terça-feira, 26 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19622: Notas de leitura (1163): O que "ultra" Dutra Faria (citado pela doutoranda e nossa grã-tabanqueira Sílvia Torres) pensava de Amílcar Cabral: um menino de coro (que "ia à missa, todos os domingos, em Bissau"), transviado em Lisboa pelo marxismo e por uma mulher, 'branquíssima'...






Guiné > Bissau > Jornal diário "O Arauto", quarta-feira,  27 de jlho de 1967, Ano XXV, nº  6242 > Cabeçalho do jornal "O Arauto", "diário da Guiné Portuguesa", diretor e editor: José Maria da Cruz.

Notícia: "A Companhia de Cavalaria de Catió termina a sua missão de soberania nesta Província"... A notícia  não refere o número da unidade (o que estava conforme as normas de segurança militar, mas sabemos que era a CAV 1484, a que pertencia o nosso querido amigo, camarada e grã-tabanqueiro Benito Neves). Diz apenas que era comandada pelo sr. Capitão Rui Manuel Soares Pessoa de Amorim, que esteve mais de um ano em Catió e que cumpriu "com exemplar dignidade, heroísmo e espírito de sacrifício a sua sagrada missão, arrecadando resultados francamente positivos no campo militar"...
 
À despedida, houve jantar (melhorado ?), no refeitório do Batalhão local, que serviu para confraternização entre todos os militares do Quartel de Catió, e as autoridades civis e militares. "Aos brindes, falaram o comandante do Batalhão de Catió, o Administrador do Concelho, [o ou um ?] agente da Pide e ainda um representante da Milícia, que puseram em destaque as qualidades reveladas pela Companhia e a simpatia que goza em todos os sectores de actividade do concelho" 

Anúncio das famosas ostras do "Miramar": (i) eram da rocha; (ii) abertas à pressão; e (iii) uma travessa gigante custava 20 pesos e dava para almoçar a meia dúzia de "desenfiados do mato",,, Nãoi se diz, mas eram regados com "lima" e acompanhavam com cerveja ou vinho branco... A "champanha" era muito cara!... (Dois anos depois, continuavama  a custar os mesmos 20 escudos da Guiné ("pesos"), o que equivaleria hoje a 6,3 € - preço de 1967 - ou 5,5 € - preço de 1969 -, considerando que 100 "pesos" equivaliam a 90 escudos da metrópole. Com 20 pesos comia-se um bife com batatas fritas e ovo a cavlo e um cerveja... em Bafatá, no Restaurante "Transmontana", no 2º trimestre de 1969...


Fotos (e legendas): © Benito Neves (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




TORRES, Sílvia - A Guerra Colonial na imprensa portuguesa da Guiné. A cobertura jornalística do conflito feita pelos jornais O Arauto, Notícias da Guiné e Voz da Guiné, entre 1961  e 1974  / The Colonial War in the Portuguese press of Guinea. The media coverage of the conflict made by the newspapers O Arauto, Notícias da Guiné and Voz da Guiné, between 1961 and 1974.

PRISMA.COM (33) 2017, p. 33-46 DOI 10.21747/16463153/33a2 33


A nossa amiga Sílvia Torres (que tem sete referências no nosso blogue e é membro nº 736 da  Tabanca Grande) (*)  escreveu este artigo, no âmbito do Doutoramento, em curso,  em Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. 

 Este artigo centrou-se na análise da na imprensa portuguesa da Guiné publicada durante a Guerra Colonial.   A autora quis perceber que tipo de cobertura jornalística fazia esta imprensa colonial sobre o conflito:

"A presente investigação (,,,) visa também recuperar a história do jornalismo então português praticado em tempo de censura (e autocensura), durante a Guerra Colonial e numa das províncias ultramarinas envolvidas no conflito", tendo a autoria concluído que "a imprensa portuguesa da Guiné também serviu as Forças Armadas e que o Governo, da metrópole e da Guiné Portuguesa, se serviu desta imprensa."

No período em análise, entre 1961 e 1974, existiram apenas três jornais na Guiné Portuguesa, em períodos distintos: (i) "Arauto" (até 1968), (ii) "Notícias da Guiné" (1968-1970); e (iii) "Voz da Guiné"  (1972-1974). São estes três periódicos que foram objeto do estudo.

Já aqui falámos do "Arauto" (**), cujos primórdios remontam a 1942, ano em que surgiu sob a forma de boletim, policopiado, da responsabilidade das missões católicas.  Em 1943,  passa a mensário, e é impresso na tipografia da Imprensa Nacional, em Bolama. O diretor é o padre Afonso Simões, e a redação e a administração são na Residência Missionária de Bolama.

Em 1945, passa a ser impresso na Tipografia das Missões e, no início da década de 50, torna-se um jornal  diário (só não saindo à  segunda-feira), com novo diretor:  o padre, também franciscano,  José Maria da Cruz Amaral. Em 1958, o "Arauto"  passa a designar-se "O Arauto". Em 1961, era vendido, em Bissau,  por 1$00.

"Por esta altura, já continha também notícias internacionais, provenientes de agências noticiosas nacionais e estrangeiras" e, "apesar de a publicação não incluir ficha técnica", sabe-se que a equipa era reduzida: só tinha redatores para a "página desportiva"... O resto é feito só por um homem, o padre Cruz Amaral.

 "O retrato é feito por Dutra Faria, então diretor executivo e enviado especial da ANI (Agência
Noticiosa de Informação), a 7 de fevereiro de 1964, n’O Arauto, num texto sobre a Guerra
 Colonial. Dutra Faria revelava que Portugal estava em guerra, “uma guerra revolucionária – e
que abrange, por isso todas as frentes”, sendo uma delas a informação." (Torres, pp. 35/36).

 A falta de recursos humanos, já referenciada por Dutra Faria, bem como os problemas financeiros e técnicos que se agravam, levam ao  encerramento, em 1968, o único jornal diário da província. 

Sobre Dutra Faria [Angra do Heroísmo, 1910 - Lisboa, 1978], Sílvia Torres faz-nos revelações interessantes;

(...) "Dutra Faria, então diretor da agência ANI, foi à Guiné como enviado especial. Desta viagem, fez vários artigos com o mesmo antetítulo – “Na Guiné Portuguesa, junto da Cortina de Ferro”. O segundo texto, intitulado “Entre dois fogos”, foi proibido de ser publicado na edição de 30 de janeiro de 1964. Neste artigo, Dutra Faria diz que o inimigo das Forças Armadas Portuguesas, na Guiné, não se pode “desprezar” porque foi “bem” treinado para a luta de guerrilhas em escolas de Praga e de Moscovo. Faz ainda referência à qualidade e à abundância do armamento que o inimigo possui e à sua inteligência." (p. 40)

Mais interessante, é o que Dutra Faria  escreve sobre o líder do PAIGC, Vamos citar  mais um  excerto do artigo de Sílvia Torres (p. 431):

(...) Amílcar Cabral, “um rapazinho que ia à Missa todos os domingos”, em Bissau, tal como Mário de Andrade o fazia, em Luanda. Os dois, em Lisboa, foram estudantes universitários que “se deixaram empolgar pelo marxismo”: “(…) há responsabilidades a que não podemos fugir e esta é uma delas – não soubemos defender de influências nefastas estes dois rapazes e muitos outros estudantes ultramarinos”.

"Segundo Dutra Faria, também Maria Helena de Ataíde – “uma linda rapariga de olhos claros e cabelos talvez aloirados. Branquíssima” – então esposa de Amílcar Cabral, estudou em Lisboa. Foi na capital da metrópole que se conheceram e que ela exerceu sobre ele “decisiva influência”. O casal chegou a trabalhar em Bissau, “onde (…) um Chefe de Serviços, pelas suas ‘gafes’   monumentais e por um estúpido racismo de última hora, completou no jovem agrónomo de
coroa obra iniciada em Lisboa, no Instituto [Superior de Agronomia], pelos seus colegas comunistas e continuada, depois, pela esposa – revolucionária exaltada: Amílcar Cabral passou-se assim, definitivamente, para o campo dos inimigos de Portugal”.

Por é que este texto, escrito por um dos homens da "ala dura" do regime, foi censurado ?

Sílvia Torres explica (pp. 41/42):

(...) "A 12 de fevereiro de 1964, o Governador da Guiné Portuguesa, capitão-de-fragata Vasco António Martins Rodrigues, envia uma carta para o ministro do Ultramar, onde comunica que aprovou a proibição do texto de Dutra Faria por destacar os “sucessivos êxitos que o inimigo vem conseguindo”; por comparar o inimigo da Guiné, de “superior qualidade”, com o inimigo de Angola; por atribuir responsabilidades a Portugal pelo caminho seguido por Amílcar Cabral; e por desprestigiar o serviço público, ao criticar um seu funcionário." (...)

De qualquer modo, Dutra Faria terá sido injusto em relação a Amílcar Cabral e a Maria Helena de Ataíde Rodrigues, a transmontana de Chaves que foi a primeira mulher do líder do PAIGC e uma das primeiras mulheres a formar-se em engenharia agronómica, e que não era loura, e muito menos estúpida... A história de amor destes dois seres humanos é lindíssima, como todas as grandes histórias de amor... Dutra Faria nunca leu as cartas de amor que eles escreveram um ao outro... E as suas insinuações estão eivadas de racismo e machismo...

Maria Helena [de Ataíde] Vilhena Rodrigues, engenheira agrónoma, transmontana de Chaves, casou em 1951 com Amílcar Cabral, de quem teve duas filhas, Iva e Ana. Iva Maria nasceu em 1953, é hoje historiadora e vive na Praia, Cabo Verde. Conhecia-a pessoalmente em Bissau, em 2008, por ocasião do Simpósio Internacional de Guiledje. Quanto à  Ana Luísa,  nasceu em 1962 e, segundo li, licenciou-se em medicina e vive discretamente em Braga. 

Maria Helena e Amílcar separaram-se definitivamente em meados da década de 60. Cabral irá casar, em segundas núpcias, com Ana Maria Foss Sá, mais conhecida como Ana Maria Cabral, em maio de 1966. É assassinado em 20 de janeiro de 1973, na presença da segunda mulher. É muitas vezes confundida, por alguns camaradas nossos, como a "Maria Turra", a locutora da rádio "Libertação", do PAIGC.

Enfim, ainda em relação a "O Arauto", sabe.se que a publicação, em julho de 1965, de "notas biográficas"   de alguns destacados líderes africanos da época não foi bem vista pelo novo ministro do ultramar, Joaquim Moreira da Silva Cunha [1920-2014]. (, esteve no cargo entre 19 de março de 1965 e 7 de novembro de 1973),  por serem apontados "como "símbolo da auto-determinação e da revolta dos povos de cor contra os países colonizadores"... Na sequência desse desagrado, solicita-se ao governador que: (i) transmita à comissão de censura as necessárias instruções par "põr cobro à publicação das biografias"; e (ii) passe a  estar atento à “orientação seguida pelo jornal”, uma vez que que não estava a  corresponder “aos interesses nacionais” (cit por Torres, p. 42).

Recorde-se que o governador-geral (e comandante-chefe) era então o gen Arnaldo Schulz. Mas estes "mal-entendidos" não são matéria que possa ser tomada como suficiente para que o padre franciscano José Maria da Cruz [Amaral] (1910-1993) venha, mais tarde, alegar que foi vítima de perseguição política  por parte do antecessor de Spínola.

Dois anos depois deste "incidente",  no aniversário de "O Arauto", em 5 de julho de 1967,  José Maria da Cruz  viria a agradecia ao governador [, o gen Arnaldo Schulz,] a concessão de um subsídio de 50 mil escudos [, em dinheiro da metrópole era o equivalente hoje a c. 17.600 €, bastante dinheiro, dava para comprar uma viatura automóvel tipo FIAT 127 ou gama superior...]. Em 1966 o défice do jornal era já de 486 mil escudos [, mais de 178,6 mil euros, hoje, um a pipa de massa] e o diretor já  se questionava  sobre a sua viabilibilidade económica.

Luís Graça (***)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17052: Tabanca Grande (426): Sílvia Torres, filha de ex-combatente, doutoranda em ciências da comunicação pela NOVA, autora do livro "O jornalismo português e a guerra colonial", nossa grã-tabanqueira nº 736

(**) Vd. poste de 13 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19581: Notas de leitura (1158): o caso do jornal diário "O Arauto", extinto em 1968, num artigo da doutora Isadora Ataíde Fonseca, sobre a imprensa na época colonial (Luís Graça)

(***) Último poste da série >  25 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19621: Notas de leitura (1162): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 25 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19621: Notas de leitura (1162): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2019:

Queridos amigos,
É um tomo de mais de 500 páginas, primeiro diarístico e depois mensal, 1964, Binta completamente controlada por adeptos do PAIGC, o seu potencial fogo ainda é precário, como precária é a sua capacidade de aterrorizar, Alípio Tomé Pinto tem uma Companhia bem preparada, as primeiras semanas correm a um ritmo enlouquecedor, não tivesse o essencial desta trama aparecido em obras anteriores e julgávamos tratar-se de um romance de aventuras.
Lê-se e medita-se: como a guerrilha cresceu de 1963 para 1964, tudo parte e irradia do Morés, bem se procurou desalojar a força militar do PAIGC e a sua população, o insucesso por completo.
Belmiro Tavares é de uma enorme coragem, diz desabridamente que as Unidades à volta mal saíam dos quartéis, permitiam uma quase total liberdade às forças do PAIGC.
O homem inspirador de tudo, que nesta obra é sempre incensado chama-se Alípio Tomé Pinto, permanentemente adorado por quem combateu às suas ordens naquele rincão da Guiné.

Um abraço do
Mário


Binta, Guiné, A Companhia do Capitão do Quadrado, novas memórias (1)

Beja Santos

O livro intitula-se “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017. A capa é surpreendente, como se escreve: “Uma bonita abatis na estrada de Farim. Esta não cumprira a sua missão: impedir a passagem; as viaturas passavam por baixo!”. No blogue, já tive oportunidade de me debruçar sobre três livros referentes ao historial da CCaç 675: primeiro, o galvanizante “Diário de JERO”, um relato feito pelo enfermeiro da Companhia de tudo quanto se vai passando, e tudo quanto se vai passando gravita à volta de um oficial bem-amado, Alípio Tomé Pinto, que irá ficar conhecido pelo nome de “Capitão do Quadrado”, um documento publicado à sorrelfa em 1965, podia ter custado a carreira deste oficial que chegou a general; seguiu-se outra obra “Golpes de Mão’s”, se apresentava como o segundo volume do diário, leitura estimulante, mas não chegava ao sopro anímico do primeiro; terceiro, a biografia do General Tomé Pinto, da responsabilidade da jornalista e investigadora Sarah Adamoupoulos. O impulsionador deste quarto documento é um homem sentimental que ainda hoje nos impressiona tanto pela memória dos acontecimentos vividos, como pela sua arte de contar, não é a primeira vez que o oiço de voz embargada e lágrimas a bailar nos olhos, Binta e arredores não lhe saem do coração.

Entendeu Belmiro Tavares, de colaboração com JERO, regressar ao tempo dos acontecimentos, começa quase como a forma de um diário, de uma agenda volumosa, pretende contar tudo o que aconteceu, relembrar factos desagradáveis, e aí mostra-se inabalável na descrição até de atos irresponsáveis, fraquezas várias, comportamentos impensados.

Seguindo uma cronologia convencional, temos a chamada para Mafra, a recruta e a especialidade em Mafra, tudo em 1963. No início de 1964, Belmiro Tavares está no RI 16, em Évora, onde em abril se forma a CCaç 675, inicialmente o seu futuro parecia talhado para Moçambique, dá-se a mudança de rumo para a Guiné. Convém não esquecer que por essa época se estavam a precipitar acontecimentos na colónia, tudo se agravava, Arnaldo Schulz pedia mais efetivos, alguns foram-lhe concedidos, inclusive meios aéreos. O Uíge leva-os até Bissau, a narrativa recorda uma vez mais que os oficiais e os sargentos iam bem instalados e as praças viajavam em condições imundas, nas entranhas do barco, escuras e fedorentas, numa atmosfera pestilencial. Estamos em maio, chega-se à Guiné, os oficiais ficaram alojados num avelhantado prédio sem água corrente, os soldados de novo alojados em péssimas condições, camas era coisa que não havia.

Da primeira à última página deste relato que excede as 500 páginas, a figura central, carismática, tratada com todos os encómios, é o capitão do quadrado, o autor recorda que nenhum dos homens da CCaç 675 veio a sofrer do síndroma pós-traumático de guerra, a sua unidade militar era a gloriosa, era e continua a ser. Em junho, rumam para Binta, nesse tempo a guerrilha toma praticamente conta de toda a região, cultiva placidamente, do Senegal, através de Dungal avança-se para Sambuiá e daqui para o Oio, será esta a rota preparada por Osvaldo Vieira para receber Amílcar Cabral e Gérard Chaliand quando ambos visitam a região, em 1964, o livro de um dos mais eminentes historiadores dos conflitos revolucionários do século XX será publicado no ano seguinte, na Maspero. Tomé Pinto pretende atrair populações a Binta e limpar o seu setor até Guidage. E o leitor imediatamente começa a ouvir falar em Sanjalo, Lenquetó, Caurbá, e outros pontos de constante visita.

O diário da guerra abre com uma descrição de Binta e no dia 3 de julho abrem-se as hostilidades, visita-se a Tabanca de S. João, a 4 quilómetros e depois Genicó Mandinga. População em fuga, há tiros, a tropa apercebe-se que toda aquela gente vive o drama de ter que tomar um partido, crueldade não falta, mesmo que se fuja para o Senegal há sempre ameaças, é preciso estar do lado da guerrilha, há aldeias queimadas, picadas intransitáveis. No dia seguinte, é o batismo de fogo, em Lenquentó, descobre-se que a picada para Guidage está polvilhada de abatises.
No adianto do relato, Belmiro Tavares explica-nos o funcionamento do quadrado:
“Saindo a pé do quartel, normalmente em noite escura, seguíamos em fila indiana; ao amanhecer, se aconselhável, passávamos a duas filas: os dois pelotões deslocavam-se lado a lado. Quando nos aproximávamos de um local potencialmente mais perigoso, ou havendo contacto com o inimigo, em escassos segundos, formávamos o nosso quadrado. Esta formação de combate era, para nós, muito querida, porque nos permitia grande poder de fogo em todas as direcções. Caminhar em fila, no meio do mato, entre árvores ou arbustos, no meio do capim, muitas vezes mais alto do que nós, não era tarefa fácil e o homem da frente tinha de ser substituído com alguma frequência. Caminhar pelas matas em quadrado, é uma tarefa muito mais desgastante porque a linha da frente tem de abrir 16 trilhos… Apenas tantos quantos os homens das duas secções que as constituem. Se seguíssemos em duas filas paralelas e se se tornasse obrigatório formar o quadrado fazíamo-lo em dois tempos: as duas secções da frente, uma de cada pelotão, formavam uma linha de 16 homens; as duas secções seguintes afastavam-se lateralmente uma da outra, colocando-se no enfiamento de dois extremos da linha da frente; as duas últimas secções formava, em simultâneo, a linha da retaguarda daquela hábil e eficiente formação de combate.
Progredir em quadrado no meio do matagal era difícil e extenuante; fazê-lo em corrida e debaixo de fogo, era dose para leão. Rodar o quadrado em velocidade, sem desalinhar (como se no cruzamento das diagonais houvesse um eixo vertical) para que enfrentássemos adversários sempre com uma frente de 16 atiradores, era tarefa hercúlea. A verdade é que fazíamos aquilo em absoluta sincronia. Se uma das laterais era atacada em força, a frente e a retaguarda alinhavam com esse lado e logo atacávamos com uma linha de 40 combatentes. Se fossemos atacados pela retaguarda, o quadrado não rodava; todos fazíamos meia volta e, em quadrado, logo atacávamos, afugentando os guerrilheiros. Estas mudanças bruscas eram uma grande surpresa para eles. Por vezes, o nosso sábio capitão e os subalternos entendiam que ainda não era hora de mudar a formação e já um outro soldado alertava os oficiais para se proceder à alteração. Era difícil e cansativo mas era preferível andar em quadrado e ter segurança do que procurar facilidade que só nos traziam perigo. As secções de cada pelotão rodavam as posições sempre que saíamos para o mato, para que não fossem sempre os mesmos a enfrentar o maior sacrifício, encabeçando o quadrado. Cada secção sabia, em cada dia, qual era o seu lugar na coluna. Se saíamos nas viaturas a ordem era a mesma”.

E vamos entrar agora num rodopio operacional tão persistente, tão atuante, que o PAIGC, à cautela, abandona todas as posições que detinha na região de Binta.

(continua)



Belmiro Tavares, o primeiro à direita, segue-se o  JERO, o comandante do navio e Virgínio Briote, um contemporâneo da CCaç 675, fotografia já existente no nosso blogue (, publicada aquando da entrada do Belmiro Tavares, em 1/11/2009, para a Tabanca Grande), A foto é do JERO.
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Nota do editor

Último poste da série de22 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19610: Notas de leitura (1161): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (78) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19620: Voluntário em Bissau, na Escola Privada Humberto Braima Sambu - Crónicas de Luís Oliveira (7): O futebol e não só... O futebol faz parar a cidade... E se as mulheres guineenses parassem ?... Mais de metade da população morreria de fome.






Guiné-Bissau > Bissau > Março de 2019 >  As alegrias e as tristezas do futebol...


Fotos (e legendas): © Luís Oliveira (2019) . Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).

1. Sétima crónica do Luís Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro nº 730, que foi alf mil inf, de rendição individual, na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar, 1973, até agosto) e, no resto da comissão, o último comandante do Pel Caç Nat 52 (Setor L1 , Bambadinca, Mato Cão e Missirá, 1973/74): é lisboeta,fezo Liceu Pedro Nunes, é bancário reformado, foi praticante e treinador de andebol, tem fortes ligações à minha terra natal, onde agora vivo, Lourinhã, Oeste, Estremadura...

Chegou a Bissau, a 2 de março de 2019, e aqui vai estar 3 meses como voluntário na Escola Privada Humberto Braima Sambu, no âmbito de um projeto da associação sem fins lucrativos ParaOnde, que promove o voluntariado em Portugal e no resto do Mundo.


Data - 21/03/2019, 12:57

Olá Luís

Mais uma crónica do futebol que partilhei contigo na Google Drive.

As fotos que seguiram sem qualquer legenda representam o naming do estádio Bom Fim, a mulher festejando o golo feminino e a baliza do estádio.

O Salinas também está representado tal como a programação.

Grande abraço,

Luís Oliveira
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Voluntário em Bissau, na Escola Privada Humberto Braima Sambu - Crónicas de Luís Oliveira (7): Guiné-Bissau e o Futebol...e não só


Não sendo o desporto da minha preferência, uma das coisas que iria abdicar quando decidi vir em missão de voluntariado seriam as visitas futeboleiras ao Estádio de Alvalade para ver o meu Sporting. 


Mais que o jogo, vale o convívio com amigos de longa data, as imperiais sempre frescas e a expectativa de uma grande exibição o que infelizmente para nós, sportinguistas, há muito tempo vai faltando.

Como será na Guiné? Num café à semelhança de Lisboa, porque com tantos aficionados do futebol, os guineenses de certeza que acompanham as diversas ligas da Europa, mas aqui não há os tais cafés ou tascas que proliferam em Portugal e em certas alturas tanto jeito dão. 

Perguntei ao Abubacar onde se podia ver futebol, pois o Sporting defrontava o Boavista e era uma boa forma de passar o serão melhor ainda se o meu clube sacasse os três pontitos que tanta falta estão a fazer.
Convidou-me imediatamente para o acompanhar ao “salon” porque também ele, sportinguista, não perdia o jogo por nada. Combinámos o encontro à porta do contentor e quinze minutos antes do jogo, à hora marcada o Abubacar apresentou-se tal como eu e sem prévia combinação com a lindíssima camisola de riscas verdes que é a cor da esperança.
” Para o ano é que é !”.

“Salon” I


O “salon” é apenas um armazém com cerca de cento e cinquenta metros quadrados. Cem Francos CFA para entrar e lá dentro uns bancos corridos, um mega LCD na parede e umas engenhocas estranhas onde estava incluída uma ventoinha apontada às box não fosse o jogo aquecer e aquilo dar para o torto.
Lá começou o jogo e logo no início da transmissão uma primeira paragem. Não se deveu por excesso de velocidade dos jogadores do Sporting, porque após a acção bem direcionada da ventoinha e das manobras mágicas do técnico, acompanhadas de pancadinhas na box, quando voltamos a ter imagem o Sporting já perdia por 1-0.
Como em todas as tascas em Portugal, um dos espectadores, certamente já precavido com as interrupções que aqui não são da responsabilidade do VAR, de banana no ouvido não perdia uma! Até deu com antecedência a noticia do invisível para nós golo Boavisteiro.

Jogo morno de pouca qualidade que finalmente chegou ao intervalo empatado. Em substituição da bica ou do gelado em Alvalade, o Abubakar brindou-nos com laranjas descascadas que uma mulher grande vendia à porta do “salon”.
Final do Jogo, 2-1 para o Sporting com pontapé de penalty polémico contestado por uns justificado por outros e semelhança do que acontece no estádio todos comentámos o jogo e as suas contingências. Não faltaram as críticas ao árbitro, ao posicionamento e empenho dos jogadores, às opções do mister Kaiser… Éramos todos treinadores de “salon” .

“Salon” 2

Dia de jogo da Champions que parecia estar a entusiasmar os guineenses e eu não percebia bem porquê, jogavam a Juventus versus Atlético de Madrid.

Confesso que em Espanha a equipa que mais admiro é o Atlético de Madrid, para além de ser o clube do povo republicano e inicialmente achincalhada pela elite aristocrática madrilena pelo seu equipamento às riscas se assemelhar ao colchões da época (colchoneros), rendo-me à garra, à ausência de galácticos e à personalidade combativa inspirada por Diego Simeone. Mas sendo o adversário a Juventus, agora a reboque do nosso Ronaldo, a minha escolha está feita porque nisto de futebol é impossível não tomar partido.


A Silvia e Nôno são aficionadas do futebol, a Silvia, filha de um brilhante futebolista, Pedro Barny, que jogou no Boavista e no meu Sporting na posição de central e chegou à Selecção Nacional de Portugal, também quiseram assistir ao jogo mas desta vez fomos acompanhados pelos nossos vizinhos do lado, familiares da Maia, proprietária da casa dos voluntários.

Os nossos companheiros atrasam-se, ou até já teriam partido sem nos chamar, mas um telefonema da Maia fez com que rapidamente nos viessem buscar e encaminharam-nos para outro “salon”. 

Dia de grandes jogos dois mega LCD (um para transmissão do Manchester City) mas o seu interior não diferia do primeiro onde estive, só que em dia de Champions e com Ronaldo a jogar, a coisa pia mais fino e a entrada aumentou para duzentos e cinquenta Francos.
O Salão estava a abarrotar já não havia lugares sentados e o “peão” era em qualquer lugar desde que houvesse uma nesga para espreitar o jogo. Ronaldo, muito mais do que acontece em Portugal, era o único responsável por toda aquela agitação que nos contagiava e elevava o nosso entusiasmo a níveis que nem todos as claques juntas de Portugal teriam capacidade.

A temperatura ultrapassava em muito os quarenta graus, transpirávamos por todos os poros e toda a gente cabeceava a bolas imaginárias tentando assim empurrar mais alto o Cristiano para que conseguisse por a “teimosa” dentro da baliza mas infelizmente o primeiro golo não valeu! 

À segunda foi de vez ...Gól!, Gól! Gól! Duzentas gargantas a gritar talvez quatrocentas pernas aos saltos, uma festa. Um ruído ensurdecedor.

Ao intervalo toda a gente veio para a rua onde os trinta graus da altura sabiam a frescura. Todos os espectadores receberam um bilhete de prova de pagamento para voltar a entrar, sendo nós (os voluntários) dispensados deste formalidade de segurança, não pelo facto de sermos voluntários, mas facilmente identificados por sermos os únicos brancos no “sálon”.

No grupo que se abeirou de nós para a conversa havia um adepto de Ronaldo especialmente entusiasmado que lamentava a ausência de jogo interior pela Juventus, fazia falta um dez como Modric, mas mesmo sem um dez Ronaldo é o maior e se ele fosse para Angola, jurava que passaria a ser angolano.
Lá recomeçou a partida e toda a gente sem ponta de cansaço. Incentivos permanentes e graças a eles, Gól! Gól!, Gól!. Ronaldo tinha marcado o segundo e passei a ver apenas metade do ecrã porque o movimento daquela massa humana já não me permitia ver mais. Dois golos eram insuficientes e eu já pedia a todos os santinhos que o Cristiano marcasse mais um porque não ia aguentar o prolongamento e devo ter sido ouvido porque mesmo no final do encontro uma falta para pontapé de penalty a favor da Juventus.

Ronaldo avança para o local da marcação. Vai ser mais um hat trick, afiancei às voluntárias e a bola entrou mesmo! Loucura total, apesar da falta de espaço toda a gente aos saltos, cânticos de aves que nunca tinha ouvido, uma alegria enorme, contagiante e pacifica que não me recordo de alguma vez ter vivido num estádio.

Concluí que Ronaldo é o nosso maior embaixador e devemos-lhe respeito e gratidão e encontrei naquele “salon” a verdadeira alegria do futebol que talvez apenas aqui tenha direito ao titulo de Desporto Rei.


“Katem salon” (Não há salão)

No dia da mulher, também celebrado na Guiné-Bissau, no Bairro Militar zona de Santa Clara, as mulheres resolveram mostrar su valor e desafiaram os homens para um jogo de futebol. O prélio não se disputou no Estádio Bom Fim, mas junto às tabancas onde moram e num terreiro que apesar dos buracos e outras irregularidades oferece espaço para a diversão e, a partir das quatro, quando o calor perda a força avançou a força da Mulher.

Duas pedras a fazer a marcação das balizas, equipamento ká tem e o que distingue os jogadores é o género e aqui não há supremacia, elas lutam com garra de igual para igual ignorando as normas sociais e a própria regulamentação do Estado que as condiciona e humilha.

Só assisti ao jogo até que a equipa da mulher marcou golo. GÓL!, GÓL! GÓL! Fiquei para assistir à festa do golo e após esta pequena vitória afastei-me para guardar a alegria com que elas me contagiaram. Para mim este resultado foi o final.

O jogo vai prolongar-se muito para além dos noventa minutos, talvez anos mas o desporto, neste caso o futebol, é um dos veículos de integração e que pode contribuir na via para a igualdade de género em todas as áreas da sociedade.

P.S. - O Sociólogo guineense Miguel Barros, investigador da ONG Guineense Tiniguena venceu o Prémio Humanitário Pan Africano em pesquisa de grande impacto social, neste refere a importância da mulher guineense na economia da família e do próprio País.
Alguns dados:

-30% das mulheres menores de idade escolar não frequentam o ensino.

-São as mulheres que trabalham no campo e quase tudo o que se consome na Guiné Bissau é produzido por elas. Trabalham em terras emprestadas ou concessionadas temporariamente. 

-Não têm acesso à propriedade, a própria lei do Estado não permite e mesmo no casamento quando a família oferece um dote, este ficará para sempre na posse do marido e na morte deste e na ausência de filhos a propriedade é herdada pelo irmão do falecido.(#)

Se as mulheres guineenses parassem, mais de metade da população morreria de fome.

(#) A religião muçulmana tem regras próprias que permitem à viúva a posse da propriedade, tratando-se de um dote, mas são frequentemente desrespeitadas.
Bissau, 21/3/2019 
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Guiné 61/74 - P19619: Parabéns a você (1592): Rui Silva, ex-2.º Sarg Mil Inf da CCAÇ 816 (Guiné, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P19616: Parabéns a você (1591): Braima Djaura, ex-Soldadado Condutor da CCAÇ 19 (Guiné, 1972/74)

domingo, 24 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19618: Blogpoesia (613): "Estou pobre...", "Perceber o mar..." e "Abrir alas...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Estou pobre...

Estou pobre. Sem água nem pão.
Não peço esmola.
Vivo sozinho. Especado no tempo.
Rogaram-me mal.
Sei lá!
Almas penadas.
Andam perdidas.
Sem esperança ao relento.
Gastaram a vida ao serviço do mal.

Prefiro penar, sem eira nem beira.
A consciência está limpa.
Durmo tão bem.
Vivo sonhando.
À espera do dia.
Que volte a viver.
Saboreando o momento.
Como se fosse o último.
Minha pena escrevendo sobre as penas passadas,
Meus olhos sedentos,
Com fogo e paixão...

Berlim, 18 de Março de 2019
13h32m
Jlmg

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Perceber o mar...

É preciso perceber o mar.
É incerto nas suas reacções.
Ora manso ora furibundo.
Sem respeito à terra que o circunda.

E, se o vento o ira, se arremete à costa desalmadamente.
Abre brechas. Inunda as pradarias.
Alheio à dor e mal que ele espalha.
Cruel para com os indefesos, desfaz as casas.
Tudo derruba. Nada o prende.

Só o sol o acalma. Porque lhe apaga o vento.
Fica sereno. De cor azul.
Irreconhecível. Atrai as gentes, como se lhes quisesse bem.
E a gente esquece. A gente vai.
Ninguém percebe o mar...

Bar do Edcka em Berlim, 20 de Março de 2019
9h25m - De sol mas frio -
Jlmg

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Abrir alas...

Chegou a hora de abrir alas.
Fazer frente a esta avalanche de imundície.
Campeia na comunicação e nas redes sociais.
Por todo o mundo.
Destruição de bons costumes.
Da ética humana e consistente.
Do homem digno e vertical.

Quanta subversão de valores.
A eleição do avesso. Em vez do recto.
Se escolhe o efémero. O ilusório.
O estéril.
Criou-se o paradigma da palhaçada.
Só interessa o que não vale.
Invertem-se o género e as posições.
Admite-se o inadmissível como caminho exemplar.

Se atribui ao terreno e efémero o carácter absoluto.
E, o resultado é um descomunal desatino da humanidade.
Não sabe o que anda cá a fazer...

Berlim, 22 de Março de 2019
8h10m
Dia cinzento
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19596: Blogpoesia (612): "Rebelião da juventude", "Lisboa eterna" e "Separações...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P19617: Tabanca da Linha (2): 42º almoço-convívio, Algés, 21/3/2019: alguns dos melhores 'apanhados' pela objetiva do grande fotógrafo Manuel Resende (Parte I)


Raul Folques  (Murtal, Parede / Cascais)


Maria Irene (Lisboa)


Maria Irene e Virgínio Briote (Lisboa)


Jorge Araújo (Almada)


Manuel Joaquim ( Agualva-Cacém / Sintra)


Joaquim  Nunes  Sequeira (Colares / Sintra)


Mário Santos (Olhão)


Jorge Pinto (Massamá / Sintra)


Joaquim Grilo (Algés / Oeiras)


Miguel Rocha ( Linda-A-Velha / Oeiras)


Manuel Macias (Linda-A-Velha / Oeiras)



 Adolfo Cruz (Algés / Oeiras)



António Joaquim Alves (Carregado / Alenquer)



José Jesus (Trajouce / Cascais)



Francisco Palma  (Estoril / Cascais)




António Duque Marques (Amadora)



Jorge Canhão (Setúbal, ex-Oeirss)



Oeiras >Algés > Restaurante Caravela de Ouro > Tabanca da Linha > 42º Almoço-convívio > 21 de março de 2019 >  Alguns dos 'apanhados'

Fotos (e legendas): © Manuel Resende  (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada Manuel Resende não é apenas o régulo da Magnífica Tabanca da Linha, por direito sucessório... 

A morte do Jorge Rosales criou um vazio... E como o poder tem horror ao vazio, logo o régulo adjunto se perfilou para suceder ao "comandante" (como ele era carinhosamente  tratado, o Jorge Rosales)... 

Não houve tempo de reunir o conselho dos homens grandes da Tabanca da Linha... O Manuel Resende, sempre discreto, tem dado tantas e tão boas provas, como adjunto ou secretário, que os "Magníficos" logo decidiram, por unanimidade e aclamação, sentá-lo na "turpeça" da Magnífica Tabanca da Linha...

O Manuel Resende, entre muitos outros méritos e talentos, é um grande fotógrafo... É ele que faz a cobertura fotográfico dos eventos da Tabanca da Linha.... Ninguém como ele sabe "apanhar em flagrante" os Magníficos, antes do início das hostilidades gastronómicas...

Desta vez, estava tudo bom, e foi bem servido, os comes e os bebes... Parabéns à gerência do restaurante "Caravela de Ouro". No 42º almoço-convívio, que se realizou na passada 5ª feira, dia 21 de março, estavam presentes mais de meia centena de "Mangíficos" (e apenas duas "Magníficas", a esposas do Virgínio Briote e do Zé Carioca). Destaque para o camarada Raul Folques, que começou a aparecer na Tabanca da LInha, e a quem o nosso editor Luís Graça reiterou o convite para integrar também a Tabanca Grande. Por sua vez, ele ele teve palavras de grande apreço pelo trabalho realizado pelo nosso blogue. (Tem 12 referências no nosso blogue.)

.
2. A propósito o Mário Santos, que é membro da Tabanca Grande, escreveu o seguinte na página do Facebook da Tabanca da Linha, com data de 22 do corrente:


O nosso muito obrigado ao Manuel Resende pela esplêndida organização do convívio do dia 21/03/2019. 

Como já é hábito, decorreu sem falhas, e num ambiente cordial entre amigos de longa data. Desta vez, fomos brindados com uma reportagem fotográfica individual de alto gabarito. 

Parabéns a todos os que compareceram, uma saudação especial aos ausentes e um grande abraço a todos...até Maio!!!

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Guiné 61/74 - P19616: Parabéns a você (1591): Braima Djaura, ex-Soldadado Condutor da CCAÇ 19 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 22 de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P19609: Parabéns a você (1590): José Lino Oliveira, ex-Fur Mil Amanuense do BCAÇ 4612/74 (Guiné, 1974)

sábado, 23 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19615: Os nossos seres, saberes e lazeres (313): Viagem à Holanda acima das águas (17) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
O que é bom tem a sua duração limitada, cumprira-se um tanto à risca um programa previamente negociado para rever recordações perduráveis e conhecer mais a preceito algumas regiões da Holanda do Sul, assim se foi a Amesterdão e Haia e a Leiden, se saborearam as panorâmicas das estradas secundárias e se andou nas fimbrias do Mar do Norte.
E, como já se mostrou, andou-se por museus excecionais, daqueles que apetece repetir, tão depressa quanto possível. Tudo começou com um telefonema a incitar a visita, lá naquele lado de um braço do Reno, encontrou-se uma viagem low cost, de Bruxelas andou-se de comboio e autocarro até ao destino, agora faz-se a viagem em sentido contrário, felizmente que o viandante tem amigos que o aboletam na chamada capital da Europa, onde ele se sente tão bem. É por isso que a próxima viagem vai começar na gare central de Bruxelas, a seu tempo visitará Namur, foi quase uma visita de médico, deu para matar saudades e dizer até breve, como adiante se verá.

Um abraço do
Mário


Viagem à Holanda acima das águas (17)

Beja Santos

A visita está prestes a acabar, hoje vai deambular-se por canais, pólderes, zonas de horto, o viandante quer cheirar as flores da estação; e vamos a Katwijk, um município também na Holanda do Sul, move a curiosidade de ver uma praia no Mar do Norte, em pleno verão. As imagens são concludentes.



Antes de chegar à praia, percorre-se uma longa passadeira entre dunas, por aqui se posicionam esculturas que seguramente têm a ver com os hábitos da terra, aqui predomina a pesca, e aqui viveu Spinoza, um filósofo que trouxe uma visão radical sobre o mundo e sobre Deus.





O sol era esparso, vinha e partia, havia umas réstias de calor, suficientes para entusiasmar aqueles veraneantes que se resguardam nestas curiosas barracas, pois aqui o vento não perdoa.


Havia referência explícita a este bairro de pescadores de Katwijk, foi um prazer andar por aqui, era o fim de estação, Katwijk já estava a meio gás mas com muito comércio aberto, voltados para o mar, viandante e companha saborearam um fish and chips muito à inglesa, com uma saborosa cerveja Pilsen. E de seguida, foram à procura de plantas odoríferas.





Que paleta de cores! Na primeira imagem é uma hortênsia especial, a hortênsia Annabelle, que floco de neve, ao princípio o viandante lembrou-se das hortênsias açorianas, mas não é bem assim, esta é a Annabelle, é cá do sítio; depois temos dálias e verónica, em primeiro plano; e nas duas últimas imagens temos primeiro begónias de todas as cores e feitios e por último begónias com lobélias, havia um perfume especial no ar, era um horto muito cuidado, não faltava a preocupação de manter o ar borrifado naquela estranha época de secura. E meteram-se vários vasos no carro, já se disse que o holandês não vive só cercado de tulipas, gosta de flores de todas as condições.


Nesta sala se comia e conversava, por aqui se pavoneava um gato ronronante, muito amigo de certos restos de comida. Uma sala com vista para pólderes. Quem aqui vive trabalhou no Congo, mais propriamente em Kinshasa, trouxe muita estatueta que ali nos observa. E, como se vê, é impensável uma mesa não ter flores.


É a despedida, daqui se regressa a Gouda, depois Roterdão e depois a gare central de Bruxelas. Aqui acaba a viagem na Holanda, em Alphen aan den Rijn, nunca, em circunstância alguma, o viandante pensara ir viver uma semana junto de um braço do Reno. Para sua felicidade, assim aconteceu, como ficou contado.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19593: Os nossos seres, saberes e lazeres (312): Viagem à Holanda acima das águas (16) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19614: A galeria dos meus heróis (25): E na hora da nossa morte, ámen! (Luís Graça)


Luís Graça, CCAÇ 12,  CIM Contuboel, julho de 1969
A galeria dos meus heróis> E na hora da nossa morte, ámen!


por Luís Graça







"O meu país é o que o mar não quer"

(Ruy Belo, 1973)




1. Porra, meu irmão, meu herói, estou no teu velório!... Nunca me preparei, em vida, para este momento, para este papel!... Estou destroçado!... Desta vez, a gaja, a “gaidja”, como tu lhe chamavas, a puta da gadanha da morte, trocou-te as voltas... Tanto a fintaste, na guerra, e foi ela agora que te pregou a rasteira em tempo de paz!... O xeque-mate, a última emboscada!...

Bem podia ser eu a estar aí esticado que nem um carapau seco, de botas altas,  já gastas, cambadas,  engraxadas para a ocasião!... A cerimónia fúnebre, a tua última parada, a tua última formatura!... As mãos em oração, elevadas ao céu qual estátua jacente!... 


Os gatos pingados sabem do seu ofício. Vestiram-te a farda nº 1, já muito puída do uso e dos anos, com os amarelos dos galões de coronel desbotados... A cruz de guerra ao peito e as tuas demais condecorações de uma vida dedicada à tropa. E até a espada, não se esqueceram da tua espada de defensor da Nação.


Tu, que noutra encarnação só poderias ter sido um cavaleiro andante, um condestável, um bravo e fero guerreiro do Império!... (Desculpa a ironia, bem sabes que tu e eu nem sempre líamos as coisas pela mesma cartilha...)

Porra, meu irmão, meu amigo, meu companheiro, meu camarada... Chegou a tua vez, como chegará a minha.  Cedo de mais, pelo menos a avaliar pelas estatísticas da morte em Portugal. Ou talvez não, matematicamente falando, se calhar já tinha chegado a tua hora, o teu dia, o teu mês, o teu ano. Não importa, para quem te amava, a morte bateu cedo demais à tua porta!

E, no entanto, era uma morte anunciada, diz a tua viúva alegre, encolhendo os ombros, conformada, e limpando uma lágrima furtiva, quiçá hipócrita.(Mas quem sou eu para julgá-la?!) 

O teu médico oncologista, esse, não te escondeu (nem podia esconder) a verdade... “nua e crua”!... Porque um homem tem o direito de despedir-se da vida e de morrer em paz com a vida, com os outros e com Deus, sentenciou o capelão militar quando já estavas nos cuidados paliativos, no terminal da morte... 

Que atroz ironia, que insulto, como se a gente soubesse como isso se faz!... Isso, de um gajo despedir-se da vida. Como se nos tivessem ensinado, na família, na escola, na catequese, na igreja, no seminário, na Academia Militar, na tropa, na guerra…, a arte de bem morrer!... Ensinaram-te, isso sim, a andar a cavalo em toda a sela...

Também lá andei, na guerra,  mas nunca pensei na minha própria morte, mesmo vendo a morte, ali tão pertinho, a meu lado. Aos vinte anos, em qualquer guerra, não há combatente que não tenha desenvolvido um forte sentimento de imortalidade... Terrível ilusão!...É por isso que há heróis!... E soldados desconhecidos, mortos aos milhares, nas trincheiras das Grandes Guerras...


2. Imagina, pediram-me para te fazer o teu elogio fúnebre, amanhã, na igreja, na missa de corpo presente, mas eu não sei se serei capaz de dizer duas coisas a teu respeito, que valha a pena dizer, em público, e que não sejam meras palavras de circunstância... Invade-me a angústia, o pânico... Não quero dececionar-te, muitos menos aos teus filhos e netos, aos teus amigos, aos teus camaradas, que eu não conheço ou conheço mal... Sobretudo não me peças para repetir essa grandessíssima mentira, com que te formataram, a de que “é doce morrer pela Pátria!”… A tua Pátria, a minha Pátria, a nossa Pátria ? Qual delas, afinal ? Fico confuso...

E depois, meu mano, ao fim e ao cabo, o que é que eu sei de ti ?... Não sei se fostes um bom amante, um bom homem, um bom pai, um bom cidadão ou até mesmo um bom militar. Sei que fostes um bom irmão, um bom amigo. E que até nem eras mau cavaleiro, ainda ganhaste uns concursos de equitação quando eras novo e não havia guerra... E talvez isso me baste, ou deveria bastar-me: foste um homem bom. É o mínimo que eu poderia dizer de ti. É o mínimo que se pode dizer de qualquer gajo minimamente decente.


3. Porra, poderia estar eu no teu lugar. E no meu íntimo regozijo-me por estar vivo... Ou a
inda vivo, aos setenta!... Podia lá ter ficado, na Guiné, morto por uma roquetada ou uma mina. Pergunto-me: quantos anos ainda me restam ?... 

Quando olho para ti, ou para o que ainda sobra de ti, aí deitado na urna aberta, no teu esquife, arrepio-me… O raio da morte não tem pudor… E exala um cheiro tão forte, a cabra, que afugenta os vivos... Daí as flores, as coroas de flores, e as ervas aromáticas com que a gente a tenta esconjurar, afugentar, enganar, porventura engalanar... 

Os guineenses, animistas, no meu tempo, faziam o "tchoro", comiam, bebiam, dançavam, choravam e homenageavam o morto... A nossa Igreja, na morte,  apodera-se de nós, do nosso cadáver, e incita-nos, aos vivos,  ao arrependimento, ao nojo, ao jejum e à abstinência, à secura de sentimentos e emoções... Que este é um vale de lágrimas, que a vida é uma passagem,  que estamos em trânsito, mas que no fim teremos, os justos, a eterna recompensa da glória de Deus, de nos podermos sentar à sua direita... Repara: nunca à sua esquerda...

É verdade, és o “mano velho”, o “morgado”, e eu sou o “caçula” da família, como tu me chamavas, quando vieste de Angola, lembras-te ?… Uma década nos separa, mas podíamos ser irmãos gémeos, sempre o disseste ou o desejaste…

Porra, não morreste de pé, de espada em riste, a defender o "quadrado", como os nossos gloriosos antepassados, nas ditas guerras de pacificação do Império, agarrados à bandeira das quinas, branca e azul, no caso do tio-bisavô António, em Chaimite, em Moçambique, e já a verde-rubra, no caso tio-avô José, no Cunene, em Angola…

Claro que tinhas de seguir a carreira das armas, estava inscrito no teu ADN, numa família de nobres tradições como a nossa, mas arruinada, que deu alguns bravos soldados à Pátria… Desde 1640, habituámo-nos a viver "do soldo e do saque", como ironizava o nosso avô materno, Francisco, professor primário, antimilitarista, republicano dos quatro costados,  que casou, contrariado, a filha numa família monárquica (e muito pouco liberal)… Mas o amor falou bem mais alto, o que era raríssimo naquele tempo, em que os casamentos eram de conveniência... A nossa mãe foi uma santa, uma heroína... Enfim, não dávamos apenas soldados, a verdade seja dita: demos também padres, missionários, administradores, mestres-escola e, seguramente, freiras e frades, pelo menos até 1834…

4. Porra, mano, não sei se foste um bom cristão. Não pesei o teu saco de pecados, nem sei se os pecados têm peso… Mataste ? Nunca falámos disso, mas talvez tenhas matado na guerra, onde andámos os dois, cada um para seu lado, e com motivações bem diferentes… De resto, não se ganha uma cruz de guerra sem matar um ou mais inimigos, uma boa dúzia deles, no mínimo…

Torturaste ? Roubaste ? Desejaste a mulher do próximo ? Cometeste adultério ? Evocaste o santo nome de Deus em vão ? Adoraste o bezerro de ouro ?... Não sou juiz, muito menos o do Juizo Final… Mas não vou pôr as mãos no fogo por ti, no que diz respeito aos pecados mortais... E já nem sequer me lembro de quantos eram, os que nos ensinaram na catequese. Eu, dantes, sabia isso tudo na ponta da língua, a começar pelos dez mandamentos da lei de Deus... 

Porra, mano querido, olho para o teu cadáver, ponho a mão na tua testa, gelada como o granito da nossa casa, e causas-me horror e dó: o que fazem a um gajo depois de morto!... Mas, que importa?!, se amanhã, ao meio-dia, vais parar ao crematório. E tudo acaba lá, a mais de 900 graus centígrados. Ou talvez não, para nós que fomos ou ainda somos cristãos... Os gatos pingados, esses,  entregam um pote com as tuas cinzas à  viúva, tiram as luvas das mãos, tomam um banho, voltam a vestir o fato e a gravata, e metem-se no carro a caminho do aconchego do lar, doce lar… 


E a tua gaja, a viúva alegre, essa, ainda vai gozar metade da tua pensão de reforma de herói nacional, com um marmanjo qualquer que ela há-de conhecer no Facebook ou no ginásio onde faz Pilates e olhinhos sofridos de Barbie, a pestanejar de rimel, aos putos de vinte anos, cheios de testosterona…

5. Mas o que estás para aí a rosnar entre dentes ? Oiço já mal, mas mesmo assim sou capaz de reconstituir o teu pensamento, a tua voz, cavernosa, que vem, senão das profundezas do Inferno, pelo menos do outro lado do rio  que acabas de atravessar, na  barca de Caronte…

“Meu sacana!, desta vez passaste-me a perna!... Não pediste a bênção ao mano velho, como te ensinaram os nossos pais. Foste um cobardolas de merda, podias ter sido solidário comigo... Podíamos ter feito a nossa viagem juntos, sempre era menos penosa. Iríamos empoleirados, divertidos, na minha Chaimite, a cantar as canções da nossa alegre infância que eu te ensinei... Sempre tínhamos as férias grandes para estarmos juntos, na nossa quinta, apesar da diferença de idades!... Essa seria a tua derradeira (e verdadeira) prova de fraternidade, de amor e de amizade!... Mas não tenho esse direito, o de te pedir o supremo sacrifício da vida, nem que fôssemos irmãos gémeos verdadeiros!... Espero que ainda tenhas, ao menos, uma longa vida para te poderes ir lembrando, de quando em vez,  com saudade, deste teu pobre amigo, mano e mentor”…


E como vais querer ser lembrado ? Como um herói?!

“Sim, justamente como um herói. Lembras-te como tu me dizias ?!... Sempre tiveste a mania de recorrer à mitologia grega, com referências eruditas, chatas p'ra burro, para um gajo como eu que era de cavalaria, e que nunca gostei de estudar: ‘Meu herói, mais do que um homem, menos do que um deus’... Sempre me chamaste 'meu herói’... E eu até gostava, confesso, mas sem nunca te levar a sério. Quero, por isso, que te lembres de mim como um herói. Sempre gostei da tua definição de herói, mais do que homem, menos do que deus...”

Seja, então, feita a tua última vontade, grande cavaleiro!

“Podia ter morrido pela Pátria!?... Com Honra e Glória!... Mas, não, acabei por ser um burocrata da tropa, no fim da carreira, num daqueles serviços do Exército que ninguém quer chefiar"...

Deixa-te de tretas, tivemos muitas discussões em vida, sobre isso. E sobre o teu militarismo. Sempre foste um bocado militarista. Que tu tenhas recebido a cruz de guerra, tudo bem. E foi bem merecida. Felizmente que não foi a título póstumo... Estou a ser egoísta, desculpa lá, queria eu dizer: não fiquei, assim, privado de conviver contigo, mais estes quarenta e tal anos...


6. “É doce morrer pela Pátria”: ensinaram-me na Academia Militar, uma escola de valores e virtudes que tu nunca tiveste o privilégio de conhecer… E, se bem me lembro, onde nunca me foste ver, a não ser no juramento de bandeira, com os pais. Sem esquecer o Colégio Militar, de que guardo as melhores recordações e onde fiz amigos para a vida. Chamas a isto militarismo ?”

Não, aí já não te acompanho, nem nunca te acompanhei. Bem sabes que nunca tive jeito para a tropa, como tu e os nossos antepassados. E fiquei com fobia aos internatos. Fiz o que tinha a fazer, como português e cidadão, que foi o serviço militar obrigatório. Honrei a palavra dada ao nosso pai... Não fugi. E fui "infante", tropa-macaca, como a gente dizia na Guiné... Já tu tinhas dado uma volta pelo Índico, em 1958, quando eu entrei para o Seminário… E mal sabias tu que a Pátria te voltaria a chamar, desta vez, para Angola, três ou quatro anos depois... Sempre receei ter que ir a Lisboa, com os pais, ao 10 de junho, para receber uma qualquer cruz de guerra tua, a título póstumo... Tinha esses pesadelos...

“A nossa querida e saudosa mãe queria que eu fosse para padre, contrariando o avô que era anticlerical, como sabes... E o nosso pai, esse, queria que eu seguisse a tradição da família… Acabei por ir para o Colégio Militar e entrar na Academia, graças aos pergaminhos da nossa casa e à nobreza da nossa linhagem… Mas sei que o nosso pai, que Deus lá tem, teve de fazer das tripas coração. Vivíamos acima das nossas possibilidades, com as míseras rendas dos caseiros e os roubos do feitor... Mais uma vez, valeu-nos a cunha do nosso primo general, que foi sempre um grande e leal amigo da família...” 


O seminário sempre era mais barato. Ir para Lisboa era um pesado encargo para a família. E a nossa mãe, com a sua intuição, o seu sexto sentido, parece que estava a adivinhar que os tempos que aí vinham, não eram propriamente cor de rosa...

Sobrou para mim, que acabei por ir para Montariol, em Braga... Já que tinha um filho oficial do Exército, um garboso oficial e cavalheiro, faltava-lhe, à nossa mãe, um missionário, barbudo, de sotaina branca, para dilatar a fé e o império. Mas eu cedo percebi que os votos de pobreza, obediência e castidade eram um fardo demasiado pesado para um jovem que não tinha cometido nenhum crime lesa-família ou lesa-pátria,  só queria afinal viver, e viver a vida do seu tempo… E que tempos, esses, os dos anos 60, meu irmão!

Fui aguentando, à custa de muitos sacrifícios pessoais e muito cinismo à mistura, só para não dar um desgosto à nossa mãezinha... Quando ela morreu, precocemente, ainda tão jovem, tão cedo e tão linda, eu estava no 10º ano, no Seminário da Luz, em terra de mouros... Há muito que tinha perdido a vocação ou percebido que não tinha vocação para missionário franciscano desterrado para Angola, Guiné ou Moçambique... 


Voltei ao Norte. Mal tive tempo de respirar o ar livre da noite do Porto (que na altura era uma chungaria), chamaram-me para a tropa e, de seguida, meteram-me num barco, misto de carga e passageiros, direitinho à Guiné.

“Estava eu em Moçambique, fui lá que me cobri de honra e glória , e ganhei esta cruz de guerra que ostento, com orgulho, ao peito”…

Aos 32 anos!... E eu com 22!… Em boa verdade, não tive infância, nem adolescência nem juventude... Tal como tu… Envelheci, pelo menos uma década, no seminário, na tropa, na guerra... 


Quando voltei da Guiné, fui à procura do tempo perdido... Andei na noite, na má vida, com más companhias, desperdiçando o resto dos meus verdes anos, dando cabo do fígado e arriscando a saúde... Felizmente, ainda não havia, nesse tempo, o VIH/Sida... Ou estava em incubação... 

À beira do abismo, na 23ª hora, conheci a Manela, que me levou, de novo,  para o caminho do bem... Estamos casados há 40 anos. Foi o segundo anjo que conheci na vida, depois da enfermeira paraquedista que me levou para o hospital militar de Bissau, e me salvou do inferno de...


7. Ai!, porra, já não me lembro do raio do sítio onde apanhei uma mina anticarro que matou uma meia dúzia dos nossos… Bula ou Buba ou Binta ou coisa parecida ?... Peço-te desculpa pela branca...  Como não me lembro também do nome desse anjo que veio do céu, para me salvar. Imperdoável!... A minha memória já não é o que era... Ainda gostava de a conhecer, a essa enfermeira paraquedista,  se por acaso ainda for viva, como espero... 

Acabou-se a guerra, para mim, nesse dia. E lá percorri as estações do calvário: Hospital Militar, em Bissau, Hospital Militar Principal, na Estrela, depois o Centro de Reabilitação de Alcoitão... E ainda tive que ir à Alemanha, ao Hospital Militar de Hamburgo... Muitos meses em tratamento e recuperação, uma prótese no calcanhar, enfim, foram as medalhas que eu trouxe da Guiné... E tenho uma pensão de merda como Deficiente das Forças Armadas.

Nunca ninguém me foi visitar, nem sequer as senhoras do Movimento Nacional Feminino... E muito menos o meu pai, o que eu entendo e até perdoo: Vila Nova de Cerveira ficava longe da capital e o pai, não sei se te lembras, já estava doente... A nossa mãe, essa, já tinha partido para a beira de Deus Pai.  

“Tiveste azar, irmãozinho… Os manos do meio, esses, lá se foram desenrascando, pior ou melhor. O António foi 'a salto' para França, para grande desgosto dos pais, era refratário e tornou-se um comuna de merda… O Jorge, depois do magistério primário, livrou-se da tropa, com um grande cunha de um médico militar do Porto; a mana essa, lá casou, tarde, com um chefe de finanças de Braga”…

Sabes ?!, nunca te contei isto!... Aos dez anos quis ficar órfão e depois morrer, quando fui para o Seminário de Montariol. É monstruoso, tenho que o admitir: desejei a morte dos nossos pais!... Eles, coitados, já não estão cá, e espero que não me oiçam... Mas, se me estão a ouvir, que me perdoem!... Agora, eu não sei é se Deus me vai perdoar. Nunca contei o segredo, nem sequer ao meu confessor nem ao meu diretor espiritual... Estou-te a contá-lo, pela primeira vez, e sei que me vais entender e perdoar....


"Achas que é normal um puto querer morrer na flor da idade ? Ou sentir um secreto prazer em imaginar-se órfão de pai e mãe ?... Eras um monstrozinho!"... 

Sim, quis matá-los!... Sentia-me só, abandonado, terrivelmente só, perante Deus Todo Poderoso… Para trás de mim, e cada vez mais distante, ficava o mundo… Um a um via desaparecer, por detrás de um vidro espesso, os rostos que me eram familiares e queridos, os dos meus pais, irmãos, tios, primos, mas também os dos meus amigos e colegas de escola…

“Também passei por esse choque, essa angústia, a da separação, quando fui para o Colégio Militar, lá longe, na capital do império… Passava da nossa casinha, da nossa quinta, da nossa querida família extensa, onde conviviam três gerações, para um casarão, uma instituição castrense dominada por seres poderosos, prepotentes... Tive medo, sobrevivi às praxes, enfim, sabes como era naquele tempo... Mas nunca me passou pela cabeça essas ideias malucas de suicídio ou de orfandade... Sempre foste, afinal,  um puto mimado, sobretudo pela mãe e pelo avô Francisco que te queria fazer doutor de letras!"...


Em boa verdade, eu sentia-me abandonado por todos, e até por ti, que eras o meu herói, o meu ídolo, o meu anjo da guarda!...


“Não te podia valer, por muito que o quisesse!... No início do último trimestre de 1958, eu já estava na Índia como alferes... Uma eternidade para lá chegar, seguimos o caminho de Vasco da Gama, deixámos tropa e material em Angola e em Moçambique…”

E tu, meu sacana ?!... Sempre foste um mulherengo, um gajo fraco com as mulheres, como eu mais tarde vim a descobrir!...Na altura, fiquei chocado e dececionado contigo, que eras o meu ídolo, quando te apanhei, nu em pelota, no espigueiro, montado na filha de um dos nossos caseiros... 'Boa como o milho', rías-te tu, meu safado... Armado em pinga-amor, um rabo de saias, caíste mais do que uma vez como a mosca no vinagre… 


"Eh!, nada de aldrabices, essa era a Joaquina das Bouças, ficámos até bons amigos. Estamos quites, tratei-lhe do passaporte e paguei-lhe a passagem de comboio para França, lá casou com um mouro, um gajo do Sul..." 

Abelhudo, era o que tu eras!... Sempre atrás do mel, sem te importares com os sarilhos de saias que arranjavas e as aflições   que causavas à nossa pobre mãezinha... Ficas a saber que não posso com a gaja que te caçou há 15 anos, no carnaval do Rio de Janeiro... Nem sei que idade tem, a 'coronela', muito mais nova do que tu!... Deve ter a idade dos teus filhos mais velhos, os do teu primeiro e trágico casamento, e que eu mal conheço. Felizmente que não tens filhos da brasileira...

“Não te admito que fales assim da minha legítima esposa, e agora viúva, face à lei de Deus e dos homens… Se me pudesse pôr de pé, ainda te dava com o pingalim”…


Desculpa, mano velho, não tenho o direito de me intrometer na tua vida e na vida da tua família… Estou apenas irritado comigo próprio, zangado com com o resto do mundo... Estou eu a querer falar contigo, baixinho, a sussurrar contigo, que já estás no mundo dos mortos, estou eu aqui a não querer perturbar o sono eterno dos que viajam contigo na barca de Caronte, e ouço, ao lado, as gargalhadas despudoradas da tua viúva e dos seus amigos… Alguém, tenho impressão que um gajo do teu curso, deve estar a contar uma anedota porca do tempo do Colégio Militar ou da Academia...

Mas que falta de pudor e de respeito por ti, que estás em câmara ardente,  recebendo a derradeira homenagem dos teus familiares, amigos e camaradas de armas!...


Acho que me vou retirar, com a tua licença, durmo mal, vou descansar um pouco, volto amanhã com a Manela, para rezarmos por ti e encomendarmos a tua alma... Vais ter com o nosso pai e a nossa mãe, e o nosso Jorge, coitado,  que Deus também já lá tem... 


Vou rezar por ti e pedir a Deus perdão pelos teus e pelos meus pecados. Nunca me hei esquecer das palavras que a nossa mãezinha nos obrigava a rezar:  antes de ir para a cama, e da oração ao anjo da guarda, vinha a Avé Maria que terminava com o "Agora e  na hora da nossa morte, ámen!".
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de março de  2019 > Guiné 61/74 - P19564: A Galeria dos Meus Heróis (24): Cirurgião no Hospital Militar de Bissau - II (e última) Parte (Luís Graça)