sábado, 8 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12808: Convívios (567): Almoço de despedida do Inverno da Magnífica Tabanca da Linha, dia 20 de Março de 2014 no Guincho (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 7 de Março de 2014:

Viva Carlos!
Chegaram os dias de sol radioso, e com isso os prazeres da mastigagem em ambiente de camaradas, por isso, e apresar do trabalho que te dou, peço que publiques a convocatória que segue.

Um grande abraço
JD


CONVOCATÓRIA

É verdade, hoje o dia já sugere a magnífica estação primaveril que se aproxima, pelo que a MAGNÍFICA TABANCA DA LINHA convoca os seus responsáveis, aderentes e simpatizantes, para o almoço e encontro de despedida do Inverno, e anuncia triunfalmente, que desta vez o almoço é gratuito, apenas se paga a vista sobre a paisagem magnífica.

De facto, no próximo dia 20 de Março corrente, pelas 12H30, fica marcada a concentração no restaurante panorâmico de Oitavos, na estrada do Guincho, lá no alto de uma ligeira colina, de onde os olhares podem abranger a mata da Quinta da Marinha até ao Cabo Raso e o horizonte Atlântico até não sei onde, numa inusitada perfeição paisagística e em grande angular.
O preço do retrato, depois de muito bem negociado, foi fixado em 15 aéreos.

Que ninguém se iluda, é uma pechincha.
Há quem vá ao Rio de Janeiro, à Cidade do Cabo, à Tailândia, para gáudio dos olhares, mas pagam incomensuravelmente mais. E neste caso, vão de manhã, e podem regressar às suas casas no próprio dia, mas a mesma organização oferece bons aposentos na estalagem do Guincho.


O menu constará apenas de um prato - Bacalhau à Lagareiro, que será precedido por entradas simples, acompanhado por vinhos, refrigerantes ou águas, a que se sucedem doces e, a meu pedido, salada de frutas.
No final, haverá café, tanto para os mais calmos, como para os nervosos compulsivos. Aproveito para informar, de que o senhor Comandante já experimentava notáveis melhoras, mas um achaquezinho na máquina, veio provocar a persistência da baixa médica.
Operacional orgulhoso em matéria de comes e bebes, S. Exª. tem estado a obedecer a um rigoroso período de descanso, mas hoje, fazendo jus à justa fama (passe a redundância) de dar o exemplo para depois exigir a perfeição aos que o seguem devotadamente, mandou-me ir buscá-lo para, pessoalmente, aquilatar do êxito da operação.

E ficou satisfeito. Direi, até, muito satisfeito.
Tanto, que na ida, sentiu tremendas dores na coluna, e fez questão de se deitar no banco detrás, onde prosseguiu muito mais à vontade e sem perder a visibilidade sobre as raparigas jeitosas que floriam naquele percurso.
No regresso parecia outro, mais confiante, com o sorrizinho malandro que se lhe reconhece, e a antecipar o êxito para o próximo assalto.

O local é romântico e deslumbrante, pelo que às poucas senhoras que costumam dar alegria nas nossas paisagens, sugiro a quem possa, que se faça acompanhar pela respectiva, que o prazer a proporcionar será garantido.

Nota final muito importante: este Grupo Muchacho e Filhos, Lda, exige que faça a confirmação das presenças, impreterivelmente, até ao dia 17, pelo que até às 12H00 daquele dia terei que fazer a marcação, após o que não nos responsabilizamos pelos preços dos não confirmados.
À atenção do AGA.

Contactos:
Rosales - 914 421 882;
Dinis - 913 673 067;
ou pelos endereços de e-mail.

E peçam confirmação, just in case.
Antes de acabar, S. Exª. o nosso Comandante ordena-me a máxima divulgação, pelo que peço a todos que sejam solícitos e colaborantes.

E pronto, vão afinando as pontarias com as vossas mánicas de fotografias.
Abraços fraternos
JD
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12795: Convívios (566): 40º aniversário do regresso da CCAÇ 3547 (Os Répteis de Contuboel, 1972/74)... Santa Maria de Lamas, 31/5/2014

Guiné 63/74 - P12807: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (21): Caldas da Rainha, RI 5, os autocarros de fim de semana que iam até ao Porto e o maior cagaço que eu apanhei na minha vida... (Henrique Cerqueira)

1. Mensagem do Henrique Cerqueira [ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74, foto atual, à direita ]:

Data: 6 de março de 2014
Assunto: Os autocarros de fim de semana

Caro camarada Luís:
Ao ler o artigo do Tony Levezinho (*),  o qual adorei pela sua  maneira simples e bem descrita das nossas viagens de autocarro nos fins de semana da tropa, eu me lembrei de um acontecimento passado comigo quando estava na recruta nas Caldas da Rainha e que me provocou o meu primeiro e grande cagaço militar.


Pois, como era sabido por todos nós, a malta para conseguir ganhar o direito ao fim de semana tinha que dar à perna tanto na instrução como nos testes escritos. Até aí,  lá se ia conseguindo safar, mas o que nós não sabíamos era que, com bons testes ou não, era sempre necessário "recrutar" malta para as faxinas de fim de semana e aí qualquer situação de erro servia para sermos "recrutados".

Bom, eu como qualquer jovem normal da época cometi um erro, ou seja,  fui apanhado a urinar contra a parede da caserna durante um intervalo na instrução. Nesse momento caiu o Carmo e a Trindade e fui logo direitinho encaminhado ao oficial de dia que me sancionou, com uma carecada e corte do fim de semana.

Quero aqui lembrar que foi exatamente nessa semana que nasceu o meu filho Miguel, ou seja em 9 de Setembro de 1971. Para mim foi um drama dos diabos e tentei junto do comando falar ao coração,  a ver se pelo menos o fim de semana se salvava . Não senhor, o que eu fiz foi "gravíssimo", daí o castigo até tinha mais sentido, segundo o comandante, não é ?


Caldas da Raínha > c. 1970> Um típico autocarro de excursão, da época, pertencente à empresa Claras Transportes, uma das muitas empresas rodoviárias nacionalizadas em 1975... Fonte: Desconhecida.

Quando chegou o fim de semana, eu arranjei um esquema com um amigo e vizinho que estava comigo nas Caldas, já agora de seu nome Eusébio, e que mais tarde casou em Paço de Arcos e por lá ficou.
Então, ele como não vinha ao Porto de fim de semana, comprometeu-se ir a todas as formaturas por mim e creio que na altura também houve uma ajudinha dum cabo miliciano nesse esquema. E então tudo correu bem. Lá me desenfiei num dos tais autocarros que faziam os fins de semana e ala que se faz tarde para o Porto.

No regresso, saindo nós à meia noite da Cordoaria no Porto era para chegar às 7:00 horas às Caldas. Mais ao menos a metade do percurso o autocarro avariou (era um Volvo). Então o motorista, lá com muito sacrifício conseguiu ir até Coimbra para reparar a avaria na Volvo (daí eu me lembrar que era um Volvo) mas só seria visto às 8:00 horas.

Até aí estava tudo bem, íamos chegar tarde à "guerra" mas a culpa não era nossa, portanto até estava a ser divertido.

Então alguém se lembrou que era necessário telefonar para o quartel a avisar da situação. Como sabem, na altura não havia telemóveis. Há então que arranjar um voluntário para fazer o telefonema. Aqui o Henrique, que se tinha esquecido que estava desenfiado e pior ainda tinha-se esquecido que na tropa nem para comer se deve ser voluntário, resolve aceitar a tarefa de telefonar. Fui a um café, telefonei e quem me atende?... O oficial de dia que era um tenente do pior, militarista!

A primeira coisa que me diz interrompendo o meu discurso é :
- Ó militar, primeiro identifique-se e depois conte o que se passa.

Como fui apanhado de surpresa, eu me identifiquei direitinho como mandavam as normas e lá contei o sucedido.
- Tudo bem,  foi aceite e quando chegarem tudo se resolve.

Desliguei aliviado da tarefa, mas de imediato me dei conta da cavalada que tinha feito e pior ainda das pessoas que tinha envolvido no meu desenfianço.

Conclusão: andei todo acagaçado até chegar ao quartel, o  que veio a acontecer já no final da tarde desse dia devido ao atraso na reparação do autocarro, pois que este voltou a avariar pela segunda vez quase a chegar às Caldas.

Olhem, não sei se tinha uma santinha a velar por mim ou não, mas o meu amigo Eusébio lá se desenrascou durante o dia, o cabo miliciano deu uma grande ajuda mas aí também o meu alferes, comandante de grupo, foi um grande amigo. Ele era grande amigo de toda a malta, estava na tropa com contrato após já ter feito uma comissão. Lá me deu um raspanete e pelos vistos o tal tenente limitou-se a mandar um soldado avisar a companhia e, assim sendo,  lá me safei. Mas que apanhei o maior cagaço da minha vida, apanhei!..

Ah!,  também me safei da carecada.

Um abraço a todos e foi mais uma lembrança despoletada pelas estórias dos nossos camaradas do blogue, neste caso a do Tony Levezinho.
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Guiné 63/74 - P12806: Parabéns a você (700): António Marques Lopes, Cor Inf Ref DFA (Guiné, 1967/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12778: Parabéns a você (699): Luís R. Moreira, ex-Alf Mil Sapador do BART 2917 e BENG 447 (Guiné, 1970/71)

sexta-feira, 7 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12805: Notas de leitura (570): "A Guiné... dos mil trabalhos", em "O Mundo Português", por António Florindo de Oliveira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
Pergunto-me com sinceridade quantos textos vigorosos como este andarão por aí dispersos, talvez com a conotação de memórias pouco representativas.
No caso das de Florindo d’Oliveira não é verdade: com a presença portuguesa reduzida a Bolama e algumas praças e presídios, esta viagem da lancha “Honório Barreto” é de tal modo impressiva, colorida e de tão grande sentimento português e de respeito pelos valores guinéus, que merecia melhor sorte, tem grande sabor literário, é a história de um moço de 16 anos cheio de curiosidade e de grande abertura.
Oxalá os investigadores desinquietem o que de Florindo d’ Oliveira há de grandioso na aculturação dos portugueses.

Um abraço do
Mário


A Guiné… dos mil trabalhos, por António Florindo d’Oliveira (2)

Beja Santos

É um marujo adolescente, verdor e uma surpreendente curiosidade dão azo a que esse jovem tenha deambulado pela Guiné em 1894 e escreva, cheio de vivacidade as suas memórias na revista “O Mundo Português”, editada pela Agência Geral das Colónias, em vários números ao longo de 1939. É incrível como estes relatos caíram completamente no olvido, não vi até hoje uma menção a seu respeito. Anda a bordo da lancha-canhoneira “Honório Barreto”, já foram intimidar os Balantas, para lá do Impernal, desta feita vão subir o rio Geba. Não se sabe se tomou notas ou trabalha com a memória, a verdade é que de vez em quando os nomes das localidades saem defeituosos, como se vai ver.

Entraram no Geba, os ajudantes Manjacos vão dando informações, passam por Chume (Xime) e depois S. Belchior (que era posto militar) e depois Bambadinca. Tece os seguintes comentários sobre o Geba: “Até ao Corubal, afluente que parece vir do Sul, mas que depois de curvas caprichosas sobe para Leste a perder-se lá para a fronteira francesa, o rio é largo e de bem fácil navegação; e só depois estreita mais, mas dando-nos maior encanto ainda na aproximação das suas margens que, além da beleza com que se ataviam, nos dão a surpresa de saltar de chofre um hipopótamo, mergulhar um jacaré, aparecer uma corda de macacos e surgirem constantemente bandos de pássaros, numa chilreada ensurdecedora, sem nos darem tempo de ver, se são periquitos, papagaios, ou quaisquer outros. Ah! As margens do Geba!... Só por elas mereceria ir à Guiné!... E seguindo vimos Sambeliantá (refere-se seguramente a Sambel Nhantá, ao tempo sede de regulado) e depois Fá, terra que nunca me esqueceu”. Chegaram a Geba e fundearam, rodeado de chalupas. Fá era comando militar. No dia seguinte, surgem de todos os lados cavaleiros Fulas e descreve-os: “São mais bastos que formigas, e são o exército dos régulos que se apresentam ao governador, muito anchos de si e da sua indumentária. Habituados à convivências com os brancos, como auxiliares das forças do governo, e julgando-se por certo tropas de consideração, não escrupulizam de saltar para a "Honório Barreto", de a admirarem, trocando as suas impressões de maravilhados. Outros pretos admirariam com medo, máquinas e peças; estes fingem compreender o que admiram, a dar-se ares de uma cultura que só os seus chefes têm. Não admira que sejam tantos, pois estamos em pleno reino Fula. Que nas suas correrias a cavalo, fazendo acrobacias e dando tiros, imitam talvez o jogo da pólvora dos marroquinos, nos parecem como tal, é que não há dúvida; que nas suas vestes amplas e flutuantes parecem conservar a tradição árabe, também é certo. Mas se lhe perguntarem dirão que são para se darem ares de civilizados e não se confundirem com os outros que são… bárbaros, adoradores de manipanços, cães negros, como me dizia o que esteve a bordo e com quem conversava para conhecer os seus costumes”.

Florindo d’Oliveira confessa que trabalha com a sua memória. Dos vários régulos só se recorda do nome de dois: Bombú e Belá. Segue-se a descrição: “O segundo era uma figura vulgar que se confundia com os outros já vistos; mas Bombú, dizendo que era príncipe de raça, impressionava bastante pela bela figura e porte de inegável distinção. Apesar da sua tez acobreada, via-se que recebera uma educação especial, vestindo com elegância e riqueza e sabendo graduar os seus cumprimentos, desde o governador até às praças, a todos apertando a mão, com uma frase a propósito”. Os chefes Fulas ofereceram uma festa rija em terra, mostraram as suas habilidades de equitação. No dia seguinte regressou-se a Bissau. Houve uma avaria para os lados de Fá, a lancha lá se arrastou até S. Belchior, a passos de tartaruga.

A seguir, rumam para Cacine, antes porém visita o governador um régulo Bijagó. Nova descrição: “Estes Bijagós vêm periodicamente a Bolama fazer o seu negócio de laranjas, bananas, galinhas e quanto cultivam. Vêm nos seus dongos, trabalhados tão pitorescamente e que movem bem. Não é fácil dizer como vestem, pois apenas uma tanga de pele a que podemos chamar cinto, vem pelas nádegas por entre pernas, prender à frente, e… mais nada. As mulheres é que usam umas saias feitas de fibras, semelhantes às palhoças dos nossos camponeses, mas muito curtas e abertas, imitando perfeitamente as saias das nossas bailarinas de ópera. A sua vaidade está nas tatuagens a fogo ou a incisões e que são bastante artísticas, nas anilhas e braceletes de cobre”. Pois este régulo que vinha cumprimentar o governador apresentava-se “envolto como com um manto, em um cobertor de vistas vistosas, berrantes e cobrindo a régia cabeça com um chapéu alto”.

O comando militar no rio Cacine está para a Guiné como o nosso Guadiana está para Portugal, escreve Florindo d’Oliveira, a região é de Nalus, que se estendem também pelo território francês. Aproveita e faz um comentário para o prático (piloto da navegação) do "Honório Barreto": “Embora Manjaco, era homem relativamente civilizado, vestindo como qualquer cidadão da nossa Lisboa, de camisa muito lavada, com o seu colarinho, seus punhos e sua gravata, de casaco, de colete e calças de fazenda, calçava botas como qualquer de nós e cobria a cabeça com um chapéu que não lhe ficava pior que a qualquer criatura que o usasse. Exprimia-se num português relativamente correto e buscava os termos mais adequados com um certo orgulho, bem justificável. Provava saber do seu ofício e conhecia todo aquele intrincado de rios, canais, ilhas e ilhotas, como ninguém. Como pela relativa instrução que recebera, tudo desejava saber para a completar, tudo lhe perguntava do que se referia ao elemento em que vivíamos: terras e gentes, e de tudo informava com muito boa vontade. Quando eu ia ao leme, postado junto a mim, enquanto indicava o rumo, íamos conversando, permutando o nosso saber”. Ali estão dos dois em descanso, naquele dia o comandante do navio acompanhara o comandante militar Cacondó, o seu regresso seria já dentro da noite. O piloto fala dos Nalus a Florindo d’Oliveira: “Viviam da terra, mas eram muito selvagens e atrasados. Que só se queriam com os seus feitiços e ninguém queria nada com eles. Que eram bichos-do-mato. Destes Nalus eu só sabia o que contava a história, de terem dado a morte a Nuno Tristão, ali um pouco mais para baixo, junto do rio Nuno, que lhes conserva a memória, e que fica hoje já na Guiné francesa”. E tece uma crítica: “Não se compreende por que não é portuguesa toda a região que os nossos descobriram e em que sacrificaram as suas vidas!"

E depois o piloto fala dos Beafadas, bravos guerreiros, artistas do couro. Confundido com tanto muçulmanos, Beafadas, Mandingas e Fulas, Florindo d’Oliveira julga que todos têm a mesma origem, o piloto esclarece que não é assim: “Desde cá de baixo do Corubal, por Buba e Geba até lá acima, estão os Fulas; à direita destes e para a fronteira francesa estão Mandingas de Oio, que é do lado de cima, e Futafulas, do lado de baixo; à esquerda estão os Mandingas de Farim, lá para cima, e estes, os Beafadas de Guinala, cá para baixo. Juntando todos, têm a Guiné quase toda, pode crer!”.

É um relato precioso, injustificadamente esquecido, merecia melhor sorte. Aqui se lança o repto aos investigadores: retomem a leitura de Florindo d’Oliveira, está para ali a visão de um jovem entusiasmado com a região tropical que lhe coube na sorte. É um retrato de um homem do seu tempo, pois claro. Tratando com elevada dignidade os africanos que ele considera civilizados ou cultos. Esta Guiné dos mil trabalhos é uma memória belíssima, tocante e ousada. É uma injustiça e um crime de lesa-majestade deixá-la na poeira das bibliotecas.

Entrada do Pavilhão de Arte Indígena (Exposição do Mundo Português, 1940)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12788: Notas de leitura (569): "A Guiné... dos mil trabalhos", em "O Mundo Português", por António Florindo de Oliveira (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P12804: Manuscrito(s) (Luís Graça) (25): O Pepito que eu conheci... em 16/2/2006 e que, no fim da conversa de 1 hora, me fez um pedido algo insólito: um obus 14 para o Núcleo Museológico Memória de Guiledje...


Joana Graça (2014): Africa > Homenagem ao Pepito 1 > Acrílico com digital,  40 x 30 cm.



Joana Graça (2014): Tabanca Grande: caixa de histórias > Homenagem ao Pepito 2 > Técnica mista, colagens e digital,  30 x 20 x 15.

Fotos: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.



1. Conheci, pessoalmente, o Carlos Schwarz da Silva, Pepito (1949-20014),  em 16/2/2006...

Ele costumava, por essa altura do ano, vir a Lisboa, para passar os anos da sua mãe, Clara Schwarz, hoje uma veneranda senhora, de 99 anos, de origem judia, de pai polaco e mãe russa, mas portuguesa de gema, nascida em Lisboa, a 14 de fevereiro de 1915, casada com o caboverdiano Artur Augusto Silva (1912-1983).

Já nos conhecíamos do blogue, por intermédio do saudoso Zé Neto (1929-2007). Foi ele que me falou do Pepito e do seu projeto museológico de Guileje.

Como prometido, o Pepito esteve  connosco, nesse dia já longínquo de 16/2/2006:  com o Zé Neto (de manhã, na Fundação Marquês de Valle For) e comigo (à tarde, no meu local de trabalho, na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de  Lisboa).

Foi muita gentileza, da parte dele, ter-se deslocado só para me conhecer pessoalmente, dar-me notícias da sua terra (que ele amava com um coração muito grande), e falar-me, com entusiasmo contagiante, da menina dos seus olhos - que era então o Projecto Guiledje (com dj, como ele gostava de grafar Guileje).

Capa do livro de contos de Artur
Augusto Silva (1912-1983)
 (Bissau, edção de autor, 2006)
Na altura fez questão de presentear-me com o livro de contos do seu pai, Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983), um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade: O Cativeiro dos Bichos era o título de uma colectânea de 25 contos, selecionados pelos seus filhos, Henrique, João e Carlos Schwarz, alguns dos quais tinha sido escritos na prisão de Caxias, em 1966. O  livro tinha acabado de ser editado em Bissau (Fevereiro de 2006, edição de autor).

A conversa, de cerca de 1 hora, que tive com o Pepito (ninguém o conhecia, em Lisboa ou em Bissau, por Carlos Schwarz da Silva, nem quando fora ministro dos transportes num governo de transição antes do golpe de Estado de 1998) só pecou por ser curta... Mas deu para, de imediato, eu fazer mais um amigo guineense...

Bem razão tinha o capitão Zé Neto quando um mês antes tinha escrito sobre o Pepito o seguinte:

" (...) Eu conheço pessoalmente o engº Carlos Schwarz da Silva, o nosso Pepito. Passei uma tarde a conversar com ele em casa do nosso amigo comum, engº António Estácio. Eles foram colegas de infância e condiscípulos, pois o Estácio também é guineense.

"Tenho a pretensão de conhecer o carácter dos homens ao fim de dois dedos de conversa. Não tão cientificamente como tu, profissional do ramo, mas, como dizia o outro, raramente me engano.

"E asseguro-te que o Pepito é do melhor que há. Talvez um pouco sonhador, porque abdica duma vida confortável que poderia gozar cá em Portugal, em troca das mil e uma tarefas que desenvolve na sua querida Guiné em prol do seu povo. É fácil entender que o seu espírito superior choca com certo primitivismo que grassa naquela região, mas não desiste e essa é a qualidade que faz dele um amigo que muito admiro e a quem dispenso a minha modestíssima colaboração sem reticências.

"Quando ele vier, para o mês que vem, vais confirmar o quer te digo" (...).

De imediato comfirmei a opinião do Zé Neto, que era de facto um grande conhecedor da natureza humana. Para mim,foi um privilégio conhecer, ao vivo, uma pessoa com a qualidade humana do Pepito.




Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 2005 > Núcleo Museológico Memória de Guiledje > 

Antigos combatentes do Exército Português em Guileje, e que viviam no quartel.  O seu conhecimento do terreno permitiu mais facilmente a localização de cada um dos edifícios do quartel.

Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento  (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


2. No seguimento da nossa conversa, no meu gabinete, na Escola Nacional de Saúde Pública, o Pepito, jà quase à despedida, veio-me fazer um pedido algo insólito: ele precisava de um obus 14...

Para quê ? Para pôr no seu Núcleo Museológico Memória de Guileje, a criar a partir da reconstrução do nosso antigo aquartelamento, abandonado em 22/5/1973... E eu repliquei, no blogue, esse pedido:
- Camaradas, algum de vocês sabe de um velho obus 14, para aí abandonado num qualquer ferro-velho da tropa ? Se souberem, digam-nos... Levá-lo até Guileje será outra carga de trabalhos, mas até lá folgam as costas...



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > Agosto de 1972 > O temível obus 14 [140 mm] em ação... à noite.

(...) "O Obus 14 cm (...), de origem inglesa, foi  recebido em Portugal, em 1943, para equipar as Unidades de Artilharia pesada, substituindo os  Obuses 15 cm T.R. m/918 e 15 cm / 30 m/41. O Obus foi concebido para tracção auto exercida  pelo camião tractor de 8 ton A.E.C. (Matador)  4x4 MA/46 e pelo camião tractor de 8 ton Magirus  – Deutz 4x4 MA78. Serviu operacionalmente nos teatros de guerra da Guiné, Angola e Moçambique,  entre 1961 e 1974, tendo sido substituído, em 1987, pelo Obus M114 155mm/23"... O obus 14 pesava mais de 6 toneladas... Cada granada pesava c. 45 kg...  Tunha um alcance de c. 15 km... e uma cadência de tiro de 2 granadas por minuto... Tinha uma guarnição de 10 militares... (Fonte: sítio do  Exercito Português).

Foto: © Vasco Santos (2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.



Ele falou-me com entusiasmo do progresso das escavações efetuadas pelo pessoal da AD e população local no antigo aquarteklamento de Guileje. Nas limpezas e escavações até então feitas feitas,tinham já sido encontros e recuoperados objectos do quotidiano dos militares portugueses,  alguns curiosos como garrafas de cerveja com o rótulo de papel intacto ou garrafas de sumo de laranja - de um conhecido fabricante de refrigerantes de então, com sede em Venda do Pinheiro, Mafra...

Divertidas, para o Pepito, eram as manifestações de humor (e de carinho) dos fulas para com os seus antigos camaradas de guerra, metropolitanos: ele  referiu-se às gravações audio que estavam a fazer e em que os antigas combatentes fulas, que estiveram do lado das NT, imitavam descaradamente os tugas, quando estes estavam debaixo de pressão (na época ainda não se usava o termo stresse...):
- Seus c...lhos...! Seus ca...ões! Seus s... nas! Seus filhos... da p...!

O Pepito prometeu-me depois mandar alguns excertos dessas gravações áudio, reveladoras do superior sentido de humor fula... E comentei-lhe:
- Ora quem diria! ... Eu, pessoalmente, sempre os achei inteligentes e com grande capacidade para negociar e estabelecer alianças estratégicas.

O Pepito também corroborou este ponto de vista: os fulas eram um povo  orientado para o poder, aliaram-se ao Spínola contra o Amílcar Cabral; e depois ao Luís Cabral, a seguir à independência, contra os balantas...

Lisboa, ENSP/UNL, 13 de julho de 2007 >
 Pepito no meu gabinete. Foto  de L.G.
Como diria o Príncipe de Salinas, protagonista do filme O Leopardo (Visconti, 1963), eles eram os leopardos, os leões, enquanto os novos vencedores - que se aliaram ao PAIGC - não passavam de chacais e de hienas... Mesmo assim, eles tinham a consciência de que, presas e predadoras, têm de coexistir (mais ou menos pacificamente) naquela terra, que é a sua terra...

O Pepito mostrou-se, por outro lado, deveras impressionado com o que estava a acontecer com o nosso blogue e o ritmo de produção das nossas memórias... E eu, na altura, avancei com uma explicação de vulgata sociológica:

 (i) a nossa geração, os machos, tinham  mais ou menos à sua frente quinze anos a vinte de 
esperança média de vida;

(ii) para muitos de nós, a experiência da guerra colonial terá sido porventura o acontecimento maior, talvez o mais  emociante, das nossas vidas cinzentas;

(iii) tivemos a sorte de sobreviver e, ao fim de cinco anos, retomar a marcha do comboio, não contando com os que ficaram precocemente pelo caminho: os mortos, os traumatizados, os inadaptados, os desadaptados, os cacimbados;

(iv) muitos de nós já tinham deixado (ou estavam em vias de deixar) a vida activa e sentiam o vazio do presente: os filhos que partiram, os netos que só se veem nos dias festivos, as companheiras que sempre se recusaram a partilhar essa experiência, a guerra, que é uma actividade de machos;

(v) enfim, a memória seletiva do passado, a disponibilidade de tempo, a redescoberta da camaradagem, o apelo dos verdes anos..



Lisboa > Universidade Nova de Lisboa > Escola Nacional de Saúde Pública > 13 de Julho de 2006 > Três homens de Guileje!... Visita de cortesia e reunião de trabalho do Pepito (AD - Acção para o Desenvolvimento) - na foto, ao centro - e dois dos amigos que o apoiam no seu Projecto Guiledje: O capitão Zé Neto (à esquerda) e o coronel Nuno Rubim, especialista em história da artilharia (à direita). Os membros eram então membros, da primeira hora, da  nossa Tabanca Grande. O anfitrião fui eu.

Almoçámos juntos (tivémos a agradável surpresa da visita, embora rápida, do José Martins, que trabalhava, na épcoa, no MARN e que passou pela Av Padre Cruz a caminho do médico para uma consulta de rotina). Fizemos o ponto da situação do Projecto Guiledje, contámos histórias, conhecemo-nos pessoalmente (do grupo, eu só conhecia o Pepito, embora já tivesse falado ao telefone com o Zé Neto e o Nuno Rubim).

Tal como Pepito, o Zé Neto, infelizmente, já não está entre nós. O nosso querido Zé Neto (ex-2º sargento da CART 1613, Guileje, 1967/68, e na altura capitão reformado, com 10 anos de Macau), era o veterano da nossa tertúlia, na altura. Era um pessoa dotada  de uma invejável energia e de uma memória fabulosa.  Foi o primeiro "tertuliano" a falecer, em 2007.

 Quanto ao Nuno Rubim, ex-capitão da CCAÇ 726, Guileje, 1964/74, é bom que se recorde que foi um dos oficiais mais condecorados da Guiné (onde fez duas comissões). É hoje coronel na reforma e historiador militar. Teve a gentileza de me oferecer um das suas publicações, além de um CD-ROm com os seus trabalhos.... Por razões de saúde, também está retirado doas nossas lides bloguísticas. Falei-lhe, ainda há relativamente pouco tempo, pelo telefone.

Foto: © Luís Graça (2006). Todo os direitos reservados.


3. Sabendo das suas suas obrigações como diretor executuivo da AD e das dificuldades de comunicações da Guiné-Bissau com o mundo exterior, o Pepito surpreendeu-me, na altura,  ao dizer-me que não dispensava a visualização diária do nosso blogue. Achava que este fenómeno (a vontade de abrir o livro, o baú da memória...) também estava a acontecer na Guiné: os antigos combatentes, de um lado e do outro,  sentiam necessidade de falar do passado e passar a escrito (ou ao videogravador) as suas memórias... A necessidade de falar da luta, na cidade ou nas matas, com alguém...

Grande parte da memória (escrita) de guerra de libertação, na posse do PAIGC, dos seus militantes e ex-militantes, desapareceu, foi destruída, extraviou-se ou ficou reduzida ao Arquivo Amílcar Cabral, em boa hora tratado e preservado pela Fundação Mário Soares.

Há um sério risco da geração pós-independência ver amputada uma grande parte da memória do seu povo, a luta pela independência, a difícil construção da Guiné-Bissau, a revolução que devorou os seus filhos, a fabricação dos novos mitos, os ajustes de contas, o cinismo pós-revolucionário, a subversão de valores...

Daí que o Pepito e os seus colaboradores da AD - Acção para o Desenvolvimento estivessem  afanosamente a gravar depoimentos dos antigos combatentes e habitantes de Guileje... Começaram pelas bases, mais acessíveis e espontâneas... Numa segunda fase, esperavam poder entrevistar os dirigentes, os comandantes operacionais, os comissários políticos, quando as defesas psicológicas e as pressões dos pares se começassem a quebrar ou a esbater...

Respondi-lhe que nós também cá tínhamos esse problema: como dissera uma vez  o Jorge Cabral, ainda havia, na época, muito boa gente (militar) com culpa e vergonha de ter feito a guerra da Guiné, a começar pelos nossos oficiais superiores... A hierarquia militar não nos  parecia ainda disposta a dar a senha e a contra-senha de acesso aos arquivos militares da guerra colonial...

O que o Pepito e a sua ONG estavam então  a fazer era, na  minha opinião,  um trabalho meritório e sobretudo patriótico, com dividendos para o futuro... Foi o que transmiti ao Pepito; não há futuro para um povo que tenha perdido a memória, a historicidade e a identidade.  E o tempo urgia, porquanto a geração que fez a guerra colonial (ou a guerra de libertação, conforme os lados da barricada), estava a desaparecer... Mais rapidamente na Guiné, devido à menor esperança média de vida à nascença dos homens guineenses da geração da guerra...

Também falámos da  situação económica, social e política da Guiné-Bissau, nessa épcoca (2006).  Dos medos e das esperanças que os guineenses sentiam em relação ao futuro. Do retorno à pertença e à identidade étnicas, na ausência de um Estado de direito que garantisse a proteção e o respeito do indivíduo e da sua família... Dos terríveis acontecimentos de 1998, que levaram o Pepito e a família a refugiar-se em Cabo Verde, terra de seu pai... E do doloroso regresso a Bissau, um ano e tal depois, o retorno à casa, no bairro do Quelelé,  completamente pilhada, violada, destruída... Os livros, as fotografias, as memórias de uma vida...

O que foi espantoso, para mim,  foi  ouvir este homem, que era um profissional do optimismo, contar isto sem ódio, sem ressentimento, sem rancor, qause sem mágoa... Tinha vindo a recuperar algumas coisas, com emoção: uns negativos, umas cartas, uns livros... E isso era suficiente para lhe dar alento e força para retormar a picada de uma vida, fértil de acontecimentos, sonhos, emoções, projetos, realizações...



Seta de sinalização de um dos antigos espaldões da artilharia.
Foto: © Carlos Afeitos (2013).  Todo os direitos reservados.

Para além das suas obrigações como deputado (por Contuboel, e independente, se bem recordo), o que mais lhe dava gozo era viajar de jipe - apesar dos problemas de coluna de que já sofria, em consequência dos milhares de quilómetros feitos através das picadas da Guiné... E estar no sul, em Iemberém ou em Guileje, com os seus amigos e vizinhos... A Mata do Cantanhez, o futuro Parque Transfronteiriço do Cantanhez, era um espanto, com riquíssima fora e fauna - onde se incluíam elefantes e chimpanzés ! - e, felizmente, ainda então ao abrigo, devido ao seu isolamento, dos apetites vorazes da clique político-militar no poder em Bissau e em Conacri...

Last but not the least, o Pepito também gostaria de ter contactos com todas as companhias que passaram por Guileje e, se possível, ter acesso a uma resumo da sua actividade operacional na região. Disse-lhe que esse pedido não seria  difícil de conseguir... Mais difícil seria desencantar, adquirir, encaixotar e transportar o raio do obus 14!... E a verdade é que o tempo passou e a gente esqueceu-se mesmo do obus!... Mas seguramente não vamos esquecer-nos do nosso querido amigo Pepito!...Dele e do Zé Neto, o primeiro a falar-me do Pepito.

Até sempre, amigos Pepito e Zé Neto! Um alfabravo para o Nuno Rubim a quem desejo saúde e longa vida.
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Guiné 63/74 - P12803: Manuscrito(s) (Luís Graça) (24): O inferno do Xime: à memória do Vitor Manuel Amaro dos Santos (1944-2014), ex-cmdt da CART 2715 (Xime, 1970/71)

O inferno 
da antiga picada 
do Xime-Ponta do Inglês




por Luís Graça







À memória do Vitor Manuel Amaro dos Santos  
(22/11/1944-28/2/2014), 
ex-cmdt da CART 2715 (Xime, 1970/71);
e aos nossos bravos camaradas 
Cunha, Ribeiro, Soares, Monteiro, Oliveira e Camará,
caídos em combate, 
na Op Abencerragem Candente, Xime, 
em 26/11/1970.



Não havia nada, na antiga estrada
do Xime-Ponta do Inglês,
ligando o Geba ao Corubal.
Não havia nada naquele lugar
que era de tormento,
àquela hora mortal da madrugada.
Nada, onde um homem
pudesse afogar a sua sede,
matar a sua fome,
aliviar o seu sofrimento,
espantar o seu medo.
Nem sequer um banco de pedra
como aquele em que agora me sento,
frente ao Tejo, 
fresco, límpido, matinal,
e onde alguém escreveu, em letra garrafal: 

Amo-te, Marta, és a razão do meu viver!

Hoje estou à beira Tejo
e não vou a caminho da Foz do Corubal.
O Tejo corre para o Atlântico,
e o Corubal para o Geba.
Em Lisboa tenho o azul do céu,
que é o azul do desejo
e, dizem, o azul mais puro do mundo.
No Geba, tenho uma G3,
tarrafo, lodo, merda,
dois cantis, 

duas granadas,
um céu de bronze,
e mil e uma razões 

para (sobre)viver.


Nem poderia haver
nenhum banco de pedra,
nem nenhum jardim,
nem nenhuma Marta à minha espera.
Nem muito menos nenhuma Marta
que fosse a minha razão de viver.
Quando muito, um fantasma,
surgido do cacimbo matinal,
por detrás do baga-baga, 
armado de Kalash!

Não tinha, de resto, nenhuma razão de viver,
raison d’ètre

diria a minha copine,
se eu fosse refratário, ou desertor,
e tivesse dado o salto para França.
Não tinha nenhuma razão de viver, 

não, senhor,
nem de morrer,
nem de matar,
não tinha sequer nenhuma razão
para estar ali, 
àquela hora.

Não, não havia nada na antiga picada, 
abandonada,
do Xime-Ponta do Inglês.
Nem um pub irlandês
com a ruiva Guiness, delambida,
a piscar-te olho, 
a ti, herói português, 
com um improvável genoma celta.
Nem sequer uma tasca afadistada
da tua saudosa Lisboa da Mouraria,
com a perna da morena, 

 esbelta,
a faca na liga, 
deixando antever, 
lânguida,
os doces mistérios da sua floresta-galeria.

Não, não havia nada,
nem uma decrépita gasolineira
dos filmes do Faroeste da tua infância,
onde abastecer a tua Daimler,
salta pocinhas, minas e armadilhas,
em que ias de Bambadinca ao Xime,
simplesmente para beber uma cerveja,
ou por pura bravata,
noutra estação, 

noutra paragem,
sem escolta nem picagem,
num jogo de roleta russa.
Nem muito menos a Marta-Mátria,
republicana e laica, 
verde e rubra,
de peito feito às balas,
dando a volta à cabeça dos rapazes,
mancebos, 

de viril membro,
em passada a Festa das Sortes,
na Feira Grande de Setembro,
Vai mais um tirinho, ó freguês!

Não, não havia nada,
nem sequer uma simples mulher,
uma fêmea de larga bunda,
ou até uma simples mulher polícia sinaleira,
cata-ventos, 

bailarina,
redondinha, 

assexuada,
de pelo na venta 

e apito na boca,
no cruzamento dos quatro caminhos.

Não, já não vou de G3 em punho,
em defesa da honra das donzelas
da minha Pátria, 
chamem-se elas
Marta ou Mátria!
Não, já não vou, 
cego, surdo e mudo,
a correr, disposto a morrer,
com ganas de gritar Pátria ou Morte!,
na velha picada, abandonada,
do Xime-Ponta do Inglês 

onde não havia nada,
nem ao menos um tosco espanta-pardais,
especado no meio do capim,
em vez do campo de mancarra do fula.
Ou do teu jardim, 

do teu Éden.
Ou até uma simples seta,
de pau tosco,
a apontar a meta,
a apontar-te a direção do inferno,
a maldição bíblica do pecado,
omnipresente, 
obsessivamente eterno.

Havia, apenas, o fim da picada,
o mal absoluto,
o inferno.
À minha espera, 
à nossa espera.
Às 8h45 da manhã 

do dia 26 de Novembro
de mil novecentos e setenta.
Da era de Cristo.
… E Conacri ali tão perto!

O caminho mais curto para o inferno ?
Não o vês, ó bravo soldado português?!,
a picada, abandonada, do Xime-Ponta do Inglês,
onde Cristo seguramente nunca parou
nem amou, 
nem penou,
nem sofreu, 
nem pecou,
nem muito menos rezou.
O teu Cristo etnocêntrico, judeu, semita,
que nem sequer era caucasiano,
e nem muito menos sabia 

onde era a Senegâmbia
ou sequer o Império do Mal(i).

Pensar global, 
sonhar alto, 
agir local,
meu sacana…
Ou melhor ainda: não pensar, 
muito menos sonhar,
tiro instintivo, 

a varrer o capim.
Eis a ordem do capitão 

que tem acima o major,
na sua avioneta, 

no seu PCV,
e no topo o general, 
o Com-Chefe, 
o Caco Baldé,
Herr Spínola, 
o Homem Grande da Guiné.

E à frente de todos,
com o seu inseparável cachimbo,
o Seco Camará, 

seco de carnes, 
velho e valoroso guia das NT,
pau para toda a obra, 
cão rafeiro, 
cão de fila, 
sábio e matreiro,
mandinga do Xime,
herói da minha galeria de heróis,
verdadeiro líder, 
etimologicamente falando,
aquele que vai à frente mostrando o caminho.
E que vai morrer.

Nesta guerra de baixa intensidade,
não dês vazão 

ao Tratado das Paixões da Alma.
E por favor, seus cabrões, poupem-me as munições!
Da NATO!
Dizem que a glória te espera, no mato,
com direito a cruz de guerra com palma!

escreveu um serial killer
roqueteiro,
com fama de fazer saltar cabeças a 50 metros,
ao longo da alameda dos bissilões.
Vai para casa, tuga, 
lá na cidade,
que a Marta, a tua namorada, 
põe-te os cornos!

Não, não havia nada
naquela picada, 

quinta-feira, 6 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12802: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (1): Monte Real, 8 de Junho de 2013, o primeiro contacto com a Tertúlia

1. Em mensagem do dia 24 de Fevereiro de 2014, o nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974), enviou-nos o primeiro texto para a sua série Acordar memórias:


ACORDAR MEMÓRIAS

1 - O PRIMEIRO CONTACTO COM A TERTÚLIA

Depois de há quase 40 anos ter deixado para trás a Guiné e o serviço militar obrigatório, com o sentimento de um esforço inglório e vão (que me tinha sido exigido em favor da Pátria, por um regime político e um governo que deplorava), enlevado no sonho de um país renovado, livre, democrático e feliz, que a “Revolução de 25 de Abril” prometia e ter optado pelo afastamento e esquecimento de tudo o que se relacionasse com a tropa e me recordasse a minha condição de ex-combatente na Guiné, talvez porque as desilusões tenham chegado a um ponto nunca esperado, iria estar pela primeira vez num encontro convívio de ex-combatentes da Guiné, que faziam parte de um Blogue que descobrira recentemente.

Se, há alguns meses, me dissessem que isto iria acontecer, eu negaria. Não estava nos meus interesses e planos.
O que se passara entretanto para mudar de atitude? Mais à frente explicarei.


Bissau, Maio de 1974 – Zona dos edifícios comerciais da baixa, perto da UDIB. Após os acontecimentos de 26 de Abril de 1974 em Bissau, principalmente após a chegada do Brigadeiro Carlos Fabião, as manifestações anticoloniais começaram a tomar expressões bem visíveis, fazendo-nos sentir que estávamos a mais e deveríamos regressar quanto antes à nossa terra. Era um sentimento que se contagiava.


8 de Junho de 2013, aqui estava eu agora em Monte Real, timidamente, como é o meu padrão de comportamento quando entre estranhos. Para melhor me integrar, tinha decidido que iria participar na missa planeada para início do encontro na pequena capela das Termas. Neste ambiente não me iria sentir tão deslocado. Já conhecia duas das pessoas presentes: o Joaquim Mexia Alves e o jovem padre Manuel Henriques. Depois, havia o sentimento de que naquela Assembleia seriamos irmãos em Cristo, reunidos, para na comunhão da mesma fé, celebrarmos a Eucaristia de Ação de Graças pelo dom da vida, da nossa, da dos ausentes e sufragando a daqueles que já partiram. Foi uma boa opção. E foi um bom começo! 


Capela de Sta. Rita de Cássia –Termas de Monte Real – (Com a devida vénia ao seu autor, Joaquim Mexia Alves) 

Monte Real, 8 de Junho de 2013 - VIII Encontro da Tertúlia - Joaquim Luís Fernandes à direita da foto
Foto: Rui Silva

E mais uma surpreendente coincidência desse dia, veio adensar (ou iluminar) o meu espírito: - A Igreja celebrava, nessa data, o Memorial do Imaculado Coração de Maria, que relacionei com alguns dos postes lidos na véspera: (P7059 ; P8964; P10030), do camarada José da Câmara, que me impressionaram, recordando-me “A Senhora que nunca nos abandonou” e que, por sua vez, tinha relacionado com uma experiência sensorial/emotiva, vivida há uns 5 anos, que me “transportou” às matas do Balenguerez – um dia escreverei sobre isso.

(Quando as vivências pessoais se tornam quase evidências e sustentam o sentimento da Fé)

Maio de 1973- Orla sul da Península do Balenguerez, próximo de Bamoial, entre Teixeira Pinto e Cacheu. A intensa atividade operacional que nos era exigida, em perigosas e duríssimas missões, levou-nos algumas vezes ao quase limite das forças, próximos da exaustão e da loucura.

O que se seguiu não irei descrever com minúcia. Assisti a efusivos cumprimentos e abraços entre camaradas de tertúlia ou de armas, que deixavam transparecer boa disposição, grande camaradagem e amizade. Também me senti bem acolhido pela simpatia que me dispensavam, mas eu ainda não era daquela guerra; tinha caído ali um pouco de paraquedas e a razão principal que aí me levara estava a ser defraudada.
O que me tinha atraído a Monte Real era a possibilidade de poder encontrar algum ex-camarada, que me desse notícias daqueles rapazes com quem tinha partilhado, há 40 anos, medos e sacrifícios, nessas sofridas, perigosas e infindáveis caminhadas, nas matas da Guiné, da assombrosa Península do Balenguerez até às “barbas” da tenebrosa Caboiana.
Sentia e sinto a necessidade de saber deles, de os encontrar e estar com eles, para lhes manifestar o meu apreço e sentimento de gratidão, pela forma respeitosa com que me aceitaram no grupo (“os Americanos” 4.º Pel/CCaç 3461), se submeteram ao meu comando, sendo eu mais novo e inexperiente e me ajudaram a crescer. Tanto que haveria para falarmos e celebrarmos... Mas nem um encontrei.


Teixeira Pinto – 24 de Julho de 1973 – Desfile de continência aos ilustres Comandantes e Chefes na Tribuna de Honra, no dia da elevação da vila à categoria de cidade. (A função faz o órgão... e o figurão) – O meu Pelotão. 


Perante esta circunstância, limitei-me a indagar nos presentes os que tivessem estado em Teixeira Pinto e me falassem das suas vivências nesse local, mas também pouco consegui. Porém, o ambiente foi-me agradável. Boa comida e bebida, os convivas da mesa foram próximos, como se sempre nos conhecêssemos e tudo acabou bem. Este encontro foi para mim uma imersão e uma aprendizagem e vim carregado de livros.
Iria levar por diante uma nova etapa, depois de 40 anos de esquecimento. Iria acordar as minhas memórias e predispor-me a reviver a Guiné daquele tempo, onde muito sofrera, mas onde também fora feliz.

Depois de 10 meses de Teixeira Pinto, onde fui usado como carne para canhão e me atribuíram as mais perigosas missões, para as quais não tinha sido preparado, mas que “cumpri” bem, fui agraciado pela sorte e cumpri 10 meses em Bissau, como oficial de justiça, nos Adidos em Brá. Quase civil e com a companhias da minha mulher.

(Continua)

Guiné 63/74 - P12801: Memória dos lugares (264): Canquelifá, Agosto de 1970 a Maio de 1972, no tempo da CCAV 2748/BCAV 2922 (Francisco Palma)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Palma (ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCAV 2748 / BCAV 2922, Canquelifá, 1970/72), com data de 25 de Fevereiro de 2014:

Estimados Camaradas e amigos Luís Graça e Carlos Vinhal
A quem peço o favor da divulgação dirigida a todos os camaradas blogueiros e tabanqueiros e a quem mais tiver a curiosidade.

Não tendo grandes dotes para a explanação escrita, mas passados 42 anos do meu regresso, e apesar de ter acionado uma mina anticarro e ser Deficiente das Forças Armadas com 30,58% , não queria deixar de mostrar a muita gente que a Guerra Ultramarina dos Soldados Portugueses no TO da Guiné, não se limitava a passar férias nem tão somente a matar e a morrer e muito menos a estagiar dentro do arame farpado, como alguém já escreveu.
De facto para alem das saídas quotidianas para o mato a patrulhar e zelar pela segurança da população, ao responder aos ataques de aquartelamentos efetuados pelas tropas inimigas e todas as contingências do dia a dia e noites sem dormir, ainda havia tempo para conviver com as populações indígenas, e receber e dar carinhos às crianças e "Bajudas" e conviver com os adultos, os chamados Homens e Mulheres Grandes.

Escolhi algumas das minhas fotos pessoais para demonstrar que o ambiente dentro do arame era bastante amigo e afável entre a população e os militares da CCAV 2748 do BCAV 2922,  no período de Agosto 1970 a Maio 1972, em Canquelifá, Leste da Guiné.

Francisco Palma
Condutor Auto-Rodas







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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12684: Memória dos lugares (263): O Xime, ao tempo da CART 2520 (1969/71), comandada pelo cap mil António dos Santos Maltez, natural de Aveiro (Renato Monteiro)

Guiné 63/74 - P12800: Blogoterapia (250): Assim, com muita honra, sou um "tabanqueiro", e só tenho pena de a falta de tempo me impedir de participar com mais assiduidade (Adriano Lima, Cor Inf Ref)

1. Mensagem do nosso tertuliano e camarada Adriano Miranda Lima (Cor Inf Ref, que cumpriu as suas comissões de serviço em Angola e Moçambique), chegada hoje, 6 de Março de 2014, ao nosso Blogue, a propósito do trabalho de Pedro Rosa Mendes: "Guiné-Bissau: Respostas de paz à impunidade e exclusão", que fizemos circular pela tertúlia:

Meus caros:

Sou membro de um blogue (http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/) de ex-militares de unidades militares portuguesas que serviram na Guiné durante a guerra colonial. Os membros do blogue, na sua maioria esmagadora cidadãos que cumpriram o serviço militar obrigatório, são designados por "tabanqueiros", termo que advém da tabanca guineense. Embora eu não tenha prestado serviço na Guiné, o editor do blogue e seus colaborantes tiveram a gentileza de me aceitarem como tabanqueiro, pela circunstância de me ter cruzado acidentalmente com eles por ocasião de uma pesquisa que efectuei no espaço cibernético. Assim, com muita honra, sou um "tabanqueiro", e só tenho pena de a falta de tempo me impedir de participar com mais assiduidade.

É um blogue muito participado e com actividade bastante meritória. Esses antigos ex-militares, não obstante as circunstâncias em que conheceram e viveram na Guiné durante 2 anos das suas vidas, ficaram tão emocionalmente ligados àquela terra que quase se pode dizer que têm nela uma segunda pátria, ou uma pátria adoptiva. O facto de terem andado de armas na mão contra um "inimigo" declarado pelo poder político de então não lhes obscureceu a consciência nem os impediu de separar o trigo do joio. Tanto que, passados mais de 40 anos, continuam a amar aquela terra e as suas gentes. São frequentes as viagens para matar as saudades da Guiné e recordar tempos que bem prefeririam ter sido de paz e concórdia entre todos. E é por isso que não faltam também gestos e iniciativas de solidariedade, individuais ou colectivas, para com as gentes da Guiné, testemunho sincero de laços emocionais que o tempo não apaga. Creio que isto é uma marca distintiva do coração português.

De entre as actividades correntes do blogue, releva-se a divulgação de factos, notícias e publicações sobre a vida daquele país, cujas vicissitudes por que tem passado são acompanhadas com o coração compungido, tal o anseio de ver aquela terra enveredar por um rumo diferente, como bem merecem as suas amáveis e pacíficas gentes.

Este intróito serve para vos enviar um trabalho sobre a Guiné-Bissau da autoria de Pedro Rosa Mendes, divulgado pelo blogue. Leiam quando tiverem oportunidade e reencaminhem se bem o entenderem.

Um abraço
Adriano


2. Comentário do editor CV:

Os nossos leitores vão perdoar-nos esta descarada imodéstia, mas não podíamos deixar de publicar esta mensagem do nosso camarada e amigo Adriano Lima, Cor Inf Ref.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12756: Blogoterapia (249): Reflexões sobre a vida e a morte (Juvenal Amado, Galomaro, 1971/74)

Guiné 63/74 - P12799: Agenda cultural (303): Vila Nova de Famalicão > Ciclo de Conferências 2014 > Ideias e práticas do colonialismo português: dos fins do séc. XIX até 1974 > 14 de março de 2014, 21h30 > Conferência do prof doutor Paulo Jorge Fernandes (CEAUP): "As Ideias Colonialistas de Aires Ornelas"




Vila Nova de Famalicão > Ciclo de Conferências 2014 > Ideias e práticas do colonialismo português: dos fins do séc. XIX até 1974 > 14 de março de 2014, 21h30 > Cinferência do prof doutor Paulo Jorge Fernandes: "As Ideias Colonialistas de Aires Ornelas".


Sobre o militar e o políitico Aires de Ornelas (Funchal, 1866-Lisboa, 1930) vd aqui.

Aires de Ornelas (1866-1930), destacado militar, político e escritor do último período
da Monarquia Constitucional Portuguesa. Efígie em nota de cem escudos, em circulação
em Moçambique na época colonial. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikipédia.

1. Divulgação, a pedido do Museu Bernardino Machado.

Entretanto, decorreu já. no passao dia 14 de fevereiro, a primeira conferência deste ciclo subordinado ao título Ideias e práticas do colonialismo português: dos fins do séc. XIX até 1974.

O primeiro conferencista foi  o prof. Adriano Vasco Rodrigues, investigador do Centro de Estudos Africanos da Faculdade de Letras do Porto [, CEAUP]. Apresneta-se a seguir uma súmula da sua intervenção, de acordo o texto inserido na página do Museu Bernardino Macahadio:

Vivências de Angola

(...) O prof. Vasco Rodrigues considerou que “as nossas colónias não foram paraísos” e, por outro lado, recorrendo à autoridade historiográfica, “não é nas colónias que o império se perde; é na metrópole”.

Anunciando o processo da colonização no seu processo inicial face aos descobrimentos, o prof. Vasco Rodrigues, para além de analisar o processo de descolonização a seguir ao pós-25 de Abril, considerando que a colonização não acabou, mas continuando noutros moldes, evocou que o que então aconteceu no início do século XX foi a “rapina de África” dos estados europeus face ao seu mesmo imperialismo.

Se numa fase inicial os portugueses se fixaram ni litoral (caso de Angola), só numa fase posterior foram-se deslocando para o interior, através dos missionários e dos “pombeiros”, isto é, dos vendedores ambulantes.

Considerando a sua experiência pedagógica e científica, nomeadamente influenciado pela pedagogia francesa através dos “Cahiers Pédagogiques”, salientou o prof. Vasco Rodrigues que, quando saiu de Angola, esta detinha 11 liceus, face aos 4 quando chegou.

Salientou que Portugal foi o primeiro país europeu a ter o ensino primário obrigatório,  em Angola. Em termos sociais, Angola era a “terra das macas”, isto é, era a terra das irritações, das zangas, das explosões, das invejas, tudo isto provocado pelas sucessivas depressões.

Para além do problema da compreensão da linguagem (verificado na política da integração), a sociedade angolana era uma terra de bom-humor, da má-língua contundente, assim como de uma fantástica solidariedade.

A prepotência dos quadros administrativos, o desconhecimento da lei, a demora das respostas face aos processos administrativos de Lisboa, eram igualmente outras características da sociedade angolana." (...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de março de  2014 > Guiné 63/74 - P12798: Agenda cultural (305): O livro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau - Um Roteiro", co-autoria de Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, vai ser apresentado no próximo dia 9 de Abril de 2014, pelas 18 horas, no Palácio da Independência. Apresentadores: Julião Soares Sousa e Eduardo Costa Dias

Guiné 63/74 - P12798: Agenda cultural (303): O livro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau - Um Roteiro", co-autoria de Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, vai ser apresentado no próximo dia 9 de Abril de 2014, pelas 18 horas, no Palácio da Independência. Apresentadores: Julião Soares Sousa e Eduardo Costa Dias


"Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro" 

Sessão de apresentação no Palácio da Independência, 9 de Abril, pelas 18h 
Apresentadores: Julião Soares Sousa e Eduardo Costa Dias


As razões por que escrevemos este livro
A documentação histórica sobre a Guiné portuguesa já estava profundamente desatualizada quando se deu a independência. E a caminho das quatro décadas da independência de facto, a República da Guiné-Bissau continua a não dispor de uma narrativa em sequência desde a luta da libertação até acontecimentos recentes.

Atendendo a esta inaceitável lacuna, os autores procuraram nalgumas centenas de páginas compendiar o que, na sua lógica, pode ser entendido como mais relevante sob a presença dos portugueses na Guiné, como se desenrolou a guerra de libertação e o que tem sido a vida do novo Estado, logo sacudido por intentonas, cisões, a rutura entre a Guiné e Cabo Verde, uma guerra civil e crise endémicas intermináveis.

O arco histórico vai, pois, desde a chegada dos navegadores a esse território indefinido da Senegâmbia, em meados do século XV, até ao golpe de Estado de 12 de Abril de 2012.
Trata-se de um roteiro destinado a equipar estudiosos ou mesmo leitores meramente curiosos por essa fascinante e assombrosa Guiné, propiciar-lhes uma vasta gama de leituras e referências bibliográficas, mostrar os protagonistas envolvidos e determinantes (como é o caso de Amílcar Cabral).

Não é uma enciclopédia nem uma antologia de textos avulsos, é uma rosa-dos-ventos que pode vir a sugerir aos investigadores ideias para estudos mais abalizados. É um roteiro sem intuitos doutrinários, fica ao dispor principalmente dos leitores de Portugal e da Guiné-Bissau, já que os autores estão plenamente esperançados que este livro irá incitar estudos mais desenvolvidos que deem continuidade à modéstia do presente empreendimento.

Esta obra mais não pretende do que atrair mais e melhor estudo sobre a História da Guiné portuguesa e da Guiné-Bissau.

Francisco Henriques da Silva
Mário Beja Santos


Sobre os autores:

Francisco Henriques da Silva
Licenciado em História, foi Alferes Miliciano de Infantaria na Guiné, de 1968 a 1970. 
Ingressou no serviço diplomático em 1975.
Serviu nos Estados Unidos da América, em França, no Canadá e na Comissão Europeia na qualidade de perito nacional destacado.
Foi Director dos Serviços do Médio Oriente e Magrebe. 
Vice-Presidente do Instituto Camões e Director-Geral dos Assuntos Multilaterais do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Exerceu as funções de Embaixador na Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Índia, México e Hungria.
Possui a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.
É autor da obra "Crónicas dos (des)Feitos da Guiné" e de diversos outros trabalhos.


Mário Beja Santos
Licenciado em História, foi Alferes Miliciano de Infantaria na Guiné, de 1968 a 1970. 
Toda a sua vida profissional entre 1974 e 2012 esteve orientada para a política do consumidor.
É autor de mais de três dezenas de títulos relacionados com as temáticas da política dos consumidores.
Foi professor do ensino superior, colaborou durante mais de duas décadas em emissões radiofónicas ligadas à defesa do consumidor e foi autor e apresentador de programas televisivos e teve uma participação activa no consumo europeu.
Alguns dos seus últimos livros foram dedicados à Guiné: "Diário da Guiné - Na Terra dos Soncó", Diário da Guiné - O Tigre Vadio", "Mulher Grande", "A Viagem do Tangomau" e "Adeus, Até ao Meu Regresso", um levantamento da literatura sobre e de combatentes na Guiné.

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12791: Agenda cultural (304): Homenagem a Carlos Schwarz (Pepito), dia 7 de Março de 2014, pelas 18h00 no Auditório da Fundação Mário Soares, Rua de S. Bento, 160, Lisboa

Guiné 63/74 - P12797: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (20): Tavira e o CISMI: Nunca um fim-de-semana à inglesa rendia tanto como naquele tempo: tudo nele cabia - família, namorada, amigos e muito desejo de viver (Tony Levezinho, CCAÇ 12, 1969/71)




Tavira > Quartel da Atalaia > CISMI > 3º turno de 1968 > Pormenor do jantar do dia do juramento de bandeira... O Tony Levezinho, visto de perfil, aao centro, tendo em frente (lado direito da foto, a olhar para a máquina) o César Dias, que por sua vez tem à sua direita o Fernando Hipólito... Os três tiveram destinos diferentes: o Hipólito foi para Angola, o Levezinho e o Dias para a Guiné, um para Bambadinca e outro para Mansoa... Na foto original, há duas marcas de caneta de feltro, a vermelho e a verde, sinalizando o Tony e o César, respetivamente. 


Foto:: © César Dias (2014). Todos os direitos reservados.[Edição: L.G.]


1. Mensagem do António (Tony, para os amigos) Levezinho, com data de 3 do corrente

Assunto: À volta das memórias de Tavira (CISMI)


Olá,Luis

Tentei, na passada 6ª feira, deixar diretamente no blog um comentário a propósito do tema em título, mas fui mal sucedido.

Assim, peço-te o favor de encaminhares o texto abaixo.

Um beijo para a Alice e um grande abraço para ti.

Tony Levezinho



Tony Levezinho e Henriques, à civil,
Bambadinca, 1969. Foto: LG
2. Semana inglesa no CISMI, ou o até já, Tavira!

por Tony Levezinho (ex-fur mil at inf, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71) [, foto à esquerda, com o nosso futuro editor Luís Graça, Bambadinca, 1969]



No contexto da ronda que tem vindo a ser feita por aqueles que tiveram o início da sua carreira militar no CISMI, a propósito da semana-inglesa, recordo o seguinte:
Despois de uma semana em que as "diversões" eram muitas e variadas, chegava o sábado redentor.

Tudo na vida tem um preço, bem sabemos e, assim, tal dia começava com um crosse, bem puxado, com arma e que aumentava 1 km, em distância, em cada semana que passava.

Com efeito, o fim-de-semana começava já só perto das 13.00h. e só para aqueles que, depois de uniformizados com a farda nº 2 e prontos para a revista, em plena parada, beneficiavam do ámen do oficial de dia, isto é, não eram vítimas de qualquer reprensão quanto ao seu aprumo final, o que, a acontecer, podia significar o cancelamento do seu "passaporte".

A propósito da benevolência, ou da falta dela, por parte dos oficiais, o César lembrou, há dias, a lamentável figura do senhor tenente Madeira que, na sua antipática voz de falsete,  fazia questão em afirmar-se, perante os indefesos instruendos, com as atitudes mais mesquinhas e atentatórias da nossa dignidade de que era capaz e, neste campo, sou testemunha, ele podia muito (interrogo-me, hoje, como eram as suas competências militares em cenário de guerra – se é que ele alguma vez os experimentou?). Parecia até que a sua capacidade de atingir um orgasmo estava intimamente ligada e dependente de tal comportamento.

Mas adiante, porque os autocarros não esperavam…
Vencida a porta de armas lá estavam eles, os autocarros, perfilados e preparados para rumarem à capital (normalmente dois). Começava então outra chamada, esta com sabor bem diferente, uma vez que se destinava a distribuir os passageiros inscritos para a viagem.

Como já referido, esta iniciativa, semanal, era levada à prática por um cabo miliciano, jovem empreendedor, alfacinha, do bairro da Graça (lamento não recordar o seu nome) que viu uma janela de oportunidade, como agora se diz, com este tipo de iniciativa, uma vez que os clientes estavam garantidos.

Pela minha parte, durante os seis meses que passei em Tavira, na recruta  [, 3º turno de 1968, 3ª companhia,]  e na especialidade, apenas num fim-de-semana não fiz e também não houve a tal viagem para a liberdade. Na verdade, aconteceu aquilo que muitos ansiavam e que, alguns até, de tanto esperarem, já duvidavam se tal dia chegaria – Salazar é afastado do poder [, em 27 de setembro de 1968, 6ª feira,  por motivo de incapacidade, na sequência da  "queda da cadeira", em 3 de agosto de 1968,] e o "preço" imediato foi o de vermos as portas do CISMI fecharem-se, com toda a gente lá dentro, de prevenção.

Com o roncar dos motores das viaturas, em movimento, já ninguém duvidava que o fim-de-semana (à inglesa, pois claro) tinha começado. Vencida a serra do Caldeirão, alguns quilómetros mais à frente, tinha lugar a única paragem. Ali (já não recordo a localidade) serviam-se umas sandes de presunto divinais (delas ainda retenho o seu cheirinho tentador). A azáfama era grande, mas o dono da tenda, dada a rotina, estava treinado e preparado para a pacífica invasão militar semanal, tudo indicando que, também aqui, havia uma relação comercial com o promotor das viagens.

De regresso à estrada, quem conseguia, deixava-se embalar pelos balanços do autocarro e fazia uma soneca. A ânsia da chegada ao seu mundo real não permitia, no entanto, a uns quantos, tão retemperador momento. Confesso que me incluía no lote destes últimos.

Finalmente, entre as 18:00 e as 19:00.  ali estava ele, o Campo das Cebolas, a dar-nos as boas vindas, mas a lembrar também que, no dia seguinte, pelas 24:00h, os autocarros fariam o percurso inverso, para, logo pela manhã de 2ª feira, nos devolverem às incontornáveis práticas, sendo a primeira uma indesejada sessão de aplicação militar, quase sempre nas salinas - punição demasiada para tão poucas horas de fruição.

Apesar de tudo, ainda hoje acredito que nunca um fim-de-semana à inglesa rendia tanto como naquele tempo. Tudo nele cabia - família, namorada, amigos e muito desejo de viver.

(Quaisquer imprecisões e/ ou incorreções são, peço desculpa, devidas a este meio século que nos separa dos acontecimentos)

Um Grande Abraço,

Tony Levezinho




Lisboa > Campo das Cebolas, visto da Casa dos Bicos (sede da Fundação José Saramago) > 6 de outubro de 2013 > Em 1968, o aspecto do local onde paravam as camionetas que vinham de Tavira seria bastante diferente... Durante anos, o Campo das Cebolas funcionavam como terminal rodoviário e era uma zona degradada... Há um projeto atual, com a assinatura do arquiteto Carrilho da Graça,  para a sua requalificação... Prevê_se que as obras possam começar em 2015...

Foto:: © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados.