quinta-feira, 5 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16054: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (23): Religiosos de primeira e pobres (crentes) de segunda (Recordações de infância)

1. Em mensagem do dia 26 de Abril de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), mandou-nos mais estes excelentes apontamentos para a sua série "Outras Memórias da Minha Guerra".


Outras memórias  da minha guerra

22 - Religiosos de primeira e pobres (crentes) de segunda 
(Recordações de infância) 

Corria mais uma manhã daqueles primeiros dias de Maio de 1950. O céu completamente limpo iria proporcionar, por certo, mais um belo dia, com temperaturas já elevadas para a época primaveril. A rua que atravessa a povoação é conhecida por Estrada Real. Foi a via principal que nos ligava a Roma: a sul, por Conimbriga ou Scallabis a Emerita Augusta e, pelo norte, através de Calem, Portucale, Bracara Augusta e Astúrica Augusta.


Por ela passaram militares, de soldados a generais, eremitas e peregrinos, padres e bispos, noviças e freiras, criados e fidalgos, reis e rainhas. Enfim, digamos que por ali passou todo o mundo. Tudo, nos outros tempos, porque no meu tempo, só passávamos nós, a pé e descalços, passavam outros de socos ou chancas e alguns em carros de bois. Também passava o gado para a Feira dos 10 e 28 e, em rebanhos, por altura do S. João do Porto.

Mais tarde, em 1970, conheci um empreiteiro em Angola que havia ido para lá há cerca de 40 anos e que nunca mais voltara à Metrópole, alegando que “não o fez porque lá não se esquecera de nada”. Este senhor, de nome Claudino, era muito crítico em relação à miséria que conhecia bem de a ter vivido no norte, lá para os lados da Beira Alta. Então, falava sempre com sarcasmo nos êxitos do Salazar. E dizia:
- É um dos homens mais inteligentes do mundo. O exemplo mais flagrante que conhecemos é o da criação e desenvolvimento da máquina “carro de bois”. Imaginem só, o emprego que dá a tantas pessoas.

E explicava:
- Na frente, vai a filha do empresário, de vara ao ombro, agarrada aos arreios que ligam os bois;
- Logo atrás, do lado direito, vai o empresário sentado junto ao cu do boi. Leva também uma vara para orientar a marcha da viatura;
- Do lado esquerdo vai o moço, para ajudar nas cargas e descargas e vigiar o garrafão e o cesto do apoio logístico;
- Atrás, de lata pendurada numa mão e pincel de trapos na outra, segue o aprendiz de moço, que vai untando o eixo das rodas;
- Mais atrás, segue uma mulher de giga à cabeça, acompanhada pela filha que, de pá na mão, vai aguardando que caia a bosta dos bois.

Pois eu também me recordava bem de ver essa “máquina”. E vi outras coisas nessa rua de Imperador Romano onde, como criança, vivi com as pessoas mais humildes que então conheci.

Apesar daquelas pedras enormes, solidamente assentes e agarradas entre si, não sei porquê, existiam clareiras de terra batida, onde jogávamos à bola de trapos, ao pião, à bogalhinha, ao pica-pau, à tocha do ar, à malha, ao eixo e à macaca. O pior era a conjugação da utilização desse parque de jogos. É que, quando as mães regressavam do monte, onde iam ao moliço (caruma de pinheiro) e à carqueja, precisavam de espaço para a seca desses combustíveis biológicos, a fim de os entregar bem secos nas padarias.




De viaturas, lembro-me de as ver passar por ocasião de dois casamentos: um, o da filha da Senhora Micas, que casou com um “venezuelano” e o outro, o do filho do Senhor Quintana, negociante de sucesso, com a fama de vender bem o gado doente, para os talhos da Malveira. Num e noutro caso, parávamos o jogo de futebol e, como os carros tinham que andar devagar, aproveitávamos para saltar para cima deles em andamento.

Também me lembro de um dia ter ficado aterrado de medo, quando passaram uns carros de combate, com o primo Neca, filho da tia Amélia Tabareda, dentro de um deles. Ele chorava ao ouvir a mãe desesperada, a gritar:
- Ai, o meu rico filho que vai para a guerra!
- Ai, o meu querido filho que vai morrer!

Eu ainda não tinha 5 anos, seguramente. Porém, dado o choque que senti, ainda hoje tenho fixadas na mente essas imagens. Penso que terá sido no Verão de 1947 e se tratava de manobras militares, ainda muito influenciadas pela II Grande Guerra.

************

Pois quando a manhã desse dia de Maio não ia além das 8h30, já toda a gente andava ocupada. Os homens tinham ido para as fábricas, os filhos para as escolas e as mulheres para o monte. Toda a rua estava deserta. A excepção surgiu, vinda do outro extremo da vila. Entraram pelo lado do caminho do Souto. Uma senhora, de chapéu de palha e de vestes claras, bem apresentável para os seus cinquenta e tal anos, de sombrinha fechada, que servia de bengala, bem ornada pela sua pega de prata, onde sobressaia uma pequena escultura de um crucifixo em forma estilizada. Também se lhe destacavam um vistoso terço ao pescoço com um medalhão da Senhora de Lourdes e uma concha de Santiago de Compostela e, ainda, um enorme broche ao peito, com a imagem da Virgem Maria. Logo atrás, seguia uma senhora de aspecto humilde, descalça, de giga à cabeça, aparentando cerca de sessenta e cinco anos. Naquela carga volumosa, apertada por uma escassa toalha, é bem visível um saco de batatas, panela, tacho, fogareiro a petróleo e ainda a asa de um garrafão. Com ela, a Felismina Estaca, vinha também um miúdo descalço, de cerca de 7 anos, com um saco de pano às costas. Era o seu neto Jeremias que vinha, para ficar em casa da sobrinha Conceição, durante esta sua deslocação a Fátima.

Bateu na porta dos Margaridos, com o referido cristo de prata, surgiu a Dona Juliana, que logo manifestou a sua relação afectiva com a visitante:
- Então, prima Joaquina, que andas por aqui a fazer? Bem dizias que ias a Fátima, outra vez.
- Sim, já te tinha dito que ia. Olha, com esta, é a vigésima sexta vez que lá vou. Já lá fui mais vezes do que tu. Enquanto Jesus Cristo quiser e a sua mãe Virgem Santíssima me ajudar, lá irei.

A Juliana interrompeu-a:
- Sabes lá o que custou ter criado um filho padre e aturar um marido fidalgo. Bem gostaria de te fazer companhia. Espero que Deus Nosso Senhor não se esqueça da minha penitência, quando chegada a hora de partir.

Voltou a Joaquina:
- É por isso que eu, apesar de não ter um filho padre, também espero que todas as minhas rezas e peregrinações contem para um bom lugar na vida eterna, à direita de Deus Nosso Senhor. Eu sei que me falta ir à Terra Santa, mas devo ir lá brevemente, custe o que custar. Mas, já disse, quando eu morrer, não quero que ponham nada na lápide no cemitério a lembrar as minhas peregrinações, como fizeram no jazigo da Baptistinha.

- Não queres entrar? A minha mãe já se levantou. Hoje quer ir à missa do meu Sebastião, que a vai celebrar na Capela da Senhora das Dores. Ela tem muito orgulho neste neto.
- Só a vou cumprimentar. Não posso demorar porque quero juntar-me ao primo da Mala-Posta que já deve estar à minha espera.

Então o Sebastião sempre vai para Roma?
- Nem me fales nisso. Se soubesses o que temos passado, a mexer os cordelinhos. Olha que não é por falta de devoção à Virgem Maria nem por falta de ódio ao comunismo. Sabes bem que além da devoção ao Santo Padre Pio XII e ao nosso Cardeal Cerejeira, temos muito respeito pelo nosso Salazar. O meu homem, que é da União Nacional, vai conseguir.

De volta, a Joaquina, vinha acompanhada da Juliana, que lhe pedia:
- Não te esqueças de vir cá pelas festas do Corpo de Cristo, para acertarmos a ida aos banhos.

************

Logo ali, mais acima, havia um pequeno largo, onde se agrupavam habitações, algumas delas adaptadas de celeiros e de outros barracões. Numa delas vivia o Serafim do Canto, viúvo de Lurdes do Estaca, com sua filha única, a Conceição. Ele era serrador e havia ficado bastante ferido de uma perna num acidente. Enviuvou cedo e ficou com esta filha a cuidar dele. Viviam praticamente de esmolas. A rapariga era bastante frágil e tinha dificuldade em fazer trabalhos remunerados. O pouco que ganhava era a fazer bilros. No entanto, dada a sua dedicação religiosa, acabou por se destacar a ensinar a doutrina para a Comunhão Solene. Por isso, era tratada por “Soramestra”. Era analfabeta mas os seus alunos apareciam nos exames como autênticos papagaios. Eram sempre os melhores. Todavia, dos seus alunos nunca algum foi escolhido para fazer discurso no dia da Comunhão Solene. Possivelmente porque essa vaidade estava mais reservada para os descendentes de famílias mais importantes.

Nunca se ouviu dizer que a Conceição teve qualquer namorico. Esquelética, escanzelada e pouco atraente, não parecia entusiasmar quem quer que fosse. Por outro lado, a obrigação de ajudar o pai, aliada à sua religiosidade, anularia, por certo, qualquer tentativa amorosa.

O Senhor Serafim também ajudava, através dos serviços que prestava como curandeiro. Para mim, que em criança vivia por perto, ele era um homem ponderado, muito experiente e muito respeitado. Dava gosto, ouvi-lo contar as suas histórias incríveis, mesmo quando nos faziam perder o sono. Com ele, ficávamos crentes em benzeduras, rezas, espíritos, maleitas e bruxedos.

Recordo, mais tarde, já moço, ter levado à letra uma regra sagrada:
- Quando aparecer uma “coisa ruim”, não se pode recuar e mudar de caminho, porque a “coisa ruim” volta a aparecer.

E sempre que eu passava a altas horas, por um dos dois caminhos que ligavam ao centro da vila, ambos interrompidos por locais escuros e medonhos, vinha-me à memória aquela história que ele contava, do caixão iluminado por velas, a atrancar o caminho de tal forma, que ele teve que passar por cima das silvas e que ficara todo arranhado.

Pois eu, um dia, ou melhor, numa noite, já depois de ter passado as Alminhas dos Três Caminhos, sempre iluminada por uma lamparina de azeite, quando entrei na zona escura, entre o pinhal do Monte de Souto, comecei a ouvir uma voz cavernosa que pausadamente repetia:
- Se veeennns porrrr beeemm,….aaannnda!!!

Instintivamente, quase fiquei estático. De repente, não sabia que fazer. Apetecia-me ir para trás e fugir pelo caminho da Carreira Funda mas, logo me veio à cabeça a profecia do velho Serafim. Não podia fugir.

As pernas pareciam andar por si e nem as sentia poisar o chão, os olhos arregalados sem verem nada, o couro cabeludo parecia encortiçado, o cabelo ficou encrespado e no cu não cabia um feijão fradinho. Parecia um autómato em direcção ao abismo. E a voz voltava:
- Se veeennns porrrr beeemm,…. aaannnda!!!

Já perto, esperava o pior. Ao passar de lado, noto os contornos de um indivíduo encostado a uma pequena ribanceira. Foi então que ouvi, agora em voz baixa e em jeito de resmungão:
- Pelo meeennos, a salvaçããoo,dááá-se!

Sem parar, e já uns passos à frente, respondi:
- Então, boa noite.

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Pobres entre os mais pobres, beneficiavam da entreajuda dos vizinhos e também da caridade do senhorio.
Ao aproximar-se do pequeno largo, a Felismina disse:
- D. Joaquina, por favor, vá andando que eu vou levar o Jeremias à minha sobrinha e já sigo.

Momentos depois, ouvia-se a Conceição:
- Fique descansada, o Jeremias fica bem. Sabe que não precisava de me dar nada. Que Deus lhe pague, tia, porque você também bem precisa. Olhe que tem de se poupar porque isso de ir de carrego a Fátima tantas vezes no ano, não pode aguentar sempre.
- Eu sei, rapariga – respondeu a tia – logo que o Jeremias vá trabalhar, nunca mais faço isto. Que Deus me perdoe, mas já estou farta de Fátima até aos cabelos.

Poucos metros ao lado, entre umas divisórias de madeira, ouvia-se o martelar do sapateiro Neca da Fonte, ao mesmo tempo que esticava com a turquês o cabedal sobre a forma (molde) de madeira e o ia pregando progressivamente. Ele, vizinho de porta com porta, sabia tudo que se passava naquela “ilha”. Compreendia a devoção da Conceição, mas não deixava de exprimir a sua opinião de descrença nos exageros da religião ou nas suas acentuadas contradições. Apesar de analfabeto, dizia coisas que me pareciam sábias. Foi dele que ouvi dizer que Deus, para ser entendido por todos, somente precisava de nos ensinar a diferenciar a prática do bem ou do mal. E que isso era muito simples. Caso contrário, a prática do bem não pode estar condicionada a muitos estudos ou a opulências materiais. Também dizia que os simples ou pobres, sabiam bem distinguir o bem do mal e que os outros, os do poder e do saber, de tudo eram capazes para se valorizarem e inocentarem.
Ele gostava muito de se afirmar através dessas suas certezas.  Quase todos os dias, erguia a voz para que se ouvisse dizer este poema, de autor desconhecido:

Levando uma criança pela mão 
Entrava uma senhora na igreja 
Onde foi rezar com devoção 
Só o reino de Deus, ela deseja. 

Sentado à porta estava 
Um pobre cego que lhe pediu esmola p’ra comer. 
E ela respondeu com desprezo: 
- Perdoai-me Senhor, não pode ser. 

Depois de rezar se confessou 
E numa caixinha foi deitar 
Dinheiro que da bolsinha tirou. 

Ao ver o gesto dela, seu filhinho 
Dizia para a mãe em voz baixa: 
- Porque não deste esmola ao ceguinho, 
E foste deitá-la naquela caixa? 

É para azeite, filho, aqueles cobres 
Para iluminar nosso Senhor 
Antes dar a Deus, do que dar aos pobres 
Foi o que disse há pouco o bom prior.
 
- Mãezinha, no prior não acredito, 
Dizia o garotinho com desdém 
- Dar esmola ao ceguinho é mais bonito 
Porque o ceguinho tem fome, e Deus não tem.

Sempre mantive algum relacionamento com o Jeremias. Convivemos em criança quando vinha para casa da tia, a Soramestra e, mais tarde, através do grupo da JOC. Posteriormente, pouco tempo depois da chegada da Guiné, encontrei-o num velório. Falámos de várias coisas, especialmente da Guiné e dos tempos de criança. Da Guiné, salientava as Operações efectuadas na zona norte, onde sofrera várias emboscadas. Quase nos encontrámos naquela zona, porque veio pouco tempo antes de eu lá chegar.

Sobre os tempos de criança, passados comigo, lá na Estrada Real, ele valorizava imenso aqueles dias de brincadeira. Lembrou-me daquela história da D. Guidinha, mãe da D. Juliana e avó do Padre Sebastião, quando trouxe para junto do seu portão, uma giga de maçãs podres e nos chamou:
- Canalhada, vinde aqui às maçãs!

Corremos para ela, cheios de entusiasmo e quando estávamos ao seu redor, ela atirou as maças para o chão e desatou a rir às gargalhadas.
Os miúdos atropelavam-se a apanhar as maças. Algumas delas ficavam enfiadas nos dedos, todas esborrachadas.
E como me recusei àquele espectáculo, o Jeremias lembrou que, a partir dali, passámos a ir directa e perigosamente às árvores, “roubar” a melhor fruta dos Margaridos.

O Jeremias quase não se relacionava com a mãe. Nem sabia quem era o pai. Ele era fruto de um descuido profissional da mãe, prostituta. Ela perdera cedo a virgindade e cedo se dedicara a essa actividade. Fugiu para o Porto, onde era vista amiúde na zona do Cimo de Vila, precisamente onde chegavam os autocarros da aldeia. Aliás, ela fazia questão de ter muita “clientela” da sua terra natal.

Contrariamente ao que seria espectável, o Jeremias era rapaz humilde, cordato, crente e simpático. Logo que fez a 4.ª classe foi trabalhar para uma fábrica de calçado, onde se manteve fielmente até à reforma. Ajudou, exemplarmente, a avó que o criou, enquanto foi viva. Ela faleceu quando ele estava na Guiné.
Logo que chegou, casou com a namorada que o esperou durante esse tempo de guerra. Ambos, são fervorosos católicos praticantes. Todos os anos vão a Fátima, a pé, no cumprimento da promessa que fizeram juntos, antes de ele partir para a Guiné. Têm dois filhos e três netos a quem têm dedicado toda a sua vida.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15836: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (22): O “Galã de Nhacra” e “Conquistador de Guimarães”

Guiné 63/74 - P16053: Convívios (738): XXIII Encontro Anual do pessoal do Batalhão de Caçadores 2912 (Galomaro, 1970/72), a levar a efeito no dia 4 de Junho de 2016, em Guimarães (António Tavares, ex-Fur Mil SAM)



1. Em mensagem do dia 4 de Maio de 2016, o nosso camarada António Tavares (ex-Fur Mil SAM da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), pede-nos a divulgação do XXIII Convívio do seu Batalhão, a levar a efeito no próximo dia 4 de Junho, em Guimarães, conforme os anexos publicados.






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Nota do editor

Último poste da série de 2 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16041: Convívios (737): Em 16 de abril útimo realizou-se o 1º encontro de ex-combatentes de Faro, que estiveram no TO da Guiné... Nasceu, finalmente, a tão desejada, e já aqui falada, Tabanca do Algarve, com próximo encontro já marcado para 14/4/2017 (José Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Enxalé e Ilha das Galinhas, 1966/68)

Guiné 63/74 - P16052: Os nossos seres, saberes e lazeres (153): O novo livro do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa, "Onde a Cegonha Poisou - Contos Autobiográficos do meu Manuel", já está disponível (O autor)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa, Sargento-Ajudante Reformado da GNR (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74), com data de 25 de Abril de 2016, anunciando a publicação do seu segundo livro, este com o título ONDE A CEGONHA POISOU – Contos Autobiográficos do "meu Manuel":

"Amigo Carlos Vinhal: 
Recebi recentemente um e-mail do nosso camarada Luís Graça, que tu também deves ter recebido, manifestando a sua preocupação em chegar ao ponto de recear telefonar para qualquer um de nós, temendo que o seu contacto seja já inoportuno, pedindo para dizermos "Ok, ainda estamos cá", como prova de vida. 
Estando a rapaziada toda já "entradota", compreendo a sua preocupação. Pela parte que me toca, aqui estou a dizer "OK, ainda estou por cá", enviando-te em anexo um texto para, se o entenderes, o publicares. É um excerto do meu novo livro autobiográfico, prestes a ser editado, que contém uma mensagem de Natal, embora já um pouco extemporânea, para todos os companheiros. 

Agora, amigo Carlos, com a publicação deste texto, ou a rapaziada gosta e vai adquirir o livro, espicaçada que foi, assim, a sua curiosidade, ajudando-me a escoar os livros que as editoras me "obrigam" a adquirir, mesmo sendo o autor, ou não gostam mesmo nada deste naco de prosa e o destino dos livros, além de um ou outro que vou por na estante, é uma pilha a um canto da garagem. 
Como vês amigo, ainda cá estou e com algum sentido de humor. 
Envio-te também uma fotografia para ilustração. 

Um abraço para ti e para todos os companheiros, e respectivos familiares. 
Bom Ano de 2016 
Manuel Sousa"

Foi assim o meu anúncio de que estava a escrever um novo livro, juntando o excerto de um texto que dele é parte integrante, como conto de Natal dirigido a todos os companheiros ex-combatentes da "tabanca grande", fazendo, ao mesmo tempo, a minha prova de vida de 2016, que deu lugar ao Poste 15596.

O companheiro e "patrão" do nosso blogue, Luís Graça, no seu comentário no mesmo post recomendou:
"...Manda notícias sobre o livro quando estiver pronto!... 
Luís Graça". 

Pois bem, aqui estou eu, portanto, a "dar ao rol" o meu novo "rebento", de quem acabei de cortar o "cordão umbilical", que se chama ONDE A CEGONHA POISOU – Contos Autobiográficos do "meu Manuel".

Ei-lo:


Sendo este livro de cariz autobiográfico, como o próprio subtítulo sugere, é um livro simples, que eu sou suspeito em avaliar, mas que, no fundo, eu considero o meu "curriculum vitae", como agora a gente mais nova diz, que eu apresentei quando fui admitido na tropa, que culminou com a tormenta do terror de guerra, na qual nos vimos envolvidos, em que, apesar de todo o sofrimento que isso implicou, redundou em toda esta amizade de que comungamos.
Ao longo da minha escrita vou deixando ilustrações de coisas que me marcaram na infância, adolescência e juventude consubstanciadas em desenhos da minha autoria, em vez de fotografias, que lhe confere, creio eu, alguma originalidade.
Por exemplo, quando descrevi aquele meu conto de Natal não quis deixar de apresentar a morada daquele generoso Menino Jesus, que é a Capela de Santa Luzia na aldeia da Carrapatosa, Linhares, Carrazeda de Ansiães, a terra da minha mãe, fazendo questão de reproduzir também o fontanário em ferro fundido, situado em frente à capela, onde, em criança, me empoleirava a beber água directamente da torneira:


Também ao descrever a minha escola, cujo edifício hoje está afecto à sede do Grupo Desportivo, Cultural e Recreativo de Folgares, a minha terra:


E assim, sucessivamente. Contudo os desenhos aparecem na obra a preto e branco, visto que a edição a cores se tornava muito mais onerosa, aí pelo triplo.
Aqui deixo a apresentação que fiz do livro no facebook, destinados a todos os meus amigos, considerando que também tenha interesse para outros que não estão em contacto comigo através daquela rede social, que é o caso da maior parte dos nossos "camarigos" deste blogue.
Alguns dos seus nomes, para lhes despertar a curiosidade, estão registados nesta obra, no contexto do seu enredo, principalmente através de comentários que fizeram a alguma da minha "literatura" que tem vindo a ser publicada no blogue:

"Finalmente, a edição do meu novo livro está concluída e ele aí está, bem fresquinho, pronto a ser lido por quem o desejar. 
Sendo um livro de contos, é como que uma peça de teatro em vários actos, cujos actores, em que eu estou incluído, evoluem num vasto palco, tendo como fundo bonitas terras do nordeste transmontano, particularmente a minha aldeia, os meus Folgares, não fosse o livro autobiográfico, Freixiel, Vila Flor, Carrazeda de Ansiães, e zonas do Douro e do Tua, entre outras, em que é retratado o quotidiano das suas gentes dos anos 50, 60 e 70 do século passado. 
Teria o maior prazer em oferecer um exemplar a cada um dos meus amigos, mas, como são tantos, felizmente, isso significaria ter de pedir ao tribunal para ser decretada a minha insolvência económica (risos). Isto só para ilustrar o preço em que ficam os livros, mesmo para o autor. 
Depois, pelo que aprendi aquando da edição do meu livro anterior, oferecer um livro poderia provocar três coisas distintas junto de quem o viesse a receber: - Uma leitura atenta e interessada, o que aconteceria na maior parte dos casos; 
- A “coacção”, ou seja, a obrigação de o ler, se, de facto, não tivesse o gosto e hábitos de leitura; 
- Nunca viria a ser lido, ficando, na melhor das hipóteses, apenas a fazer parte da decoração da estante lá de casa. 
Assim, deixo ao critério de cada um para que, livremente, decida se o quer adquirir ou não. 
Em caso afirmativo, com a sua compra, é uma prova inequívoca de que essa pessoa tem a curiosidade e o gosto de o ler. O barómetro fiel da sua receptividade junto dos leitores. 
É claro que, mesmo assim, ainda vou oferecer alguns. 
Boa leitura para quem o vier a obter. Da minha parte, esforcei-me para que essa leitura seja agradável. Não sei se o consegui. 
Onde o adquirir? Já muitos amigos me perguntaram. 
Para já pode ser adquirido através da internet, utilizando as palavras-chave (Onde a Cegonha Poisou sítio do livro); 
Dentro em breve pode ser comprado também na livraria FERIN (Ferã), na rua Nova do Almada, n.º 70, ao Chiado, em Lisboa, directamente na livraria ou fazendo a encomenda por telefone, 213424422, das 10 às 20 horas; 
Em qualquer livraria do país, por encomenda."

Um abraço para todos, com votos de uma boa leitura para quem vier a adquirir o livro.
Manuel Sousa
Abril 2016

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2. Comentário do editor

Como é lógico, ainda não li este novo livro do nosso camarada e amigo Manuel Luís, mas pela leitura do anterior, "Prece de um Combatente", onde nos é dado "um cheirinho" da sua meninice, não me é difícil adivinhar, neste livro autobiográfico, uma narrativa cheia de vivências de autêntica luta diária contra, e a favor, da natureza, tão peculiar de Trás-os-Montes, onde os homens e as mulheres se fazem cedo. Histórias de um passado recente, que felizmente não são repetíveis porque se mudaram os tempos, as mentalidades e as formas de trabalhar a terra.

Caro Manuel, esperamos que o teu livro seja um êxito. És um homem de inúmeras facetas, e a de escritor está aí ao alcance de todos.

Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Maio de 2016 Guiné 63/74 - P16048: Os nossos seres, saberes e lazeres (152): A pele de Tomar (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16051: Agenda cultural (478): Lançamento do livro "Haikus do Japão e do Mundo", de António Graça de Abreu, 10 de Maio pelas 18h30, no Centro Científico e Cultural de Macau, Rua da Junqueira, 30 - Lisboa: "Gostava de ter lá alguns camaradas da Guiné, e de ler dois ou três haikus sobre a nossa guerra" (o autor)





1. Mensagem do  António Graça de Abreu, escritor, poeta, sinólogo, nosso camarada, ex-alf mil, CAOP 1 [Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74], membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 170 referências:

Data: 4 maio 2016, 22:02



Assunto: Lançamento do livro "Haikus do Japão e do Mundo", de António Graça de Abreu | 10 Maio 18h30

Meu caro Luís;

É o meu livro novíssimo [, edição da Gradiva, Lisboa, vd. aqui página do Facebook].

Parece não ter nada a ver com a nossa Guiné mas em 540 mini-poemas estão lá cerca de vinte haikus meus sobre nós, na nossa guerra na Guiné.

Acho que já foram publicados no blogue, em blogpoesia aí há um ano (*), mas até nos haikus do Japão a Guiné aparece.

Agradeço-te a divulgação. Gostava de ter lá alguns camaradas da Guiné, e de ler dois ou três haikus sobre a nossa guerra. (**)

Para que as outras pessoas não esqueçam.

Forte abraço amigo.
António Graça de Abreu
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Notas do editor:

´(*) Último poste da série > 8 de março de 2015 >  Guiné 63/74 - P14332: Blogpoesia (402): Um haiku à moda do Japão, em Dia Internacional da Mulher (António Graça de Abreu)

(...)

Envelhecemos.
Meio século após a Guiné,
beber os últimos prazeres da vida.

Nem derrotas, nem vitórias,
o fluir sinuoso das vontades dos homens
por dentro das lágrimas do tempo.

Nem flores do verde pino
nem o ondular das florestas.
Apenas bolanhas a ferro e fogo.

A menina mandinga
veio comer à minha mesa,
os olhos raiados de tristeza.

No Morés, laranjeiras rubras em flor
ou serão flores da guerra,
desabrochando em sangue, em calor?

Sangue e morte em Cufar,
a demência por dentro da noite.
Abraço a minha espada de guerra.

Guerra e paz em Mansoa,
nós, o coração esfarrapado,
no sonho breve, adiado,
do regresso a Lisboa.

Uma íbis negra na foz do Cumbijã,
sacode as asas na névoa da pólvora
e esvoaça no horizonte azul.

Varri o chão, perfumei o leito,
mas a bajuda não veio.
Eu sou branco e feio.

Na humidade quente dos dias da guerra,
no leito de ferro,
no colchão de borracha enegrecida,
recordo o perfume faiscante
das dobras do teu corpo,
menina de seios de linho e alabastro.
Adormeci abraçado a ti.
Ao acordar,
apenas o rumor cálido
da ausência e do vazio. (...)

(**) Último poste da série > 29 de abril de  2016 > Guiné 63/74 - P16030: Agenda cultural (477): Ciclo de conferências 2016: "A censura na Ditadura Militar e no Estado Novo (1926-1974)": Museu Bernardino Machado, V. N. Famalicão, hoje, às 21h30, entrada gratuita

Guiné 63/74 - P16050: Parabéns a você (1075): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 2317 (Guiné, 1968/69)

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Nota do editor

Último poste da série de Guiné 63/74 - P16046: Parabéns a você (1072): José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CART 2716 (Guiné, 1970/72)

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16049: Na festa dos 12 anos, "manga de tempo", do nosso blogue (8): A bonita e original capelinha de Buruntuma, de estética modernista (José Mota Tavares, ex-alferes mil capelão, CCS/BCAÇ 1856, Nova Lamego, 1965/67)



Foto nº 1


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Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6

Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Buruntuma > Buruntuma > É uma das mais  bonitas e originais capelas que temos visto nas nossas fotos da Guiné... O arquiteto e mestre de obras terá sido o José Mota Tavares, nosso camarada da CCS/BCAÇ 1856 (Nova Lamego, 1965/67) que nos mandou, recentemente,   fotos da "sua" capela...  Não sabemos onde mora, nem o que faz hoje,  sabemos (por pesquisa no nosso próprio blogue que foi alf mil capelão).. A capela terá sido mais tarde transformada ("vandalizada", diz ele) em escola ...

Fotos: © Mota Tavares (2016). Todos os direitos reservados.


1. Em 15 de agosto de 2015, o nosso leitor (e camarada) [José] Mota Teixeira, que a avaliar pelo seu endereço de email deve ser da colheita de 1935,   escreveu-nos o seguinte

"Nós fazemos um almoço todos os anos [, o BCAÇ 1856]. Recebi, mandada por um meu capitão, a foto que lhe mando em anexo [, Foto nº 6]. Tive uma alegria imensa: é que fui eu o arquitecto, engenheiro, mestre de obras, pintor da imagem de Cristo que está ao fundo, com o apoio material e moral do capitão que agora me mandou a foto, que lhe envio em anexo". (*)

(...) "O meu batalhão, o BCAÇ 1856, chegou à Guiné em [agosto de] 1965 e foi para Brá, onde estivemos, em intervenção, algum, pouco, tempo. Depois fomos mandados para Nova Lamego (Gabú) onde ficámos até final da comissão [abril de 1967]: Madina do Boé, Canquelifá, Piche, Copá, Buruntuma... estive em todas ...12 vezes debaixo de fogo, mas ... estou aqui, graças a Deus!" (...)

 (...) "Gostava de contactar com o militar que se escontra na foto e com outros que tenham estado em Buruntuma. É possível? Vou-lhe mandar outro email com várias fotos da dita capelinha." (Fotos nºs 1, 2,3,4 e 5].

O nosso editor Carlos Vinhal deu-lhe as boas vindas e convidou-o a integrar o nosso blogue mas até agora não obtivemos resposta. Claro que o convite continua de pé. O meu sexto sentido disse-me logo, ainda antes de o saber,  que o Mota Tavares só podia ser capelão. Terá feito uma segunda comissão em Angola...Reeditamos estas fotos, de modo a ilustrar o tema "capelas e igrejas" do nosso tempo no TO da Guiné (**). 


2. Deste batalhão, o BCAÇ 1856 (cmdt: ten cor  inf António da Anunciação Marques Lopes) sabemos que: 

(i) foi mobilizado pelo RI 1 (Amadora);

(ii) partiu em 31/7/1965 e chegou a Bissau em 6/8/1965;

(iii) em 2/3/1966,  o comando foi instalado em Nova Lamego, tendo em vista a substituição do BCav 705;

(iv) a 1 de maio assumiu o comando do setor L3, Nova Lamego, abrangendo os subsetores de Bajocunda, Canquelifá, Piche, Buruntuma, Madina do Boé e Nova Lamego;

(v) as companhias operacionais estavam sediadas em: Madina do Boé (CCAÇ 1416, com um destacamento em Beli; cmdt: cap mil inf Jorge Monteiro); Bajocunda (CCAÇ 1417, com um destacamento em Copá; cmdt: cap inf José Casimiro Gomes Gonçalves Aranha); e Buruntuma (CCAÇ 1418, com um destacamento em Ponte Caium; cmdt: cap inf  António Fernando Pinto de Oliveira).

(vi) foi rendido pelo BCav 1915 em 15 de abril de 1967, regressando de imediato à metrópole.

Sabemos que o Mota Tavares era capelão por que tem um pequeno capítulo do livro do nosso grã-tabanqueiro Manuel Domingues (ex-alf mil op esp, cmdt pel rec inf, CCS/BCAÇ 1856, "Uma campanha na Guiné, 1965/67: história de uma guerra", edição de autor. Título do capítulo:

"Coisas que o capelão passou na Guiné", por Mota Tavares, capelão do BCAÇ 1856 (mais um a quem disseram: 'Senhor capelão, o senhor sabe por que está aqui? Veja lá como me fala' - diz ele que 'fiquei a saber que a PIDE e a minha história de revolta cristã tinham chegado ao Batalhão primeiro que eu').


3. Do José Mota Tavares, encontrámos na Net um comentário, no blogue da UASP - União das Associações dos Antigos Alunos dos Seminários Portugueses

José Mota Tavares
Terça, 8 de Março de 2016, 23:08

Caros Amigos

Li, com muito entusiasmo o relato da vossa visita ao Gabu [, poste por AO - antigo alferes capelão], no meu tempo Nova Lamego. Aí passei quase dois anos. Todas as terras de que vocês falam,  me foram familiares e de que tenho muitas fotografias e diapositivos. Estive [lá] em 1965-67.

Tenho imensas histórias de Piche, Canquelifá (uma operação e duas vezes debaixo de fogo), Fá (emboscada e…aventura!), Bajucunda, Copá, Madina do Boé (8 ou 10 vezes debaixo de fogo, três mortos, duas fugas durante a missa para o abrigo…),  Buruntuma onde construí uma linda capela – fui o arquitecto, o engenheiro, o pintor, o mestre de obras com o apoio do capitão de que ainda hoje sou amigo. 

[Foi] inaugurada pelo brigadeiro Reimão Nogueira e [nela foi] baptizado um furriel de Lisboa. Chegou-me há  tempo uma foto dessa capela “vandalizada” pelos militares que lá estiveram depois – transformaram-na em escola!…

Bafatá, Bula, Bissau …as escoltas,  12 vezes debaixo de fogo, 27 operações com muitas histórias que dariam um enorme texto! Mas, por hoje, fico por aqui e ao vosso dispor.

Voltei a estar debaixo de fogo em Angola que me “valeu” tirar o curso de Paraquedismo e…

Guiné 63/74 - P16048: Os nossos seres, saberes e lazeres (152): A pele de Tomar (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
Há quem se faça à viagem para ir ao Vale dos Reis, contemplar pirâmides, ou percorra o Tamisa para sentir no rio todo o poder de então e o esplendor da City, a maior praça financeira da Europa. Intramuros, as nossas viagens não deixam de ser surpreendentes e o que Tomar oferece tem uma magnificência discreta, há para ali um brilho antigo ditado pela presença templária, pelos bens da Ordem de Cristo, por aquele rei D. Manuel que não descansou enquanto não viu o seu sonho cumprido, a Charola, talvez a mais retumbante ao cimo da Terra.
A Tomar que eu calcorreio são vestígios, pormenores de materiais usados na arquitetura em vários séculos, são, como o título da rubrica aponta, manifestações epidérmicas, que se caldeiam entre o passado e o presente, suficientemente elucidativas para tomar a cidade nos braços e olhá-la com ternura, bem o merece.

Um abraço do
Mário


A pele de Tomar (3)

Beja Santos

No final do seu livro “Viagem a Portugal”, José Saramago escreve: “A viagem acabou. Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: ‘Não há mais que ver’, saia que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que nunca foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava”. Pois vai ser assim a viagem que hoje enceto, embrenho-me em terra conhecida, em espaço que posso percorrer às cegas, procura uma luz diferente, é um a vagabundagem sem tempo, quero é uma certa luz por minha conta. E esta Tomar que me desvanece está num grande sossego.




Não, não ando à procura do tempo perdido, como o escritor Marcel Proust. É a sedução pelos espaços cuidados, o direito a uma cidade se tratar e retratar, ter memória, por aqui se calcorrear e dizer: é medieval, é renascentista, por aqui andaram mercadores, por aqui passou o Infante feliz depois de ter recebido as tenças, ali permaneceu o Venturoso que não descansou enquanto não viu a Charola transformada em suprema riqueza, em tesouro inigualável. Aqui deixo a minha profissão de fé pelos esquinados, por uma porta vetusta que abre para uma mansão bem conservada. E prossegue a viagem.




O que gosto mais nas portas é a proporção, o visível de um equilíbrio que o criador encontrou entre o lugar por onde se entra e sai e a largura e o comprimento do edifício. Acresce que quem lá vive tem sobejas vezes bastante orgulho em manter as portadas conservadas, é do senso comum que quem olha e vê a caliça a cair e a tinta a descamar lhe vem à ideia que temos lá dentro família desafortunada, já incapaz de manter preservado património que vem de outras eras. Porque o passado respeita-se, é um dos últimos assomos da dignidade que não queremos ver desrespeitado, na boca dos outros.




Tenho para mim que estas duas figuras à porta de templo religioso falam como parábola, dão para meditar entre o poderoso e aquele que se julga fraco, as vaidades mil, os abusos de poder, as insânias do forte contra o débil acabarão por ser castigadas. É esta a minha interpretação, e por isso aqui me detenho para me lembrar que venho do pó e em pó me hei de tornar. E depois há as fachadas, o tempo acumulado, os cuidados na manutenção desse bem precioso que são os valores ancestrais, e temos a contrapartida de situações de abandono, é caso para especulação: será litígio entre herdeiros? As obras começarão amanhã? Os proprietários andarão por França ou pela Suíça a amealhar tostões para as obras de vulto? As especulações não pagam imposto, qualquer dia o viajante passa por aqui, pode dar-se o caso do edifício estar refeito, não há mais motivos para a especulação.


Acreditem ou não, tive que esperar por um dia cinzento para que tudo acontecesse como eu tinha sonhado, a pedra em carne viva, parece uma moldura de uma grande construção, tem vontade de subir aos céus, felizmente que a câmara tem ecrã reduzido, cada um anteveja como foi este edifício no passado e se felicite por haver reconstrutores que sabem selar o passado ao presente e dar ao viajante o sentimento de que tudo tem futuro, e que Saramago tem razão no tal livro que já citei: “É preciso voltar aos espaços que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já”.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 27 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16024: Os nossos seres, saberes e lazeres (150): A pele de Tomar (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16027: Os nossos seres, saberes e lazeres (151): Mário Serra de Oliveira sugere uma visita a Alcaide, Fundão, na época das cerejas... (Por que não uma excursão da Tabanca Grande, a partir de Lisboa, uma, e outra do Porto?)

Guiné 63/74 - P16047: Historiografia da presença portuguesa em África (71): Com as duas grandes crises demográficas, provocadas pela seca e a fome, de 1941-43, e de 1947-1949, Cabo Verde perdeu cerca de 1/4 da sua população (que baixa de 181 mil em 1940, para c. 139 mil em 1949)



 
MEDINA, Lia - Evolução demográfica da Ilha de São Vicente: do descobrimento a 1950 [Em linha]. Lisboa: ISCTE, 2009. Dissertação de mestrado. [Consult. 2 de maio de 2016] Disponível em www:.




Excerto, com a devida vénia, das pp. 20-21. Informação adicional poste P16045 (*). 

Lia Medina pertence à nossa Tabanca Grande desde 27/972009. É cabo-verdiana, filha de mãe portuguesa, socióloga, e professora do ensino superior no Mindelo. Ainda não lhe tínhamos dado os parabéns pela conclusão do mestrado em Demografia e Sociologia da População, pelo ISCTE-IUL, Instituto Universitário de Lisboa. Aproveitamos também para saudar o nosso grã-tabanqueiro Adriano Lima, cor inf ref,  que se tem interessado pela historiografia das tropas expedicionárias portuguesas em Cabo Verde durante a II Guerra Mundial.



Foto nº 1


Foto nº 2

Cabo Verde >Ilha de São Vicente > 2006 > Ponta João Ribeiro >  Restos da baterias de artilharia de costa que, a par da instalada no Morro Branco, defendia o Mindelo, de acordo com o Plano de Defesa do Porto Grande de S. Vicente, ao tempo da II Guerra Mundial (**). A Ponta João Ribeiro fica hoje a 3 km da cidade do Mindelo, na parte da ilha, dividindo o canal de São Vicente e a Baía do Porto Grande  (Foto nº 1). Em frente, a menos de 1km, situa-se o ilhéu dos Pássaros (Foto nº 2).

Fotos: © Lia Medina (2009) / Blogue Luís Graça & Caranaras da Guine. Todos os direitos reservados

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16045: Historiografia da presença portuguesa em África (70): Vozes do império que não chegavam ao céu: António de Almeida, antropólogo e deputado à Assembelia Nacional: intervenção, antes da ordem do dia, por mor de Cabo Verde, em 24 de fevereiro de 1944

Guiné 63/74 - P16046: Parabéns a você (1074): José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CART 2716 (Guiné, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16043: Parabéns a você (1071): António Estácio, escritor guineense, Amigo Grã-Tabanqueiro e Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAV 3366 (Guiné, 1971/73)

terça-feira, 3 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16045: Historiografia da presença portuguesa em África (70): Vozes do império que não chegavam ao céu: António de Almeida, antropólogo e deputado à Assembelia Nacional: intervenção, antes da ordem do dia, por mor de Cabo Verde, em 24 de fevereiro de 1944




Folha de rosto do Diário das Sessões, nº 48, de 25 de fevereiro de 1944, 


1. António de Almeida (Penalva do Castelo, 1900 - Lisboa, 1984)

(i) professor, antropólogo e político português: foi, entre 1938 e 1957, deputado à Assembleia Nacional,pela União Nacional, o partido (único) do Estado Novo;

(ii) nasceu a 21 de agosto de 1900, em Sezures, em Penalva do Castelo, no distrito de Viseu;

(iii) formado em Medicina, exerceu medicina escolar e foi professor na Universidade de Lisboa e no Liceu Normal (Pedro Nunes);

(iv)  fez um pós-graduação na Escola de Medicina Tropical e na Escola Superior Colonial; doutorou-se em medicina pelo Instituto de Medicina Tropical (IMT);

(v) beneficiou, em 1934, de uma bolsa da Junta de Educação Nacional;

(vi)  dois anois depois, realizou trabalhos antropológicos em Angola e, a partir de 1935, foi lecionar Quimbundo e também Etnologia e Etnografia Colonial, na Escola Superior Colonial;

(vii) dirigiu o Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar:

(viii)  participou em várias expedições antropológicas e etnológicas nas colónias portuguesas;

(ix) a partir de 1953 até 1954, chefiou a missão antropológica de Timor, acompanhado, entre outros, do antropólogo Mendes Correia e do poeta e investigador Ruy Cinatti;

(x) como antropólogo salientou, "com muita minúcia, nos seus estudos, a diversidade étnica dos povos, a vida cultural e social e a fisiologia e carácter dos indígenas";

(xi) "as suas publicações, escritas para um grande público ou para congressos internacionais, serviram para criar e fortalecer a imagem do trabalho científico dos portugueses nas colónias";

(xii) em 1970, foi jubilado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), onde lecionou as matérias de Etnologia do Ultramar Português e de Antropobiologia;

(xiii) enquanto professor, "preocupou-se com o ensino colonial, tanto no estrangeiro, como em Portugal, e expôs várias medidas que permitiriam reformar a instrução ultramarina";

(xiv) faleceu a 16 de novembro de 1984, em Lisboa.

Fonte. Adapt de António de Almeida. In Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016. [consult. 2016-05-03 10:37:58]. Disponível na Internet: http://www.infopedia.pt/$antonio-de-almeida,4



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Baía do Mindelo > c. 1943/44 > A foto não tem referências a datas mas é visível tratar-se do [navio] Colonial [, ainda a navegar no final dos anos 40]. Foto do álbum do Hélder Sousa (*)

Foto: © Hélder Sousa (2009). Todos os direitos reservados.

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III legislatura (1942-1945) > 2ª sessão legislativa (1943-44)

Castilho, J. M. Tavares – Almeida, António de. In: Os deputados à Assembleia Nacional: biografia e carreira parlamentar. [Em linha] Lisboa: Assembleia da República. [Consult em 2 de maio de 2016],. Disponível em http://app.parlamento.pt/PublicacoesOnLine/DeputadosAN_1935-1974/html/pdf/a/almeida_antonio_de.pdf

Excerto de intervenão, antes da ordem do dia, em 24 de fevereiro de 1944, do depuitado António de Almeida,  referindo-se ao decreto-lei nº 33.508 que autorizava o governo a enviar a Cabo Verde uma missão técnica  "com o propósito de estudar e resolver os problemas relativos à construção e melhoramento das estradas, ao aproveitamento de recursos hidráulicos e ao revestimento florestal". Diário da Sessões, nº 48, pp. 65-66. Reproduzido com a devida vénia. Revisão e fixação de texto., (ª*) LG.


65 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 48

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António de Almeida.

O Sr. António de Almeida: - Sr. Presidente: durante a interrupção dos trabalhos da Assembleia Nacional o Governo publicou, pelo Ministério das Colónias, um importantíssimo diploma, cuja futura e benéfica repercussão económica e social consideravelmente se há-de fazer sentir no Arquipélago de Cabo Verde, ao qual se destina tão oportuna disposição legislativa. Refiro-me ao decreto-lei n.° 33.508, que autoriza o Governo a organizar e a enviar às terras crioulas uma missão técnica com o propósito de estudar e resolver os problemas relativos à construção e melhoramento das estradas, ao aproveitamento de recursos hidráulicos e ao revestimento florestal.

Sr. Presidente: descobertas há cerca de quinhentos anos pelos nossos navegadores, as desabitadas ilhas de então cedo constituíram objeto da nossa intensiva ação colonizadora; porém, a partir do domínio castelhano inicia-se a via dolorosa da população caboverdeana - ainda hoje não terminada -, parecendo que os agentes adversos, humanos e meteorológicos, se têm conluiado para molestar esta valiosa parcela do nosso Império de além-mar.

66 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 48

Assim, até ao final do século XVIII, as ilhas não mais deixaram de ser alvo de persistentes assaltos dos corsários estrangeiros; algumas erupções do fumegante vulcão do Fogo projetaram suas lavas devastadoras a grandes distâncias; uma pavorosa inundação arrastou para o mar um quarteirão completo da vila da Ribeira Grande, a capital de outrora; e, por seu lado, no século XIX, os governos da metrópole alhearam-se dos assuntos cabo-verdianos, em virtude de, primeiramente, andarem empenhados em expulsar os franceses e depois por serem possuídos pela preocupação obsessiva de implantar entre nós as recém-importadas ideias liberais.

Para cúmulo da desventura surgem, temporariamente, as horrorosas crises alimentares, que, persistindo até aos nossos dias, irão vitimar muitas dezenas de milhar de pessoas e de animais: três grandes períodos de fome no século passado e já outros tantos no atual - em 1903, em 1921 e o último há três anos apenas; e para ensombrar mais este quadro de infortúnio, em 1856, uma mortífera epidemia de cholera morbus dizima famílias inteiras, ficando desertas muitas aldeias da Ilha de S. Nicolau.

Sr. Presidente: a ação erosiva dos homens e dos animais - especialmente os milhares de cabras domésticas e selvagens que, na maior liberdade, vagueiam pelo Arquipélago - tem auxiliado enormemente a repetição das vagas de miséria, motivando profundas alterações meteorológicas, derivadas da destruição contínua e desorientada das espécies botânicas que cobriam as ilhas até à data do seu descobrimento; e haveremos apontado as principais origens das calamidades cabo-verdianas se acrescentarmos as violentas lestadas, que, acelerando a desarborização, comprometem a pluviosidade e, por conseguinte, condicionam a escassez de água, com prejuízo grave para o clima e para a vida e bem-estar da gente crioula.

Frequentemente, também, se tem imputado à imperfeita divisão da propriedade, ao primitivismo de processos agronómicos utilizados pelos naturais e à sua indolência uma cota parte das causas dos males que afetam o Arquipélago. Se, com efeito, o cabo-verdiano não sabe ainda tirar da terra tudo o que esta lhe pode oferecer, no entanto numerosas pessoas, no tempo das lavouras, mourejam nos campos ingratos e ressequidos, desenvolvendo esforços pertinazes e admiráveis; outras dedicam-se afanosamente às labutas da pesca marítima, laboram nos trapiches ou engenhos do açúcar, nas fábricas de conservas de peixe e de manipulação de tabaco e na indústria salineira, quando não se ocupam no transporte de pesados fardos, à cabeça e a pau e corda, por carreiros alcantilados, pedregosos e difíceis, tão característicos destas acidentadas ilhas.

E se seus habitantes não conseguem empregar-se na terra-mãe e arranjam possibilidades de emigrar, fazem-no de preferência para as colónias portuguesas de África, Américas e ilhas de Sandwich, territórios onde são apreciados condignamente, tanto pelo seu amor ao trabalho como pelas qualidades morais e intelectual que possuem.

Ultimamente, e por causa da guerra, as dificuldades dos caboverdeanos aumentaram extraordinariamente; a falta de navios mercantes estrangeiros que, antes do conflito e não obstante a temerosa competição das Canárias e de Dakar, se serviam dos seus portos a fim de se abastecerem de alimentos frescos e de combustíveis, junta a outros fatores de esmorecimento comercial, concorre bastante para o estado de depressão económica em que o Arquipélago se encontra.

Sr. Presidente: o Governo, após a elaboração de demorado e indispensável plano de obras - para o qual preponderantemente contribuiu a visita a Cabo Verde do ilustre Ministro das Colónias, realizada em 1942 -, conhecendo minuciosa e perfeitamente todas as circunstâncias, propõe-se enfrentar satisfazer as mais instantes necessidades da colónia e estimular o seu progresso, promovendo, tanto quanto humanamente for possível, a extinção ou a neutralização das crises de fome que, de onde em onde, apoquentam os naturais.

No notabilíssimo relatório que acompanha o decreto-lei n.° 33.508, em síntese magistral, focam-se as múltiplas facetas dos problemas postos em equação: construção de estradas e caminhos de montanha e beneficiamento das vias existentes, poucas e mal conservadas; aproveitamento da água das ribeiras, das nascentes e do subsolo, quer para abastecimento de água potável às povoações e para os serviços de salubridade pública, quer para regas, favorecendo a fertilidade dos terrenos e melhoria da produção; e, finalmente, a intensificação do repovoamento florestal, tarefa basilar, sem a qual não se obterão regularidade de chuvas, abundância de água e benefício do clima.

É a primeira vez, Sr. Presidente, que as ilhas crioulas veem as suas questões vitais tratadas em conjunto pela metrópole, com o carinho, inteligência e bom senso que há tanto tempo reclamavam o portuguesismo dos cabo-verdianos e o excecional valor político e estratégico da posição do Arquipélago no Atlântico. (Ao fazer esta afirmação não pretendo esquecer as diferentes tentativas parcelares, e que por isso resultaram infrutíferas, ensaiadas em favor de Cabo Verde).

A par das indicações de carácter administrativo e técnico e dos patrióticos fins a atingir pela missão, e com a maior brevidade - no diploma declara-se que as obras começarão a executar-se imediatamente após a conclusão dos trabalhos de gabinete e dentro de um prazo que nunca excederá dezoito meses -, a presente medida legislativa contém nova e excelente doutrina que enche de contentamento não só os cabo-verdianos como ainda todos quantos se entregam ao estudo dos seus problemas.

Sr. Presidente: a demonstrar, por forma objetiva e insofismável, que «ali também é Portugal», o Governo da Nação, depois de haver preparado, convenientemente, um plano de trabalhos, vai ordenar o respetivo estudo in loco, em condições análogas às que, em matéria de obras públicas, se estão pondo em prática nas ilhas adjacentes, o que equivale a dizer que os encargos da missão correm por conta da Mãe-Pátria, talqualmente o que acontece com as missões técnicas enviadas à Madeira e aos Açores.

Contudo, não é a liberalidade financeira do Governo central que deve impressionar, mais em especial esta nobilíssima atitude, de incalculável significado político, nacional e internacional, no momento presente, traduz absoluta garantia e certeza indubitável da dedicação e interesse que a Nação vota às ilhas, de Cabo Verde, aproximando-as espiritualmente cada vez mais da metrópole, colocando-as em situação moral semelhante à das ilhas adjacentes - o caminho natural para a respetiva identidade de regimes administrativos, a aspiração máxima dos portugueses de lei que são todos os filhos do Arquipélago, completamente integrados na civilização ocidental e cristã, inteiramente assimilados ao nosso espírito, à cultura lusitana.

Tenho dito.

2. Comentário do editor LG:

É um texto de um grande cinismo ou de uma grande ingenuidade. O médico e professor de antropologia colonial António de Almeida fala-nos da grande tragédia que foi, afinal,  a sociedade esclavagista de Cabo Verde, e das grandes secas e fomes que dizimaram a sua população ao longo dos séculos.  Mas é incapaz de dar conta do germes do nacionalismo que começam a despontar, no início dos anos 30 do séc. XX, muito antes de Amílcar Cabral, guinéu de origem caboverdiana. É verdade que, com a I República, as gentes de Cabo Verde foram os primeiros, de entre as populações africanas, a aceder ao estatuto de cidadania portuguesa. Mas como é que se podia, em 1944,evocar genuíno e arreigado o portugesismo dos cabo-verdianos. e "demonstrar de forma objetiva e insofismável", que 'ali também é (era) Portugal', quando o auxílio de Salazar chegava tarde e a mais horas ? Mais fizeram, isso sim,  os "expedicionários" que, como o meu pai, Luís Henriques (1920-2012)  ou o pai do Hélder Sousa, Ângelo Ferreira de Sousa (1921-2001), ou o pai do Luís Dias, Porfírio Dias (1919-1988),  ou o capitão médico José Baptista de Sousa (1904-1967), Chefe dos Serviços Cirúrgicos das Forças Expedicionárias de Cabo Verde, organizaram, livre e espontaneamente, campanhas de socorro à população das ilhas (, nomeadamente da ilha de São Vicente onde se concentrou o grosso das NT durante a II Guerra Mundial).
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Notas de leitura:

Guiné 63/74 - P16044: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (44): Os desentendimentos constantes entre alguns PALOP e Portugal... A luta continua.!...

1. Mensagem de António Rosinha;

[um dos nossos 'mais velhos', que andou por Angola, nas décadas de 50/60/70, do século passado... Fez o serviço militar em Angola, foi fur mil, em 1961/62, diz que foi 'colon' até 1974... 'Retornado', andou por aí (, com passagem pelo Brasil), até ir conhecer a 'pátria de Cabral', a Guiné-Bissau, onde foi 'cooperante', tendo trabalhado largos anos (1987/93) como topógrafo da TECNIL, a empresa que abriu todas ou quase todas as estradas que conhecemos na Guiné, antes e depois da 'independência'; é colunista do nosso blogue com a série 'Caderno de notas de um mais velho']

Data: 22 de abril de 2016 às 22:32

Assunto: Os desentendimentos constantes entre alguns PALOP e Portugal... A luta continua!


Lembramo-nos há uns anos no Estádio do Sporting do encontro "amigável" da Selecção Portuguesa e da Angolana com as canelas do Figo e do João Pinto e Cia, de um lado e do outro, Mantorras e as canelas dos "Meninos do Huambo".

Aquilo deu para o torto, e já não havia mais bola, só havia canelas.

Isto é um exemplo para se  tentar compreender  porquê, tantos desentendimentos entre nós e eles/eles e nós.

Podemos afirmar à partida, que é difícil vencer  complexos  e  melindres.

E os piores complexos, são provocados pelo facto de os políticos portugueses só falarem português, não sabem falar nem quimbundo, nem balanta nem landim, daí não entenderem nada de nada, mesmo com 500 anos  a ir e a vir.

E  os políticos desses países africanos, todos falam português mais os próprios idiomas, portanto têm  muito mais acuidade para dar a volta aos acontecimentos e defender e usar qualquer tipo de verdades  que entenderem, mesmo que sejam demagogias puras.

Já houve atritos e dificuldades de entendimento diplomático com Angola, com a Guiné e com Moçambique por várias vezes, desde as independências até hoje.

Aparecem os casos mais incríveis, que até parece  que nos damos todos "irmamente como inimigos"

Sendo que o relacionamento com Angola, o mais intenso com Portugal, é o mais notório.

Exemplos imensos, foram casos para resolver a devolução da Barragem Cabora Bassa aos Moçambicanos, vários anos e vários governos com avanços e recuos  intermináveis e montes de prejuízo para quem tinha os custos da manutenção da barragem (Portugal)

Com a Guiné também problemas múltiplos (Por amor a L. Cabral, contra Nino, zanga por M. Soares reclamar contra os fuzilamentos, tensões com a Guiiné/ Senegal em 1998,  e ainda há dois ou três anos, por causa de Cadogo, quase de relações cortadas).

Com Angola, é um caso mais bicudo, porque quanto maior a nau, maior a tormenta. Se durante a guerra angolana, algum político português apoiava um dos  lados, o outro reclamava que os portugueses ainda se " julgam"  imperialistas, racistas e colonialistas, e vice-versa, vira  o disco e toca a mesma.

Veio a paz, e agora, se não é o BESA  é outro banco qualquer, e se não é o Bloco é o Luaty, e se não é a Isabel  são os Espanhóis,  e se não houver mais nada para  discutir, põe-se em cima da mesa o racismo tuga, se este seria melhor ou pior que o apartheid dos outros colonialistas.

Este eterno complexo da " incipiente" colonização/exploração portuguesa que deixa complexados colonialistas e colonizadores, que nalguns casos nem  sabemos bem quem é que esteve de um lado ou do outro, quem é que explorou quem,  se   o preto ou o branco em África se o brasuca ou o portuga no Brasil, e é tal o complexo, que no fim de cada melindre diplomático fica-se sempre naquela do "pergunta o roto ao nu" porque não te vestes tu?

É muito difícil aos governos portugueses, uns a traz dos outros, evitares estes e outros constantes atritos com os governos do MPLA, PAIGC, e FRELIMO,  e ninguém se questiona porquê.

Quando as respostas seriam simples, muito simples, sendo que a principal é a falta de saber falar de igual para igual, quer de um lado quer do outro.

Mas a maior dificuldade está do lado português porque a maioria dos políticos portugueses, sem sentirem, estão muito virados para a Europa e de costas para os nossos 500 anos de Ultramar.

Esta minha conversa é conversa de RETORNADO, que voltarei ao tema , se interessar ao blogue, pois há muitas desmistificações a fazer com as demagogias dos anti-colonialismos demagógicos que baralharam todas as partes.

Até à próxima se o assunto interessar para a história da guerra da Guiné, porque "a luta continua" e está para durar.

Cumprimentos

Antº Rosinha

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Guiné 63/74 - P16043: Parabéns a você (1073): António Estácio, escritor guineense, Amigo Grã-Tabanqueiro e Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAV 3366 (Guiné, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de 1 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16035: Parabéns a você (1070): José Carlos Neves, ex-Soldado TRMS do STM/CTIG (Guiné, 1974) e Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703 (Guiné, 1964/66)

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16042: Nota de leitura (835): Os navegadores que antecederam a nossa chegada à Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Junho de 2015:

Queridos amigos,
É preciso saber muitíssimo da historiografia dos Descobrimentos e ter um raro talento de comunicar para o leigo e Luís de Albuquerque recebeu o prémio de consolação com esta edição extraordinária, injustamente esquecida. Faz parte, este empreendimento, dessa década saudosa em que o Círculo de Leitores se transformara na mais importante oficina editorial da cultura portuguesa. Cingimos a recensão às navegações que levam, em concreto, ao conhecimento das terras da Guiné, Diogo Gomes fala no Rio de S. Domingos, o relato é inequívoco sobre a nossa presença, pela primeira vez chegava-se por barco a um território que irá ser conhecido como a Grande Senegâmbia.

Um abraço do
Mário


Os navegadores que antecederam a nossa chegada à Guiné

Beja Santos

“Navegadores, Viajantes e Aventureiros Portugueses, Séc. XV e XVI”, pelo historiador Luís de Albuquerque, foi um dos grandes acontecimentos editoriais de 1987, empreendimento do Círculo de Leitores, edição comemorativa do V Centenário dos Descobrimentos Portugueses. Raras vezes se editou com tantíssima qualidade, com tanto rigor e acerto gráfico, numa comunicação científica bem acessível ao leitor indocumentado. Neste primeiro volume, Luís de Albuquerque convida-nos a conhecer o Infante D. Pedro, o das Sete Partidas do Mundo, Gil Eanes, João Fernandes, Nuno Tristão, Diogo da Azambuja, Diogo Gomes, Diogo Cão, Pêro da Covilhã, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Martim Lopes, Pedro Álvares Cabral, Gaspar Corte-Real, Duarte Pacheco Pereira, D. Francisco de Almeida e António Fernandes. E o autor começa por perguntar: “Por onde andaram os portugueses dos séculos XV e XVI? Que caminhos seguiram e que dificuldades encontraram? Que novidades trouxeram ao conhecimento de uma Europa inquieta mas interessada?”.

Gil Eanes, natural de Lagos, foi o primeiro que passou o Cabo Bojador e lá tornou outra vez, com Afonso Gonçalves de Baldaia, escreve Azurara na Crónica da Guiné. Gil Eanes era escudeiro do Infante D. Henrique e em 1433 segue numa barca com a incumbência de dobrar o Bojador, o que não aconteceu, não chegou mais que às ilhas de Canária. Temos nova tentativa e Gil Eanes, como disse uma vez o poeta João José Cochofel “abriu a porta ao mistério”, em 1434. As caravelas vão continuar a partir de Lagos, uma dessas viagens tem como Capitão Lançarote, cavaleiro e almoxarife de Lagos, a exploração da costa africana sistematiza-se. Azurara, na sua Crónica encontra três razões para estas armadas: eram viagens exclusivamente de reconhecimento, em que se procurava navegar além do ponto antes atingido; viagens em que por ordem expressa de D. Henrique, ou do seu irmão D. Pedro, os navegadores eram obrigados a cumprir determinadas missões de reconhecimento; eram viagens que tinham por único objetivo o comércio, o assalto a populações ribeirinhas e a captura de escravos. Gil Eanes deu o primeiro passo para essa grande aventura do saber geográfico.

O que sabemos de Nuno Tristão é o que sobre ele escreveu Azurara. Iniciou-se nas navegações em 1441 ou 1442. A Nuno Tristão foi entregue uma caravela armada com um mandado do infante de passar além da Pedra da Galé o mais longe que pudesse, assim se continuava a exploração da costa ocidental africana e a captura de mouros ou de negros. Nuno Tristão encontrou-se com Antão Gonçalves, no Rio do Ouro. O facto foi assinalado na cartografia com o topónimo Porto do Cavaleiro, pois Antão Gonçalves foi aqui armado cavaleiro por Nuno Tristão.

Em 1443, Tristão parte com a incumbência de navegar para Sul do Cabo Branco, regressa sem ter alcançado a tal missão, e em 1445 ou 1446 dirigiu-se numa caravela para a Ilha das Garças, não longe de Arguim. Azurara informa-nos que a sua caravela chegou até uma terra que “viram acompanhada de muitas palmeiras e outras árvores grandes e formosas”. À procura de presas em terra, desembarcaram dispostos a assaltar uma povoação, tudo irá correr mal, muitos irão morrer envenenados por flechas. Esta é a primeira viagem de que há notícia segura do regresso ter sido feito pelo largo do Atlântico, para contornar ventos e correntes, nas carreiras da Guiné, da Mina e da Índia. Assim se descobria a “volta pelo largo”, fundamental para o domínio do Atlântico.

Observa Luís de Albuquerque que Diogo Gomes representa o caso típico do navegador, mercador e aventureiro português do século XV que andou pelo mar desde os tempos do Infante até os de D. João II, e que teve a boa sina de contar as suas aventuras ao alemão Martinho da Boémia, que as registou para a posteridade, designada por Relação. D. Henrique deu-lhe o comando da armada, era uma frota constituída por várias caravelas, mais uma vez com a missão de perlustrar a costa até o mais a Sul que lhes fosse possível. Passaram para além do rio de S. Domingos (identificado como o rio Cacheu por Teixeira da Mota) o Rio Francaso, “para lá do Rio Grande”, onde sofreram grandes correntes em consequência do macaréu, temos aqui descrições de enorme vivacidade. Procurou o local onde fora chacinado Nuno Tristão e subiu o rio até Cantor, e aí procurou informações sobre Tombuctu, o importante nó das caravanas de mercadores que por terra se aventuravam até ao interior de África. E recolheu dados com interesse para o conhecimento geográfico. Contudo, o texto da Relação presta-se em inúmeras especulações, Gomes acompanhava-se de um guia que falava as línguas da Senegâmbia, o que era de estranhar. Nas suas incursões encontrou-se com o chefe Batimansa e fala-se no batismo, no cristianismo e outros aspetos que os historiadores classificam como insólitos, tomam como altamente problemática estas súbitas conversões ao catolicismo. Datará de 1458 a primeira tentativa de cristianização dos povos africanos.


A segunda viagem de Diogo Gomes data de 1462 ou 1463. Em 12 dias chegou à Terra dos Barbacins, encontrou duas caravelas saídas de Portugal, eram mercadores que transportavam cavalos, animais muitos apetecidos dos negros. Diogo Gomes regressa a Portugal na companhia de um genovês, António da Noli. Pelo caminho descobrem a ilha de Santiago, aqui também os historiadores se dividem. Pela Relação descobre-se um dado importante quando se escreve: “E eu tinha um quadrante, quando foi a estes países, e escrevi na tábua do quadrante altura do polo ártico, e achei aí melhor do que na carta. É certo que na carta aparece o caminho de navegar, a rota do navio, mas muitos erros juntos nunca levam ao propósito principal”. Fica-se a saber que Diogo Gomes dispunha de um instrumento para medir alturas de estrelas mas também de uma carta náutica. No regresso, Diogo Gomes vai subindo na escala social, torna-se escudeiro real e depois Juiz dos Feitos das Coutadas e Caças da Serra de Sintra, mais tarde Juiz de Sisas de Colares e por último Cavaleiro da Casa Real. Pelos seus registos de aventuras, embora redigidos por outrem, passou a ser um caso único entre os seus companheiros do século XV. E certo e seguro viu a Guiné tal como nós a conhecemos.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16033: Nota de leitura (834): Panos de Cabo Verde e Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)