quarta-feira, 22 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos; o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005)- Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)


Hedelberto López Blanch -  Historias secretas de médicos cubanos. La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005. 248 pp. [La edición de este volumen ha sido financiada por el Fondo para el Desarrollo de la Educación y la Cultura.] [Consult em 31 de maio de 2016]. Disponível em http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf

1. Notas de leitura coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo, e enviadas a 30 de maio último. Trata-se de um extenso documento, que vai ter que ser publicado em diversas partes:


Sobre o Jorge Araújo, aqui fica uma pequena nota biográfica, para "refrescarmos" o seu CV mal conhecido da maior parte dos nossos leitores:

(i) nasceu  em 1950, em Lisboa;

(ii) foi fur mil op esp / ranger,  CART 3494 / BART 3873  (Xime. e -Mansambo, 1972/1974);

(iii) fez o doutoramento pela  Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»;

(iv) é professor universitário,  no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona;

(v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto.


2. Introdução

Trago hoje,  ao colectivo da Tabanca Grande e aos anónimos que nos visitam regularmente, o tema que ficara em aberto na sequência da minha última narrativa relacionada com as actividades do PAIGC, em janeiro de 1974, na região de Canquelifá [P16127], de que resultou a morte do meu/nosso camarada ranger Pinto Soares, e onde é referida a presença de cubanos no apoio à guerrilha.

Esse apoio, que no início (em 1966...) era secreto, deixou de o ser com o decorrer do tempo, porque, como diz o ditado popular: «mais cedo ou mais tarde tudo se sabe».

Eu próprio e outros camaradas [,como o nosso editor Luís Graça,] tivemos "encontros de 1.º grau" (nomeadamente, emboscadas no subsetor do Xime] com os famigerados "internacionalistas" cubanos, pelo que a história da sua presença no TO da Guiné não nos pode deixar...  indiferentes.

Influenciado pelos comentários produzidos pelos camaradas Luís Graça, António Rodrigues, António Duarte e Manuel Luís Lomba, que agradeço, procurei encontrar outros relatos que pudessem acrescentar algo mais ao que já se disse/escreveu a esse respeito, nomeadamente com recurso ao publicado neste espaço colectivo.

Foi a partir dos postes P950, P951 e P956 (*) que, seguindo em frente, encontrei um livro escrito pelo jornalista cubano Hedelberto López Blanch com o título «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana, 2005], que achei interessante partilhar convosco, ainda que saiba que na linha do tempo estas memórias estejam a uma distância de cinco décadas.

Porque está escrito em castelhano (espanhol), tomei a iniciativa de traduzir e adaptar com a devida liberdade o texto ou partes do texto como meio de facilitar o acesso à sua leitura e a sua compreensão, quer daqueles a quem o contexto diz muito, quer de quem se vier a interessar pelo seu aprofundamento.

A sua tradução e adaptação são feitas de modo a respeitar as ideias expressas pelos diferentes protagonistas, o que fica mais facilitado pela minha própria condição de ex-combatente no TO da Guiné (e também de doutorando por uma universidade espanhola, se me permitem que puxe aqui pelos meus pergaminhos académicos).

Hedelberto López Blanch, enquanto jornalista e investigador, conta a história vivida por quinze médicos cubanos que estiveram em diversas partes de África - Argélia, Guiné-Bissau (ex-portuguesa), Congo Leopoldville (ex-belga), Congo Brazzaville (ex-francês) e Angola  -, apoiando os "movimentos de libertação" daqueles territórios (, no caso da Argélia, foi apenas apoio à reconstrução do país, depois da independência em 1962).

No caso da Guiné-Bissau são três os entrevistados: 

(i) o médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado;

(ii) o médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia, Amado Alfonso Delgado;

(iii)  e o médico militar, especialista em cirurgia geral, Virgílio Camacho Duverger.

Cada um deles fala das suas muitas memórias ou experiências, vividas na primeira pessoa, e das motivações que os levaram a optar por um dos lados do combate.

Pela dimensão do conteúdo narrado no livro [pp 112-164], a metodologia utilizada teve que ser a da divisão por partes, sendo esta, justamente, a primeira delas. O blogue (e o leitor do blogue) não se compadece de textos (postes) demasiado longos.

O livro está disponível, em formato pdf, no sítio da editora, Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, La Haban. Referência bibliográfica:

Hedelberto López Blanch - Historias secretas de médicos cubanos. 
La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005. 248 pp. 

 [Premio Memoria 2001. Prólogo de Piero Gleijeses. Ediciones La Memoria, Colección Coloquios y testimonios]. . [La edición de este volumen ha sido financiada por el Fondo para el Desarrollo de la Educación y la Cultura.] [Consult em 31 de maio de 2016]. Disponível em


3. Sobre o autor: Hedelberto López Blanch [, foto à direita]

(i) nasceu em 1947 em Havana, Cuba;

(ii) é licenciado em Jornalismo (1972) e, na altura, em 2005, doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade de Havana;

(iii) relatou numerosos acontecimentos internacionais ocorridos em Cuba, Angola, Zâmbia, Moçambique, Guiné, Líbia, Tanzânia, Qatar, Zimbabwe, África do Sul, Alemanha e Rússia; 

(iv) foi correspondente permanente da Juventude Rebelde na Nicarágua e assessor de redacção do diário Barricada neste país centroamericano entre 1985 e 1987; 

(v) como investigador da imigração cubana, viajou até aos Estados Unidos em diferentes períodos; 

(vi) entre as suas obras destacam-se: La emigración cubana em EE.UU.; Descorriendo Mamparas; Miami; Dinero Sucio; Bendición Cubana en Tierras Sudafricanas; Historias Secretas de Médicos Cubanos en África; y Cuba, pequeño Gigante contra el Apartheid; [, alguns destes títulos estão disponíveis na Amazon.com];

(vii) em 2005, trabalhava como comentarista internacional no semanário económico e financeiro Opciones, da editora Juventud Rebeld; 

(viii) tem colaborado com várias publicações nacionais e internacionais como Rebelión, de Espanha, tendo recebido vários prémios de jornalismo.


4. Antecedentes históricos do envolvimento cubano – o exemplo na Guiné-Bissau (Sinopse, da autoria de Jorge Araújo)

Blanch (2005) começa por situar o leitor no contexto histórico das lutas de "libertação anti-colonial" em África.

No início da década de 1960, poucos anos depois da tomada de poder por Fidel Castro e seus companheiros, em 1/1/1959,  "Cuba não tinha muita experiência em enviar médicos para ajudar os combatentes africanos que lutavam nesse continente pela libertação dos seus países".

Havia, no entanto, já alguns antecedentes, caso do Congo Leopoldville (belga) e o Congo Brazzaville (francês), em que médicos cubanos estiveram integrados em "grupos de combatentes (...) sempre sob as ordens de um cubano".

O PAIGC, através de Amílcar Cabral,  "mostrou interesse na participação de alguns instrutores cubanos para reforçar a luta armada"... Esse interesse terá sido manifestado em 12 de fevereiro de 1965, quando, e no decurso do périplo africano de Ernesto "Che" Guevara (1928-1967), este se encontrou  com Amílcar Cabral, em Conacri.

"Três meses depois, em 11 de maio de 1965, o navio cubano Uvero [construído em França em 1960 e adquirido por Cuba em 1964, e que durante vários anos foi o de maior porte da marinha mercante cubana... ] desembarcava a primeira ajuda de Cuba ao PAIGC em Conacri": (i) cento e trinta e sete caixas de medicamentos; e (ii)  sessenta e seis caixas com armas, munições, minas e uniformes militares; assim como alimentos, cigarros e fósforos.

Em janeiro de 1966, foi a vez de Amílcar Cabral (1924-1973) se deslocar a  Havana  para participar na Conferência Tricontinental [na qual foi aprovada a criação da Organização de Solidariedade dos Povos de África, Ásia e América Latina (OSPAAAL), em 12 de janeiro de 1966]. Naturalmente aproveitou a ocasião para se reunir com o presidente Fidel de Castro (n.1926).

Fidel de Castro ter-se-á comprometido a enviar "viaturas para a deslocação dos combatentes, mecânicos, instrutores militares e médicos", estes em número de nove. "Dos nove médicos solicitados, três tinham carácter de urgente, estando destinados à fronteira entre a Guiné-Conacri e a Guiné-Bissau, de preferência um clínico geral, um cirurgião e um ortopedista". Pormenor importante; se possível,  deveriam viajar de avião...

Pormenor também deveras curioso, e revelador das "cautelas" ou dos "escrúpulos" do dirigente do PAIGC:

"O pedido formulado por Amílcar teve em consideração a cor da pele de que era constituída a maioria dos combatentes recrutados, sendo uma condição fundamental para os poder introduzir no continente africano sem chamar a atenção dos serviços de Segurança e Inteligência das capitais europeias e dos Estados Unidos." (negritos nossos).

Em finais de 1965, os cubanos estavam convencidos,  graças à hábil propaganda de Amílcar, que o  o PAIGC: (i)  não só controlava "um terço do território da Guiné"; como (ii)  era um "caso de sucesso", sem paralelo, na luta anticolonialista em África...

5. O caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado. (sinopse feita por Jorge Araújo)

Domingo Diaz Delgado, recém formado em cirurgia, está com 29 anos, nos finais de 1965. Na altura decidiu preencher "um formulário solicitando a sua incorporação como internacionalista em qualquer movimento de libertação"... A sua inspiração era o "exemplo do heróico guerrilheiro Ernesto 'Che' Guevara"  [também ele médico e que viria a ser  assassinado pelas tropas bolivianas, dois anos mais tarde, em 1967].

No início de 1966, é designado então como membro do primeiro grupo de médicos e combatentes que vão partir para a Guiné.

É essa experiência de vida e de combate que ele vai relatar a Blanch (2005), "com a modéstia e a humildade características de muitos internacionalistas cubanos" (sic) , apontados pelo autor como exemplos do "verdadeiro internacionalismo" e da "verdadeira solidariedade humana".

Em 2005, data em que foi publicado o livro, o dr. Domingos Diaz Delgado era neurocirurgião, vice-director da área assistencial do CIMEQ [Centro de Investigaciones Médico-Cirúrgicas, uma unidade hospitalar de elite, que faz parte do sistema nacional de saúde cubano].

A entrevista, com 27 questões, vai aqui relatada na primeira pessoa, em versão adaptada e traduzida por mim, Jorge Araújo... Optei, depois de falar com o nosso editor LG, por eliminar um ou outro parágrafo, dada a extensão da entrevista (que, de resto,  pode ser lida no original em castelhano, aqui):

http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf

Na impossibilidade de contactar o autor e o editor, esperamos a sua compreensão e benevolência. Seguramente que esta e outras entrevistas com médicos cubanos que combateram ao lado do PAIGC nos interessam a muitos de nós, combatentes portugueses e guineenses que lutaram contra o PAIGC, bem como aos próprios veteranos do PAIGC.   A guerra já acabou, mas as suas memórias, de um e do outro lado, ainda estão vivas, enquanto estivermos vivos. (**)


Guiné > Região do Oio > Base de Sará (1966)  > Da esquerda para a direita,  o instrutor militar Alfonso Pérez Morales (Pina), chefe da missão cubama na Frente Norte; o ortopedista Tendy Ojeda; o cirurgião Domingo Diaz e o médico de clínica geral Pedro Labarrere. Com a devida vénia, foto de H. L: Blanch (2005), op. cit.


6. A história de Domingo Diaz Delgado (Blanch, 2005. Excertos. Tradução e adaptação livre de Jorge Araújo)

“Donde o tempo não se mede pelo relógio” (cap X)


No final de 1965 fui informado de que existia a possibilidade de ir combater noutras terras do mundo, seguindo o exemplo do “Che” [ já se conhecia a sua carta de despedida lida por Fidel de Castro, em 3 de outubro de 1965] dizendo aos meus chefes que queria participar nessa luta. Preenchi um formulário como voluntário, solicitando ir para qualquer parte do mundo, em especial em países da América Latina.

No princípio de 1966, exercia a chefia dos Serviços Médicos da Divisão 1270, em Mariel [um município da província de Artemisa, a quarenta quilómetros de Havana]. Indicaram-me ao Estado Maior das Forças Armadas Revolucionárias (FAR) e desde esse momento incorporaram-me no grupo onde estavam médicos e instrutores militares, num total de trinta e um combatentes que iriam participar na luta de libertação do povo da Guiné-Bissau contra o colonialismo português. Soubemos, depois, que os guerrilheiros guineenses tinham já dois ou três anos de luta, mas com muitas dificuldades, pois careciam de técnica militar, armamento e de cuidados médicos.


(i) Quantos médicos formaram o grupo 
e como fez essa viagem? 


Fomos nove médicos, três viajaram de avião porque o PAIGC precisava deles com urgência. Eu tinha muita experiência em cirurgia, já que nessa época, desde que comecei a estudar, pude participar em determinado grupo cirúrgico.

Em 21 de maio de 1966, depois de me incorporarem neste contingente, constituído por artilheiros, apontadores de morteiro ["morteiristas", em castelhano] e médicos, embarcamos para a Guiné no navio Lídia Doce, de 2 mil toneladas.

A viagem durou dezasseis dias, chegando ao porto de Conacri em 6 de junho desse ano. O navio estava com problemas e foi um trajecto difícil, pois avariou pelo menos três vezes. Numa ocasião teve um início de incêndio na casa das máquinas e por pouco não tivemos que abandonar o barco.


(ii) Levavam armamento? 

Era provável que fossem armas no navio, mas naquele momento não sabíamos. Noutros sacos se colocaram mochilas, botas e outros materiais, e numas malas de madeira, um equipamento mais ligeiro. Íamos vestidos à civil. Aquilo era totalmente secreto, inclusivamente para entrar no barco não o fizemos no cais, mas somente no alto mar.


(iii) Como fizeram essa operação? 

~
Entrámos em lanchas que nos levaram até ao barco e em plena noite entrámos nele na zona norte da província de Havana. As instruções que recebemos eram de permanecer no porão  do barco, junto às máquinas. Devíamos permanecer alojados nos camarotes, porque nessa época os aviões Catalina, de reconhecimento da marinha norte-americana, sobrevoavam com frequência os navios que saíam do país. Tivemos vários voos de reconhecimento, daí que, enquanto não entrássemos no Oceano Atlântico, não podíamos sair. Depois, ao quarto ou quinto dia, pudemos estar na vigia, apanhar sol, e após esta angustiosa viagem, chegámos ao porto de Conacri.

Embora fossemos médicos, antes de partir de Cuba estivemos cerca de dois meses treinando física e militarmente com vário armamento, na medida que era suposto irmos para uma zona de guerra.

Fizemos essa preparação com todo o tipo de morteiros, metralhadoras e outras armas de fogo. Realizámos algumas caminhadas achadas suficientes, mas quando chegámos à Guiné demo-nos conta que deveríamos ter caminhado muito mais para estarmos melhor preparados.


(iv) Onde realizaram a preparação? 

Isso era feito, como se sabe por alguns livros e outros documentos que foram publicados, no acampamento Peti 1, em Pinar de Rio [um acampamento a norte do município de Candelaria, província de Pinar del Rio, local onde em janeiro de 1965 se iniciaram os treinos do grupo de soldados e civis que acompanhariam o “Che” no Congo].



(v) Quanto tempo estiveram 

em Conacri ? 


Ao chegar a Conacri, o grupo permaneceu aí perto de um mês à espera de seguir para os locais de destino. Eu fui recebido, na República da Guiné, pelo principal dirigente da guerrilha, Amílcar Cabral, um companheiro inolvidável. Com ele visitei escolas em Conacri onde estavam crianças das zonas guerrilheiras e aprendi muitas coisas nos dias em que estive com ele. Tinham muitas canções revolucionárias dessa guerra que vinham aprendendo.

A Guiné-Conacri era a antiga Guiné Francesa, e a Guiné-Bissau era um país muito mais pequeno que se pode comparar em extensão de terreno com a antiga província de Las Villas [Cuba]. Muito pouco terreno e daí a dificuldade que tinham os companheiros para desenvolver esta luta.

Os portugueses tinham ali bastantes tropas. As forças militares deles eram constituídas por nativos e portugueses. Muitos guineenses lutavam ao lado deles. Ao sul se situava a Guiné-Conacri, cujo presidente nessa época, Sekou Touré, contribuiu de maneira relevante para o desenvolvimento dessas acções.  (...)

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

19 de julho de 2006 > Guiné 63/74 - P971: Amílcar Cabral e a Cuba de Fidel Castro ou os mortos também se instrumentalizam (João Tunes)

14 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P960: Antologia (49): Oficialmente morreram 17 cubanos durante a guerra


12 de julho de 2006 > Guiné 63/74 - P956: Antologia (48): Félix Laporta, o primeiro cubano a morrer, num ataque a Beli, em Julho de 1967

Guiné 63/74 - P16223: Parabéns a você (1098): Cor Inf Ref António José Pereira da Costa, ex-Alf Art da CART 1642 (Guiné, 1968/69); ex-Cap, CMDT das CARTs 3494 e 3567 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16217: Parabéns a você (1097): Cherno Baldé, Engenheiro e Gestor de Projectos, Amigo Grã-Tabanqueiro da Guiné-Bissau

terça-feira, 21 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16222: Álbum fotográfico de Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089, ao tempo do BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73) - Parte IV: As lavadeiras de Canchungo




Foto nº 22 > Março de 1973 > Teixeira Pinto > Crianças junto do lavadouro.(1) 



Foto nº 23 > Março de 1973 > Teixeira Pinto > Crianças junto do lavadouro.(2) 


Foto nº 19 > Teixeira Pinto > Fev 1972  >  Lavadouro público.


Foto nº 20 >  Teixeira Pinto > Março de 1973 > As lavadeiras no lavadouro público 


Foto nº 21 > Teixeira Pinto > Fev 1972 > A roupa a corar ao sol, nas imediações do lavadouro



Foto nº 21 A > Teixeira Pinto > Fev 1972 > A roupa a corar ao sol, nas imediações do lavadouro (aspeto)



Foto nº 21 B > Teixeira Pinto > Fev 1972 > A roupa a corar ao sol, nas imediações do lavadouro (aspeto)


Foto nº 17 > Junho de 1972 > Saídas de Teixeira Pinto para o Cacheu


Foto nº 18 > Junho de 1972 > Saída de Teixeira Pinto para o Pelundo,



Foto nº 24  > Outubro de 1972 > Teixeira Pinto > Venda livre no meio da Avenida. À  esxquerda a Maria Helena Gamelas



Fotos (e legendas): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Francisco Gamelas , ex-alf mil cav., cmdt do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73), adido ao BCAÇ 3863 (1971/73) [foto tual à direita] (*).


Francisco Gamelas, que é engenheiro eletrotécnico de formação quadro superior da PT Inovação reformado, vive em Aveiro, e publicou recentemente  "Outro olhar - Guiné 1971-1973. Aveiro, 2016, ed. de autor, 127 pp. + ilust. P.reço de capa 12,50 €. (**)

Os interessados pode encomendá-lo ao autor através do seu email pessoal franciscogamelas@sapo.pt. O design é da arquiteta Beatriz Ribau Pimenta. Tiragem: 150 exemplares. Impressão e acabamento: Grafigamelas, Lda, Esgueira, Aveiro.


2. Sobre as fotos de hoje, tomamos a liberdade, com a devida autorização do autor, de reproduzir o poema que ele escreveu no seu livro: "As lavadeiras" (pp. 48-51).

Todos nós nos recordamos da nossa lavadeira (, memso tendo esquecido o seu nome), e do dia da entrega da roupa lavada e da recolha da roupa suja... Sem dúvida, que era um dia que trazia alegria, cor, beleza e humanidade à parada do quartel...

O Francisco traça aqui um quadro pitoresco, bem humorado mas nem por isso acrítico desse verdadeiro "serviço público" que nos prestavam as nossas lavadeiras. Quase todos os militares tinham a sua lavadeira, pelo menos nos aquartelamentos onde havia população ou famílias de milícas ou de soldados do recrutamento local.

Uma ou outra lavadeira, em meios mais "urbanizados" (sede de circunscrução, sede de posto, em geral nas localidades mais importanmes, sede de batalhão...) também podia fazer "favores sexuais", mas, por mor da verdade e da honra de todos, há que dizer que eram a exceção. E se o faziam era por "livre consentimento"...

Na Guiné, e contrariamente ao que alguns poderiam pensar, nunca nos comportámos como verdadeiros "ocupantes militares",,, Até por que muitas bajudas ou mulheres grandes que completavam o seu magro orçamento familiar com o serviço de lavadeira, eram filhas, irmãs ou parentes dos nossos camaradas guineenses... Fulas ou mandingas em Bambadinca, manjacas em Teixeira Pinto...

O Francisco ainda se lembra do nome da sua lavadeiera, era a Aline, era uma verdadeira "instituição", pertencente à "cavalaria": passava do velhinho "alfero das Daimler" para o periquito que o vinha render...Dedica-lhe inclusive um ternurento poema; "A minha lavadeira Aline" (p. 54), que começa assim; A Aline 'herdou-me'... Mas quem quiser saber o  resto, que compre o livrinho...

O autor também  tem inclusive, no livro, duas fotos da sua "Aline" com a sua "Lena"... A Maria Helena Gamelas, quando chegou a Canchungo, também herdou muito naturalmente a  Aline... Em Roma faz como os romanos...E, calhar, lá em casa, a Aline também fazia o resto da lide doméstica, já que a Maria Helena era.professora de português na escola local, não era apenas a senhora do senhor alferes...

Curioso, noutros territórios como Angola ou Moçambique, havia maior tendência para recorrer aos homens para os serviços domésticos... Caso dos "mainatos", em Moçambique, que lavavam e engomavam a roupa... Não sei se as nossas praças, no TO da Guiné, ganhando mal, se podiam dar ao luxo de ter uma lavadeira... que poderia custar 50 a 100 pesos por mês... Nem todos teriam lavadeira, muitos lavavam a sua própria roupa, que também não era muita... E ao fim da comissão (se durasse até ao fim da comissão) estava feita em farrapos,de tanto uso e de tanto ser batida na pedra da margem do rio...Aliás, velhinho que se prezasse andava com o camuflado todo esfarrapado e desbotado...

Recordo-me bem da minha lavadeira, em Bambadinca, mas já não do seu nome... Era jovem, mandinga, já não era bajuda,  tinha um filho ou filha, de tenra idade... A mãe tinha pelo menos um "filho do vento", de uma ligação com um militar que estivera,  em Bambadinca, talvez do início da guerra... Nunca explorei essa história, mas sei que a minha lavadeira era um mulher "marcada pela vida", "antipática", "amarga", "sofrida"... De vez em quando, perdia-me roupa, nunca a penalizei...

Por outro lado, havia graduados, privilegiados, que tinham morança fora do quartel... Em Bissau, em Bambadinca, em Bafatá, talvez em Teixeira Pinto,  e em muito poucos mais sítios,  por razões de segurança... Nalguns casos eram casados e podiam ter uma "empregada doméstica"...

Tenho ideia de que em Bambadinca as lavadeiras tinham acesso, infornal, aos quartos de oficiais e sargentos... E alguns (poucos...) tinham "intimidades" com as lavadeiras...  Provavelmente era contra as mais elementares regras de segurança (e de bom senso). mas em sítios como Bambadinca tudo podia acontecer... Quem é que não estava farto da guerra, a começar pelos soldados básicos que tinham alucinações, com elefantes à noite a pastar junto ao arame farpado, e terminando no topo da hierarquia, com os oficiais superiores do batalhão que viviam em pânico só com a ideia do Spínola de lhes aparecer, assim  de repente,  de helicóptero, vestido de Pai Natal, e com um par de patins como prenda ?... (LG)


 As lavadeiras

por Francisco Gamelas


Serviço público por excelência,
este de nos lavar a roupa suja.
Ranchos de jovens mulheres nativas
cuidavam de manter apelativas
as roupas dos brancos, cuja
paga era duma esmola a evidência.

Além da roupa, num ou noutro caso,
também prestavam outros serviços.
Quando a procura é muita, é natural
que a oferta surja de forma banal.
Mas, os eventuais mulatos castiços
não se viam, e não seria por acaso.

Nos dias das lavadeiras, o quartel
fervilhava de trouxas nas cabeças
de jovens negras esguias e brilhantes
que uma miríade de cores exuberantes
cobria generosamente como  peças
dum quadro vivo evoluindo a granel.

Um zumbido de  assobios, gargalhadas
e ditos jocosos cria uma núvem sonora
que agita e envolve magotes de militares
junto das lavadeiras, dando-se, eles, ares
e elas, cúmplices, não se põem de fora
jogando nos risos e falas embrulhadas.

É um momento de escape e libertação, 
talvez mais para eles do que para elas,
tudo sem excessos comportamentais,
em espaço aberto, à vista dos demais.
A festa é curta, não deixando mazelas.
Há que retomar cada um a sua função.

Francisco Gamelas. In "Outro olhar - Guiné 1971-1973*,  ed. de autor,  Aveiro, 2016,  pp. 48-51,

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 14 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16201: Álbum fotográfico de Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089, ao tempo do BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73) - Parte III: Canchungo e o amor em tempo de guerra

(**) Vd. 20 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16113: Nota de leitura (840): “Outro Olhar, Guiné 1971-1973”, por Francisco Gamelas, edição de autor, 2016 (Mário Beja Santos)


Guiné 63/74 - P16221: Blogpoesia (454): "Cabeça de parafuso..." e "Atrevimento...", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Mais dois poemas do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66).


Cabeça de parafuso...

O parafuso dá voltas e mais voltas à cabeça
para chegar até ao fundo.
E só assim fica bem firme.

E para largar,
Só com as mesmas voltas
Ao invés.

O prego não.
Espeta fundo,
Sem resistência,
Mas larga a presa
Com pouco esforço.

Assim, na vida.

Para vencer
É preciso esforço.
Só tem sabor
O que custa a ter.

O que chega grátis
O vento leva.
Com pouco e bom
Eu me governo...

Berlim, 19 de Junho de 2016
9h23m

dia de sol, mas duvidoso

Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes


************

Atrevimento…

Ousar vencer exige sempre atrevimento.
Algum risco e sempre o esforço
Que é contra a letargia.

Aquela tendência inata
De se quedar quieto,
Preso ao chão
Para não cair ou magoar
É sinal abúlico
Que não leva a nada.

Arregaçar as mangas,
Desabotoar camisas,
Mesmo que escandalize os puros,
É condição de atingir os cumes.

Os vermes são vegetais.
Devorar o alheio,
Sem contribuir,
É o seu perfil.

Mais valem as feras
Que arriscam tudo,
Até a vida,
Para só viverem…

Berlim, 20 de Junho de 2016
8h32m

Dia de sol, fresco

Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16208: Blogpoesia (453): "Se eu de ti me não lembrar, Jerusalém (Gadamael Porto, Guiné, 1973)", de Luís Jales de Oliveira: um dos mais belos poemas da guerra colonial, inspirado pelo Rio Cacine, mas com o Rio Tâmega no coração, quando o poeta, vindo de Bolama, estava a caminho de Gadamel onde foi colocado com a sua CCAÇ 20

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16220: Fotos à procura de... uma legenda (73): O alferes miliciano piloto aviador Carlos Gonçalves em janeiro de 1972, no bar de oficiais de Teixeira Pinto (Lino Reis, cor piloto aviador ref)


Guiné > Região do Cacheu >  CCS/BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73) > "Foto nº 7 > Janeiro de 1972 >Bar de oficiais > Da esquerda para a direita,  alf mil comando Paiva, da 35ª CCmds, furriel piloto do heli do General Spínola (que veio visitar o batalhão) e alf mil cav Francisco Gamelas, cmd do Pel Rec Daimler 3089 (1971/73)".

Foto (e legenda): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





O militar da FAP, na foto cima, é o alferes miliciano piloto aviador Carlos Gonçalves


1. Comentário do nosso leitor (e camarada) Lino Reis, cor piloto aviador ref,  ao poste P16169 (*),  a quem agradecemos a atenção e endereçamos o convite  a integrar a nossa Tabanca Grande. Esteve na BA 12, Bissalanca, no período de 1970 a 1972, ao que sabemos:


Saúdo todos os camaradas que foram ou são militares.

Permitam-me que corrija uma info anexa à foto em que se encontra um piloto da FAP.  É o Alferes Miliciano Piloto Aviador Carlos Gonçalves que voava na Esquadra 121, o Fiat G 91 e quando necessário voava na Esquadra 123, o DO-27.

Nessa aeronave também se deslocava o Comandante Chefe, General António de Spínola, facto que deverá ter ocorrido nesse dia.

Cumprimentos, saúde e até sempre.

Lino Reis

Coronel Piloto Aviador

Astérix umas vezes (AL III e DO-27) e Lobo Mau outras, para além de Canibal sempre. (**)


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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 6 de junho de 2016 >Guiné 63/74 - P16169: Álbum fotográfico de Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089, ao tempo do BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73) - Parte II: Quartel de Teixeira Pinto e cidade, sede do "chão manjaco" (I)

Guiné 63/74 - P16219: Nota de leitura (849): “A Estrela de Ganturé”, conto de Natal inserido na Revista Liber 25 de Dezembro de 1981 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,

Há surpresas impagáveis e uma delas é um sujeito ficar especado na Feira da Ladra a olhar a capa de uma revista que lhe diz qualquer coisa, não sabe bem o quê, a memória dá as suas mordidelas e, confuso, o sujeito remexe na publicação e encontra uma historieta da sua autoria escrita um pouco às três pancadas em 1981, a lembrança estava totalmente esvaída. O curioso disse tudo a que havia para ali torções e distorções em datas e lugares. Mas aquela criança, que foi possível rever cerca de 20 anos depois, fora mesmo uma estrela, iluminara a vida de um jovem alferes que vivia nos meandros do Cuor disfarçado de sentinela no Geba.

Coisas que aconteceram e assim se demonstra mais uma vez que a realidade supera em toda a linha a ficção.

Um abraço do
Mário


A estrela de Canturé 

Beja Santos

Desta feita, a surpresa deixou-me boquiaberto, folheava aquela publicação que me dizia algo, mas o inesperado de encontrar ali uma historieta minha era demasiado forte para memória tão curta. Comprei a revista e fui revendo todos aqueles acontecimentos que engendraram a minha colaboração. “A estrela de Canturé” terá sido redigida algures em Outubro de 1981.

Carlos Cruz Oliveira telefonara-me para me informar de um projeto sobre cadernos da guerra colonial, fora criada uma editora para tal efeito, Andrómeda. Que eu escolhesse os temas, se quisesse eu podia dar primazia ao consumo, falar das coisas da minha profissão, mas bom seria que escrevesse de vez em quando sobre as minhas memórias da participação da guerra da Guiné. A tudo foi dizendo sim, ao quem dera, logo que tivesse disponibilidade fazia o gosto ao dedo.

Passaram as semanas e os meses, e um dia o Carlos Cruz Oliveira lançou-me um ultimato suave, havia um número praticamente pronto para o fim do ano, insistiam num texto meu. Imprevidentemente, prometi entregar nas próximas 48 horas e dei comigo a pensar: numa revista militar para civis, simultaneamente revista civil para militares, era esta a consigna da “Liber 25”, porque não puxar pelos escaninhos da memória, trouxe-mouxe, e parturejar umas recordações não remíveis, daquelas que latejam intermitentemente para demonstrar que há memórias que não se apagam?

Sentei-me à mesa, e sem papéis de consulta, de um jato nasceu “A estrela de Canturé”:

De Missirá a Gã Gémeos, a água dos arrozais desfez a estrada, estávamos em meados de Novembro. Um daqueles riachos que vai para o Geba empapou o desgastado trilho de Finete a Bambadinca. Ficámos incomunicáveis, os enfermos da doença do sono sem médico, o municiamento ainda mais difícil, estávamos sem farinha, entregues a todas as contingências da chuva, eram colunas pedestres, já que o Unimog não podia vencer o lamaçal. Colunas diárias supliciantes, fardos às costas, cunhetes de granadas em padiolas, os doentes bamboleando-se em cadeirinhas de braço humano. E não nos aliviava saber que muitos outros, noutros sítios, viviam a mesma azáfama dentro da lama.

Foram colunas que se repetiram até àquela véspera de Natal. Para falar verdade, tive a premonição logo ao chegar a Finete, também nosso cordão umbilical até Bambadinca. A Finete que eu recordo estava nas faldas de um outeiro rochoso, outeiro escalvado numa argila dura onde, como dedos gretados de sangue, se erguiam os palanques dos sentinelas, vigiando o mato denso, ouvindo o piar lúgubre dos pássaros negros que remavam em direção ao Corubal.

Condoía-me a resignação de Finete, a sua milícia sustentando aquela posição vital, porque sem aquela retaguarda nem Missirá seria um ponto difuso no mapa, sem Finete não seríamos o tal alfinete vermelho espetado no mapa da sala de operações. Finete era um ponto de passagem antes de nos metermos ao caminho, no trilho enlameado até Bambadinca e regresso, e ajoujados de comida, munições e doentes na caixa do Unimog 404, rumávamos para Missirá.

Vamos então falar daquele menino que me aquecia o ânimo, que me encorajava a prosseguir, Abudu. Abudu era um menino deformado, um rosto lindo, no seu corpo explodira uma granada incendiária. Um dia, Malã Cassamá despiu as vestes de Abudu: dos braços esquálidos prendiam-se enoveladas cordas de pele, impedindo o crescimento natural do corpinho; nas costas, outras camadas de pele, uma teia de costuras descendo até às coxas, pele que se colava à cintura pélvica, dando o recorte ao abdómen disforme, a inchar a pletora, onde caíam regos de costura e carne arrepanhada. Mas é este Abudu o meu companheiro de trilhos alagados, é ele quem me sustenta a náusea da solidão e me incita a vida dentro da circunferência de horrores de que se faz a minha guerra, onde tenho os meus inimigos absurdos e onde há corpos desfeitos que enterramos à enxada. É Abudu quem me persigna dos irãs vingativos, é Abudu o meu último fio de música que me embala, numa véspera de Natal, por quatro quilómetros de lama com vermes, vamos apressados para organizar o dia de Natal.

É a estrela de Finete, o menino dilacerado por uma granada incendiária, que me acompanha no regatear de alimentos, nas idas às transmissões, ao depósito da engenharia, às viaturas, às munições. Abudu é este incêndio nas mãos e aquelas duas pupilas que atravessam o sol quente, saltitando ao meu lado enquanto eu desdobro morosas listas de víveres, munições, ligaduras, cimento, alicates, lençóis e fronha.

Abudu quer ir passar o Natal a Missirá, a mãe consente. E lá vamos no Unimog em direção àquela paliçada em frente a capitosas matas onde, não muito longe, se acoitam os guerrilheiros. Sento-me ao lado do condutor, Abudu por ali perto, o anjo emudecido, o meu rei de presépio, para esta noite. Sacode-me a segunda premonição, é aquele silêncio opressivo na mata, e a segunda premonição vai ser consumada: Manuel Guerreiro Jorge, natural do Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique, uma criança de olhos mansos, talvez um futuro seareiro, enconcha as suas mãos azeitonadas para acender o seu último cigarro. Porque logo a seguir se desfecha o enredo inextrincável, a picada abre uma garganta de dragão, fazendo estoirar naquele lusco-fusco, na curva de Canturé, um Unimog em fagulhas, corpos em estilhaços, braços dilacerantes, era um embriagado corno da morte, e eu a pensar em Abudu, meu presuntivo rei de um presépio. Quantos minutos ou segundos para eu ficar com Manuel Guerreiro Jorge transformado em tocha ardente.

Quantos minutos, segundos, que castigo para ver e sentir que uns se ferem e outros ferem, que aquele caminho aprazível para antílopes em viagem, ali se frecham irmãos e arroxeiam os corpos? Aos tombos, lá retomámos o caminho para Missirá, deixámos para trás o Unimog agonizante, somos agora uma coluna fantasmagórica, acobertados pela noite tropical num céu estrelado, a razão de ser de uma viagem ficou naquela curva de Canturé. Transportamos um moribundo e sete feridos graves, o arado desta guerra. Tarde e a más horas suplica-se um helicóptero, procura-se amenizar as dores dos feridos. Não há ânimo para a passagem de Natal, cada um recolhe-se à sua alfurja, uma casamata fria. É então que se dá o sonho ou o delírio. Inventa-se uma meia-noite de palha emplumada. A tremelicar, vai avançando para mim uma piroga festiva, Abudu acena-me, é uma estrela candente, e nesse preciso instante fecham-se para todo o sempre os olhos de Manuel Guerreiro Jorge. O que morre nasce, o que me faz estremecer alteia e eu pergunto-me, cheio de mágoa: qual o teu desígnio, Abudu, ao que vens neste teu repasto de consolação?


2. As coisas não se passaram assim, conforme as escrevi nesta historieta. Houve mina anticarro naquela curva de Canturé, mas tudo se passou no fim de tarde de 16 de Outubro. Abudu Cassamá existe, visitou-me em 1991, quando fui cooperante na Guiné. Sempre que via amigos ou conhecidos de Missirá e Finete pedia insistentemente para me trazerem notícias de Abudu. Eu vivia nas instalações da Cicer, e foi aí que ele me bateu à porta, às punhadas. Abri de repelão e dei-me com um desconhecido de cabelo hirsuto, parecia uma juba. Perguntei ao que vinha: “Sou o Abudu de Finete, quero saco de arroz, um rádio e um relógio, a vida está muito difícil na Guiné, tu tens que ser o meu paizinho”.



Pedi-lhe para passearmos, fomos a pé até Bissau, queria saber dos seus estudos, como lidava com o seu sofrimento, o que fazia, onde vivia. Ele ia respondendo aos solavancos, com respostas evasivas, insistia que eu era o seu paizinho, tinha obrigação de o trazer para Portugal, fora uma granada incendiária abandonada num reboque em Finete, em 1966, que lhe trouxera aquela maldição.

Contei-lhe que ele fora o personagem do meu primeiro auto de averiguações, que enviei deprecadas para Portugal continental e ilhas, instei um capitão, dois alferes, não sei quantos furriéis e primeiros-cabos a responder aos meus quesitos, nada se apurou, aquela criança tinha direito a uma compensação. E no grande incêndio de Missirá todo aquele volumoso processo ficou reduzido a cinzas. Recomeçou-se com menos ânimo, transferi o dossiê para o meu sucessor. Abudu Cassamá foi seguramente mais uma das grandes vítimas da guerra. Mas naquela noite, pressionado pelo Carlos Cruz Oliveira, deu-me para transformar Abudu em estrela, fi-lo rei de um presépio, dei-lhe o pleno poder de ser a minha paz navegante. E consegui-o.

Já me tinha esquecido desta estrela de Canturé, nos termos em que a alumiei para a revista Liber 25. Abudu Cassamá está seguro no meu coração, é uma das imagens do horror da guerra, da falta de sentido que premeia um ato negligente de deixar uma granada incendiária dentro de um reboque, numa povoação cheia de crianças.

Regresso da Feira da Ladra a olhar a capa da Liber, há qualquer coisa de familiar naquele desenho, intrigado vou ver a ficha para saber quem é o seu autor: nem mais nem menos de que Rolando Sá Nogueira, de quem fui muito amigo e nos deixou em 2002. Há estrelas que nos aproximam, depois disfarçam-se de cometas que esvoaçam no tempo e depois, inopinadamente, prantam-se diante dos olhos, iluminando passado, presente e futuro. Mal sabia eu em 1981 que 25 anos depois iria pôr em ordem toda aquela escrita e publicar o poema que dediquei a Abudu, a minha estrela de Canturé.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16212: Nota de leitura (848): “Bolama, a saudosa…”, autoria e edição de António Júlio Estácio (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16218: Dossiê Guileje / Gadamael (28): A situação de Gadamel, ao tempo da CCÇ 2796 (1970/72), que teve dois grandes comandantes, Cap Op Esp Fernando Assunção Silva e Cap Art António Carlos Morais Silva (Vasco Pires, (ex-Alf Mil Art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72)

1. Mensagem de 4 do corrente do nosso camarada da diáspora, Vasco Pires (ex-Alf Mil Art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72):

Assunto - Tempo de antena

Boa tarde Padrinho, Carlos Vinhal, Cordiais saudações. 
Tendo lido os rasgados (e acredito merecidos) elogios ao Senhor Tenente-General  [António Martins de Matos] (*), escrevo este, para dar uma modesta sugestão: publicar como post os meus últimos comentários sobre o Senhor Coronel Morais Silva, até para os Camaradas que não o conheceram, saberem que não se trata de qualquer um que andou passeando os galões pelos trópicos, mas sim de um Oficial com "obra feita" como Comandante operacional, e se isso não fosse suficiente, Professor da Academia Militar e Capitão de Abril. 
Esse é o meu pedido, que submeto à avalizada decisão dos editores.

Forte abraço.
VP


2. Segunda mensagem com data de 12 do corrente:

Assunto - Situação de Gadamael 1970/72
Bom dia Carlos /Luís,
Cordiais saudações,

Nestes tempos de comunicação em rede, quando alguém publica uma informação, verdadeira ou falsa, logo uma "multidão" a repete, muitas vezes, sem qualquer verificação.

Quando alguém fez o relato dos acontecimentos de 73, ajuntou a afirmação de que raramente Gadamael era atacada, provavelmente comparando. Então, quando alguém quer discorrer sobre Gadamael, repete a mesma afirmação.

É direito e obrigação dos intervenientes, restaurarem a realidade dos factos. Foi o que fez recentemente o senhor Coronel A. C. Morais Silva, à época Comandante Operacional do aquartelamento de Gadamael, que passo a citar:  

"...em dezembro 70, a CCAÇ Ind 2796 (em início de comissão) foi flagelada em 16, atacado o aquartelamento em 20 (uma hora), e flagelada no dia 30. ~

"Destas ações resultaram 2 baixas nas NT e 16 na POP. Em janeiro de 71, ataques em 8, 10, 11 e 28. Combate próximo em 5 e 24 ( morte do cmdt comp.capitão inf. Assunção Silva). (**)

Em 6/7 de fevereiro de 71 o aquartelamento é flagelado durante 3 (três!) horas repetindo em 28 de fev. Neste período a companhia teve 9 baixas (ver no P7756 o estado da companhia em fins de janeiro de 71...).(**)

"Nos treze meses de estadia em Gadamael, a CCaç 2796, teve 5 mortos e 26 feridos, foi flagelada 25 vezes e teve 5 contactos com o IN."

"Reafirmo que a pressão exercida pelo PAIGC de Dez de 70 a Mar 71, buscava a queda de Gadamael e a consequente queda de Guileje. Não o conseguiu, porque a guarnição de Gadamael, apesar dos momentos difíceis que viveu, manteve a posse da posição, a segurança da população, o apoio logístico a Guileje, e a liberdade de movimentos do setor. "

Solicito publiquem, para que fiquem registados os factos; assim, qualquer um pode fazer as comparações que lhe aprouver!!!

Forte abraço
Vasco Pires
Ex-soldado de Artilharia
Gadamael (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16152: FAP (95): de Gadamael a Kandiafara… sem passaporte nem guia de marcha (António Martins de Matos, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)


Guiné 63/74 - P16217: Parabéns a você (1097): Cherno Baldé, Engenheiro e Gestor de Projectos, Amigo Grã-Tabanqueiro da Guiné-Bissau

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Nota do editor

Último poste a série > 19 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16214: Parabéns a você (1097): Henrique Cerqueira, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610/72 (Guiné, 1972/74)

domingo, 19 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16216: Agenda cultural (491): lançamento da obra "A presença portuguesa na Guiné: história política e militar: 1878-1926", de Armando Tavares da Silva, 5ª feira, 23 de junho, às 18h00, em Lisboa, no Palácio da Independência, Largo de São Domingos, 11



Convite para o lançamento da obra "A presença portuguesa na Guiné: história política e militar: 1878-1926", de Armando Tavares da Silva, na próxima 5ª feira, 23 de junho, às 18, em Lisboa, no  Palácio da Independência, Largo de São Domingos, 11, telefone 213 241 470. 

A Edição é da Editora Caminhos Romanos, com sede no Porto. 

A apresentação está a cargo do alm Nuno Vieira Matias (n. 1939, combateu na Guiné, como comandante do Destacamento n.º 13 de Fuzileiros Especiais, de 1968 a 1970; e Presidente da Academia de Marinha, vice-presidente da Direcção da Sociedade de Geografia de Lisboa, membro correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, membro de mérito da Academia Portuguesa da História, entre ourtros cargos).

Não temos informação sobre o autor, Armando Tavares da Silva, mas julgamos tratar-se do professor catedrático reformado, do departamenmto de química, da Universidade de Coimbra, nascido em 1939, autor de "D. Manuel II e Aveiro: uma visita histórica  (27 de novembro de 1908) [S.l. : s.n.], 2007 ( Mafra : -- Rolo & Filhos).


1. Mensagem de 18 do corrente, enviada por Artmando Tavares da Silva:

Ex.mo Senhor,

Visto poder ser do seu interesse, venho trazer ao seu conhecimento que no próximo dia 23 de Junho, 5ª-feira, no Palácio da Independência, pela 18 horas, terá lugar o lançamento do livro
"A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)".

Ao mesmo tempo peço e agradeço divulgação entre amigos e conhecidos eventualmente interessados.

Anexo Convite e Sinopse do livro.

Com os meus melhores cumprimentos,

Armando Tavares da Silva



2. Sinopse da obra > "A Presença Portuguesa na Guiné – História Política e Militar (1878-1926)”


"Este livro é o resultado de um extenso e rigoroso estudo sobre a antiga Guiné portuguesa – hoje a Guiné-Bissau – e nele se relata a acção governativa portuguesa durante o importante período de quase 50 anos que se seguiu à separação administrativa da Guiné do governo-geral em Cabo Verde, até aos anos em que a existência de uma administração portuguesa mais solidamente implantada no território ia permitindo o seu mais firme desenvolvimento.

É uma história até hoje não contada que nos revela as vicissitudes que condicionaram aquela acção e, em particular, as circunstâncias que determinaram e em que ocorreram as várias operações militares que naquele período se foram sucedendo no território. O livro patenteia-nos ainda a presença e acção de muitos régulos, alguns com marcada projecção, e torna clara a existência de dois grupos que disputavam o domínio da sua vida comercial e administrativa.

O texto é acompanhado de variadíssimas fotografias e de mais de duas dezenas de elementos cartográficos inéditos." (Fonte: autor)

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de junho de 2016 >Guiné 63/74 - P16204: Agenda cultural (483): Livro de Jorge Sales Golias, "A descolonização da Guiné-Bissau e o movimento dos capitães" (Edições Colibri, 2016): apresentação por A. Marques Lopes, 5.ª feira, dia 16, pelas 18,00 horas, Biblioteca Municipal Florbela Espanca, Matosinhos

Guiné 63/74 - P16215: Convívios (755): AVECO- Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste , nas festas do concelho da Lourinhã (23 a 26 de junho de 2016)... Mas também a banda de música Melech Mechaya (a 25, sábado, 23h30)


Cartaz promocional da Tasca do Combatente, da AVECO - Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste, com sede na Lourinhã, no âmbito das Festas do Concelho da Lourinhã (de 23 a 26 de junho de 2016)

Parabéns à nossa AVECO
E à Tasca do Combatente,
´Tá bem giro o boneco,
Vamos lá todos dar ao dente!

(refrão)

Vamos lá todos dar ao dente,
Sejas cabo ou general,
Branco ou tinto, p'ra toda a gente,
Que o Santo  não te leva  a mal.

Que o Santo  não te leva  a mal,
Lourinhã é sua terra,
Deu a volta a Portugal,
Veio cansado da guerra.

Veio cansado da guerra,
D' África ou colonial,
Deixou de estar na berra,
Só quer a paz... celestial.

Só quer a paz celestial,
O nosso são Joãozinho,
Mas aqui tem um rival,
Que é um tal santo Antoninho.

Que é um tal santo Antoninho,
Brejeiro e folgazão,
Depois de morto foi soldadinho,
Santo protetor da Nação.

Santo protetor da Nação,
E dos nossos veteranos,
A quem desejo, do coração,
Muita saúde, muitos anos.

Parabéns à nossa AVECO
E à Tasca do Combatente,
´Tá bem giro o boneco,
Vamos lá todos dar ao dente!

(refrão)

Letra: Luís Graça (2016)


2. Destaque, no âmbito das Festas do Concelho da Lourinhã (de 23 a 26 de junho de 2016), para a atuação da banda musical Melech Mechaya, dia 25, sábado, às 23h30.  (Ver aqui página no grupo no Facebook.)

O recinto das festas é no Estádio do Sporting Clube Lourinhanense. A entrada é livre. Que não falta a alegria e a sã camaradagem aos nossos veteranos do Oeste e seus amigos e familiares. Boas festas populares para todos os nossos leitores!
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de junho de  2016 > Guiné 63/74 - P16209: Convívios (755): Grande ronco no 31ºConvívio Anual da CART 3494 em Arcozelo – Vila Nova de Gaia (Sousa de Castro)

Guiné 63/74 - P16214: Parabéns a você (1097): Henrique Cerqueira, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610/72 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Junho de 2016 Guiné 63/74 - P16210: Parabéns a você (1096): Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto do BCAÇ 3872 (Guiné, 1971/73)

sábado, 18 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16213: Os nossos camaradas guineenses (44): Criada, em Bissau, a Associação dos Filhos e Viúvas dos Antigos Combatentes das Forças Armadas Portuguesas (AFVCFAP): presidente Suleimane Camará (Idrissa Iafa, jornalista, Rádio Pindjiguiti)


Guiné-Bissau, Bissau > 2016 > Suleimane Camará,  presidente da Associação dos Filhos e Viúvas dos ex-Combatente das Forças Armadas Portuguesas. Cortesia da página do Facebook de Idrissa Iafa.



1. Mensagem de Idrissa Iafa, jornalista da Rádio Pindjiguiti, Bissau, com data de ontem:


Bom dia. 

Foi legalizada na semana passada a Associação dos Filhos e Viúvas dos Antigos Combatentes das Forças Armadas Portuguesas, denominada AFVCFAP, [com sede] em Bissau.


Neste âmbito queremos uma parceria convosco, afim de se unirem [connosco], para que aos nossos pais sejam pagos os seus direitos pelo Governo português, como faziam os outros países das [antigas] colónia portuguesas.

Em anexo esta uma reportagem sobre a legalização do referido associação. [

Obrigado e boa compreensão

Idrissa Iafa.


2. Comentário de LG:

Idrissa, infelizmente não conseguimos abrir o ficheiro (áudio ?)  que acompanhava a  tua mensagem, a qual temos todo o gosto em divulgar. Não temos, na Internet, qualquer informação sobre esta  nova associação. De qualquer modo, os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são, costumamos nós dizer aqui, entre nós, neste blogue... e não é uma mera figura de retórica. 

Isto é válido para os nossos camaradas guineenses que integraram as Forças Armadas Portuguesas. Mesmo tardia, há alguma justiça que pode ser feita a esses nossos camaradas, que na sua grande maioria já morreram.  E, pelo menos, alguma da nossa ajuda humanitária pode doravante ser  encaminhada para a nova Associação.

Temos um série sobre Os Nossos Camaradas Guineenses. Queremo ser úteis e solidários. Mas precisamos de saber quais são os vossos objetivos. O Suleimane Camará, que nos contacte por email. Pomos desde o nosso blogue à vossa disposição. Mantenhas
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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15284: Os nossos camaradas guineenses (43): Quem se lembra do Madjo Baldé, natural de Mampatá, nascido em 1936, sold at inf, Madjo Baldé. que serviu o exército português desde 1961 a 1966, incluindo a 1ª Companhia de Caçadores (Umaro Baldé, filho, a viver na ilha do Sal, Cabo Verde)

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16212: Nota de leitura (848): “Bolama, a saudosa…”, autoria e edição de António Júlio Estácio (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Não é um ensaio historiográfico, porém e doravante não se poderá prescindir para quem estudar Bolama e a Guiné-Bissau de ler este relato apaixonado e íntimo.
É um retorno à juventude, uma homenagem aos seus amigos, há uma descrição que António Estácio faz de Bolama que nos arrasta, viajamos com ele por ruas, praças e jardins, entramos em festas e piqueniques, visitamos amigos conhecidos, comemos fruta e vamos à praia.
Retrato de um mundo que se desvaneceu para todo o sempre e que mereceu um registo empolgante, tão empolgante que os guineenses são merecedores de o conhecer, cabem ali bolamenses e portugueses que fazem parte da sua história.
Que feliz ideia teve o António Estácio ao coligir estas memórias, repartindo connosco a sua infância.

Um abraço do
Mário


Bolama, um indefetível amor do António Estácio (2)

Beja Santos

Em “Bolama, a saudosa…”, o nosso confrade António Júlio Emerenciano Estácio surpreende-nos com uma pesquisa em torno das suas memórias bolamenses, edição de autor, 2016. Não se trata de uma pesquisa histórica, um levantamento minucioso sobre essa Bolama que deu querela internacional, foi capital da colónia quando no terceiro quartel do século XIX se deu a desafetação de Cabo Verde, uma Bolama que teve a Imprensa Nacional, uma unidade militar que formou o contingente local e em cuja baía aterravam e levantavam os Clippers da Pan American. Este livro é um contrato pessoal com um tempo, uma infância, muitos amigos. Mas não deixa de ser um levantamento apaixonante. Logo em 1935, quando havia sérios indícios da transição da capital de Bolama para Bissau, a associação comercial de Bolama move-se, segue uma carta para um deputado, é literatura modelar da época, pintalgada de romantismo:
“Bolama, Senhor Deputado, com a sua atmosfera de trabalho, calma e sadia, sem aquele marulhar de movimento que distrai e cansa aqueles que, pelo cérebro, têm que produzir; onde o Estado possui boas instalações valorizadas em alguns milhões de escudos e a vida dos seus servidores decorre graduada pelo sossego espiritual e por um ambiente materialmente saudável que com pouco mais se completará; Bolama, Senhor Deputado, em nada desmerece para que deva ser abandonado ao triste destino das inutilidades, a uma ruína completa que arrastará a uma vida de necessidades dezenas de contribuintes do Estado, que são hoje detentores de muitos milhares de contos que valorizam o património nacional precipitando tantos outros – a maior parte, na mais negra miséria”.
A decisão estava tomada, Bissau era o centro nervoso dos negócios, a partir de então todos mostraram compunção com a sorte de Bolama, mas a decadência tornou-se inexorável.

A recolha de António Estácio engrandece a história da colónia e há um poderoso ponto de reflexão para quem quer ver a Guiné-Bissau no mapa. Colige depoimentos de quem por lá passou, juízes, sacerdotes como o eminente Vigário Geral da Guiné, Marcelino Marques de Barros, junta efemérides, presta elementar justiça e Fausto Duarte, cabo-verdiano de nascimento, grande servidor da cultura guineense, foi responsável pelos anuários de 1946 e 1948, colaborador do boletim cultural da Guiné Portuguesa, romancista premiado, precocemente desaparecido. Estampa no seu livro imagem de magnificência e de ternura; homenageia gente absolutamente esquecida como António Augusto Cardoso, nascido em Freixo de Espada-à-Cinta, trazido pelo Governador Sarmento Rodrigues com o intuito de ensinar a construir carros de bois, foi ativo na Granja de Pessubé, e ficamos a saber que foram utilizadas madeiras como Bissilão, Pau-Sangue, Pau-Veludo, Pau-Conta, Pau-Bicho Rijo, Macete, Fára, Pau-Miséria e Farroba de Lala. Anota impressões de viagem incluindo estudantes de Coimbra que cantaram o fado em Bissau. Há inclusivamente o relato com o desastre de aviação que sofreu o Governador Vaz Monteiro em 1944. A notícia do jornal Arauto tem tensão e emoção, a descrever o desaparecimento e o reaparecimento de governador e filho:
“Afinal o que acontecera? Foi o caso que Sua Excelência o governador, tendo urgência de vir a Bolama, saiu de Bissau às 16,35 na avioneta pilotada pelo seu filho Fernando. Mas no caminho o vento redobrou de fúria, como é usual neste período, e o pequeno avião viu-se forçado a aterrar precipitadamente, vindo a cair em cima do tarrafo da costa do continente, próxima da Ilha das Cobras, visto não conseguir alcançar uma lala que ficava próxima. Na queda foram cuspidos fora do avião, tendo ficado sem sentidos. Quando voltaram a si e viram que não havia ferimentos graves, graças à perícia e serenidade do piloto, tentaram sair daquele lugar e procurar refúgio, mas com a névoa não conseguiram desemaranhar-se do tarrafo altíssimo e ali passaram a noite ao frio e à chuva. Logo porém, que romperam os primeiros clarões do dia, puseram-se a caminho, e ao fim de três horas de acidentada viagem conseguiram alcançar a praia; dali fizeram sinal cujo ruído ouviam há muito mas sem o poder ver. Foi nesta altura que a própria vedeta divulgou a feliz notícia”. Houve regozijo geral, realizou-se um solene “Te Deum” a que assistiram funcionários, comércio e numerosíssimo público.

Fala-se da viagem de um dos maiores dos jornalistas portugueses à Guiné, Norberto Lopes, da inauguração da estátua de Ulysses Grant, que muito mais tarde o Comandante Alpoim Calvão comprou parte do busto por cinco milhões de francos CFA. Há também memórias de Alexandre Barbosa e Hélder Proença e depois António Estácio lança-se num relato empolgante na descrição de Bolama, descreve os seus diferentes setores, toca-nos o coração, até porque há impressões pessoais:  
“Não posso deixar de realçar que, certo dia do mês de Maio de 1957, a minha mãe atarefada com a esgotante tarefa de dar aula a duas classes em simultâneo, ralhava para nós nos alhearmos da barulheira que se ouvia na sala de aulas. Nós desconhecíamos o que se passava, procuravam apedrejar uma cobra que tentava esconder-se em qualquer canto. Mas, aos poucos, o barulho aumentava cada vez mais e eis que vemos entrar na sala uma cobra escura e que se apresentava já ferida. Os alunos da 4.ª classe pegaram em mapas que estavam dependurados nas paredes, enrolaram-nos bem, acertando com boas cacetadas, imobilizando a cobra”.


Craveiro Lopes, em Maio de 1955, visitou Bolama e António Estácio conta-nos como foi.

Estamos num ponto crucial da obra, fala-se das grandes famílias de Bolama, sucedem-se os testemunhos como o de Elisé Turpin, um dos fundadores do PAIGC, fala-se de Armando Victor Estácio, momentos há em que Estácio volta à sua juventude, as imagens são indeléveis:  
“Bolama, no tempo da fruta madura, fosse mango, caju, jaca, laranja, goiaba, fruta-pão, tudo era bom. Cada um trazia por hábito no bolso uma embalagem de sal e malagueta, para comerem a manga verde quando iam tomar banho no ‘Pinto’, Fonte de Polícia, Tambacumba grande e Tambacumba pequena, que ficava na zona de Oncalé. Também íamos buscar cocos à Casa Nova, propriedade da Casa Gouveia”.
Não fica esquecido Francisco Valoura, de cuja obra já se fez menção no blogue. O autor dá uma especial atenção a avisos, anúncios, agradecimentos, notícias infaustas, menções comerciais, exibe mesmo um despacho datado de 1972 que é um texto primoroso e aqui se reproduz.

Podemos imaginar o labor e amor que António Estácio imprimiu a um documento tão pessoal, tão cheio de pesquisa, a uma tão grande partilha de intimidade. Fez bem, a Guiné merece-o, oxalá que estas fartas memórias fiquem rapidamente ao alcance da terra onde nasceu.
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Nota do editor

Poste anterior de 13 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16196: Nota de leitura (847): “Bolama, a saudosa…”, autoria e edição de António Júlio Estácio (1) (Mário Beja Santos)