatos da vida operacional mas pela miríade de considerações de índole política sobre tudo quanto se passou antes, durante e após a luta armada.
É um escritor que possui um domínio da língua, faz soltar os sons e liberta os sentidos na hora própria.
Há para ali parágrafos de raro valor, o tempo dirá. Estudou, esteve atento, colheu informação e não esconde o seu olhar peculiar sobre as coisas da Guiné.
Nunca me passara pelas mãos uma obra de tanta errância à mistura pelo gosto de contar e reviver as suas lembranças que não se apagam.
Um abraço do
Mário
A Batalha de Cufar Nalu
Beja Santos
É a primeira vez que leio um livro de memórias sobre a Guiné, em termos de vivência na guerra colonial, repertoriando igualmente a história da Guiné e os eventos mais salientes da luta armada. A pretexto de nos descrever um encadeamento de operações que durou para cima de dois meses para recuperar Cufar e pôr a respeito bases inimigas, “A Batalha de Cufar Nalu”, por Manuel Luís Lomba (Terras de Faria, Lda. 4755-204 – Faria, 2012), temos aqui um olhar muito pessoal de um homem que se cultivou e graças à sua vida profissional voltou à Guiné-Bissau.
O seu currículo vem expresso na badana do livro: em 1963 frequentou o curso de sargentos milicianos em Tavira, foi monitor de instrução n primeira escola de recrutas de 1964, no RI 13 (Vila Real) e a seguir foi mobilizado para a Guiné, pelo Regimento de Cavalaria 7, Lisboa, onde participou na formação e instrução operacional do BCAV 705, ficando incluído na CCAV 703; o batalhão desembarcou em Bissau e ficou aquartelado no forte da Amura como força de intervenção às ordens do comando-chefe; é graças a este estatuto que vai participar no conjunto de operações que ele designa por a batalha de Cufar Nalu, posteriormente foi colocada em Buruntuma, que ele igualmente releva nas suas memórias.
Descreve de forma vivacíssima os tratos de polé até chegar ao teatro de operações. Viajam no navio Benguela, cargueiro de 10 mil toneladas, concebido para o transporte de gado, com capacidade de alojamento da tripulação e de apenas 17 passageiros. Pois foi aqui que 19 jovens viajaram durante uma semana, estivados como gado. É espirituoso e a sua escrita ágil ajuda a perceber tudo:
Descreve de forma vivacíssima os tratos de polé até chegar ao teatro de operações. Viajam no navio Benguela, cargueiro de 10 mil toneladas, concebido para o transporte de gado, com capacidade de alojamento da tripulação e de apenas 17 passageiros. Pois foi aqui que 19 jovens viajaram durante uma semana, estivados como gado. É espirituoso e a sua escrita ágil ajuda a perceber tudo:
“O Benguela realizava connosco a vocação de navio negreiro; havia poucos anos que os mesmos porões carregavam levas de 2 a 3 mil angolanos e moçambicanos, agrilhoados, para o trabalho escravo, nas roças de cacau e nas obras públicas, em S. Tomé e Príncipe”.
E dá-nos conta de como ali chegou:
“De trabalhador da construção civil, a começar a talhar, por necessidade e iniciativa própria, o caminho de vida, fui reciclado, aceleradamente, em militar e combatente; durante quase dois anos, com o posto de furriel miliciano, na CCAV 703".
Mal chegados, são postos no ativo, concentrados no quartel de Bula, dependendo operacionalmente do BCAÇ 504, comandado por Hélio Felgas. Lá foi à frente de uma patrulha de reabastecimento, no contexto da operação Confiança, a cumprir a missão de desimpedimento da estrada entre Mansabá, Farim e Bissorã, enquanto outras companhias do seu batalhão mais o grupo de comandos Os Fantasmas cirandavam no Oio. Narra as peripécias ali vividas, os “Águias Negras” vinham com amor ao trabalho e prontos ao risco.
A primeira emboscada sofrida pela CCAV 703, comandada pelo capitão Fernando Lacerda, ocorreu na picada entre Manssabá e Bironque. Por ali andaram em estreita cooperação com a CCAÇ 675, comandada pelo capitão Tomé Pinto. Isto é o princípio de 5 meses na vida airada. O autor aqui suspende a deambulação para nos dar a sua versão de como se fundou a nacionalidade bissau-guineense, aproveitando a circunstância para nos dar o quadro evolutivo da luta armada. Posto o enquadramento histórico reconsiderou útil, o leitor é lançado nas batalhas de Cufar Nalu.
São despejados em 19 de Dezembro de 1964 em reforço do BCAÇ 619 (Catió) e da CCAÇ 6 (Bedanda) a missão é destruir a base da mata de Cufar Nalu. Lá vão em ondas, depois do bombardeamento dos T6, primeiro assalto, segundo e terceiro, as coisas não estavam a correr de feição, as duas primeiras vagas foram rechaçadas. Tem aqui lugar o episódio em que ele anda perdido com a sua secção e investe, dentro da mata, até uma tabanca onde os animais pareciam fazer frente aos assaltantes.
São despejados em 19 de Dezembro de 1964 em reforço do BCAÇ 619 (Catió) e da CCAÇ 6 (Bedanda) a missão é destruir a base da mata de Cufar Nalu. Lá vão em ondas, depois do bombardeamento dos T6, primeiro assalto, segundo e terceiro, as coisas não estavam a correr de feição, as duas primeiras vagas foram rechaçadas. Tem aqui lugar o episódio em que ele anda perdido com a sua secção e investe, dentro da mata, até uma tabanca onde os animais pareciam fazer frente aos assaltantes.
Vão guiados por Albino que pertencia à CCAÇ 13 comandada por João Bacar Djaló. Penetram no tarrafe, o Albino procura esquivá-los aos lugares onde os guerrilheiros estão emboscados. Uma sentinela é apeada do ponto de vigia, com um corte das carótidas. Viajam dentro de um túnel vegetal, desembocam numa cratera aberta por bomba de avião. Temos aqui páginas que poderão constar em qualquer antologia da literatura de guerra:
“Penetrámos numa galeria formado por mucibis e por poilões de grande porte, árvores abantesmas, nunca dantes imaginadas, os caules a interpenetrar-se e os troncos com ferimentos recentes, de estilhaços de outras bombas tugas, talvez das granadas de artilharia dos obuses instalados nos aquartelamentos de Cufar ou Bedanda, que não as desfolharam nem obstaram de manter sobre as nossas cabeças um tecto de verde luxuriante, infiltrado dos raios dourados do sol. Desembocava num pequeno trilho, exclusivo, com indícios ténues de circulação humana, começamos a palmilha-lo e deixamos de ouvir qualquer bulício, denunciador de aves, bichos ou turras. Então, começamos a ouvir o zunir dos motores dos bombardeiros T6, em aproximação à nossa retaguarda; da nossa frente começaram a chegar-nos, esbatidos pela distância ou pela elevada densidade florestal, o cacarejar intermitente das galinhas e os uivos dos cães. Lancei outro passa-palavra e o calafrio repetiu-se, ao confirmar-se a quebra, em permanência, do elo da nossa ligação pessoal à Companhia; estuguei o passo ao Albino e pusemo-nos o ciciar o ponto da situação.
A densidade florestal da Guiné opunha-se à propagação das ondas hertzianas. Procurei uma posição mais aberta e insistia a ciciar à minha “banana” alô, alô, cavaleiro 1, daqui cavaleiro 4; diga se me ouve, escuto! Senti o sangue a gelar, ao certificar-me que as nossas ligações etéreas não estavam perdidas, estavam cortadas (…) Lancei o passa palavra para o abandono imediato do conforto da cratera e dos abrigos disponibilizados pelos tugas, seguindo os vestígios de um pequeno trilho (…) Continuamos a progredir por essa amostra de trilho, que os turras teriam criado para seu uso exclusivo, envolvido por árvores de grande porte, que nos obrigavam a reconhecimentos redobrados, por oferecerem excelente proteção aos disparos, ou excelente obstáculo a eles, consoante o ponto de vista (…) Na tentativa de obstar aos disparos do armamento pesado dos turras, agi em tempo real no exercício do dever de comando, dando sinal ao bazuqueiro, a paliçada voou logo pelos ares, por uma granada-foguete, e pela voz “ao assalto!” . Um após outro desataram em correria, curvados e aos ziguezagues, pelos espaços franqueados daquela tabanca, a disparar sobre tudo o que mexia e a lançar granadas de mão ofensivas sobre tudo o que configurasse obstáculo. Gerou-se um turbilhão infernal nos espaços abertos entre moranças, misturas e alternância de explosões e tiros, a cadência dos nossos a superar largamente os dos defensores, um desvario de crianças e mulheres a gritar, num redemoinho de pó – gentes, cães, galinhas, porcos, cabras, a atropelar-se, numa roda viva. Um bode avantajado, em porte e chifres, saltou a terreiro, a cabrear, muito excitado e arremeteu à marrada contra o soldado à minha direita, seguindo-se um salto mortal, com uma bala metida na base dos ditos, a estatelar-se junto às vacas já tombadas, já alvos privilegiados dos impactos”.
É esta a descrição que Manuel Lomba nos dá da sua primeira arremetida na área do Cantanhez.
(Continua)
____________
Nota de CV
Vd. último poste da série de 19 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10546: Notas de leitura (420): "Guiné Portuguesa", por Avelino Teixeira da Mota (Mário Beja Santos)
A densidade florestal da Guiné opunha-se à propagação das ondas hertzianas. Procurei uma posição mais aberta e insistia a ciciar à minha “banana” alô, alô, cavaleiro 1, daqui cavaleiro 4; diga se me ouve, escuto! Senti o sangue a gelar, ao certificar-me que as nossas ligações etéreas não estavam perdidas, estavam cortadas (…) Lancei o passa palavra para o abandono imediato do conforto da cratera e dos abrigos disponibilizados pelos tugas, seguindo os vestígios de um pequeno trilho (…) Continuamos a progredir por essa amostra de trilho, que os turras teriam criado para seu uso exclusivo, envolvido por árvores de grande porte, que nos obrigavam a reconhecimentos redobrados, por oferecerem excelente proteção aos disparos, ou excelente obstáculo a eles, consoante o ponto de vista (…) Na tentativa de obstar aos disparos do armamento pesado dos turras, agi em tempo real no exercício do dever de comando, dando sinal ao bazuqueiro, a paliçada voou logo pelos ares, por uma granada-foguete, e pela voz “ao assalto!” . Um após outro desataram em correria, curvados e aos ziguezagues, pelos espaços franqueados daquela tabanca, a disparar sobre tudo o que mexia e a lançar granadas de mão ofensivas sobre tudo o que configurasse obstáculo. Gerou-se um turbilhão infernal nos espaços abertos entre moranças, misturas e alternância de explosões e tiros, a cadência dos nossos a superar largamente os dos defensores, um desvario de crianças e mulheres a gritar, num redemoinho de pó – gentes, cães, galinhas, porcos, cabras, a atropelar-se, numa roda viva. Um bode avantajado, em porte e chifres, saltou a terreiro, a cabrear, muito excitado e arremeteu à marrada contra o soldado à minha direita, seguindo-se um salto mortal, com uma bala metida na base dos ditos, a estatelar-se junto às vacas já tombadas, já alvos privilegiados dos impactos”.
É esta a descrição que Manuel Lomba nos dá da sua primeira arremetida na área do Cantanhez.
(Continua)
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Nota de CV
Vd. último poste da série de 19 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10546: Notas de leitura (420): "Guiné Portuguesa", por Avelino Teixeira da Mota (Mário Beja Santos)