1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 13 de Março de 2014:
Memórias da CCAÇ 2616
4 - O RESPEITO PELA MORTE
O último semestre da CCaç 2616, em Buba, foi um tempo malfadado.
Todos os tipos de azares e desgraças, aconteceram. Além dos habituais
ataques de armas pesadas ao aquartelamento, que dado os abrigos e valas
existentes, não representavam grande perigo, houve toda a sorte de
acontecimentos funestos. A Companhia sofreu com tudo isso quatro
mortos e cerca de 20 feridos, alguns graves.
Em abono da verdade um morto e muitos feridos pertenciam a um Pelotão
doutra Companhia do Comando de Aldeia Formosa que estava a reforçar a
nossa. Este acidente foi provocado por uma granada de lança-granadas-foguete que depois de se lhe retirar a segurança para a introduzir na
arma, com alguma inclinação a um metro e pouco do chão podia explodir.
Foi isso que aconteceu junto à arrecadação do material provocando a
morte imediata dum soldado e ferimentos, alguns muito graves, em cerca
de quinze outros camaradas. Essa granada, penso que fabricada no Braço
de Prata, teve poucos meses de utilização pois terá provocado outros
acidentes noutros quartéis.
Houve de tudo, desde minas anti-pessoais e anti-carro a reencontros com
a guerrilha no mato a três acidentes graves com diferentes tipos de
granadas.
Este rol de desgraças penso que começou quando o Albano morreu e dois
amigos dele ficaram gravemente feridos com a explosão de uma granada
de mão.
Deste acidente penso que terá havido duas versões pelo que me abstenho
de contar qualquer delas. Foi um acidente infeliz como houve tantos na
Guiné.
Muitas armas e material explosivo, por vezes pouco seguro, deficiente
instrução militar. Meses de relativo relaxe em que parecia que a
guerra já tinha acabado, alternados com dias agitados por disparos e
rebentamentos. Meses dum sol tropical escaldante alternados com meses
de aguaceiros sem fim. A maior parte dos camaradas confinados durante
quase dois anos a viver no aquartelamento, sem possibilidade de
poderem gozar férias. Tudo isto criava condições propícias a todo o
tipo de acidentes.
O Albano era pescador de Setúbal tal como os outros dois camaradas.
Era discreto, diligente, trabalhador, popular entre todos
os militares do quartel. Era um tipo de homem capaz de se relacionar
com todos os outros, acima ou abaixo da sua escala hierárquica ou
social, sem fazer concessões a ninguém. Só homens superiores conseguem
ter este comportamento, porque para lá dos seus conhecimentos
literários, técnicos ou artísticos, conseguem ter a visão correta da
miséria e da grandeza dos seus semelhantes.
Tendo a idade da maioria de todos nós revelava já ser um homem mais
maduro. A isso não seria alheio o facto de já ser casado e ter duas
filhas e como tal ter tido cedo responsabilidades que obrigam um homem
a crescer.
Lembro-me do seu corpo estar depositado na pequena capela do quartel a
aguardar transporte para Bissau. Penso nisso, no choque que a sua
morte provocou em todos e apesar disso na solidão de morte do seu
corpo, sozinho na capela, abandonado por todos. Olho para o monitor do computador e parece que me revejo a passar
próximo da capela, que ficava ao lado da estrada que levava ao cais,
em frente à messe de oficiais, a pensar que o meu comportamento e o dos
outros não estava a ser correcto em relação o Albano.
Vinha-me à memória a morte dos meus avós e do meu padrinho, velados
em casa sempre com tanta gente à sua volta, toda a aldeia, parentes e
amigos das terras próximas a entrar e a sair para nos cumprimentar e
rezar pelos morto. Lembrava-me principalmente do meu avô materno
Francisco, um homem calmo, meigo, amigo de tratar da horta, e de ir à
"venda" beber um copo com os amigos. Para mim foi o melhor homem que
alguma vez conheci e sempre ouvi os maiores elogios acerca dele, bom
homem e um lavrador dos melhores.
Assisti à sua morte, recordo tudo, desde o quarto em que estava
deitado, às rezas antigas, que não conhecia, que a minha avó paterna
fez. Recordo também que quando expirou, a minha avó mandou vir um pão
(dos grandes pães que a minha mãe cozia) e foi partido em duas partes
para dar a dois pobres. Depois do funeral a minha mãe mandou dar um
quartilho de azeite a todas pessoas da aldeia que dele precisassem. Não sei ou já esqueci qual o significado daquele pão.
Lembro-me dessas noites longas de velório com a minha mãe, tias,
primas e outras mulheres sentadas em redor da urna sempre a rezar
terços. Os homens demoravam-se pouco, saiam e depois ficavam na rua a
falar das colheitas, dos animais, enfim das vidas em geral.
Na morte do camarada Albano, em Buba, faltou o amor e compaixão das
mulheres para dar sentido e dignidade à despedida.
Éramos homens e jovens, não dávamos valor às cerimonias e rituais que
existem e sempre existiram em todos os tipos de sociedades e têm um
papel importante para repor a paz e a harmonia entre os vivos e os
mortos.
As mulheres conhecem todos esses mistérios, sabem falar com os mortos
e não têm pudor em chorar e em manifestar as suas crenças e a sua fé.
Como dizia o poeta
Louis Aragon, a mulher é o futuro homem. Eu diria
que ela é o princípio e o fim do homem pois é ela que lhe dá a vida e
que no final o entrega e recomenda aos deuses.
Em Buba não tínhamos padre e não me recordo de alguém que o substituísse com
uma mensagem de despedida que reunisse todos os militares do quartel
ou pelo menos a Companhia. Sei lá, esse ou outro gesto, como toda a Companhia formada em silêncio em frente à capela onde estava o corpo.
Do que recordo, e aceito o contraditório de alguém que tenha memórias
diferentes, os corpos dos outros camaradas tiveram o mesmo triste
acompanhamento.
Um abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2013 >
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