quarta-feira, 18 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14384: Os nossos seres, saberes e lazeres (78): Relato de visita a Angra do Heroísmo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Tinha saudades de Angra do Heroísmo, foram sempre estadias meteóricas, sempre um pouco da cidade, sem lhe tomar o peso, sem lhe medir esta dimensão de cidade da Renascença, de encruzilhada das Índias, ponto focal da resistência aos Filipes que, à cautela, aqui mandaram construir uma das maiores fortalezas atlânticas.
Tive sorte com o tempo, foram os dias de Março com aguaceiros espúrios e com a humidade do costume.
Um dia completamente dedicado a Angra, a seguir um passeio costeiro pela Ribeirinha, Feteira, Porto Judeu, Fonte do Bastardo até Praia da Vitória, havia que respirar aqueles ares da juventude de Vitorino Nemésio. E o mais que vos contarei, impante de alegria.

Um abraço do
Mário


A mui leal, nobre e valente Angra do Heroísmo

Beja Santos

Há bem 15 anos que não visitava este rincão que a UNESCO consagrou como património mundial da humanidade e com justeza: encruzilhada das Índias Ocidentais e Orientais que aqui faziam aguada, se abasteciam de mantimentos vários, largavam doentes, aqui morreu Paulo da Gama, no regresso da viagem de 1498, aqui se fundou a primeira cidade moderna do Atlântico, nada das ruas enviesadas dos tempos medievos, são ruas desafogadas, parecem correr em direção à angra dos galeões que traziam a prata de Potosi; aquela Angra da mocidade de Garrett, para onde confluíram os liberais; e daqui partiram para o Mindelo, mais adiante, em Praia da Vitória foi desbaratada a armada miguelista, primeiro ponto para a derrocada no absolutismo. Mas há mais, como é evidente, por exemplo o Monte Brasil, sobranceiro à cidade marcada pela Renascença.


Começo o passeio pela Sé Catedral, profundamente afetada pelo sismo de 1980, e a seguir pelo incêndio de 1983. É também conhecida por Igreja do Santíssimo Salvador da Sé. É de grande imponência, mantém o seu estilo renascentista e vestígios do que escapou ao incêndio. Vale a pena ver a estante de leitura em estilo indo-português, em jacarandá do Brasil com marfim de baleia.


O fotógrafo é amador e canhestro, regula as entradas de luz por puro instinto, e por isso esbanja oportunidades na captação de imagens que contribuiriam para ver a riqueza deste tempo. Fica um detalhe, dá para perceber o tempo antigo e os fulgores de uma riqueza que já houve.


Este Santo António escapou ao incêndio, depois de algumas visitas a igrejas deu para perceber que os terceirenses têm por ele uma indesmentível devoção. Pena é a falta de nitidez da imagem, mas o fotógrafo amador comprazeu-se como o antigo sobressai das paredes restauradas, de uma alvura impressionante.


Do adro da Sé contempla-se esta fachada da Confederação Operária Terceirense, ali se inscreveu: Operários uni-vos! O socialista Antero de Quental, que se correspondeu com Marx, micaelense, seguramente se regozijaria.


Dá gosto ver o aprumo destas fachadas, as suas varandas em ferro, as cores garridas, o desvelo da manutenção, as bonitas calçadas. O visitante tem um prospeto na mão onde lê, a propósito do que tem em frente: “As primeiras casas surgiram nas colinas, em ruas íngremes e tortuosas, tendo no topo do Outeiro longe do mar, um castelo de defesa. Era a forma medieval de viver. Álvaro Martins Homem manda, em 1474, desviar e canalizar a ribeira que corria para a angra. Criada, assim, o indispensável sistema industrial da futura cidade, baseado na força hidráulica. Libertava o vale espaçoso para, de acordo com as normas do urbanismo do renascimento, os arruamentos obedecerem a uma malha reticulada e se organizarem por funções, de acordo com as necessidades do porto, cada vez mais frequentado por navios vindos dos quatro pontos cardeais”. Foi assim a fundação desta Angra, que uma Rainha apôs Heroísmo, em lembrança da muita lealdade às causas pátrias, Angra foi capital de D. António Prior do Crato e alavanca do liberalismo.


A fachada da Igreja da Misericórdia, debruçada sobre Angra, saiu tortinha mas dá para ver duas coisas: a belíssima calçada e o templo do século XVIII, neste local houve o primeiro hospital dos Açores, obra da Confraria do Espírito Santo e um dos seus fundadores chamou-se João Vaz Corte-Real, descobridor da Terra Nova.


Esta imagem é para puro desfrute dos sportinguistas, aqui têm a delegação fraterna. Umas ruas abaixo este fotógrafo apanhou a delegação do Benfica, não menos graciosa. Mas que não se tome esta estampa como um convite a rivalidades clubistas. O que se lê naquela lápide ao nível do primeiro andar é que ali viveu D. Violante do Canto, acérrima defensora da causa de D. António Prior do Crato, chegaram os espanhóis e a senhora não cedeu, e foi então obrigada a ir para Espanha. Que dos bons portugueses reze o nome.


Houve primeira visita ao Palácio dos Capitães Generais, primeiro foi colégio de Jesuítas, desde 1595, sabe-se como foram detestados pelo Marquês de Pombal que aproveitou a reforma dos capitães donatários e criou a titularidade de capitães generais, o primeiro foi D. Antão de Almada, que tem direito a retrato a óleo. Diga-se de passagem que foi uma visita ímpar conduzida por uma jovem cuidadosíssima, finda a visita conduziu-nos à Igreja do Colégio, também muito bela, mas foi num canto da sacristia que se encontrou esta preciosidade, minhas senhoras e meus senhores é tudo azulejaria de Delft, vale a pena descer ao pormenor.


Pede-se desculpa por algum sombreado, se é verdade que somos a potência mundial em azulejaria não se pode desmerecer da genialidade alheia, e aqui dá para perceber que os azulejos de Delft marcaram a história das artes decorativas, pela sua originalidade e cromatismos.


No jardim da cidade há esta memória de Garrett, ele aqui estudou na sua juventude e Angra não o esqueceu. O visitante fez uma pausa, é quase um septuagenário, já deambulou pela Praça Velha, olhou cá debaixo o Outeiro da Memória, calcorreou por estas ruas assombrosas, com nomes como Pisão, Garoupinha e Santo Espírito, falta-lhe energia para ir ao Convento de S. Gonçalo, um dos maiores dos Açores com rico revestimento em talha e tetos pintados, já se degustou no Palácio dos Capitães Generais, amanhã está previsto um passeio por metade da ilha, haverá tempo para pôr os pés no Monte Brasil e ver Angra do cimo, espraiando-se até S. Mateus e o seu belo porto. São mais dois pormenores de flores e plantas.


Sempre ouvi dizer que todas as árvores se dão bem nos Açores, basta recordar o delírio floral criado por José do Canto tanto no Parque Terra Nostra, junto às Furnas, em S. Miguel, como o jardim que tem o seu nome, em Ponta Delgada. A investigadora Filomena Mónica dedicou-lhe um livro espirituoso, foi um contemporâneo à frente do seu tempo. Mas este jardim tem aquelas pequenas jóias com que a natureza nos brindou. Estamos em Março e parece que a Primavera vai despontar, até os catos florescem, parece um cacho luxuriante, um quase centro de mesa, apoteótico.


E esta palmeira chinesa, não é uma delicadeza para os olhos, parece uma palmeira anã, de palmas irradiantes e um deslumbrante centro de mesa, também. A visita está feita, já se ganhou energia para o resto da deambulação, o tempo é açoriano, há assim umas abertas para o sol, abertas fugazes, a cobertura de chumbo é maioritária. Vamos praticar o pluralismo, mostrar o Benfica em construção angrense típica, em espaço da UNESCO, pois claro.


Só mais tarde, no enfiamento das fotos, é que se descobre, e com que pesar, que aquelas imagens do Teatro Angrense foram parar ao éter. E com que satisfação se procurou captá-las, andou-se lá dentro sempre a pensar naqueles teatros italianos de província, de uma riqueza contida, interiores bem decorados e com excelente acústica. Paciência, fica aqui o Benfica, em toda a sua vibração, em tons de rosa velho, há que pensar na maresia forte e constante que enferruja, dessora, calcina, enche de verdete e ferrugem. O Eusébio estaria aqui a meu lado feliz da vida, não tenho dúvidas. Amanhã há mais para ver e contar, ficam aqui pálidas referências à mais linda cidade dos Açores. Entrou-se no lusco-fusco, vejo nuns televisores imagens grotescas de mirones bem marrados nas touradas à corda, ando com os olhos no chão, há sempre novidades nesta calçada portuguesa, e enfio para o porto dos pescadores, para saborear os ruídos oceânicos, dei contas à vida, conheci esta cidade antes do sismo, é sumamente bom ver as diferenças para melhor, este património tão cuidado onde estão esmaltadas algumas das mais poderosas histórias da História de Portugal. Viva Angra e o seu heroísmo!
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14319: Os nossos seres, saberes e lazeres (77): A arquitetura de Haia em visita de médico (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14383: (Ex)citações (267): Será que nós estamos escrevendo milhares de postes à procura da juventudo "perdida" na guerra? (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71) com data de 12 de Março de 2015:

Olá Carlos,
Peço-te que coloques esta minha interpretação sobre a questão proveniente do outro lado do Atlântico.
O Vasco(*) é muito pertinente na abordagem do tema e, seguramente, valerá a pena conhecer as opiniões dos camaradas.
Também tenho costela de bairradino, pelo lado paterno, por isso evito falar de caçoilas, mas desejo-lhe muitas alegrias.

Com um abraço
JD

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O Vasco lança o repto para respondermos aqui no Blogue, se andamos à procura da juventude "perdida" durante a guerra, e eleva o nível da introspecção pelo cotejo da procura do tempo perdido, de Proust. Também dá tópicos para reflexão, como termos nascido numa "ilha", considerando a localização (influência mediterrânica), e o tempo do pós-guerra, de que o nosso "jardim" ficou imune às devastações ocorridas no resto da Europa.

A propósito da guerra-fria recorda uma linha de orientação adoptada por Salazar, que lançou a ideia neutral do Minho a Timor. Foi uma espécie de realidade da época, pois a neutralidade revelou-se comprometida com os dois lados da contenda, o que ia custando a invasão dos Açores. Também poucos saberão, que depois do 25 de Abril os timorenses, que viviam pacificamente sob a bandeira das quinas, quiseram continuar portugueses, e só uma campanha de dinamização entusiástica os levou à guerra forçada, para escolha do modelo político que a independência exigia.

Sobre a máquina de propaganda de Salazar, provavelmente, não foi tão eficiente para a juventude mais esclarecida que frequentava os meios académicos, quanto tem sido as lavagens aos cérebros desde a revolução, assente nos pressupostos dos 3 dês - descolonização, democratização e desenvolvimento. O primeiro pressuposto foi rápida e miseravelmente realizado, recheado de traições, crimes, e outras ignomínias; o segundo, corresponde a uma quimera, um mito bestial, e a população, nem de perto nem de longe, aceita a acusação de ter vivido acima das possibilidades, nem tem responsabilidades sobre a situação económico-financeira, nem foi consultada e confrontada com a adesão à CE (ex-CEE), nem passou mandatos para a venda de infra-estruturas públicas e estratégicas, pelo que as coisas têm acontecido marginais à democracia, mas em obediência a uma descontrolada "democracia-representativa" que aproveita a espertalhões; e sobre o terceiro pressuposto, como decorre do anterior, tudo tem acontecido sem rei nem ropue, à mercê do investimento estrangeiro (agora a China é que está a dar), ou do crédito internacional, que os sucessivos governos têm desbaratado com vaidade e seleccionada galhardia.

Ah! A nossa juventude?

Durante os 3 anos de tropa que nos eram impostos, dávamos largas à nossa alegria e energia, sempre que as oportunidades o permitiam. Construímos novas amizades e praticamos a solidariedade, de que os encontros de confraternização são bons exemplos, e acabado o serviço militar, entrámos no mercado de trabalho conforme competências, apetências e oportunidades de cada um, e constituímos famílias. Não me refiro aqui aos que tiveram a infelicidade de transportarem sequelas da guerra, que são casos muito especiais que a sociedade, ignorando a solidariedade democrática, parece ignorar.

A guerra parecia perdida "ab initio", mas a generosidade dos jovens portugueses veio a impor-se à admiração do mundo (mau grado algumas artimanhas que contrariaram a dignidade da condição militar pelo aproveitamento pessoal de oportunidades ilegítimas e ilegais. Não se queria saber, ao mesmo tempo, que as maiores colónias mostravam um processo de desenvolvimento económico-social com taxas de crescimento entre os 6 e os 15%, enquanto a metrópole registava médias de 3 a 4%. Outro factor a considerar, é que aquelas colónias registaram o crescimento da população branca para o dobro, pois passaram a catalizar o interesse de uma parte dos ex-combatentes, que ali procuraram futuro, e não usavam chicote, G-3, ou Bazuka. O ambiente era pluri-racial e cada vez mais havia nativos a ombrear com metropolitanos nas diferentes actividades laborais e culturais - mas neste âmbito que consideramos, as coisas não acontecem com a facilidade e velocidade do interruptor.

Meu caro Vasco, as minhas memórias (depois da Guiné fui trabalhar em Angola) incidem na experiência pessoal, na alegria e na realização no trabalho, na segurança e harmonia familiar, mas também na observação atenta (li vários relatórios do Banco de Angola), enquanto cotejava com a propaganda local, nacional, e nacionalista (lia o Comércio do Funchal, esquerdista, e o Expresso desde o n.º 1, para além de alguns ensaios escritos que encontrava), as primeiras eram dinâmicas, a última era muito pobre de ideias e soluções dogmáticas. Também integrei uma reduzida mas interessante tertúlia com interesses no bem comum. E sonhávamos. Deve haver, porém, gente com opinião diferente, sobretudo se vinculada a dogmas ideológicos.

Finalmente, é minha convicção, que aquelas sociedades pujantes caminhavam inexoravelmente para a auto-determinação, talvez com independência soberana.

Abraços fraternos
JD
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 12 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14351: Blogoterapia (266): O Senhor M. Proust escreveu milhares de páginas "À la recherche du temps perdu"... Será que nós estamos escrevendo milhares de postes, à procura da juventude "perdida" na guerra? (Vasco Pires, ex-alf mil art. cmdt do 23º Pel Art. Gadamael, 1970/72)

Último poste da série de 17 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14379: (Ex)citações (266): Considero, e para ser objectivo, que todos se estão borrifando para a Guiné-Bissau (Mário Vitorino Gaspar)

Guiné 63/74 - P14382: Convívios (658): Almoço do pessoal da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861, dia 18 de Abril de 2015 em Vila Real (António Nobre)

1. Mensagem do nosso camarada António Nobre (ex-Fur Mil da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861, Buba, Nhala e Binar, 1969/70), com data de 14 de Março de 201e:

Olá Carlos
Junto envio anuncio da realização de mais um encontro/convivio da rapaziada da CCaç 2464 que no periodo de Fevereiro de 69 a Dezembro de 1970 cumpriu serviço militar obrigatorio da Ex-Guiné Portiguesa.
Solicito pois faças a sua inserção no nosso Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.
 Um abraço
Antonio Nobre



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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14363: Convívios (657): XXXII Encontro do pessoal da CCAÇ 2317, dia 30 de Maio de 2015, no Restaurante Choupal dos Melros - Quinta dos Choupos - Fânzeres - Gondomar (Joaquim Gomes Soares)

Guiné 63/74 - P14381: Brunhoso há 50 anos (2): As Autoridades - Continuação (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 10 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), mandou-nos o segundo episódio de Brunhoso há 50 anos:


Brunhoso há 50 anos

 2 - As Autoridades (Continuação)

Tanto o padre como a professora, não sendo autoridades civis, tinham um poder inegável sobre a formação e o comportamento espiritual e cívico da população. Por esses motivos eram muito respeitados e temidos pela população.

A professora, natural da aldeia, pertencia a uma das famílias mais ricas da terra. Família muito religiosa que ajudava muito o padre, de quem até me parece que seriam parentes, no arranjo da igreja e nas cerimonias religiosas. Cultivavam um distanciamento conveniente e higiénico com a generalidade da população, sobretudo com os mais humildes.

Por caridade cristã, penso eu, davam algumas esmolas aos mais pobres e também reprimendas à mistura. Eram honestos e rigorosos no cumprimento das suas obrigações para com os outros, mesmo quando mais tarde, com a crise provocada pela emigração dos anos sessenta, alguns foram forçados a vender muitos bens.

Com a educação familiar que recebeu e com a formação que lhe deu o antigo regime, a professora tinha que ser autoritária, até um pouco despótica. Era boa professora no sentido do esforço e do trabalho a que não se poupava mas usava todos os meios de coação física, desde palmatoadas, bofetadas, puxões de orelhas e vara.

Os antigos alunos dela, da minha idade, mais velhos e outros mais novos, depois de tantos anos passados, dividem-se no seu julgamento, alguns ainda não esqueceram os maus tratos excessivos e o orgulho pelo cargo que desempenhava e pela família donde provinha, outros agradecem-lhe o esforço feito, apesar dos castigos severos.

O padre Zé merece um tratamento com nome, pois a sua fama perdurará mais do que a dos outros, pela sua bondade, pelo trato cordial que tinha com todos, pelas dádivas desinteressadas que diariamente fazia, pelas famosas zangas que tinha por vezes com o seu rebanho que se queria desviar dos caminhos de Deus.
Sendo filho de famílias ricas de uma aldeia próxima, com bastantes bens também em Brunhoso, manteve o pagamento da côngrua, segundo afirmava, apenas para que o povo não perdesse esse hábito, quando ele fosse substituído por morte ou outro motivo. Todos os ofícios religiosos, batizados, casamentos, funerais etc. eram grátis. Os mais desfavorecidos não pagavam a côngrua indo para ele um ou dos dias à apanha da amêndoa ou da azeitona para a terra dele, que distaria da nossa aldeia cerca de oito quilómetros.

Todos os anos iam também os lavradores com carros de vacas e outros trabalhadores, buscar lenha a essa aldeia para o seu aquecimento e da casa durante o ano. Recordo-me que estas tarefas entusiasmavam muito os meus conterrâneos porque o padre Zé, além de ser muito jovial, também os tratava bem, com vinho à farta, presunto, queijo e outros petiscos. Fumava muito e tinha o hábito de oferecer cigarros a uns e a outros, fumadores ou não fumadores. Os responsos que recebia nas missas por alma dos mortos distribuía-os pelos rapazes que o fossem a ajudar na celebração. Eu fui muitas vezes na esperança, nunca defraudada, de receber um escudo ou dois. Tínhamos que aprender todo aquele latinório e ajudá-lo com as galhetas e a campainha.

Não havia escola para isso, íamos aprendendo com a prática, por vezes era uma confusão terrível mas o padre, com a paciência dele, lá nos ia ensinando. Do latim que lhe ouvíamos e do que lhe tínhamos de lhe responder nada compreendíamos mas o importante era chegar ao fim da missa e que houvesse muitos responsos.

Vivia numa casa grande que à escala da dimensão da freguesia e descontando exageros de vária ordem, eu comparo com o Vaticano. Quando passava à porta da casa, parecia-me que havia sempre gente perto, gente a entrar e a sair, principalmente mulheres. Tinha uma governanta e uma criada efectivas, duas ou três vizinhas e uma sobrinha da governanta que muitas vezes iam lá a ajudar. Calculo o amor e desvelo dessas senhoras, tanto a lavar como a engomar os fatos do padre Zé, as calças, o casaco, a camisa, a roupa interior, mas sobretudo a cuidar-lhe dos paramentos, numa atitude quase devota, a casula, a túnica, a estola, a dalmática, a mitra, a batina, a alva.

Durante alguns anos viveu lá também um rapaz, filho duma mulher muito pobre, que ele recolheu, ainda muito novo que tinha hábitos de muita liberdade e alguma vadiagem. Não se entendiam mal, viveu lá até à idade adulta, com todo o conforto em alojamento e alimentação, a ouvir os bons conselhos do padre Zé, que nunca conseguiu alterar-lhe o gosto pela liberdade. Não sei se era por viver junto do padre mas lembro-me que lhe deram a alcunha de "Vigário". Em adulto, saiu da aldeia para outra terra do distrito e tornou-se um homem responsável e mais calmo.

Brunhoso tinha dois oragos, S. Leão e S. Lourenço, nesse tempo a aldeia guardava feriados nos seus dias, o padre dizia a missa e não havia outras cerimonias ou festividades. O grande dia da festa anual era dedicado a Santa Bárbara, que não era padroeira nem tinha direito a dia de feriado. Santa padroeira dos artilheiros e mineiros, os lavradores procuravam também junto dela defender-se das desgraças provocadas pelas tempestades, raios e trovões.

 Brunhoso - S. Lourenço

Brunhoso - Festa a Santa Bárbara 2007

Fotos: Com a devida vénia a Brunhoso - Mogadouro

De uns anos para os outros eram nomeados os mordomos que se iriam encarregar da organização das festividades. Todos os anos havia grandes zangas entre os mordomos e o padre Zé pois ele nunca queria admitir que houvesse arraial. Bem, ele arraial só com música até podia tolerar, não admitia é que ao som da música andassem rapazes e raparigas, homens e mulheres agarrados a dançar. Houve sempre este braço de ferro entre o padre e mordomos, mas embora todos lhe tivessem muito respeito e amizade, o povo, em tempos de tantas proibições, nunca quis privar os rapazes e raparigas de poderem expressar algum afecto e calor naquele abraço bailado ao som da música, que era a maior proximidade consentida entre solteiros.

Entre a sabedoria antiga das mulheres e dos homens e o puritanismo da Igreja, o Povo de Brunhoso impunha a sua vontade. O padre Zé perdia esse braço de ferro mas no ano seguinte ia tentar novamente impor a lei da Igreja, pois ele era casmurro. Voltava a perder, não se consegue impedir a corrente do rio, não se podem conter as forças da natureza.

Havia outra grande festa sobre a qual não se pronunciava, era o Entrudo, essa festa pagã tão antiga, que os homens do seu rebanho pareciam afastar-se, para passar a adorar outros deuses antigos e pagãos, mais permissivos como Dionísio e Baco, deuses loucos que não tinham as boas maneiras, nem a justiça severa, nem a promessa de salvação do Deus que ele sempre lhes procurava revelar.

Era um dia em que o padre Zé rezava para que eles voltassem de almas manchadas, mas dispostas ao arrependimento e a lavar-se no perdão que a Santa Madre Igreja garantia aos pecadores.

Nas mulheres ele confiava, como na sua mãe, que ficara tão contente quando ele foi padre, o sentimento das suas paroquianas era o mesmo da sua amada mãe, como não amar mais um homem que está tão próximo de Deus, que até pode falar com Ele. Elas não duvidavam dele, elas não queriam os deuses antigos, loucos, devassos, com todos os defeitos dos seus homens, que não lhes garantiam uma vida melhor no fim das suas vidas. O seu Deus tinha que ser o mesmo do padre Zé, o filho duma mulher, Maria, que ela criou com amor, como elas criaram os seus. As mulheres gostam de um Deus Filho, pois os filhos delas são todos deuses que elas adoram.

Já os homens, nesse tempo, não mostravam ter muita fé. Cumpriam os rituais mínimos por tradição, para não desagradar à comunidade e a um Deus desconhecido, porque não sabiam o que havia para além da morte e não lhes agradava que houvesse o silêncio e o nada. Havia ainda outra razão de carácter politico e social que os obrigava a ter alguma pratica religiosa, pelo menos ir à missa ao domingo. É que nesse tempo, todo o que fugia dessa pratica era considerado comunista, e isso era pior do que ser apelidado de ladrão ou desordeiro.

A propaganda anticomunista mais acérrima foi feita pela Igreja no tempo das cruzadas de Fátima como reação às barbaridades que os comunistas cometeram contra a Igreja quando tomaram o poder na Rússia. O antigo regime serviu-se dela para meter todos os opositores no mesmo saco e apelidá-los de comunistas pois a história dos males que tinham causado à Igreja ainda era recente. Era eu ainda menino e crente, por obediência familiar e escolar, recordo-me das novenas de Maio, à Nossa Senhora de Fátima, em que todos rezávamos pela conversão da Rússia. Quem conduzia estas cruzadas apostólicas era a professora primária, mais atenta, sensível e sintonizada com o regime e com o sofrimento da "Igreja do Silêncio", para lá das "cortinas de ferro".

Portugal, um pais tão religioso e católico, que alguns Papas proclamaram de Nação Fidelíssima, com tantas devotas e santas mulheres, somente tem uma santa, nascida e criada no país que se chama Beatriz da Silva.
Homens haverá meia dúzia ou pouco mais. Ou é Deus que não é justo ou os seus representantes no Vaticano. O padre Zé não foi um deus, foi um santo, podia ser canonizado se Portugal fosse um país mais rico e próximo do Vaticano.

Mas meus amigos e camaradas. para tudo são precisas ajudas dos vários poderes, mesmo para ser santo!
Um abraço todos!
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 Nota do editor

Último poste da série de 10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14342: Brunhoso há 50 anos (1): As Autoridades (Francisco Baptista)

terça-feira, 17 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14380: Meu pai, meu velho, meu camarada (44): Meu Velho, meu Amigo e meu Camarada (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua magnífica série.

Meu Velho, meu Amigo e meu Camarada.
Pai, honrarei sempre os teus princípios militares e civis.

Francisco Saúde, o meu saudoso pai, nasceu no dia 5 de janeiro de 1914 e faleceu no dia 19 de setembro de 1983. Aldeia Nova de São Bento, em pleno Baixo Alentejo, foi a urbe que o viu nascer e morrer. Faleceu a desfazer a barba e numa manhã quente de verão quando o sol já brilhava com intensidade.

A sua morte deixou a família atónica. Um enfarte agudo no miocárdio foi o seu drástico fim. Tinha eu, na altura, 33 anos e o meu pai 69. Porém, jamais dei conta de um pequeno problema de saúde que tivesse fustigado a vida do meu Velho, meu Amigo e meu Camarada.

Olho, atentamente, a sua Caderna Militar, uma relíquia que guardo religiosamente no meu baú das recordações, e leio o documento já amarelado que diz, em síntese, que Francisco Saúde foi incorporado no dia 8 de Abril de 1935 no Regimento de Infantaria nº 17, em Beja, sendo a sua especialidade atirador.

Numa folha adiante, uma outra nota que refere: “Tirou no sorteio o número duzentos e cinquenta e oito”. “Passou à disponibilidade em 1 de Setembro. Presente para instrução complementar em 2 de Outubro de 1939. Voltou à situação de disponibilidade em 15”.

Acontece, que em termos de ocorrências extraordinárias, existe uma outra nota: “Notado como refractário nos termos do nº1 do artigo 189 do R.S.R. Licenciado nos termos do artº 155 do R.S.R. de 1911, desde 8 de Abril de 1935”.

Refractário! Porquê? O meu Velho, meu Amigo e meu Camarada sempre me disse que a questão militar a que foi submetido prendeu-se “como uma doença a que fora submetido aquando da sua apresentação no Regimento de Infantaria nº17 no dia indicado, sendo que a sua ausência militar foi considerada faltosa”.

Assim sendo, está explicada a razão pela qual o exército lhe aplicou tamanha “coima”. O meu pai contava que esta infração não lhe retirou mérito, pois acabou por ser “impedido” de um capitão que lhe cedeu as suas honras.

O tempo era de Guerra Civil na vizinha Espanha. Estava-se no segundo período da década de 1930. As nossas fronteiras, segundo o meu pai comentava, eram patrulhadas a pente fino pela tropa portuguesa.

E foi justamente nesta fase em que prestou serviço militar que integrou um grupo de jovens soldados do RI 17, Beja, que permaneceu no terreno durante algum tempo. A sua missão, segundo dizia o meu Velho, era impedir as avalanches de gentes que fugiam ao terror da guerra civil de Espanha e se passassem para o outro lado da fronteira. Uma história verídica que o meu Camarada contava com mágoa. Dizia-me, em surdina, que foram muitos aqueles que se fizeram à terra lusa enquanto o sentinela de serviço fingia dormir, ficando a estrada em aberto a caminho de um novo rumo. 

Visível era a premente ansiedade da população a contas com uma famigerada e desumana “guerra às bruxas”. Os franquistas não davam pausas. Resumidamente o conflito deflagrou após um fracassado golpe de estado de um sector do exército contra o governo democrático que havia sido conquistado.

Entretanto, o general Francisco Franco, cabecilha do golpe, reorganizou os militares rebeldes o que levou à instauração de um regime fascista em Espanha. O dia 1 de outubro de 1936 foi o início de uma ditadura que se prolongou até 20 de novembro de 1975, data da sua morte, com 82 anos.

Regista-se que o meu Velho, meu Amigo e meu Camarada teve a oportunidade em assistir a uma franja de uma guerra civil com contornos maquiavélicos, e onde o evidente desespero de pessoas que procuravam a paz e o sossego, entrementes sonegados, eram devolvidas a um conflito interno que teimava em não dar tréguas.

Esta prosa possui o condão, julgo, em conjugar efeitos de duas guerras diametralmente desiguais. Isto é, a nossa guerra na Guiné entre 1963 a 1974, e uma outra civil, Espanha, que o meu pai conheceu nos anos 30.

Fica, para mim, a certeza: Pai, honrarei sempre os teus princípios militares e civis porque fomos, afinal, homens que vivendo em épocas diferentes, fizemos parte de contingentes que conheceram os horríveis conteúdos que a guerra, não obstante a dimensão dos flagelos onde estivemos inseridos, nos impôs.



Um abraço camaradas, 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P14379: (Ex)citações (266): Considero, e para ser objectivo, que todos se estão borrifando para a Guiné-Bissau (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 9 de Março de 2015:

Camaradas e Amigos
Como tenho estado doente, e infelizmente continuo, e os prognósticos não são animadores, só agora li o apelo à participação na primeira "sondagem" do ano… do Blogue.
A questão é um pouco complicada: “Os afectos, e se em relação aos guineenses, levamos hoje a dianteira a russos, chineses, cubanos, suecos e outros que apoiaram o PAIGC no tempo da guerra colonial".
Vantagens? Tinha! Afectos? Sim! Namorava uma sueca loira de olhos azuis desde os 13 anos, não esqueço o nome, recordo mesmo a morada. Ingrid Margaretha Gustavsson. Amava-a e outras também, uma brasileira (Telma Valério) e outras conhecidas na nossa praça.
Pela G3, uma adoração muito quente, aliviava-se sempre de munições, fazia-lhe festas, dormia comigo e andava sempre untada; e os pedaços de capim; clips.

Considero, e para ser objectivo que todos se estão borrifando para a Guiné-Bissau, e teria sido bom que não tivessem metido o “bico” como fizeram. Levantei minas soviéticas; namorei uma sueca com quem estive para me casar; os chineses sempre estiveram presentes nas Histórias de todos os países, devo ter fotos dos meus tios na América na construção dos caminhos-de-ferro, surgirem em todas as partes; os cubanos andaram por Gadamael Porto, e causaram pânico.

Tudo de bom para os camaradas de Gandembel, que tanto sofreram, considero que deveriam aparecer mais no Blogue. Recordo que Gandembel; Gadamael; Ganturé; Guileje; Guidage e outros possuíam o “G” de guerra; os americanos se tiveram conhecimento do resultado de uma pesquisa que uma empresa portuguesa fez aos solos de Gadamael, julgo que em 1967, estava lá e comiam na Messe de Sargentos. Se a De Beers descobrir que existem diamantes na Guiné, é bem provável que apoie Guiné-Bissau. A De Beers, até possui o lema “Um diamante é para sempre”. Não vejo ninguém a interessar-se pela Guiné.

E Portugal penso que só se preocupa com os euros que “dá”, talvez também na defesa dos portugueses que têm lá o ganha-pão. Sinto tristeza em verificar nas reportagens, que nada é recuperado do nosso “império”. Em Gadamael o cais abandonado e os dois edifícios dos colonos destruídos, não recuperados. Viaturas das NT destruídas são as suas estátuas. O Homem Grande dorme e dorme e a mulher “pequena” trabalha como escrava, sempre a pilar.

Portugal não leva vantagens porque somos uma cambada de tesos, e os outros estiveram lá para nos tirarem os miolos. Os recados que nos davam: minas e até fictícios avisos escrevinhados: “Emboscada a 200 metros!

E já que falamos, por que não contar esta.
Um ou dois dias após rebentamento de uma mina no itinerário Cruzamento de Gadamael/Ganture e no troço para Sangonhá, fui informado que tenho de armadilhar uma determinada zona. Estávamos a chegar ao local, vinha na frente a picar, vimos algo de estranho no solo. Alguma da rapaziada pretendia avançar, disse que não, picámos até ao local. O que se encontrava à nossa frente? Seis a sete maços de tabaco cubano. Disse para montarem segurança, e manterem distância de mim. Não me pus a levantar os maços de tabaco cubano, piquei sempre e um por um todos tiveram o mesmo tratamento. Depois de bem picado, baixei-me e passei uma palha de capim por debaixo do primeiro maço para verificar se estava armadilhado. Levantei o maço, tinha uns cigarros. Tratei de todos de igual modo.
O que pretendia o PAIGC unicamente era dizer que tinha feito “ronco” e tínhamos caído numa mina. Os maços ao abandono só pretendiam dar esta informação. Já tinha visto que à frente esta um papel no solo. Depois de levantar um a um os maços e de os colocar no bolso (existia uma com 7 cigarros, os outros tinham 2/3/4 cigarros). A segurança estava a distância de não ser atingida caso algum engenho explosivo rebentasse. O papel tinha mais ou menos escrita a seguinte mensagem: “Furriel Mário Gaspar, estamos à tua espera na fronteira e entrega-te, nada te faremos”. Tudo com péssimo português. Guardei e cheguei a trazê-lo para casa, mas nunca mais o vi.

Quer dizer que estavam bem informados de todos os nossos passos, nunca entendi muito bem a razão de estar lá o meu nome, mas talvez o perceba, ou por outra, percebo. Nunca contei esta a ninguém… Acredito que nada me faziam e que me obrigavam a ir à rádio denunciar a minha entrega, mas caso quisesse me colocariam nos braços da minha linda sueca.

Em suma, ninguém está interessado… Afectos? E Portugal é mais por Portugal se sentir obrigado. Talvez um dia surja a América. Se pretendem minério de ferro, a olho vivo, quando estudava penso que se falava em petróleo.

Um abraço à Tabanca Grande
Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14335: (Ex)citações (265): Sondagem: Mudei muito. Quem é que não mudou? (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P14378: X Encontro Nacional da Tabanca Grande, Palace Hotel de Monte Real, 18 de Abril de 2015 (5): Atingimos as 100 inscrições, muitas mais esperamos... Lisboa (16), Oeiras (9) e Matosinhos (8) lideram as inscrições...


Monte Real, 14 de Junho de 2014 > Foto da Grande Família do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
Foto: © Manuel Resende (2014). Todos os direitos reservados.


Mensagem da Organização do X Encontro Nacional à Tertúlia:

Chegados aos 100 participantes, aqui fica a listagem actualizada e o conselho para os nossos camaradas que normalmente estão presentes, ainda não inscritos, para que não deixem para muito próximo da data do Encontro as suas inscrições. 
Tenham também em atenção, os que pensam pernoitar no Hotel, que poderá não haver disponibilidade se se deixarem para tarde.

O ano passado fomos quase 150 pelo que achamos haver muita gente distraída. Quanto maior for o efectivo, mais êxito terá a Operação Monte Real 2015.


OS 100 INSCRITOS PARA O X ENCONTRO NACIONAL DA TABANCA GRANDE - MONTE REAL, 18 DE ABRIL DE 2015 

Albano Costa e Maria Eduarda - Guifões/Matosinhos 
Alberto Godinho Soares - Maia 
António Estácio - Mem Martins/Sintra 
António Faneco e Tina - Massamá/Sintra 
António Joao Sampaio e Clara - Leça da Palmeira/Matosinhos 
António José P. Costa e Isabel - Mem Martins/Sintra 
António Manuel S. Rodrigues e Rosa Maria - Oliveira do Bairro 
António Maria Silva e Maria de Lurdes - Lisboa 
António Martins de Matos - Lisboa 
António Osório, Ana e Maria da Conceição - V. N. de Gaia 
António Santos e família (6) - Caneças / Odivelas 
António Sousa Bonito - Carapinheira/Montemor-o-Velho 

Carlos Alberto Cruz, Irene e Paulo Jorge - Paço de Arcos/Oeiras 
Carlos Vinhal e Dina - Leça da Palmeira/Matosinhos 
Coutinho e Lima - Lisboa 

David Guimarães e Lígia - Espinho 
Delfim Rodrigues - Coimbra 

Eduardo Ferreira Campos - Maia 
Ernestino Caniço - Tomar 

Joao Alves Martins e Graça - Lisboa 
Joao Maximiano - Santo Antão/Batalha 
Joao Sacoto e Aida - Lisboa 
Joaquim Carlos Peixoto e Margarida - Penafiel 
Joaquim Mexia Alves - Monte Real / Leiria 
Jorge Araújo - Almada 
Jorge Canhão e Maria de Lurdes - Oeiras 
Jorge Picado - Ílhavo 
Jorge Pinto e Ana Maria - Lisboa 
Jorge Rosales - Monte Estoril / Cascais 
José Almeida e Antónia - Viana do Castelo 
José António Chaves - Paço de Arcos / Oeiras 
José Barros Rocha - Penafiel 
José Casimiro Carvalho - Maia 
José Diniz Faro - Paço de Arcos / Oeiras
José Eduardo R. Oliveira - Alcobaça
José Fernando Almeida e Suzel - Óbidos 
José Manuel Cancela e Carminda - Penafiel 
José Marques e Florinda - Paredes 
José Miguel Louro e Maria do Carmo - Lisboa 
José Nunes Francisco e família (5) - Batalha 
Juvenal Amado - Fátima / Ourém 

Liberal Correia e Maria José - Ponta Delgada (RA Açores) 
Lucinda Aranha e José António - Santa Cruz/Torres Vedras 
Luís Graça e Alice- Alfragide / Amadora 
Luís Moreira - Mem Martins/Sintra 
Luís Paulino e Maria da Cruz - Algés / Oeiras 

Manuel Fernando Sucio - Vila Real 
Manuel Lima Santos e Maria de Fátima - Viseu 
Mario Vasconcelos - Guimarães 
Miguel e Giselda Pessoa - Lisboa 

Raul Albino e Rolina - Vila Nogueira de Azeitão / Setúbal
Ribeiro Agostinho e Elisabete - Leça da Palmeira/Matosinhos 
Ricardo Figueiredo e Cândida - Porto 
Ricardo Sousa e Georgina - Lisboa 
Rogé Guerreiro - Cascais

Valentim Oliveira, Maria Joaquina, Cyndia e Carina - Viseu

Muito importante:
- As inscrições terminam a 10 de Abril.
- Em caso de impossibilidade de estar presente no Encontro, se inscritos, comuniquem com antecedência de pelo menos 5 dias a vossa desitência.
- Para mais informações clique aqui.

Carlos Vinhal
Luís Graça
Mexia Alves
Miguel Pessoa


Distribuição geográfica dos inscritos: Lisboa (16), Oeiras (9) e Matosinhos (8) lideram as inscrições...
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Nota do editor:

Último poste da série de 4 de março 2015 > Guiné 63/74 - P14321: X Encontro Nacional da Tabanca Grande, Palace Hotel de Monte Real, 18 de Abril de 2015 (4): Já temos 74 inscrições, incluindo 2 dos Açores, e muitas caras novas!

Guiné 63/74 - P14377: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (29): A Ilha das Galinhas que eu conheci e a nostalgia da "prisão" com que o Zé Carlos Schwarz ou Zé Cabalo (, no meu tempo de liceu), nos surpreende, na letra e música de "Djiu di Galinha" (Manuel Amante da Rosa)

1. Mensagem de Manuel Amante da Rosa [Manuel Amante da Rosa [, ex-fur mil, QG/CTIG, Bissau, 1973/74; atual embaixador de Cabo Verde em Roma]

Data: 16 de março de 2015 às 22:37

Assunto: Prisão na Ilha das Galinhas: localização, etc. (*)

Meus caros editores e leitores:,

Vamos ver se consigo dar uma ideia do que seria ilha das Galinhas.

Ficava bem próxima de Bolama de Baixo. Separada desta parte da ilha de Bolama por um canal navegável com relativa profundidade. O campo prisional (colónia agrícola/colónia penal) da ilha era supervisionado pelo Administrador Civil do Concelho de Bolama.

Havia reclusos de crime comum com penas de longa duração e até presos políticos. Tive por lá, que me lembre, quatro a cinco amigos. Os detentos movimentavam-se com relativa facilidade pela ilha, gozavam alguns de certos privilégios e muitos dedicavam-se à agricultura ou pesca. A população da ilha era amistosa e aceitava sem problemas os presos com quem se relacionavam. Julgo que, a memória não me é certa neste ponto, de haver um chefe da colónia penal e alguns polícias que faziam um controlo da população dos presos.

Passei algumas vezes pela ilhas das Galinhas, quando jovem mas nunca cheguei de ter a perceção de que haveria prisão por lá. Na ida para Bubaque ou Sogá, paravámos em Nbangana, que era uma pequena casa comercial mesmo à beira mar em que na maré cheia as ondas batiam na varanda. Era do velho Manuel Simões, pai do Manelito Simões. Por detrás da casa subia-se por um carreiro até a uma altura de 20 a 30 metros onde se ía para o interior da ilha e  algo próximo se localizava a Tabanka. 

Não raras vezes havia festa nesse aglomerado nas noites que por ali permaneci. O rufar de tambores, característico da etnia bijagó escutava-se de longe. O ritmo, as danças dos cabarôs e campunes era
contagiante. 


Guiné > s/d > s/ l > A embarcação "Bubaque", ostentando a bandeira portuguesa... Era uma antiga LP 4 (Lancha de Patrulha 4, da nossa Marinha, no ativo entre 1963 e 1964)-

Foto: © Manuel Amante da Rosa (2014). Todos os direitos reservados.

Nesta casa, à beira-mar, viveu durante uns dois anos um amigo do Manelito e meu que tinha sido condenado a uma pena por algo acontecido em Portugal. Teve um regime especial. Os navios Corubal e o Formosa nas idas de fim de semana para Bubaque pairavam nesse pequeno porto, ao largo, para deixar ou receber correspondências ou deixar alguém. 

Nbangana era um porto difícil de se entrar porque corria paralelamente à costa uns baixios de pedra, perigosos e sem sinalização. Um pequeno navio do meu pai, o Salomé, feito de teca, trazido da Indonésia (?) ou Timor, antigo patrulha japonês, partiu ali a quilha para nunca mais ser recuperada. Eu próprio, ao leme, com uma tripulação quase toda bêbada, num regresso da ilha de Bubaque com uma excursão da Cícer, fábrica de cerveja da Guiné, encalhei nesses baixios procurando o canal já de noite. Valeu-me a enchente e não ter batido mais à frente. O susto foi enorme lembrando-me do sucedido com o Salomé.

Julgo que.  após ser transferido para a prisão policial de Bissau, ficado preso, incomunicável e tratado de forma desumana pelos carcereiros pela sua ousadia de colocar, pelo menos uma bomba debaixo do reluzente Mercedez Benz de um Chefe de Esquadra, estacionado à frente da UDIB  e,  conhecendo o Zé Carlos, que também chamávamos de Zé Cabalo, por aparecer pelo Liceu Honório Barreto algumas vezes a cavalo, ele terá sentido nostalgia da ilha onde circulava à vontade, escrevia, lidava com a população e convivia livremente com os outros reclusos.

Essa será a diferença fundamental e a razão porque terá escrito uma melodia tão profunda, nostálgica e agradável a todos que escutam o "Djiu di Galinha".

A viúva do Zé Carlos poderá, no entanto, explicar muito melhor e com conhecimento sólidos de uma vida comum de partilhas várias as razões dessa composição.

Escrevi de um fôlego só e sem rever o texto pelo que se vierem a publicar alguns trechos façam as inevitáveis correções. (**)

Um forte e amigo abraço.

Manuel

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Notas do editor:

(*) Vd,. poste de 16 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14374: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (27): Ainda sobre o cantor José Carlos Schwarz (Bissau, 1949 - Havana, 1977) e a letra da canção "Djiu di Galinha" [, Ilha das Galinhas] (Helena Pinto Janeiro, historiadora)

(**) Último poste da série > 17 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14376: O nosso blogue com fonte de informação e conhecimento (28): motorizadas: eu, com os meus 17 anos e a minha Zundapp Mavic (José Colaço)


Guiné 63/74 - P14376: O nosso blogue com fonte de informação e conhecimento (28): motorizadas: eu, com os meus 17 anos e a minha Zundapp Mavic (José Colaço)


"Eu,  com os meus 17 anos e a minha Zundapp Mavic" (José Colaço)


Foto (e legenda): © José Colaço  (2015). Todos os direitos reservados



1. Mensagem de 15 do corrente, do nosso grã-tabanqueiro José Colaço, em resposta a um pedido dos editores relativamente a informações sobre motorizadas de 50 cc,  fabricadas em Portugal (marcas, que começaram a aparecer nos anos 50,  e que nos são ainda hoje familiares: Alma, Pachancho, Vilar Cucciolo, Famel, Macal, Sachs, Casal. etc) (*)


[Foto à esquerda, José Colaço (ex-Soldado TRMS da CCAÇ 557, Cachil,Bissau e Bafatá, 1963/65)]

Aqui está um tema que tenho de memória: todas estas marcas de que falas, mas quando elas apareceram era eu puto de escola e,  devido à nossa autonomia económica e as condições vividas na altura,  não dava para tirar e guardar fotos dessas preciosidades.

Mas a evolução dos ciclomotores foi rápida e os Cucciolos, Alma e Pachancho  e companhia tiveram vida curta, dando origem às célebres "motinhas".

E apareceram entre outras os topos de gama,  na altura os Italianos com o Alpino, os alemães com a Sachs, parece-me que os primeiros a disporem de uma caixa de velocidades de 4 e 5  e por último 6, a Kreldler Floret que devido à sua categoria tinha o handicap do pronto pagamento, a Zundapp que também tinha uma montagem autorizada em Portugal,  os famosos quadros Mavic e os motores Casal. uma réplica dos motores Zundapp,  creio que chegaram a ser totalmente fabricados em Portugal com montagem nos quadros made in Portugal.

E com a abertura dos mercados apareceu a Honda dos nipónicos.


[Foto à direita: Ducati Cucciolo de 1950. Fonte: Wikipedia, com a devida vénia]



Lembro-me bem da Cucciolo. Podem encontrar imagens no blogue Rodas de Viriato, ou na Wikipédia, dessa preciosidade.  Lembro-me bem de a ver,  embora na minha terra a bicicleta escolhida era a Imperial com travões de alavanca, segundo o que guardo de memória. Eesta bicicleta era a preferida por ter um quadro forte e aguentava e resistia sem quebrar às vibrações do motor auxiliar Cucciolo a quatro tempos com válvulas à cabeça, digo auxiliar porque mantinha os pedais e em subidas de maior extensão tinha que ser o ciclomotorista a auxiliar o fraco Cucciolo.

E resumindo o que acabei de relatar,.  envio foto em anexo eu com os meus 17 anos e a minha Zundapp Mavic tendo por fundo o carro das bestas,  como nós lhe chamávamos, esta preciosidade,  a construção foi obra do meu velho que,  além de pequeno agricultor, tinha a profissão de carpinteiro de carros, na minha terra chamavam à profissão de carpinteiro de carros  (abegão).

Guiné 63/74 - P14375: Parabéns a você (876): José Armando F. Almeida, ex-Fur Mil TRMS do BART 2917 (Guiné, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14366: Parabéns a você (875): António da Silva Baptista, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3490 (Guiné, 1972/74)

segunda-feira, 16 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14374: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (27): Ainda sobre o cantor José Carlos Schwarz (Bissau, 1949 - Havana, 1977) e a letra da canção "Djiu di Galinha" [, Ilha das Galinhas] (Helena Pinto Janeiro, historiadora)

1. Mensagem, de 16 do corrente,  de Helena Pinto Janeiro, comentando o poste P14370 (*):

[à esquerda: a localização da Ilha das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós. Infografia: Wikipédia / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2015]


Caros amigos:

Muito obrigada!... A única dúvida que me resta é entender o paradoxo de o cantor [, José Carlos Schwarz,] ter estado preso na Ilha das Galinhas e ter saudades desse tempo. Não faz sentido, quer conhecendo o percurso político dele quer as letras de outras canções que ele escreveu, com um cariz fortemente político, dando voz ao sofrimento da guerra. Será que não esteve preso mas 'simplesmente' desterrado?

Não poderei, portanto, usar esta canção como exemplo de uma produção artística produzida por um preso político na Ilha das Galinhas (até porque, pelos vistos, ele terá composto a canção já na prisão de Bissau), que era o meu objectivo inicial.

Tenho estado a recolher dados sobre prisões e campos prisionais destinadas a presos políticos em vários pontos do império, em especial durante o período da guerra colonial, e os dados sobre a Ilha das Galinhas são muito vagos.

De momento estou a avançar com outros campos, nomeadamente em Angola, para os quais encontrei dados mais concretos, mas mantenho em projecto responder a estas dúvidas sobre a Ilha das Galinhas, nomeadamente:

(i) se era uma prisão-edifício ou um campo prisional (e se era um campo, com que características);

(ii) onde era localizada exactamente dentro da ilha;

(iiii) durante quanto tempo funcionou, quem a administrava, pessoas que lá estiveram presas.

Naturalmente, os dados mais institucionais irei encontrar (eventualmente) noutros locais mais institucionais mas os testemunhos de quem lá esteve ou quem por lá passou são preciosos, não havendo arquivo algum que os substitua.

Obrigada,

Helena Pinto Janeiro

2. Comentário do editor:

Temos, na nossa Tabanca Grande,  um único camarada que fez serviço na Ilha das Galinhas, o José António Viegas: foi fur mil do Pel Caç Nat 54, Guiné, 1966/68, e integrou a guarnição militar da "colónia penal e agrícola da Ilha das Galinhas" [, foto da época à direita]...

Recorde-se que ele chegou à Guiné em 4 de Agosto de 1966, seguindo para Bolama onde foi  receber o  Pel Caç Nat 54, treinado pelo o nosso Jorge Rosales, o "régulo" da Tabanca da Linha...

"Ao fim de 20 meses de mato", foi destacado  para Bolama e daí para a Ilha das Galinhas. Ele próprio nos diz que "desconhecia por completo o que aquilo era, quando cheguei em meados de Junho de 1968"... Mas deu-nos mais informações sobre o que se passava naquela ilha do arquipélago dos Bijagós no tempo do Schulz:

(i) o destacamento era composto por um furriel, um cabo e 3 soldados (!);

(ii) na "parte civil", havia um comandante do campo [, colónia penal e agrícola da Ilha das Galinhas, cruada em 1934]: era  "o Chefe Joaquim, um homem de poucas conversas";

(iii) de vez enquanto "encostava uma lancha LDP com um carregamento de prisioneiros, sempre em mau estado, que vinham das prisões de Bissau, escoltado sempre por dois Pides, que entregavam os presos ao chefe e desandavam para Bissau";

(iv)  os prisioneiros andavam à solta pela ilha, mas sabia-se  "alguns passavam por ali em trânsito para o Tarrafal [, Ilha de Santiago, Cabo Verde]";

(v) na altura não o Zé Viegas não tinha grandes conversas com os prisioneiros, a maioria dos quais "trabalhava na bolanha e nas sementeiras de ananás e mancarra que havia pelo campo";

(vi) era um povo afável, o bijagó, segundo a opinião do nosso camarada que passoi lá "quatro meses", na Ilha das Galinhas, acabando a sua  comissão "em Setembro de 68 com 25 meses de Guiné". (**)

Sobre o José Carlos Schwarz ver também um depoimento do nosso grã-tabanqueiro Leopoldo Amado, que o conheceu em vida, em Bissau, ainda antes do 25 de abril de 1974. Não faz qualquer referência ´`
a sua passagem pela Ilha das Galinhas. Mais detalhada e contextualizada é a extensa nota biográfica que, no blogue Lamparam, publica o Leopoldo Amado, da autoria do Norberto Tavares Carvalho, o "Cote", que foi companheiro de prisão do cantor.

Sob o título "José Carlos Schwarz - A Voz do Povo", passou há uns anos, na RTP,  um documentário, da autoria de Adulai Djamanca (Produção: Lx Filmes/MC / ICAM / RTP, 2006, 52 minutos).



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha das Galinhas > Junho/setembro de 1968. Foto de José António Viegas, sem legenda. (**)

Foto: © José António Viegas (2013). Todos os direitos reservados


(**) Vd. postes de:

3 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12383: Memória dos lugares (257): Ilha das Galinhas em 1968 (José António Viegas)

11 de dezembro de  2013 > Guiné 63/74 - P12429: Memória dos lugares (259): Ainda a Ilha das Galinhas e a sua "colónia penal e agrícola", criada em 1934 (José António Viegas, ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 54, 1966/68)

Resposta do José António Viegas (ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 54, Guiné, 1966/68) a algumas perguntas nossas sobre a "colónia penal e agrícola da Ilha das Galinhas":

(...) Na parte central na ilha, chamado o campo, havia uma casa colonial e uma parada grande com dois barracões que era onde viviam os presos. Na altura estavam lá perto de cento e tal prisioneiros entre os de delito comum e os presos politico. Pessoalmente, não sabia quais deles eram, não sabia distuingui-los, pois o chefe [Joaquim] não falava comigo nesse aspecto.

O chefe Joaquim que está comigo na foto com o tubarão, esteve na GNR com o Spínola e depois foi chefiar o campo. Penso que estivesse ligado à Pide.

Os presos circulavam à vontade. Alguns mais antigos viviam em palhotas junto ao campo, faziam trabalho agricola, não havia problema com a população e poucas hipóteses tinham de fugir.

A vida da guarnição era fazer umas rondas pela ilha no Uunimog pequeno (Pincha) [, o 411] e pesca. Nada mais.

A comida dos prisioneiros era na base do arroz, algum peixe e carne.

Naquele tempo eu não estava bem dentro dos assuntos, não fazia muitas perguntas ao chefe que ele, sempre de má cara com a sua úrsula [,úlcera], pouco respondia.

Só falei com um preso politico, que eu saiba, quando fui mordido por uma cobra verde, não sei se era médico ou enfermeiro , sei que tinha estado na Repúbklica Checa [, na altura Checoslováqui,] e que veio tratar de mim. (...)

Guiné 63/74 - P14373: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (1): Embarque para a Guiné, 16 de Março de 1973

1. Mensagem do nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), com data de 4 de Março de 2015:

Camaradas Luís Graça e Carlos Vinhal.

No próximo dia 16 de Março faz 42 anos que parti de Lisboa com o meu Batalhão rumo à Guiné.

Acho que é boa altura para começar a relatar os episódios mais marcantes da minha passagem por aquelas terras, e por aquela guerra.

Finalmente dispus-me a compilar e organizar memórias perdidas em caderninhos, e a registar outras que me vão surgindo do arquivo nebuloso da memória, mas que na época não tiveram merecimento de registo, por desvalorização ou falta de tempo.

Sempre soube que um dia havia de fazer isto, mas nunca pensei que me atreveria a publicar a resenha íntima daquela fracção da minha vida, tão pequena, tão sofrida e, simultaneamente, tão marcante na formação e maturidade da pessoa que sou hoje.

A ideia inicial era escrever algo semelhante, mas para deixar aos meus descendentes. Não queria que, um dia, soubessem apenas que o avô esteve algures em África numa qualquer guerra e desesperassem por não disporem de datas, factos, histórias, impressões, etc. Caso se venham a interessar, como é evidente.

Sei, por experiência própria, o quanto é desesperante essa falta de informação biográfica de um nosso ascendente, ainda mais quando esse ascendente teve uma fase da sua vida análoga à nossa. Foi o caso do meu avô paterno, de quem apenas soube que esteve em Angola – e mesmo este dado não é seguro –, como soldado.

Era eu pequeno, contou-me um dia, para meu divertimento, que a escova para calçado que tinha nas mãos fora feita pelos pretos em África e que estes eram terrivelmente fortes: subiam com ligeireza grandes penhascos com as armas e mochilas dos soldados às costas, e estes, quando chegavam lá acima, sem carga nenhuma, estavam exaustos. Só isto.

Quando, já crescido, comecei a ter curiosidade pela razão da sua mobilização e pelo que aconteceu na sua campanha africana, ele já tinha morrido. Então, sempre que via aquela escova de calçado, era assaltado pelas saudades do meu avô e pelo sentimento de culpa por nunca lhe ter pedido que me falasse mais dessa fase da sua vida. Mas porque não deixou ele uma única nota escrita, uma carta, uma fotografia?!

É claro que, pela sua data de nascimento, tenho uma ideia do que o levou a África, naqueles conturbados tempos da 1.ª Guerra Mundial, mas não é suficiente. Para saber mais, teria de fazer uma investigação morosa e desencorajante. A que nunca me atrevi. Fica assim.

Vou narrar a minha pequena “odisseia” começando pelo embarque para a Guiné, a viagem, a passagem por Bolama, etc., mas, como estas situações já foram sobejamente tratadas e retratadas no Blogue, vou tentar não ser maçador, aflorando apenas as que me parecerem mais incomuns e as minhas impressões pessoais, embora mantenha todo o resto no meu diário. Nesses casos sinalizarei as omissões de texto com (...), para se perceber o porquê de uma ou outra descontinuidade.

Gostava, ainda, de deixar aqui um abraço e a minha homenagem a todos os camaradas que calcorrearam, antes de mim, os mesmos chãos, picadas, trilhos e matas, de Buba a Aldeia Formosa, de Mampatá a Nhacobá. Porque a “guerra deles” foi bem mais dolorosa e trágica do que a “minha”, mesmo se considerar que fiz apenas um ano e meio de comissão, não podendo saber o que me esperaria no tempo restante; e mesmo se considerar que nessas regiões passei momentos difíceis, que houve mortos e feridos, flagelações e emboscadas, minas e estradas cortadas, enfim, tudo considerado, mantenho que foram mais duras e trágicas as suas comissões.

Se discordar de mim, quem comigo lá esteve, recomendo que leia os escritos do Zé Teixeira, do Manuel Traquina, do Mário Pinto, do Vasco da Gama, do Idálio Reis, do Rui Alexandrino Ferreira no seu livro “Quebo”, e, possivelmente, de outros mais.

Só tive consciência disto através do nosso Blogue e, depois, visitando outros blogues que fui conhecendo. Lendo também os muitos livros que possuo sobre a Guerra Colonial. Soube também, com espanto e choque, de outras inúmeras tragédias, de heroísmos anónimos, da sobrevivência tipo “um dia de cada vez”, por todo o restante território. Conhecia, e mal, os casos mais sonantes. Todavia, eu estive lá! Quantos mais estiveram lá, tendo regressado com a visão da guerra circunscrita à sua zona? Claro que se ouvia muita coisa, mas nada de concreto, porque a informação não passava. Imagine-se, então, o conhecimento que terá daquela guerra, a generalidade da nossa população. Não admira que, já nos anos 90, ouvisse este insulto de um colega de trabalho: "Comparando com o Vietname, os combatentes na Guiné, não passavam de soldadinhos de chumbo!".

António Murta

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Lisboa - Cais da Rocha Conde de Óbidos, meio da tarde de 16 de Março de 1973 – Partida do Batalhão de Caçadores 4513 no navio Uíge rumo à Guiné.



CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA - GUINÉ, 1973-74

1 - Embarque para a Guiné - 16 de Março de 1973

16 de Março de 1973 (sexta-feira) – Embarque para a Guiné

Estava repleto o navio e os militares alcandoravam-se nos locais mais improváveis, para além de escadórios e da amurada, na ânsia de serem vistos pela multidão de familiares que acenavam do cais. Era uma cena já de todos conhecida, militares e famílias, que ao logo dos anos a viram – e temeram – pela televisão e pelos jornais. No que me toca, e depois de ter perdido de vista o meu pai no cais, apoderou-se de mim uma fria indiferença. Estava ali a começar uma odisseia, uma aventura no desconhecido, mas que haveria de ter um fim, que só podia ser o regresso. Recordo estas sensações porque as preparei antes e me agarrei a elas no momento crucial. Apesar disso, foi no instante em que o bojo do navio se desencostou lentamente do cais, que tive o momento mais penoso e cruel. Não tinha pensado nesse detalhe tão significativo: o brevíssimo instante da separação. Estava quebrado, definitivamente, o fiozinho que ainda me ligava a casa, aos familiares, ao meu país e a uma esperança tola de que, até ao último instante, acontecesse algo de extraordinário, um cataclismo, uma morte bombástica, sei lá..., morreu o Amílcar Cabral e não aconteceu nada, mas podia morrer o Marcelo, cair a Ponte Salazar e o barco ficar ali encalhado!... Nada. Não aconteceu nada. Afinal, estávamos irremediavelmente a partir. E não tinham partido milhares de outros antes de mim? Voltei à realidade. Certo de que a partir desse instante estaria apenas entregue a mim próprio até que tudo terminasse. Soltas as amarras, todas, zarpámos mesmo. Adeus, até ao meu regresso!

Com dois ou três roncos cavernosos e lúgubres, o navio fez-se lentamente ao meio do Tejo e desceu para a foz. Cada vez eram mais imperceptíveis os acenos no Cais da Rocha. (...)

Começava uma aventura que, para muitos, tínhamos consciência disso, não teria regresso. E assim aconteceu. Mas neste momento difícil das nossas vidas, a atenuar a dor da separação rumo ao desconhecido, havia uma coisa muito importante: a curiosidade por África, pelas suas gentes, pelos locais exóticos, pelo clima adverso mas diferente, enfim, pela oportunidade de explorar um continente que ocupava o nosso imaginário desde os bancos da escola, com os nossos exploradores africanos a incitarem-nos à imitação. Pessoalmente, formei esse imaginário muito antes da escola primária, através de um livro que a minha mãe possuía e que me dava a ver. Era o “Almanaque das Missões” (?), cheio de imagens de pretinhos e missionários de branco, jeeps em jangadas a atravessar rios desmedidos. Que saudades tenho desse pequeno livro. Dizia a minha mãe: - "O pretinho da Guiné partiu a caneca, não bebe mais café". Ganhei, assim, uma paixão por África e chegava a sentir nostalgia por uma terra onde nunca tinha estado.

À passagem pelas Canárias impressionou-me o cenário belíssimo das ilhas mergulhadas num crepúsculo vermelho. Fiz um desenho rápido a lápis de cor, mas perdi-lhe o rasto. Foi mansa a viagem. E confortável, para quem, como eu e demais oficiais viajávamos em 1.ª classe. O Uíge era um paquete com boas condições, como um grande hotel flutuante, onde não faltavam “garçons”, empregadas solícitas, bons salões, bares, enfim... (...) 

E nos porões, mais próprios para transportar gado, como se acondicionavam os soldados? Eu mesmo tinha sido incumbido de fazer a inspecção ao navio acompanhado de um dos meus furriéis dias antes do embarque e não gostei dos porões, mas tudo não passava de um proforma e tinha de assinar, até porque, no restante estava tudo muito bem. Fui ver. Quis inteirar-me do modo como ocupavam aquilo, ouvir as suas necessidades, ajudar no que pudesse. Entrei noutro mundo. Abjecto, fétido, insalubre. Não admira que, lá mais para a frente, com a aproximação de clima mais quente, muitos preferissem dormir na coberta do navio, onde, pelo menos, respiravam melhor. Durante o dia era onde todos permaneciam, entre jogos de azar e convívio nem sempre pacífico. Tirando passar alguns momentos em conversa com eles, animando-os, mais nada podia fazer. Era aguentar, que a viajem só duraria seis dias.


20 de Março de 1973 (terça-feira) – Jantar de despedida

Estava quase no fim a viagem e isso era marcado por um jantar de despedida. Não muito diferente dos outros jantares, teve, todavia, algo indefinível que o tornou mais solene. (...) A ementa, impressa a bordo, dizia assim:

"O Capitão de Bandeira, Comandante, Oficiais e restante tripulação do navio apresentam as suas despedidas aos Exmos. Oficiais, assim como a todos os componentes do Contingente Militar desejando muita saúde e as maiores felicidades.

Paquete “Uíge”, 20 de Março de 1973"

Seguiam-se as páginas com a lista completa dos oficiais (e sargentos?) a bordo. (Não sei o que me passou pela cabeça para, muitos anos mais tarde, ter digitalizado a capa da ementa e pequenos fragmentos daquela lista e ter destruído todo o resto).


Paquete Uíge, 20 de Março de 1973, Jantar de despedida. Eu sou o rapaz da esquerda, aí no pequeno corte (foto abaixo). À minha esq.ª está o Alf Torres da 1.ª CCaç (Buba), e à dtª, com a cara sobreexposta, o Alf. Mota da 3.ª CCaç. (A. Formosa). Do outro lado da mesa, dois Alferes do QP. 




22 de Março de 1973 (quinta-feira) – Chegada a Bissau

Acordei e senti logo uma estranheza que me sobressaltou. Era o silêncio total. Costumava acordar com o ronronar distante, cavernoso, dos motores do navio. Parámos, pensei. Será que chegámos à Guiné? Dei um salto da cama e fui abrir a cortina da vigia mas, o que vi, deixou-me ainda mais estranho. Julgava que veria um porto, um cais para encostar, mas não, estávamos no meio do mar e à minha frente uma pequena faixa de terra que, pela distância a que nos encontrávamos, não dava para avaliar. Vesti-me e saí precipitadamente, sentindo logo um calor a que não estava habituado. Dirigi-me à amurada a olhar lá para diante aquela faixa de terra rasa, uns poucos edifícios e palmeiras dispersas. Só depois reparei que era quase o único a olhar, espantado, para aquela primeira visão africana, quando alguém, desinteressado, me disse:
- "É a Ilha do Rei, Bissau é do outro lado!".

Desloquei-me para o outro lado do navio, olho em frente, e lá estava Bissau, ainda distante mas já ali. Eram 9h50 locais, 11h50 de Lisboa. Reparei, ainda, que o resto dos passageiros já devia estar ali na amurada desde manhã cedo a observar. Alguns faziam comentários mas, se calhar a maioria, conjecturava em silêncio. Os rostos, curiosos, eram de ânsia e apreensão.

A cidade de Bissau vista dali do navio parecia muito rasa de edifícios, e subia ligeiramente a partir do cais. Tudo o mais, quer olhássemos à esquerda ou à direita, parecia uma fita verde quase ao nível das águas, para trás da qual nada mais se via. O navio continuou fundeado ao largo entre a Ilha do Rei e a cidade. Todo o dia foi passado a bordo e era suposto aí permanecermos até ao transbordo para as lanchas da Marinha que nos levariam a Bolama, nosso primeiro destino. Mas à noite, já atracados à ponte-cais que liga ao porto propriamente dito, convencemos o comandante do Uíge, com a intervenção influente do Cap. B. C. – que conhecia Bissau visto ter feito na Guiné o estágio do seu curso de capitão, antes de regressar à Metrópole para se integrar no nosso Batalhão – convencemos o comandante, dizia, a deixar-nos sair para uma pequena exploração e, se possível, beber uns copos.

Eram precisamente 23h55 quando, pela primeira vez, pisei terra africana.
Sem prazer nem desprazer, embora com alguma curiosidade. Mal tinha dado umas dezenas de passos na ponte-cais e eis que me deparo com uma cena tão lúgubre que jamais esqueci: no ângulo que fazia a ponte-cais com o porto, na escuridão quase total, e nas águas paradas muito abaixo do plano em que me encontrava, vi um amontoado de barcaças imóveis, carregadas de vacas. Numa delas, entre as vacas de pé e sobre montes de cordame, estavam várias urnas dispersas. Fiquei deveras impressionado com a cena macabra, como se fosse a primeira nota de que não estávamos num destino de férias. Logo na primeira vez que punha os pés em terra!... Soube depois que estas barcaças fazem fretes de apoio às Forças Armadas e fornecem os aquartelamentos do interior de quase tudo, incluindo munições. E caixões.

Prosseguindo para a cidade à procura de um bar aberto, mesmo tendo em conta que já passava da meia-noite, surpreendeu-me e desagradou-me a quase ausência de pessoas na rua, o marasmo e a miséria: estivadores que mais pareciam indigentes, dormiam nos bancos da avenida marginal, no chão, nos vãos das portas... Alguns embrulhados em panos ordinários. À nossa passagem pareceu-me ver nas caras dos poucos acordados, indiferença ou hostilidade. Não que esperasse cumprimentos ou festa de recepção, mas, sinceramente, pareceram-me hostis. Só as montras dos estabelecimentos me deixaram bem impressionado. Passaria muito tempo até vir a saber que no comércio de Bissau havia uma diversidade de produtos muito superior ao que se encontrava em Lisboa e a bons preços. E que se compravam aqui livros e discos que, na Metrópole, eram simplesmente proibidos. Mas a oferta era mais vasta: materiais fotográficos, armas de caça, alta-fidelidade, louças, bebidas, quinquilharia chinesa, enfim, quase tudo. Muitos compraram aqui a sua primeira máquina fotográfica das melhores marcas japonesas.

(Continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Guiné 63/74 - P14372: Notas de leitura (692): “As Guerras de Libertação e os Sonhos Coloniais”, organização de Maria Paula Menezes e Bruno Sena Martins, Edições Almedina, 2013 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2014:

Queridos Amigos,
Estes ensaios debruçam-se sobre o interdito, o ocultado, o altamente incómodo, no contexto das guerras que travámos em África em tempos de descolonização.
O Exercício Alcora era desconfortável para o regime de Lisboa, mas tornara-se imprescindível, por causa de Angola e Moçambique. A africanização da guerra tinha matizes que importava disfarçar. E veio a descolonização, apareceram novas perplexidades, como a questão da identidade do retornado, o incómodo de associar a violência ditatorial à violência colonial… ocultações de certa historiografia - histórias de sonhos coloniais falhados que continuam a pairar sobre as nossas cabeças .

Um abraço do
Mário


Guerras de libertação, as alianças secretas, um vasto manto de interditos

Beja Santos

“As Guerras de Libertação e os Sonhos Coloniais”, organização de Maria Paula Menezes e Bruno Sena Martins, Edições Almedina, 2013, é um repositório de estudos que, como escreve Boaventura de Sousa Santos no prefácio, “consiste em desvelar o que foi ocultado, tanto pelo que foi dito como pelo que foi silenciado, nas histórias celebratórias e nas memórias autocomplacentes”. Enfim, algo que pertence à sociologia das ausências, silenciamentos que persistem de ambos os lados da contenda. O que aqui se expõe são intrincadas alianças, sobretudo no cone Austral de África, onde a África do Sul jogou a fundo para manter o seu governo racial, atraindo o governo de Lisboa para uma aliança secreta, o Exercício Alcora.

Começando exatamente com o Exercício Alcora, os coordenadores comentam o historial da aproximação dos regimes brancos minoritários e as colónias portuguesas de Angola e Moçambique, na atmosfera que lhes era adversa: as independências da Zâmbia, do Malawi, do Botswana e o Lesoto e a Swazilândia, entre 1964 e 1968. O Exercício Alcora definia como objetivo central combater o comunismo e os movimentos nacionalistas. Para Ian Smith, chefe do governo rodesiano, a aposta era manter os conflitos centrados a norte do Zambeze: “Quanto mais para norte podermos conter a linha de defesa contra os comunistas, melhor”. Mobilizaram-se dezenas e dezenas de milhares de homens, brancos, para a constituição de brigadas mistas, prontas para intervir em qualquer ponto de Angola e Moçambique, o que estava em causa era a sobrevivência da África Austral.

Não deixa de surpreender como a violência desencadeada por aquela guerra também desce como um manto de silêncio em torno da memória da ditadura, observa outro autor. A guerra tem as suas vítimas, homens e mulheres sujeitos à dor, à perda, à morte, ao exílio ou ao terror. Vítimas porque resistiram aos poderes instituídos, foi o que aconteceu aos presos do Tarrafal. Mas também foram vítimas populações atingidas arbitrariamente por massacres, igualmente foram vítimas as pessoas sujeitas à repressão direta, aos tribunais especiais e a todo um campo de arbitrariedades. E aqui se questiona como em Portugal se tem lidado com a memória da ditadura e da depressão, o tratamento dado à memória da resistência e repressão tem sido alvo de sucessivos equívocos e diferimentos, que se alargam para o campo historiográfico. Para o autor a violência do colonialismo e da ditadura transformaram-se em memórias fracas, com preponderância para a memória do passado ditatorial identificado com um chefe paternal, de laivos autoritários mas vontade desinteressada de servir a Nação.

Noutra abordagem, traça-se a dimensão da questão colonial e da África Austral num contexto de Guerra Fria. Como consequência direta da II Guerra Mundial, deu-se a perda da centralidade da Europa no sistema mundo. A partir de 1960, as potências coloniais acederam a independência de muitos países, com sérias incidências no mapa geopolítico global. Esse mundo modificado equilibrava-se no poder global dos EUA e da URSS e como estas superpotências animavam os movimentos nacionalistas. De facto, estas duas superpotências fizeram coro para a emancipação dos movimentos nacionalistas, o que, como reação, gerou a criação do movimento dos não-alinhados, onde a China não tinha papel inocente. Os EUA tiveram extrema dificuldade em encontrar uma forma diplomática de vigorosa denúncia do apartheid, a África do Sul acabou por se tornar num aliado poderoso no contexto da Guerra Fria.

Entre os grandes interditos e as discussões infindáveis que as guerras de libertação suscitaram temos a problemática dos retornados, a incómoda africanização na guerra colonial e a ligação estrutural entre as guerras civis de Angola e Moçambique associadas ao conflito anterior a que o Exercício Alcora procurava dar resposta. Na verdade, continua na área dos interditos a identidade do retornado e até a análise da especificidade das duas colónias de povoamento, Angola e Moçambique, decisiva para compreender as guerras coloniais, a descolonização e as independências.

O autor do estudo sobre a africanização na guerra colonial recorda que existia uma tradição de participação de africanos no exército colonial português desde a segunda metade do século XIX, para apoiar a penetração no interior de África. E esclarece que “Em 1961, ano do início da guerra colonial, o Exército Português dispunha em África de unidades locais organizadas nos mesmos moldes das unidades europeias”. Esta africanização progressiva assentou em unidades regulares do exército, unidades especiais e unidades de milícias. E observa: “Estes três tipos de forças desempenharam papéis muito diferentes na guerra e sofreram tratamento diferente das novas autoridades com as independências. As unidades regulares faziam parte de uma tradição de serviço militar estabelecida desde o início da moderna colonização portuguesa e, apesar do seu incremento durante a guerra colonial, não sofreram um impacto maior do que aquele que é produzido em situações normais de conflito. As unidades de milícia, implantadas nas regiões de origem dos seus elementos, também integravam as estruturas administrativas e não motivaram reações de violência que tivessem excedido as disputas locais”. As grandes tensões sobre a violência focaram-se nas forças especiais africanas, foram elas que sobretudo motivaram a reação brutal dos novos poderes instalados, reação que foi um misto de vingança ou ajuste de contas mas também a procura de um bode expiatório para os fracassos internos, na perspetiva de que essas antigas forças atiçassem movimentos de insubordinação. Lembra-nos também o autor que a partir de 1970 estas tropas especiais conheceram variantes e escreve:  
“Na Guiné, Spínola procurou, a partir das experiências de milícias e explorando extinções étnicas, criar um exército africano nacional à imagem do exército português, estruturado em companhias agrupadas em batalhões.
Em Angola, a africanização teve como objetivo aumentar a capacidade operacional das forças portuguesas e a sua autonomia de forma a criar condições políticas e militares para atrair um dos movimentos – a UNITA – e elementos dos outros. Os Flechas serão o conceito mais específico deste tipo de tropas. A africanização tinha como objetivo político a atração de guerrilheiros e dirigentes nacionalistas, especialmente no Leste e Sudeste do território.
Em Moçambique, apesar da grande percentagem de recrutamento local, a formação de tropas africanas autónomas não só foi mais tardia, como estas foram integradas na manobra convencional de Kaúlza de Arriaga, sem explorar todas as suas especificidades de conhecimento do terreno e de ligação às populações.
No final da guerra, os três teatros de operações apresentavam realidades distintas (…) Em comum, os três teatros de operações apresentavam uma realidade onde o avanço das forças de guerrilheiros dos movimentos de libertação deparava com a oposição de dezenas de milhares de militares locais acionados pelas autoridades coloniais. Em 1974, quando ocorreu o 25 de abril, a tendência da africanização das forças ia no sentido de transformar a guerra colonial em três conflitos internos nos três teatros de operações”.

De leitura obrigatória para quem estuda o fenómeno colonial português.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14359: Notas de leitura (691): “As Mulheres e a Guerra Colonial”, por Sofia Branco, A Esfera dos Livros, 2015 (Mário Beja Santos)