sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20108: Vemos, ouvimos e lemos..., e não podemos ignorar (1): Carta aberta ao presidente da república do Senegal: os dramáticos efeitos das barragens senegalesas de Niandouba e de Anambé, construídas na bacia do rio Kayanga / Xaianga / Geba, que vêm privando a Guiné-Bissau de valiosos recursos hídricos desde 1984 (Umaro Djau)



Fotograma do vídeo Rio Kayanga / Geba (apresentação em crioulo, por Umaro Djau) (13' 48'')






Capa da página Rio Geba, criada por Umaro Djau com o objetivo de divulgar, assinar e partilhar a carta aberta ao presidente do Senegal





I. Do cidadão guineense Umaro Djau, nascido em Pirada, jornalista,  ativista social, recebemos a seguinte mensagem; 

Assunto: Carta Aberta ao Presidente da República do Senegal, Macky Sall

Sirvo-nos da presente nota para vos informar sobre uma Carta Aberta que dirigi à Sua Excelência, o Presidente da República do Senegal, Sr. Macky Sall.

A referida carta aberta debruça-se sobre os efeitos das barragens senegalesas de Niandouba e de Anambé que vêm privando a Guiné-Bissau de valiosos recursos hídricos desde 1984.

A carta aberta foi traduzida para duas outras línguas internacionais, nomeadamente o inglês e o Francês (em anexo).

Sem mais assuntos no momento, subscrevo-me com a mais elevada estima e consideração.

Umaro Djau, MA.
Strategic Communications Specialist | Journalist & Producer | Political Analyst & Commentator
Skype: umaro.djau

Mobile: +1-404-723-7225 (USA) | +245-96-520-5911 (Guinea-Bissau)
LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/umarodjau/



II. Carta Aberta ao Presidente da República do Senegal, Macky Sall, por Umaro Djau

Agosto de 2019

A Sua Excelência
O Presidente da República do Senegal
Macky Sall

Senhor Presidente,

Chamo-me Umaro Djau e sou natural da Guiné-Bissau. Começo parabenizando-lhe, do fundo do meu coração, pela sua releição para um segundo mandato, no escrutínio de Fevereiro passado.

Estou a escrever-lhe para partilhar as minhas preocupações sobre os efeitos das barragens de Niandouba (de regulação) e de Anambé (de confluência), construídas na bacia hidrográfica do
Kayanga/Geba, da qual, a maior parte (65%) está localizada na Guiné-Bissau. De facto, o Geba, a parte jusante dessa mesma bacia, é o maior rio da Guiné-Bissau.

As barragens citadas, particularmente a de Anambé, localizada entre as áreas de Kolda e Velingara – apenas 20 quilômetros da fronteira com a Guiné-Bissau - vêm privando o meu país de valiosos recursos hídricos desde 1984, aquando da sua construção na confluência entre os rios Anambé e Kayanga. Reconhece-se, no entanto, a diminuição da pluviosidade na região, nos últimos anos, como sendo um dos factores adicionais na redução dos caudais do leito principal da bacia e dos seus afluentes.

Nenhum outro lugar mostra as consequências dessas ações (no lado guineense) mais do que os rios Bidigor, Campossa e Gambiel, todos tributários/afluentes do rio Geba/Kayanga. Assim que a estação seca começa (em Novembro), esses rios secam muito rapidamente, devido a uma diminuição drástica do caudal de água da parte montante do rio, no território senegalês. Esse fraco e debilitante fluxo de água está a afetar de forma grave e diretamente mais de meio milhão de pessoas nas regiões rurais de Gabú, Bafatá e Oio, de acordo com dados divulgados em 2009.

Hoje, um número superior de pessoas estará a ser afetado. Com base em dados disponíveis (e situações visíveis), permita-me, Senhor Presidente, citar algumas das consequências das barragens construídas no seu território:

• Alterações hidrológicas profundas na parte jusante do rio Kayanga/Geba, com a diminuição dos níveis de água na Guiné-Bissau;

• Morte lenta dos afluentes do Kayanga/Geba: Bidigor, Campossa e Gambiel;

• Escassez dramática de água que é a fonte da vida e responsável pela sobrevivência da humanidade e dos ecossistemas;

• Um impacto negativo nas atividades das populações, incluindo a interrupção da agricultura, pecuária (animais de pasto, especialmente gado) e caça;

• Degradação ambiental em geral devido a uma redução drástica da flora (perda de biodiversidade na vegetação) e fauna aquática e terrestre;

• Empobrecimento do solo, a deterioração das margens dos rios e o aumento da salinização, especialmente nas áreas costeiras da Guiné-Bissau;

• Aumento da profundidade de captação nos poços artesianos de águas subterrâneas devido ao abaixamento do nível estático dos lençóis freáticos;

• Efeitos sociais irreparáveis com a deslocação indiscriminada dos guineenses em busca de outros locais e regiões com cursos de água mais acessíveis, ou seja, a incrementação da transumância.

Sr. Presidente, é compreensível o facto do Senegal não querer desperdiçar os valiosos recursos
hídricos que atravessam o seu território (a montante) e que eventualmente não estariam a ser utilizados pela Guiné-Bissau (a jusante). Também estou informalmente ciente de que, através da
SODAGRI (Sociedade para o Desenvolvimento Agrícola e Industrial no Senegal), o seu país teria eventualmente entrado em contato com as autoridades da Guiné-Bissau nos anos 1970/80 para mantê-las a par do que pretendia fazer, ou seja, os estudos iniciais e as diferentes fases de implementação dos projectos das referidas barragens.

Sem o pleno conhecimento dos factos que cercam esse período e as respectivas concertações, a
fraqueza institucional da Guiné-Bissau é, todavia, bem documentada e conhecida entre os seus
parceiros regionais, nomeadamente as frequentes crises domésticas, a falta de recursos financeiros, a limitação no tocante ao conhecimento especializado, assim como a falta da capacidade técnica, sobretudo na primeira década após a sua independência. Todos esses obstáculos contribuíram certamente (e muito) para um comportamento pouco ou não responsivo por parte do Estado guineense.

Independentemente do que possa ter acontecido naquela época, compreendo a necessidade do Senegal de sustentar as necessidades agrícolas da sua população do sul, através da agricultura
irrigada , nomeadamente o cultivo do arroz, a prática da horticultura e a conservação da água. Assim, as barragens foram construídas e têm beneficiado grandemente o seu país, o Senegal, através de projetos nacionais ambiciosos destinados a reforçar os meios de subsistência do seu povo (a produção de energia elétrica, a captação e a acumulação de água para a agricultura, a pesca, a piscicultura, a horticultura, a pecuária, etc.).

Devo confessar que, da última vez que passei pelas áreas de Tabendo e Kounkane, fiquei encantado com a sua paisagem. A ponte de Kounkane e os seus arredores estão repletos de água proveniente do reservatório de Waima que já mudou todo o ecossistema local, criando oportunidades económicas substanciais nessas áreas. Waima e outros dois reservatórios (Niandouba e Confluência Anambé) são tidos como depósitos essenciais de todas as águas da bacia, estimadas em mais de 130 milhões de metros cúbicos.

Sr. Presidente, a bacia hidrográfica Kayanga/Geba é um curso de água transfronteiriço que nasce nas montanhas de Fouta Djalon, perto da aldeia de Labé, na República da Guiné-Conacri. Este curso natural de água atravessa o território do Senegal, antes de se desembocar na vila de Xime (perto de Bambadinca, na Guiné-Bissau), onde Kayanga/Geba se cruza com o rio Koliba/Corubal.

Durante séculos, os nossos ancestrais comuns - das terras altas de Fouta Djalon (Guiné-Conacri) ao sul do Senegal e até à Guiné-Bissau - compartilharam e desfrutaram pacificamente desses recursos cruciais hídricos fornecidos por este rio de cerca de 550 quilômetros em extensão.

O mesmo senso comum, as mesmas relações e os mesmos princípios ancestrais não regulamentados levaram à coexistência pacífica entre os nossos povos, superando todos os obstáculos de comunicação, nas eras de impérios e doutras chefias que reinaram por muitos séculos, em toda a nossa Costa Ocidental da África.

Para preservar ainda mais o compromisso ancestral entre países - agora na era da regulamentação
e de interesses nacionais – a Organização para a Valorização do Rio Gâmbia (OMVG) nasceu em
1978 com os objetivos de promover e coordenar ações conjuntas, por forma a garantir o uso racional e durável dos recursos dessa importante Bacia Hidrgráfica, com realce para os domínios de conservação e de desenvolvimento, realçando especificamente os componentes de “estudos, planeamento e infraestrutura, agricultura e ambiente, bem como outras tarefas de desenvolvimento dos recursos dos rios Gâmbia, Kayanga-Geba e Koliba-Corubal nos territórios dos estados membros”,  nomeadamente a Gâmbia, o Senegal, a Guiné-Conacri e a Guiné-Bissau, tendo este último se juntado ao grupo em 1983.

É importante salientar que o Rio Kayanga/Geba já ganhou um estatuto internacional e todas as suas obrigações legais estão em vigor e sob à gestão da OMVG, sublinhando, neste particular, a existência de uma Convenção para a gestão desta Bacia já aprovada no Conselho de Ministros da organização, faltando apenas a sua promulgação pelos Chefes de Estado.

Sr. Presidente, embora eu lhe esteja a lembrar detalhadamente sobre alguns princípios legais baseados em convenções, acordos, e declarações internacionais e regionais, deixe-me também afirmar que não sou um advogado e nem estou a tentar produzir um argumento legal contra o seu país nas suas decisões soberanas. Mas, permita-me informar-lhe que hoje, os nossos dois países podem confiar em várias diretrizes e estruturas institucionais nacionais, regionais e internacionais que podem servir de guia para a produção de melhores e mais adaptadas medidas e políticas no tocante às águas transfronteiriças, a saber:

1. Declaração de Madrid sobre o Regulamento Internacional relativa à Utilização dos Rios Internacionais para Fins Distintos da Navegação (1911) adverte contra alterações unilaterais dos fluxos de rios e lagos - contíguos ou sucessivos - sem o consentimento de um Estado co-ribeirinho. Essa Declaração recomenda a criação de comissões conjuntas de água.

2. A Declaração de Montevidéu (1933) argumenta que nenhum estado pode, sem o consentimento do outro Estado ribeirinho, introduzir em cursos de água de caráter internacional quaisquer alterações que possam ser prejudiciais aos outros Estados interessados, mesmo para os efeitos da exploração industrial ou agrícola (artigo 2).

3. As Regras de Helsínquia (1966) recomendam o equilíbrio entre as necessidades variantes (económicas e sociais) e as demandas das nações fronteiriças, aplicando o princípio de “uma parcela razoável e equitativa” nos usos benéficos das águas de uma bacia de drenagem internacional, excepto onde existem outros acordos (Capítulo 2, Artigo 4, 5), sem causar danos substanciais a um estado de co-bacia.

4. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito dos Usos Não Navegacionais dos Cursos de Água Internacionais - adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1997 e que entrou em vigor em 17 de Agosto de 2014 - defende os princípios fundamentais de “utilização equitativa e razoável” e a “obrigação de não causar danos significativos”. Esta Convenção foi ratificada pela Guiné-Bissau desde o ano de 2010.

Como podemos concluir, muitas dessas regras, declarações e convenções recomendam uma forma “razoável e equitativa” de usar as águas transfronteiriças e obrigam as partes a evitar a alteração dos fluxos naturais dos cursos de água, cujas ações podem levar a “danos significativos” num dos países.

Apesar de toda a minha explicação, factos e argumentos até aqui apresentados, o objetivo desta carta não é culpar o Senegal por ter optado pelas políticas que considera corretas para o seu povo, mas sim fazer com que a Sua Excelência esteja consciente sobre os efeitos dramáticos dessas medidas (as barragens de Niandouba e Anambé) sobre o povo da Guiné-Bissau.

Sr. Presidente, nasci em Pirada, uma pequena vila perto da fronteira entre a Guiné-Bissau e o Senegal. Na verdade, quando era criança, o meu pai ocasionalmente me levava para as localidades vizinhas de Nianao e Wassadou, para o mercado semanal, conhecido por "Lumos". Durante a minha infância, confesso que não via muita diferença entre os dois lados da fronteira, devido à minha inocência da criança. De facto, as proximidades e as semelhanças geográficas, sociais, étnicas e culturais fazem com que as localidades fronteiriças do Senegal e da Guiné-Bissau sejam difíceis de diferenciar e dividir.

E ainda durante essa época - no final dos anos 1970 e início dos anos 80 - pequenos agricultores
e pastores de gado na região de Gabú costumavam contar com as dádivas do rio e dos riachos que desciam da fronteira norte pelo país adentro. Os campos de arroz, ou seja as “bolanhas”, permaneciam verdes o ano inteiro, cheios de vida e de esperança. A abundância em água satisfazia quase todas as necessidades, de homens e animais.

Infelizmente, os corredores da água e outras reservas hidrográficas já se evaporaram há muito tempo devido, em parte, às barragens construídas no Senegal. Estou, todavia, ciente doutras condições climáticas e humanas que têm tido impactos negativos em toda a região do Sahel, mas todas as áreas transfronteiriças da Guiné-Bissau estariam significativamente melhores em termos hidrográficos, se o seu país gentilmente mantivesse a circulação regular da água doce de montante para a parte jusante, através do Rio Kayanga/Geba.

Sr. Presidente,

Como a Sua Excelência deve saber, grande parte do mundo depende da água dos rios que percorre de uma nação para outra. Por exemplo, o vital recurso hídrico do Senegal, o rio com o mesmo nome, nasce das maravilhas de Semefe e Bafing (na Guiné-Conacri e no Mali, respectivamente) com as bênçãos dos rios Faleme (também da Guiné-Conacri) e do Gorgol (Mauritânia). Seria desconcertante para o seu país se as necessidades humanas nesses três países os obrigasse a mudar os cursos daqueles fluxos naturais de água, assim como os seus padrões geológicos. Do mesmo modo, o próprio Rio Gâmbia,  o fulcro do projecto OMVG, nasce nas montanhas de Fouta Djalon, percorrendo uns 1.200 quilómetros de distância.

No mundo de hoje, equilibrar as necessidades económicas e humanas é um dos grandes desafios
- seja na África ou noutros lugares. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura
e Alimentação (FAO), existem mais de 3.600 tratados relacionados com os recursos hídricos
internacionais e que incluem os aspectos da navegação, da demarcação de fronteiras, do uso, do
desenvolvimento, da proteção e conservação de recursos naturais.

Outros dados indicam que também existem mais de 260 bacias hidrográficas (entre rios e lagos)
transfronteiriças no mundo e elas cobrem quase a metade da superfície terrestre. Em quase todas as circunstâncias, os países a montante têm o dever moral e ético de partilhar os recursos hídricos
com os seus vizinhos a jusante. De facto, há muitos exemplos interessantes, encorajadores e inspiradores dessas práticas em todo o mundo. Aqui passo a transcrever alguns deles:

• Camboja, Laos, Tailândia e Vietnã têm compartilhado o Rio Mekong desde 1957, mesmo durante a Guerra do Vietnã;

• Israel e a Jordânia têm compartilhado o Rio Jordão desde 1955, mesmo sob constantes ameaças de conflito regional;

• Índia e o Paquistão têm compartilhado o Rio Indo, apesar das duas guerras entre os dois países;

• Mais de 160 milhões de pessoas de pelo menos 10 países africanos têm compartilhado o Rio Nilo, assim como outras cinco bacias - Congo, Níger, Nilo, Zambeze, etc.;

• Rio Danúbio ainda serve mais de 10 nações da Europa Central e Oriental;

• Rio Colorado é uma fonte vital de água para mais de 40 milhões de pessoas, tanto nos Estados Unidos como no México.

Sr. Presidente,

Reconheço ser difícil conseguir um consenso global sobre os problemas da água no mundo, mas gostaria de lhe pedir respeitosamente que considere as seguintes observações e recomendações de muitos especialistas da Guiné-Bissau e internacionais com os quais abordei as minhas preocupações:

• O Senegal deve estabelecer uma regra do jogo justa em relação ao nosso curso de água comum, o que levaria à partilha dos seus benefícios para um desenvolvimento sustentável em ambos os países;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem capacitar a sua Comissão Conjunta de Gestão de Recursos Hídricos, através da Comissão Hidrológica, para se reunir periodicamente para avaliar o comportamento da bacia Kayanga/Geba, bem como para testemunhar as descargas e represas periódicas das águas para garantir o seu fluxo apropriado de um lado para o outro, o que não acontece desde o ano 1998. As tais descargas regulares e suficientes da parte superior da bacia podem permitir a recuperação de alguns afluentes, bem como recarregar as águas subterrâneas, fontes de abastecimento de água para a população local nos dois países;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem envidar esforços para mitigar os impactos negativos mencionados anteriormente, através de atividades de reflorestamento, recuperação de terras e formação pública sobre questões ambientais;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem reconhecer que revisões periódicas são necessárias para sustentar o curso de água, protegendo assim os ecossistemas e atendendo às necessidades humanas e um equilíbrio justo entre os dois países;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem rever todas as disposições existentes sobre o monitoramento, a avaliação, a execução, a pesquisa e o desenvolvimento, o intercâmbio e o acesso à informação para uma partilha mais equitativa e adequada do rio Kayanga/Geba e as suas bacias;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem conduzir mais consultas para encontrar um quadro aceitável no âmbito da OMVG ou bilateralmente para implementar mecanismos que levem à cooperação através da celebração de acordos específicos e/ou criação doutros órgãos conjuntos.

Sr. Presidente,

Já deve estar claro para a Sua Excelência de que acredito piamente em princípios como a “partilha justa” de recursos. Nesse sentido, estou particularmente atraído por uma iniciativa específica da ONU conhecida como "Águas Compartilhadas, Oportunidades Compartilhadas". Esta iniciativa defende a ideia de que “fomentar as oportunidades de cooperação na gestão transfronteiriça da água pode ajudar a construir o respeito mútuo, a compreensão e a confiança entre países e promover a paz, segurança e o crescimento económico sustentável”.

De facto, o respeito mútuo, a compreensão e a confiança podem e servir-nos-ão bem, pois o Senegal e a Guiné-Bissau têm certamente procurado assegurar e construir um futuro melhor para os seus cidadãos que estão ansiosos em permanecer bons e indivisíveis vizinhos hoje e nos séculos vindouros.

Assim, compartilhar amigavelmente os recursos que nos foram dados pelo poder divino seria o
primeiro passo em direção a esse objetivo. Na verdade, a promoção do uso equitativo desses recursos hídricos comuns ajudaria a sustentar o nosso clima regional, combater a pobreza e estimular o desenvolvimento económico em ambos os países.

Sr. Presidente, estou esperançoso de que possa haver um futuro para o Rio Geba se o seu país, o
Senegal, puder gentilmente e regularmente ter em mente que doutro lado da sua fronteira, há um
vizinho que está igualmente carenciado e sedento pelo curso de água do Kayanga. Seria desnecessário lhe reiterar que este recurso hídrico transfronteiriço é também a nossa herança
comum que devemos todos valorizar, compartilhar, cuidar e preservar.

Sr. Presidente,

Reconhecendo que as barragens aqui mencionadas alteraram dramática e negativamente os modos de vida da população na Guiné-Bissau, é necessária uma forte vontade política para forjar uma compreensão mútua e cooperação entre o Senegal e a Guiné-Bissau, no quadro propício da OMVG, em prol de uma partilha consistente e fidedigna de benefícios num futuro próximo.

Sr. Presidente,

Embora eu não represente o Governo da Guiné-Bissau, gostaria de ter a oportunidade de me encontrar com a Sua Excelência para discutir esta questão vital. Mais importante ainda, encorajaria a Sua Excelência para se aproximar das autoridades da Guiné-Bissau para discutir as medidas urgentes que são necessárias para começar a abordar as questões e as preocupações expostas nesta carta aberta, podendo posteriormente com as autoridades que envolvem os dois estados, mandatar os peritos especializados em matéria de hidrologia, meio ambiente e desenvolvimento durável, a elaboração de uma proposta técnica concreta e viável, que poderia servir de roteiro para a atenuação da situação vigente.

Sr. Presidente,

Hoje, pela importância e valor dos recursos hídricos na luta contra a pobreza e como uma garantia de
tranquilidade e paz social no mundo, é aconselhável institucionalizar a hidrodiplomacia e a
hidrossegurança, como abordagens apropriadas para resolver a escassez de água e conflitos hídricos,
através da cooperação, gestão e desenvolvimento sustentável, como recomendado pelas muitas iniciativas globais e regionais, nomeadamente o Fórum Mundial da Água de Brasília, Brasil (Março de 2017).

E, por outro lado, se a Sua Excelência também achar necessário, por favor, não hesite em entrar
em contato comigo pelo telefone +1-404-723-7225 ou através do meu e-mail pessoal:
umarodjau@gmail.com.

Obrigado, Sr. Presidente, por ter reservado este valioso tempo para ler esta carta aberta que destaca uma questão de extrema importância para as populações da Guiné-Bissau, na medida em que tentam lidar com os dramáticos efeitos das barragens de Niandouba e Anambé no Rio Kayanga/Geba, ações que acabaram por influenciar negativamente os afluentes Bidigor, Campossa e Gambiel.

Que Allah/Deus lhe proteja e lhe dê forças e coragem para continuar a servir não só o Senegal, mas também toda a humanidade, a começar pela própria sub-região.

Sinceramente,
Umaro Djau

Um obrigado especial para as seguintes individualidades:
Eng. Inussa Baldé e Eng. Justino Vieira

Com o conhecimento das seguintes instituições e dignitários:
Presidente da República da Guiné-Bissau, José Mário Vaz
Presidente da Assembleia Nacional Popular, Cipriano Cassamá
Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau, Aristides Gomes
Ministro dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau, Suzi Barbosa
Ministro dos Recursos Naturais e Energia, Issufo Baldé
Bancada Parlamentar do PAIGC na ANP
Bancada Parlamentar do MADEM G-15 na ANP
Bancada Parlamentar do PRS na ANP
Bancada Parlamentar da APU-PDGB na ANP
Partido União para a Mudança, UM
Partido da Nova Democracia, PND
Embaixada da República do Senegal na Guiné-Bissau
Embaixada da Guiné-Bissau no Senegal
Secretário-geral das Nações Unidas
Assembleia Geral das Nações Unidas
Missão Permanente

III.  Nota do editor:

Declaração de interesses:

(i) parafraseando a nossa grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen, há realidadades que "não podemos ignorar", sobretudo depois de  "vermos, ouvirmos e lermos"... 

(ii) esta carta aberta do guineense Umaro Djau, filho do Gabú, e de que certamente por lapso não foi dado conhecimento ao Governo Português, à CPLP e à União Europeia, merece o devido destaque no nosso blogue, até por todas as razões e mais uma, de natureza afetiva: muitos de nós conhecemos o leste da Guiné-Bissau, as regiões de Bafatá e de Gabú, antes e depois da independência, e  o passado, o presente e o futuro dos nossos amigos da Guiné-Bissau não nos são indiferentes: de resto, só há uma terra, uma casa comum da humanidade, e a hidrossegurança é um requisito fundamental para a paz e o desenvolvimento;

(iii) o rio Geba (ou Xaianga, segundo a preciosa cartografia militar portuguesa) também é meu, também é nosso; temos cerca de 90 referências no nosso blogue a este rio que tanto amámos e odiámos durante a guerra colonial (1961/74);

(iv) o documento parece-nos bem elaborado, do ponto de vista técnico, e escrito em bom português, tendo tido a colaboração de especialistas guineenses em recursos hídricos  e geologia, como o engº Inussa Baldé, quadro superior do Ministério de Recursos Naturais, engº Justino Vieira, antigo secretário-geral da Organização para a Valorização do Rio Gâmbia (OMVG), ou Orlando Cristiniano da Silva, geólogo guineense com residência no Brasil:

(v) não discutimos aqui questões como a oportunidade da sua divulgação que alguns  vão querer associar ao recente lançamento, na Guiné-Bissau,  de um novo partido, o Movimento Guineense para o Desenvolvimento (MGD), fundado e liderado por Umaro Djau;  julgamos que esta causa é transversal, e deve mobilizar todos os guineenses e todos os seus amigos e os seus vizinhos;

(vi) depois de ler este notável documento, eu não posso assobiar para o lado e dizer que, de acordo com as nossas regras editoriais, o nosso blogue não se pode imiscuir nos assuntos de Estado e na atualidade política e social;

(vii) Umaro Djau é um conhecido jornalista, que se formou, viveu e trabalhou  nos Estados Unidos;

(viii)  o editor do blogue não conhece o Umaro Djau, tendo no entanto recebido deste,  em 13 de fevereiro de 2007,  no seu endereço pessoal, a seguinte mensagem:  (,,,)" Chamo-me Umaro Djau e fiquei deveras surpreendido com o seu maravilhoso blog. Sou guineense e Jornalista. Resido nos EUA há mais de 11 anos. Trabalho para a cadeia da TV mundial, CNN. Gostaria de poder corresponder consigo".

(ix) o nosso coeditor Carlos Vinhal convidou-o, em 2008,  para integrar a Tabanca Grande, convite que não teve resposta até hoje (*).

(x) apoio a petição mas não consigo assinar, devido a erro informático... LG
__________

Nota do editor

Guiné 61/74 - P20107: Lições de artilharia para os infantes (7): Tal como o Strela reduziu a liberdade do nosso movimento aéreo, o radar de localização de armas (vulgo contra-morteiro) teria congelado a artilharia do PAIGC... (Morais da Silva / António J. Pereira da Costa / Luís Graça / Manuel Luís Lomba)


Peça de artilharia 130 mm M-46, de fabrico soviético (ano de introdução: 1954). Este tipo de armamento foi usado pelo PAIGC contra Guileje em maio de 1973, a partir do território da Guiné-Conacri. O seu alcance (máximo) é de 22,5 km.

Fonte: Wikipedia (em finlandês) (2007) (com a devida vénia...)



1. Teceram-se, aqui no blogue, recentemente,  uma série de comentários, interessantes, sobre a artilharia na Guiné, na sequência da publicação uma comunicação, já antiga (2013), mas inédita, do comandante do PAIGC, Osvaldo Lopes da Silva (*). Esse documento chegou-nos pela mão de Coutinho e Lima.

Seria uma pena "perder" esses comentários, deixando-no no limbo da caixa de comentários... O poste que se segue, é uma seleção desses comentários,  e insere-se na série "Lições de artilharia para os infantes" (**)


Morais da Silva (***):


[...] A narrativa artilheira deste senhor [, Osvaldo Lopes da Silva,]  é uma salgalhada sem ponta por onde pegar. "Calcula" coordenadas geográficas de que locais? Das posições? Para quê se não as tem do objectivo pois procurou obter orientação azimutal via clarões das bocas de fogo de Guilege?!

 Ligou as posições com uma poligonal?! Como assim? Como define azimutes sem linha de vista? Como calcula distâncias? A passo, a corta-mato?! E como orienta a caminhada? Ou também calculou latitudes e longitudes? Apurou a posição relativa das bocas de fogo de Guilege! Para quê? Fazer de cada uma um objectivo?!

Enfim, basófia muita, ciência pouca e assistência benévola ou ignorante.
O que certamente aconteceu foi ajustar fogos com observação avançada consentida pelo "recolhimento" das NT. Assim aconteceu em Fevereiro de 71, em Gadamael, mas felizmente os intervenientes na observação e no cálculo eram analfabetos na direcção do tiro. Tomadas medidas de interdição nunca mais o conseguiram fazer passando a executar fogos escalonados em alcance (tiro rolante). 

Na Guiné, as artilharias das NT e do IN eram baratas tontas que actuavam por "intuição" a partir do som e do conhecimento do terreno (quem o conhecia a palmo). Muitas vezes pedi ao meu Cmdt-Chefe que me arranjasse um radar contra-morteiro e o problema da artilharia IN era assunto arrumado. Infelizmente nunca recebi o "presente".
[...]

Manuel Luis Lomba:


[...] O Coronel Coutinho e Lima continua activista em defesa da sua honra, por ter decidido - em desobediência, o que não será displicente - a retirada de Guileje. Como sei, por experiência própria, o que é a viver horas, dias, semanas e meses sob as ameaças em permanências das granadas vindas do céu pelas armas de tiro curvo, estou convencido e respeito a sua honestidade.

A retirada de Guileje é facto acontecimental, como a caixa de Pandora do colapso militar de Portugal na Guiné. E não me escuso ao reparo de que o Coronel Correia de Campos  procedeu em Guidaje exactamente ao contrário de Coutinho e Lima,  o que faz outras ilações...

O virtuoso "militante armado" do PAIGC,  dr. Osvaldo Lopes da Silva [OLS], patrono do aeroporto internacional do Sal, sempre falou com sobranceria, pelos seus talentos militares, ante o 'Nino' Vieira, os seus pares e ante a oficialidade portuguesa politicante correcta.

Não obstante o reconhecimento de "olho e ouvido" junto ao arame farpado dos alvos da sua poderosa e destruidora artilharia ter sido feito por cubano, ele foi tão derrotado em Guileje quanto o Manecas dos Santos em Guidaje. 

A infantaria do PAIGC não conquistou nem uma nem outra posição.  A Artilharia não ganha batalhas; todas as guerras são ganhas pela Infantaria - a arma mais viril de todos os exércitos (ainda não havia a "igualdade de género").

OLS diz que a transferência dos bombardeamentos de Guileje para Gadamael foi um erro (do seu par Pedro Pires), que deveria ser sobre Aldeia Formosa (Quebo). Pois, pois. Ele mandaria as bojardas lá de longe, mas o 'Nino' recusaria investir a sua infantaria a essa distância da fronteira.

Com a não ocupação de Guileje e o fracasso de Gadamael, o PAIGC trouxe à evidência a fragilidade concepcional táctico-estratégica da Spinolândia. Se o General Spínola, quando foi e fugiu de Gadamael no seu helicóptero, empurrado pelo Coronel Rafael Durão, tivesse pegado naquela briosa e valente malta e fosse reocupar Guileje - talvez a história e a situação da Guiné tivesse sido outra.

O texto de OLS é bem elaborado. Entre outras falácias, respigo esta: se o poderio do PAIGC e da sua artilharia era capaz de conquistar qualquer ponto da Guiné, por que é que a operação Amílcar Cabral incidiu apenas sobre guarnições fronteiriças ?  Onde estava a sua ocupação do terreno? [...]



Tabanca Grande Luís Graça:

[...] Parece que não é só o Euromilhões que cria "excêntricos", a guerra também. A guerra e a guerrilha e a contra-guerrilha, e muitas outras atividades humanas, da política ao desporto, da arte à cultura...

A "guerra da Guiné" foi fértil em mitos, de um lado e do outro... Limitando.me aos "operacionais", podíamos citar, de cor, o 'Nino' Vieira (comandante de região), o Osvaldo Lopes da Silva (artilharia), o Manecas Santos (Strela), do lado do PAIGC; Alpoim Calvão, Marcelino da Mata, sargento aviador Honório, do lado das NT... Sem esquecer, o "capitão-diabo", o Teixeira Pinto das "campanhas de pacificação" (1913-1915).

Não fui artilheiro, fui infante, mas gosto de ouvir as lições dos artilheiros para os infantes... Afinal, a guerra é uma arte e uma ciência... Ou é mais arte do que ciência ?

PS - Os académicos também têm culpa na criação de alguns destes mitos... Como vivem, uma boa parte deles, nas "redomas de vidro dos laboratórios sociais", desatam às vezes a falar do sexo dos anjos... Foi por isso que Bizâncio perdeu a guerra contra os otomanos. [...]




António J. Pereira da Costa
 [,de alcunha,  PK]:

António [Carlos Morais da Silva], venho só recordar-te que os radares contra-morteiro, que já existiam no nosso tempo e poderiam ser comprados no "mercado local", a dinheiro, claro, nunca estiveram nas perspectivas dos nossos bem-amados chefes, mentores, motores e garantes ideológicos.

Eles não acreditavam naquela traquineta que o Exército tinha deixado de usar, mas que os exércitos estrangeiros e fabricantes produziam. E a tua extinta DAA ia por essa ideia, lembras-te?

A compra de uma dessas traquinetas, como calculas, arrastar-se-ia no tempo entre subornos, consultas ao mercado e pareceres "técnicos". Daí que a necessidade imediata não seria satisfeita.  Além disso era necessário preparar pessoal para operar e isso, como sabes era cá um dificuldade que nem imaginas...

Por outro lado, a guerra tinha de ser barata e um radar contra-morteiro ou um referenciador pelo som ou pela luz (que também tinham existido) custava os olhos da cara ao erário público. Só o pessoal era (talvez) barato e podia ser rapidamente(?) substituído.

Por acaso, recentemente, descobri que desde os turnos de 1970/71 o pessoal tinha começado a ser artigo crítico, "mas isso são outras lendas, outros mitos e, seguramente outros caminhos da História".
 


Morais da Silva:

Caro PK: na EPA [, Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas,] lembro-me de ter visto o material que referes mas nunca operamos com ele. Apareceu por cá graças ao levantamento da divisão SHAPE. Nunca consegui saber porquê não se adquiriu o radar contra-morteiro que pedi, insistentemente, e que teria permitido congelar a ameaça da artilharia do PAIGC sobre as unidades de fronteira na Guiné. "Malhas que o Império tece".[...]



António J. Pereira da Costa: 


[...] Na EPA, até havia folhetos na Secção Técnica (lembras-te?) sobre esse aparelho... E não era só para ti. As companhias deveriam ter uma traquineta daquelas e devidamente melhorada. Mas não era necessário! 

Os Paigêcês  atacavam sempre da "bolanha do costume" os nossos quartéis instalados em localidades que vinham no mapa e estavam bem iluminadas, e a malta respondia com brevidade e na direcção devida. Se eles estavam inspirados era uma chatice: caiam todas lá dentro. Se tinham feito uma daquelas preparações topográficas que ouviste descrever,  ´távamos safos. O resto era com Jesus Cristo.

Já em 1968, Cameconde foi atacada com Mort 120 mm. Ninguém sabia o que era e todos perguntámos a todos donde vinha, até que houve uma que acertou primeiro numa árvore e explodiu quase à superfície do solo. Já se justificava, portanto,  a distribuição de um aparelho daqueles, só que...


Seria boa ideia termos algo que localizasse as "saídas", mas como não davam, era a olhómetro mão-travessa, como dizia o "Americano" dos motores...[...]

Morais da Silva:


[...] O que me continua a incomodar é não perceber como gente inteligente permitiu que a nossa artilharia na Guiné actuasse como uma "barata tonta".

Notar que o radar, que insistentemente pedi, não só detecta a origem da trajectória dos fogos IN como permite a observação electrónica e consequente ajustamento dos fogos amigos. 

Tal como o Strela reduziu a liberdade do nosso movimento aéreo,  o radar de localização de armas (vulgo contra-morteiro) teria congelado a artilharia do PAIGC.[...]

______________


Notas do editor:

(*) Vd. poste de 27 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20100: Dossiê Guileje / Gadamael (32): O texto, inédito, de Osvaldo Lopes da Silva, um dos principais cérebros da Op Amílcar Cabral; mesa-redonda em Coimbra, 23/5/2013: " O ataque a Gadamael, na sequência da queda de Guileje, não foi a melhor opção. Melhor seria um ataque a Quebo (Aldeia Formosa) com forte pressão sobre Tombali. Com a queda de Guileje, Gadamael tornara-se uma inutilidade que não incomodava a ninguém. A sua guarnição devia ser deixada entregue aos mosquitos e ao tédio."



(***) Último poste da série > 10 de junho de  2012 > Guiné 63/74 - P10019: Lições de artilharia para os infantes (6): O obus 14 de Bedanda em tiro direto... (C. Martins / Rui Santos)

Vd postes anteriores:

17 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9915: Lições de artilharia para os infantes (5): Quando o oficial de dia fez um levantamento de rancho... (C. Martins, Cmdt do Pel Art, Gadamael, 1973/74)

4 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9852: Lições de artilharia para os infantes (4): O que era uma bateria (ou bataria)... (C. Martins, Cmdt do Pel Art, Gadamael, 1973/74)

16 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9496: Lições de artilharia para os infantes (3): Fazer a rotação, de 180º, do obus 14, para apoiar Jemberém (C. Martins, CMDT do Pel Art, Gadamael, 1973/74)

15 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7791: Lições de artilharia para os infantes (2): O artilheiro Doutor, Mansambo, CART 2339, 1968/69 (Torcato Mendonça)

14 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7782: Lições de artilharia para os infantes (1): Como era feito o tiro de obus 14 (C. Martins, ex-Alf Mil, Pel Art, Gamadael)


quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20106: Bombolom XXIII (Paulo Salgado): Primeira Guerra e Guerra Colonial

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro "Milando ou Andanças por África", com data de 22 de Agosto de 2019:

Meus Camaradas do Blogue,
No meu livro Milando ou Andanças por África, tive oportunidade de falar de um combatente da Primeira Grande Guerra – homem que conheci nos meus tempos de pré-adolescência e que me encheu a alma de histórias fantásticas, decerto verdadeiras, ainda que narradas após mais de cinquenta anos…

Aí vai um pedaço da narrativa do velho Ti Brasas (nome fictício do combatente, pedreiro era…):

Paulo Salgado


O Bombolom IV - Primeira Guerra e Guerra Colonial
 

De MILANDO OU ANDANÇAS POR ÁFRICA

Da Quarta Andança – O Pedreiro

Sentados no muro da propriedade, chamada Pombal, ancião e jovem em amena cavaqueira, um revivendo o passado, emocionado, outro, embebecido com a narrativa.

- Conte lá, Ti Brasas, como foi a viagem e a chegada a Moçambique para combater no norte contra os alemães durante a Primeira Grande Guerra – pediu Pedro.

E o bom velho recordou, indo buscar lá bem atrás as lembranças:
- O barco Moçambique ia atafulhado de militares, nos porões fedorentos, nos deques sebentos, ao relento, espalhados por todos os lados, dormindo mal, comendo mal, deitando o que o corpo não quer ao mar, uma imundície e uma sujeira espalhada pelo navio, obedecendo a graduados de fortes bigodes, imponentes nas suas fardas, estou a vê-los, Pedro, descansando no último convés, à sombra de guarda-sóis, perto da ponte de comando, e a dar ordens a uma confusão de mais de mil homens. Quando passámos o equador, eu pensava que era uma linha traçada a negro, e era, pois negros eram os dias de caloraça e de humidade, sem condições para nos banharmos, e as necessidades era de rabo para o mar e com água do mar lavávamos as nalgas, sem fruta, sem comida que se visse, só desespero, só pequenas lutas nos porões e nos conveses por um lugar melhor para pernoita. Como me lembrava dos melões da Vilariça, das laranjas do Pocinho, das uvas códegas do Larinho, de um cadorno de pão com linguiça, de um ou dois ou três copos de tinto, ali só um caldo deslavado e batatas cozidas com pele e migadas por um azeite mal rançoso!

Onde é que vimos alho semelhante? Ah, no velho Carvalho Araújo, de 1970… transportador de carne para canhão, como o Moçambique de 1914…

"Carvalho Araújo" - Com a devida vénia a Navios Mercantes Portugueses
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18845: Bombolom III (Paulo Salgado) (3): O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)

Guiné 61/74 - P20105: Da Suécia com saudade (60): E agora também dos States, Florida, Key West... Acenando aos amigos através das câmaras ao vivo do mítico Sloppy Joe's Bar (José Belo)


Não é o interior do mítico Sloppy Joe's Bar, Key West Florida... mas sim "um canto humilde da cozinha do apartamento que uso em Estocolmo quando lá estou (...), decorado por mim há 40 anos".

Foto (e legenda): © José Belo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem, de 18 do corrente, de José Belo, antes de partir para Key West:

O nosso Joseph Belo, português,
sueco, lapão,  americano,
cidadão do mundo...
[José Belo: (i) ex-alf mil inf da CCAÇ 2381,Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70; (ii) cap inf ref; (iii) jurista, vive na Suécia há mais de 4 décadas, e onde constituiu família: reparte os dias do ano entre a Suécia, o círculo polar ártico e a Florida, EUA, onde a família tem negócios; (iv) tem mais de 130 referências no nosso blogue; (v) entrou "de jure" para a nossa Tabanca Grande em 8 de março de 2009]


Meu caro Luís

Coloquei mais um comentário ao teu último texto. Repetindo-me: os textos tornaram-se em muito interessante leitura de Verão (*).

Aproxima-se o fim do mês e mais uma das minhas transumâncias para a casa de Key West [, Florida, EUA].

Ao somar-se às noites de uma Key West, sempre em festa, o facto de os meus filhos e respectivas famílias viverem em 3 Estados diferentes, as minhas “com-puta-gens” ficam muito limitadas... no tempo.

Como curiosidade envio-te o endereço do Sloppy Joe’s/Web Cams:streaming Bar onde algumas vezes tenho tido a oportunidade de acenar a amigos distantes.


A máquina está ligado mesmo nas horas em que o Bar está encerrado.
Ao procurá-la na Net há que ter-se em conta as cinco horas (menos!) que separam o tempo floridiano do horário lusitano.
João Sebastião BAR, um ícone da noite
de Lisboa  dos primeiros anos pós-25
de Abril.  Cortesia
do blogue Pessoal da Porcalhiota

Para os interessados num tipo de sociologia amadora, vale a pena este olhar “por dentro” para uma das emblemáticas realidades locais.

Como em todos os bares, o tipo de clientela varia de acordo com a hora do dia.

As horas mais interessantes, quanto a mim, são as dos fins de noite de sábado... hora local. Então costumam acontecer coisas várias!
(Como curiosidade: O Sllopy Joe’s Bar abre às 10 da manhã mas... se algum dos clientes fiéis aparecer mais cedo, e de acordo com as tradições não escritas das Key, é bem servido!)

De qualquer modo,as saudades do João Sebastião BAR, do Príncipe Real lisboeta, nas noites de 74/75, e dos amigos por lá encontrados, acompanham-me o resto da vida!

Um abraço... enquanto espero pelo(s) teu(s) livro(s).(**)

J.Belo

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 22 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20085: Manuscrito(s) (Luís Graça) (168): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (X e Última Parte - De 91 a 100 de 100 pictogramas)

(**) Último poste da série > 28 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20102: Da Suécia com saudade (59): E agora também dos States, Florida, Key West... ou entre renas, palmeiras e daiquiris: Morreu o blogue, viva o blogue!... Afinal, os velhos soldados nunca morrem... (José Belo)

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20104: Historiografia da presença portuguesa em África (174): “Dicionário da Expansão Portuguesa, 1415-1600” com direção de Francisco Contente Domingues, Círculo de Leitores, 2016 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Tem-se aqui uma boa oportunidade para de forma sucinta se compreender a presença portuguesa dentro do projeto henriquino e até aos finais do século XVI, era um espaço difuso, a presença portuguesa era litorânea, o que acrescia às dificuldades de os missionários se imiscuírem no interior destes territórios, naturalmente hostis à chegada dos brancos. Atenda-se a fluidez do termo Guiné, que posteriormente terá outras designações, caso da Senegâmbia Portuguesa.
José da Silva Horta, tal como Eduardo Costa Dias, disponibiliza investigação inovadora sobre a presença portuguesa na região, incluindo os cristãos-novos que se acantonaram numa área que hoje faz parte do Senegal, La Petite Côte, terra natal de Léopold Senghor.

Um abraço do
Mário


A Guiné dos primeiros tempos, por José da Silva Horta

Beja Santos

José da Silva Horta
O “Dicionário da Expansão Portuguesa, 1415-1600” com direção de Francisco Contente Domingues, Círculo de Leitores, 2016, em dois volumes, insere no primeiro volume um artigo intitulado “Guiné”, cujo autor é José da Silva Horta, Professor Associado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, autor de muitos trabalhos sobre a Guiné, nomeadamente até ao século XVIII, publicou o seu doutoramento nas Edições Gulbenkian, em 2011, com o título “A Guiné do Cabo Verde”, cuja leitura é incontornável para quem estuda os primeiros séculos da colónia, autores e suas obras, literatura de viagens, etc.

Vejamos então a sua entrada sobre a Guiné, não esquecendo de que o dicionário não ultrapassa a data de 1600:
“O espaço oeste-africano, costeiro e fluvial, entre o rio Senegal e, grosso modo, a atual Serra Leoa, foi designado pelos portugueses como “Rios da Guiné do Cabo Verde”, “Guiné do Cabo Verde” ou simplesmente “Guiné”. Em 1443, a Coroa, por intermédio do regente D. Pedro, concedeu a D. Henrique o exclusivo do licenciamento de viagens para lá do Cabo Bojador e o quinto de tudo o que de lá trouxessem, da “Guiné” – que então designava a costa a sul do cabo –, os navios enviados por ele (e por extensão os seus dependentes) ou particulares autorizados. Após a sua morte, em 1460, a Coroa rapidamente retomou o domínio dos negócios da costa africana. Na disputa por direitos mercantis, a Guiné foi alvo de prolongada luta de representação do espaço: conforme os discursos afetos à Coroa ou aos vizinhos da ilha de Santiago de Cabo Verde, a quem, desde 1466, D. Afonso V concedera o privilégio de comerciar na costa fronteira, reservava-se a categoria de Rios da Guiné para o espaço acima delimitado incluindo ou não a Serra Leoa. Este fora o limite meridional das viagens promovidas pela casa de Viseu, atingido no último ano de vida de D. Henrique. Hoje, Guiné do Cabo Verde constitui um conceito historiográfico corrente que corresponde à sub-região oeste-africana que de modo mais profundo, quer social, quer espacialmente, se abriu ao mercado atlântico emergente desde meados do século XV. No entanto, os primeiros contactos dos portugueses com a Guiné ou “Terra dos Negros”, assim designada pelo cronista Zurara, ocorreram em 1444, com Nuno Tristão e Dinis Dias, e foram ainda marcados por uma estratégia belicista materializada em desembarques de surpresa para capturar os africanos como escravos. A estratégia fracassou perante a resistência militar eficaz dos espaços políticos wolof e sereer no atual norte do Senegal. De 1448 em diante, a julgar pelo cronista, foi substituída por uma nova abordagem diplomática e comercial que vingou, estendendo-se rapidamente para Sul. Pressupôs o reconhecimento da autoridade dos senhores da terra pelos portugueses que perdurou em todos os contactos subsequentes, bem como a vontade recíproca de fazer negócio, em que, na parte portuguesa, se destacou o tráfico de escravos para a Península Ibérica e, desde a primeira década do século XVI, para as Índias de Castela. Os portugueses introduziram os seus produtos (cavalos, algodão, panos, contaria, entre outros), nas rotas comerciais pré-existentes que atravessavam os cursos dos rios da região e em particular usufruíam da rede dos comerciantes mandés de longa distância que uniam as regiões costeiras aos eixos caravaneiros. De início, por intermédio dos navios que serviam de “feitorias”, parando em locais previamente acordados, os resgates, a Coroa agiu diretamente ou, de modo crescente no século XVI, arrendou o “contrato de Cabo Verde”, a particulares, os contratadores ou rendeiros (que por sua vez nomeavam feitores), que deviam sustentar os encargos régios no arquipélago de Cabo Verde. O regime especial de comércio de que usufruíam os vizinhos de Santiago foi muito condicionado pela Coroa, logo desde 1472, o que levou muitos comerciantes das ilhas a “lançarem-se” na costa fronteira, onde passaram a residir. Constituíram comunidades mestiças luso-africanas e traficaram sem pagar direitos à Coroa na alfândega da Ribeira Grande (ponto de paragem obrigatória para os navios que iam e regressavam da Guiné, disposição crescentemente violada na segunda metade da centúria) e trataram com mercadorias proibidas pela Coroa. A estes lançados juntaram-se reinóis, de entre eles muitos cristãos-novos, fugindo às perseguições, em particular na sequência da criação do Tribunal do Santo Ofício em 1536. As perseguições da Coroa, que proibiam que se residisse na Guiné mais do que três anos sem licença, foram inúteis. Os lançados, as suas famílias afrodescendentes, bem como os africanos que com ele trabalhavam, formaram um grupo luso-africano na Guiné: caraterizados por uma grande plasticidade, identificavam-se (e eram identificados) como portugueses. Apesar da fragilidade da sua condição de forasteiros, os luso-africanos foram, por norma, protegidos pelas autoridades africanas interessadas em incrementar o comércio e diversificar os parceiros – franceses e ingleses incluídos. Transformaram-se, para todos quantos negociavam na região, nos mediadores indispensáveis, entre os mercados africanos e o mercado atlântico. Com a fundação de Cacheu, em 1588, foram eles os habitantes do primeiro “forte e aldeia” de portugueses na Guiné. Só no início do século XVII a aldeia se tornaria na sede de uma capitania-mor.”

O historiador José da Silva Horta tem disponível um conjunto apreciável de estudos em torno dos primeiros séculos da Guiné no site da Academia.edu.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20080: Historiografia da presença portuguesa em África (172): A cédula pessoal do território da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20103: Dossiê Guileje / Gadamael (33): "Basófia muita, ciência pouca e assistência benévola ou ignorante" (diz o cor art ref Morais da Silva, antigo professor de tiro de artilharia da EPA e da Academia Militar), a propósito da comunicação de Osvaldo Lopes da Silva, apresentada em Coimbra, em 23/5/2013

1. Comentário do cor art ref António Carlos Morais da Silva, membro da nossa Tabanca Grande [, foto atual à esquerda], instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972, professor de tiro de artilharia na Escola Prática de Artilharia e da Academia Militar  (*)


A narrativa artilheira deste senhor [Osvaldo Lopes da Silva] é uma salgalhada sem ponta por onde pegar.

"Calcula" coordenadas geográficas de que locais? Das posições? Para quê,  se não as tem do objectivo pois procurou obter orientação azimutal via clarões das bocas de fogo de Guilege?! 

Ligou as posições com uma poligonal?! Como assim? Como define azimutes sem linha de vista? Como calcula distâncias? A passo, a corta-mato?! E como orienta a caminhada? 

Ou também calculou latitudes e longitudes? Apurou a posição relativa das bocas de fogo de Guilege! Para quê? Fazer de cada uma um objectivo?!

Enfim, basófia muita, ciência pouca e assistência benévola ou ignorante. 

O que certamente aconteceu foi ajustar fogos com observação avançada consentida pelo "recolhimento" das NT.  Assim aconteceu em Fevereiro de 71, em Gadamael, mas felizmente os intervenientes na observação e no cálculo eram analfabetos na direcção do tiro. Tomadas medidas de interdição,  nunca mais o conseguiram fazer,  passando a executar fogos escalonados em alcance (tiro rolante). 

Na Guiné, as artilharias das NT e do IN eram baratas tontas que actuavam por "intuição" a partir do som e do conhecimento do terreno (quem o conhecia a palmo). 

Muitas vezes pedi ao meu Cmdt-Chefe que me arranjasse um radar contra-morteiro e o problema da artilharia IN era assunto arrumado. Infelizmente nunca recebi o "presente".

Morais da Silva
Coronel de Artilharia
Professor de tiro de Artilharia na EPA [Escola Prática de Artilharia] e na Academia Militar

_____________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 27 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20100: Dossiê Guileje / Gadamael (32): O texto, inédito, de Osvaldo Lopes da Silva, um dos principais cérebros da Op Amílcar Cabral; mesa-redonda em Coimbra, 23/5/2013: " O ataque a Gadamael, na sequência da queda de Guileje, não foi a melhor opção. Melhor seria um ataque a Quebo (Aldeia Formosa) com forte pressão sobre Tombali. Com a queda de Guileje, Gadamael tornara-se uma inutilidade que não incomodava a ninguém. A sua guarnição devia ser deixada entregue aos mosquitos e ao tédio."

Guiné 61/74 - P20102: Da Suécia com saudade (59): E agora também dos States, Florida, Key West... ou entre renas, palmeiras e daiquiris: Morreu o blogue, viva o blogue!... Afinal, os velhos soldados nunca morrem... (José Belo)



J. Belo, em Key West, Florida, EUA (2018)


1. Mensagem do José BeloJoseph, na Lapónia...


Em termos sintéticos, o nosso Zé Belo:

(i) é o português mais 'assuecado' (ou o sueco mais 'aportuguesado') da Tabanca da Lapónia e da Tabanca Grande; 

(ii) ex-alf mil inf da CCAÇ 2381,Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, cap inf ref; 

(iii) jurista, vive na Suécia há mais de 4 décadas, e onde constituiu  família: reparte os dias do ano entre a Suécia, o círculo polar ártico e a Florida, EUa,  onde a família tem negócios; 

(iv) tem mais de 130 referências no nosso blogue; entrou "de jure e de facto" para a nossa Tabanca Grande em 8 de março de 2009

(v) é mestre na arte e na ciência da simulação, camuflagem, guerrilha e contra-guerrilha, e bem como da criação de renas, e ainda arranja tempo para beber uns daiquiris à sombra das palmeiras de Key West, curtindo a sua musiquinha; pode estar meses 'desaparecido' e 'incontactável' mas volta sempre ao 'local do crime',  quer dizer, a este blogue, ao seu blogue, ao nosso blogue, aos seus velhos camaradas; afinal, "os velhos soldados nunca morrem, podem é desaparecer"... por uns tempos.



Data: terça, 27/08/2019 à(s) 13:37

Assunto: Tentar um debate , apesar das férias, das idades e da distância



Entre renas, palmeiras e daiquiris


Ao visitar, quando as minhas transumâncias atlânticas o permitem, o blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné, vem-me à memória a frase:
- Os velhos soldados nunca morrem, eles apenas desaparecem.

Este blogue, qual velhinho tarimbeiro, tem já sobre os ombros algumas décadas de serviço. O seu sucesso deve-se aos laços muito especiais que ainda hoje ligam todos os que serviram na Guiné. Inferno da Guiné, dirão alguns dos que o que passaram de armas na mão em postos isolados na mata. Experiência da Guiné, poderão dizer alguns outros mais felizardos. De qualquer modo as recordações da Guiné aparentam ir acompanhar-nos até ao fim.

O blogue tem sabido evoluir adaptando-se à passagem dos anos. Não menos quanto aos mais variados  temas "politicamente correctos" que, como tudo o resto,vão sendo inexoravelmente substituídos .

No início deste blogue muito se escreveu sobre as suas funções... quase psiquiátricas! Veio permitir, aos que nele participavam, uma verdadeira catarse analítica, de outro modo impossível de efectuar numa sociedade que (então?) pouco ou nada se preocupava com os antigos combatentes, seus traumas, dramas sociais, e consequentes doenças.

Creio ter este blogue ajudado a muitos ao permitir-lhes "atirar cá para fora" muitos dos seus pesadelos e frustrações.

Entre os blogues nacionais deste tipo, o somatório de informação, relatos pessoais, conhecimentos, histórias,e acima de tudo História, dá-lhe com justiça lugar único. 

As experiências das já longas vidas, todas diferentes em factores sociais, geográficos e ontológicos, leva-nos por vezes a debates mais intensos, piropos, e algumas picardias. Será também este um dos factores que torna o blogue... vivo! No fim, todos ou quase todos, acabamos por nos sentar pacificamente à sombra do nosso poilão africano. 

E, a propósito de debates neste local constituído por velhos soldados de Portugal, continuo a ter dificuldades em compreender o esquecimento a que é votada a perda da Índia Portuguesa, em período não tão afastado da nossa História.

Estaremos hoje de acordo que a tal descolonização africana "exemplar" terá tido um pouco de tudo menos o... exemplar!

O servilismo de alguns a interesses não nacionais; o vedetismo ignorante e criminoso (mais de militares do que de políticos "bem sabidos") terão levado a uma tragédia cujas dimensões ainda hoje alguns se recusam a compreender.

Tendo em conta as circunstâncias internacionais (e internas) terá sido a única política possível de aplicar? Talvez.

A "palavra de ordem" então muito usada, "Nem mais um soldado para as colónias!", terá tido muito maiores resultados negativos quanto ao funcionamento da instituição militar do que se poderia esperar.




Cabeçalho de panfleto do PCP (m-l) (Partido Comunista de Portugal, marxista-leninista) com a palavra de ordem "Nem mais um só soldado para as colónias"... Data: 26 de abril de 1974.

Fonte: com a devida vénia ao Gualberto Freitas: 1969 Revolução Ressaca [documentos para a história de uma revolução]




Olhando as realidades de então, e as evoluções mundiais futuras, as guerras coloniais estavam perdidas mesmo antes de iniciadas. Outras visões teriam sido necessárias, para além de um certo "nacional saloiismo iluminado" do governo da ditadura.

E lá voltamos ao Estado da Índia. O papel preponderante de Goa, sua cultura e gentes, na nossa História foi sempre de nível não comparável com as colónias africanas.

Como terá sido possível ao ditador, que se crê ter tido inteligência superior à mediana, não ter sabido "ler" e acompanhar as evoluções de fundo surgidas internacionalmente?

Esperar, como o fez e disse publicamente, que a "aliada" Inglaterra lhe proporcionasse apoios políticos?

A mesma Inglaterra que curtos anos antes se vira obrigada a abandonar a sua(!) Índia? Os Estados Unidos dos anos sessenta na sua pseudo-cruzada anti-colonial?

Politicamente, a União Indiana oferecia nas Nações Unidas outras saídas. Entre elas a garantia de uma vasta autonomia para Goa, garantia apoiada tanto pela Inglaterra como pelos Estados Unidos e França.

O ditador recusou todas as soluções negociadas ou negociáveis. O Afonso de Albuquerque pairava certamente na sua cabeceira. Resistência exemplar e morte heróica foram exigidas ao Exército.
Um Exército armado, ou antes desarmado, com espingardas de modelo anterior à primeira guerra mundial, cujas munições guardadas em paiol não funcionavam por há muito terem ultrapassado o seu tempo útil.

Aviões, blindados e artilharia digna do seu nome... não existiam. O governo estava disso bem informado. O resto é História.

Muito dramática para os que por lá sofreram e, não menos, para os que foram acusados posteriormente dos erros criminosos do ditador.

Ele... "passou entre os pingos da chuva"!...

A evolução dos armamentos da guerrilha na Guiné e o nosso não acompanhamento do mesmo por motivos económicos e políticos, acabariam por levar em futuro próximo a novos bodes expiatórios militares (!) das incapacidades do governo central.

Governo central que, e mais uma vez, se preparava para não assumir as suas responsabilidades políticas quanto ao evoluir da situação no terreno da Guiné. Spínola ter-se-á apercebido que alguém acabaria por ser um novo e muito conveniente... Vassalo e Silva.

Mas, e voltando à questão inicial, o que levará a muitos dos tão agressivos críticos de políticas posteriores ao... esquecimento, desculpa, ou desvalorização... de alguns destes criminosos erros anteriores?

Certamente que muitos terão melhores ideias, opiniões e conhecimentos sobre um assunto importante e passível de DIÁLOGO.

Guiné 61/74 - P20101: Parabéns a você (1674): António Marques Barbosa, ex-Fur Mil Cav do Pel Rec Daimler 1106 (Guiné, 1966/68) e José Manuel Corceiro, ex-1. Cabo TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1969/71)


____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20098: Parabéns a você (1673): Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (Guiné, 1968/70)

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20100: Dossiê Guileje / Gadamael (32): O texto, inédito, de Osvaldo Lopes da Silva, um dos principais cérebros da Op Amílcar Cabral; mesa-redonda em Coimbra, 23/5/2013: " O ataque a Gadamael, na sequência da queda de Guileje, não foi a melhor opção. Melhor seria um ataque a Quebo (Aldeia Formosa) com forte pressão sobre Tombali. Com a queda de Guileje, Gadamael tornara-se uma inutilidade que não incomodava a ninguém. A sua guarnição devia ser deixada entregue aos mosquitos e ao tédio."




Cartaz da mesa-redonda,Guiledje, Guiledje,Gadamael: 40 anos dos 3 G's da Guerra da Guiné, Coimbra, 23 de maio de 2013, 14h00



1. Mensagem de  Alexandre Coutinho e Lima,  cor art  reff (ex-cap art,  cmdt CART 494, Gadamael, 1963/65; adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970; e ex-maj art, cmdt COP 5, Guileje, 1972/73), membro da nossa Tabanca Grande, com cerca de 90 referêcias no nosso blogue (*)


Data: segunda, 12/08(2019, 18:42

Assunto: Mesa Redonda em Coimbra (2013) - Intervenção de Osvaldo Lopes da Silva


Caro Amigo Luís

Há muito tempo que não contactamos. Estou na minha casa de Vila Fria, Concelho de Viana do Castelo; espero regressar a Lisboa no fim do mês.Nessa altura temos que nos encontrar, por exemplo no Restaurante Os Cunhados, para almoçar.

Entretanto junto envio em anexo, a intervenção do Comandante do PAIGC, Osvaldo Lopes da Silva (OLS), que penso que merece ser divulgado no nosso blogue. OLS foi encarregado por Amílcar Cabral, para preparar um ataque em força sobre Guileje.

O texto agora enviado, vai ser incluído no novo livro que estou a escrever.É minha opinião que se trata e um documento inédito, por ser da autoria de um conceituado Comandante do PAIGC.

Um Abraço Amigo

Coutinho e Lima


__________________



TEXTO QUE REPRODUZ A INTERVENÇÃO DO COMANDANTE OSVALDO LOPES DA SILVA NA MESA REDONDA REALIZADA, EM COIMBRA, NO DIA 23.05.2013. (**)



Osvaldo Lopes da Silva.
 Cortesia da RTC.CV  (2018)
Esta Mesa Redonda, realizada sob o prestigioso patrocínio do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra, vem na sequência do Simpósio Internacional de Guileje, que teve lugar na Guiné, em 2008. 

Ambos os eventos foram orientados no sentido de um debate desinibido entre representantes das Forças Armadas de Portugal e do PAIGC que se confrontaram em Maio de 1973 e que tiveram uma participação directa nas operações de Guidage, Guileje ou Gadamael.

Se, por razões de ordem pessoal, não me fora possível responder positivamente ao convite para participar do Simpósio de 2008, desta vez seria deselegante declinar o convite que me foi feito pelo Dr. Julião Sousa para dar, nesta Mesa Redonda, o meu testemunho, na medida do meu envolvimento nas operações de Guileje e de Gadamael.

Ao Dr. Julião Sousa quero manifestar quanto me sinto honrado pelo convite, aproveitando a ocasião para o felicitar pela boa organização da Mesa Redonda e pelo ambiente de amizade e de respeito mútuo que foi possível criar entre homens que estiveram, em dado momento das suas vidas, em lados opostos da barricada.

Seja-me permitido dirigir uma saudação muito particular ao Sr. Coronel Coutinho e Lima que, numa situação dramática, teve a coragem de tomar a decisão de abandonar o quartel de Guileje, ultrapassando ponderações sobre o futuro da sua carreira militar. No momento, o que importava era salvar vidas - dos soldados sob o seu comando, mas também das populações que se encontravam sob sua protecção - face à esmagadora desproporção de forças então em presença.

Amantes da paz, estamos aqui reunidos para falar da guerra, essa eterna companheira da humanidade, que Clausewitz definiu como a continuação da política por outros meios, ou ainda, como um conjunto de acções violentas entre dois beligerantes ou grupos de beligerantes, cada um deles visando impor ao outro a sua vontade política.

Maio de 1973, com o desfecho das grandes operações de Guidage, Guileje e Gadamael, marcou o ponto de ruptura do equilíbrio de forças em presença no teatro de operações da Guiné. Num quadro geral de grande supremacia das Forças Armadas Portuguesas no que se refere ao somatório dos efectivos e do armamento, o facto é que o desenrolar dessas operações evidenciou que as forças do PAIGC, dispondo de iniciativa, de grande mobilidade, de armamento moderno e de enquadramento qualificado, estavam aptas a concentrar contra qualquer quartel da Guiné uma supremacia esmagadora. 

Isto face a um inimigo cujas reservas se encontravam exauridas, e que se encontrava diminuído na sua mobilidade em consequência da eficácia dos mísseis antiaéreos "Strela" utilizados pelas forças nacionalistas. Chegara o momento a partir do qual, nas palavras de Clausewitz, a continuação da guerra deixa de fazer sentido e deve intervir uma solução política: quando fica demonstrado que a continuação da guerra só pode conduzir ao esmagamento de uma das partes pela outra.

A luta dirigida por Cabral combinava acções em distintas frentes, sendo a militar apenas uma delas, e não a mais importante. Essa acção multiforme devia conduzir ao enfraquecimento do inimigo (no aspecto militar, moral da retaguarda, isolamento diplomático, agravamento das despesas com a guerra), a ponto de o levar à situação de ter de acatar a solução política que só podia ser a independência da Guiné e de Cabo Verde. 


Estava longe dos propósitos de Cabral uma vitória militar, não apenas por considera-la incoerente com a doutrina da guerra, mas ainda pelo receio do protagonismo excessivo que tal desfecho conferiria à classe castrense guineense. Por alguma razão, Cabral sempre optou por falar de militantes armados do PAIGC e não de militares.

Na sequência dos graves reveses sofridos em Maio de 1973, o general Spínola encontrou-se em Lisboa com o Presidente do Conselho Marcelo Caetano. Sem rodeios, o general pôs a nu a gravidade da situação operacional na Guiné e apresentou duas alternativas como forma de conjurar a ameaça iminente de colapso militar: ou a atribuição de reforços substanciais ou a procura de uma solução política. 


Caetano negou ao general Spínola uma coisa e a outra. Quanto a reforços, os poucos disponíveis estavam destinados a garantir a segurança das obras da gigantesca barragem de Cabora Bassa e à implantação, no norte de Moçambique, de um milhão de colonos. Perante essa realidade, a Guiné, que nunca fora colónia de implantação branca, nem apresentava os atractivos económicos de Moçambique, ficava a perder, no jogo delicado de atribuição das minguadas reservas disponíveis, que tinha que obedecer às prioridades económico-financeiras do momento. 

A alternativa de solução política, vista por Caetano como sendo equivalente a negociar com terroristas, foi liminarmente rejeitada. Caetano declarou ao general Spínola que preferia uma derrota militar a negociar, pensando assim defender o sagrado princípio da intangibilidade das fronteiras imperiais, de Minho a Timor. 

Os territórios de Goa, Damão e Diu, que, desde 1961, se encontravam sob jurisdição da União Indiana, continuavam a ser considerados, na propaganda salazarista, como constituindo uma província ultramarina sob ocupação estrangeira. Na lógica de Caetano, uma derrota militar na Guiné podia ser transfigurada em ocupação de uma província ultramarina por forças do comunismo internacional. Deixando intangível o princípio de não cedência de qualquer parcela do Ultramar, a classe dirigente portuguesa pensava poder continuar a usufruir das riquezas de Angola e de Moçambique, onde o equilíbrio das forças em presença parecia pender a seu favor.

Perguntar-se-á como foi possível que, no conjunto das três frentes de guerra de libertação nacional contra o exército colonial português, o primeiro sinal de ruptura do equilíbrio operacional tenha ocorrido na Guiné, a menor e menos populosa das três colónias em guerra (Guiné, Angola e Moçambique)?

Comparemos os dois casos extremos de Angola e da Guiné. Em Angola, o início da guerra foi determinado pela sucessão de acontecimentos desencadeados pelo desvio do "Santa Maria" por Henrique Galvão, e que, de erro de apreciação em erro de apreciação, conduziu ao assalto às cadeias de Luanda, no dia 4 de Fevereiro de 1961, e a tudo o que se lhe seguiu. 


Os "média" que se tinham concentrado em Luanda para darem cobertura condigna à anunciada proclamação por Henrique Galvão de um governo de oposição a Salazar são surpreendidos por acontecimentos que marcaram o início da luta armada em Angola. Isso de forma atabalhoada, numa altura em que nem a UPA, e muito menos o MPLA, estava em condições de assumir a liderança de uma acção coerente contra o exército colonial. Na verdade, o MPLA, quase desmantelado na sequência das numerosas detenções efectuadas pela PIDE em 1959 e 1960, encontrava-se, na altura, decapitado, com Agostinho Neto deportado em Cabo Verde e os demais membros da Direcção (Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Viriato da Cruz, Dr. Eduardo Macedo dos Santos) precariamente instalados em Conakry e sem contactos com Angola.

Quanto a Holden Roberto, por insistência de Franz Fanon, renunciara ao objectivo inicial de restauração do reino do Congo, compreendendo o norte de Angola e partes dos dois Congos e até do Gabão, estampado na sigla UPNA (União dos Povos do Norte de Angola). A passagem a UPA (União dos Povo de Angola) nada alterou do carácter tribal da organização, e Holden nada mais tinha a apresentar senão o terrorismo racista, não transpondo a sua acção os limites da sua tribo bacongo.

No caso da Guiné, a acção armada só teve início em 1963, quando o PAIGC já dispunha de um enquadramento assegurado por um primeiro grupo de jovens formados na China e das primeiras armas fornecidas pelo rei Hassan II de Marrocos. 


Embora os primeiros chefes da guerrilha do PAIGC tenham sido formados na China, Cabral soube rejeitar rigorosamente todo o envolvimento no conflito ideológico sino-soviético. O facto de a União Soviética privilegiar a análise fria das capacidades das organizações nacionalistas, com abstracção das declarações desnecessariamente marxisantes das suas direcções políticas, criou condições para um bom entendimento e a um reforço qualitativo da ajuda soviética, à medida que, no terreno, os combatentes demonstravam capacidade para dar boa utilização às armas fornecidas. 

As primeiras ajudas soviéticas só foram concedidas quando o PAIGC mostrou que estava no terreno, embora mal equipado. As primeiras armas soviéticas, saídas dos paióis da II Guerra Mundial, foram PPCh, morteiros 60 e 82, canhões B10, pistolas “Macarov”.

Isto bastou para que a guerrilha pudesse mostrar presença em toda a extensão do território, embora fugindo ao contacto com as forças inimigas, ainda mais fortes. Estava-se na fase primária de dispersão das forças inimigas, que correspondeu, do nosso lado, à interrupção das vias de comunicação, das redes de electricidade e de telefones, à mobilização da população para recusar o pagamento do imposto indígena, ao que o inimigo respondeu com a criação de uma densa rede de quartéis, ainda no consulado do general Schulz. Para nós, tornava-se evidente que quanto mais densa fosse a rede de quartéis, mais fraco ficava o inimigo em cada quartel, considerado isoladamente. Chegado a esse ponto, o inimigo podia ser atacado, em emboscadas, para o isolar nos quartéis.

Quando, em 1968, o general Spínola é nomeado governador da Guiné e comandante-chefe, vastas áreas do território e as populações que as habitavam tinham passado para o controlo directo do PAIGC, onde iam sendo lançadas as bases de um estado funcionando autonomamente em relação ao poder colonial. De tal modo que Cabral já podia anunciar, junto das chancelarias e das instâncias internacionais, que a Guiné se apresentava como um país dotado de uma administração autónoma, capaz de suprir as necessidades básicas da população, e onde eram exercidos os poderes de um estado soberano, com uma parte do seu território ainda ocupado por forças coloniais.

A nova política de “Guiné Melhor” do general Spínola, embora tenha causado alguma perturbação momentânea, não tinha fôlego para travar o ritmo acelerado da luta, tanto mais que o general Spínola não podia dispor dos muito avultados recursos que a sua política requeria.

Chega-se aos princípios de 1969 com um equilíbrio de forças que, na mesma medida, se tinham reforçado de um lado e do outro. Por essa altura, vem reforçar as hostes do PAIGC o grupo de cabo-verdianos, de nível académico elevado, que estivera em formação militar em Cuba e prosseguira a formação na União Soviética, em particular no ramo da artilharia. Foi significativo o salto qualitativo que a luta conheceu quando esse grupo assumiu o comando da artilharia. 


Além do mais, a presença desse grupo no terreno convenceu as autoridades soviéticas a elevar o nível qualitativo da ajuda que vinha concedendo ao PAIGC. É quando fornecem o “GRAD”, morteiro reactivo de 122 mm, com um alcance de um pouco mais de 10 km. Trata-se da adaptação da “CATIUCHA” da II Guerra Mundial às condições de guerrilha, ou seja, um lança mísseis de um só tubo, montado num tripé facilmente desmontável e transportável por um só homem. O próprio míssil divide-se em duas partes, a propulsora e a explosiva, cada uma delas facilmente transportável por um homem. 

A vasta campanha contra os quartéis da frente sul, ao longo do segundo semestre de 1969, evidenciando uma significativa evolução das forças do PAIGC em qualidade de armamento e de utilização da artilharia, perturbou seriamente os planos do general Spínola de reconquistar todo o sul.

Em finais de 1969, a artilharia, que estivera concentrada na frente sul, é repartida pelas três frentes. Coube-me então o comando da artilharia da frente leste, com a missão de atacar todos os quartéis dessa vasta área: Buruntuma, Piche, Canquelifa, Pirada, Badjacunda, Gabu, Cabuca. 


Tratando-se de uma área pouco habitada, com fraco valor estratégico do ponto de vista da política do general Spínola, e onde durante longo tempo as nossas forças tinham estado inactivas, havia a suspeita da intenção do inimigo de se retirar de alguns desses quartéis para encurtar o seu dispositivo e reforçar outras áreas mais ameaçadas. Para obstar tal intenção, não havia como mostrar que a ameaça estava no terreno. A exiguidade dos nossos efectivos de infantaria foi suprida pela acção da artilharia de longo alcance. 

Não dispondo de mapas, socorria-me do ardil de provocar o inimigo com alguns disparos inócuos de morteiro 82, em noites de lua nova, quando o clarão da artilharia inimiga se podia distinguir a maior distância. Podíamos assim determinar não apenas a direcção, mas ainda a diferença de tempo entre o clarão e o som do disparo. Multiplicando esses segundos pela velocidade de propagação do som (360 m/s) tinha-se um valor muito aproximado da distância ao quartel.

Depois de uma ausência de quase dois anos, ocupados numa formação de marinha na União Soviética, cheguei, em Agosto de 1972, a Conakry, onde encontrei uma situação de grande tensão, criada pelos conspiradores que vieram a estar envolvidos no assassinato de Cabral, a 20 de Janeiro de 1973. Foi neste clima tenso que Cabral me lançou o desafio de preparar o ataque a Guileje, considerado o mais bem fortificado quartel da Guiné. 


Ao desafio de Cabral respondi, sem hesitação, que podia destruir qualquer quartel da Guiné que ele determinasse, desde que dispusesse de meios e de tempo suficiente para a preparação de dados para a artilharia. Poucos dias depois, partia com destino a Kandiafara, onde me esperavam os 24 combatentes, cabo-verdianos e guineenses, que iam constituir o meu grupo de reconhecimento. Levava comigo fardas, mochilas, cantis, marmitas, abastecimento reforçado e tudo o mais necessário a equipar o meu grupo. 

Para as necessidades da artilharia, levava várias bússolas artilheiras, bússolas de bolso, cronómetros, e até um sextante, as efemérides náuticas, bem como um frasco com mercúrio que me serviria para criar horizonte artificial para a determinação da altura do sol. O recurso à astronomia permitiu-me a determinação, com muita precisão, da declinação magnética e da longitude do lugar, por observação do sol no ponto de culminação. Menos precisa era a determinação da latitude, o que me levou a recorrer a métodos menos complicados para a preparação de dados para a artilharia.

A transposição para Guileje da experiência da frente leste não deu os resultados que eu esperava. O regime de fogo do inimigo (mais que uma peça a disparar em simultâneo) não permitia ligar o estampido ao clarão do disparo. Tive que me contentar com a determinação da direcção do fogo inimigo a partir de distâncias de 4 a 12 km, de acordo com o alcance das armas de que podia dispor: morteiros 120, GRAD e canhões 130. 

Empreendi em seguida a operação delicada de ligar os pontos que me garantiam a direcção de fogo por levantamento topográfico. Com os dados das observações e do levantamento topográfico, e trabalhando sempre com referência ao norte magnético, só restava resolver um problema simples de geometria plana para ter dados precisos não apenas de direcção, mas a distância. Encontrava-me em posição de me oferecer o requinte de, com recurso a mais uma poligonal, situar a posição de fogo no meio da mata densa, fugindo das “lalas” que tinham servido para a observação do fogo inimigo.

A parte mais perigosa do reconhecimento consistiu na observação do quartel a partir do arame farpado, para termos a localização das suas instalações e as distâncias relativas às peças de artilharia. Neste trabalho, foi notável a contribuição de especialistas de reconhecimento cubanos. Foi nessas movimentações próximas do quartel que a Operação Amílcar Cabral registou as suas únicas baixas, vítimas de minas: dois mortos e um ferido, todos da infantaria que garantia a escola do grupo de reconhecimento.

Em finais de 1972, já dispunha de dados de artilharia suficientes para desencadear a operação contra Guileje, mas estavam por resolver os complicados problemas logísticos de movimentação dos efectivos que deviam vir das outras frentes, com o cuidado para que estas não ficassem demasiado desguarnecidas, transporte de armas, munições, alimentação, e até água, que foi transportada em camiões a partir de Kandiafara. Num grande raio à volta do quartel toda a água é salobra.

Depois de ter elaborado um croqui onde situava as posições de fogo, as “lalas” que podiam ser utilizadas pelos mísseis terra-ar STRELA, e para ocupar o tempo disponível, fiz o mesmo trabalho em Quebo (Aldeia Formosa).

Em Março de 1973, fez-se um teste ao comportamento dos nossos combatentes numa operação com ocupação do terreno em pleno dia, sob a protecção dos mísseis antiaéreos STRELA, que pela primeira vez entravam em cena. Foram disparados contra Guileje vários mísseis GRAD, o que deu lugar à vinda de aviões, dos quais um foi abatido e dois, atingidos, conseguiram regressar à base.

Sendo satisfatórios os resultados do teste, acelerou-se a preparação da Operação Amílcar Cabral, que teve início na manhã do dia 18 de Maio, quando o inimigo caiu num campo de minas na estrada Guileje-Gadamael. 


À tarde, de uma posição a cerca de 4 km foram disparados 180 granadas de morteiro 120 (6 morteiros com 30 granadas cada), com vista a destruir os abrigos. Mais tarde, entrou em acção um canhão de 130 mm, a 12 km de distância, com um disparo de meia em meia hora, de modo a tornar impossível a vida no quartel. 

Tínhamos mobilizado meios para uma operação prevista para durar um mês, mas, ao fim de dois dias, o grau de destruição causada pela artilharia era impressionante. De tal modo que a tropa e a população tiveram que passar a compartilhar em permanência a exiguidade dos abrigos, privadas de comida, água, e até de comunicações, depois que as antenas também foram destruídas. 

Continuar no quartel, nessas condições, sem a menor capacidade de resposta, tornara-se inútil do ponto de vista militar. Uma nova salva de morteiros 120 por certo causaria um massacre. Por felicidade, o Sr. Coronel Coutinho e Lima, que conhecia muito bem o terreno, conseguiu encontrar uma vereda que escapara ao controlo da nossa infantaria para fazer passar, com destino a Gadamael, a tropa sob o seu comando e a população. 

Por minha parte, à notícia da queda de Guileje, retirei-me, isolei-me, para descansar e reflectir. Nunca mais me aproximei de Guileje.

Passado um ou dois dias, fui informado de que devia seguir para Gadamael para a mesma missão de preparação de dados para a artilharia. Com o meu grupo de reconhecimento, fomos ver o que podíamos fazer no pouco tempo que nos era dado. Ainda conseguimos pôr em acção uma posição e GRAD, a 6 km de distância, e determinámos os dados para canhão 130, a uns 10 km. Mas não tive a oportunidade de observar de perto o quartel e a distribuição das suas instalações. 


Entretanto, fui convocado a Conakry, para uma missão à Líbia. Pouco depois, a operação contra Gadamael foi interrompida. É que o Congresso do PAIGC, que devia analisar toda a situação que envolveu a morte de Cabral e designar o seu sucessor, estava a ser preparado dentro do maior secretismo. As forças empenhadas em Gadamael tinham que ser retiradas pois iam constituir o dispositivo de segurança do Congresso.

Na minha opinião, o ataque a Gadamael, na sequência da queda de Guileje, não foi a melhor opção. Melhor seria um ataque a Quebo (Aldeia Formosa) com forte pressão sobre Tombali. Com a queda de Guileje, Gadamael tornara-se uma inutilidade que não incomodava a ninguém. A sua guarnição devia ser deixada entregue aos mosquitos e ao tédio.
 

Praia, 13 de Junho de 2013
________________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 25 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18675: Dossiê Guileje / Gadamael (31): A Retirada de Guileje foi há 45 anos (22MAI73). Poderia não ter acontecido? (Coutinho e Lima, ex-CMDT do COP 5)