quarta-feira, 1 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20799: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (70): Núcleo de Loures da Liga dos Combatentes: um pouco de história (José Martins)

1. Mais um trabalho do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), e que vive emOdivelas, desta feita sobre a história do Núcleo de Loures da Liga dos Combatentes.


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Nota do editor

Último poste da série de 24 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20769: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (69): Camarada, a COVID-19 não passará!... Ajuda os investigadores!... Colabora, respondendo a um questionário, de 6 minutos, da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa

Guiné 61/74 - P20798: Historiografia da presença portuguesa em África (203): “Ensaios sobre as Possessões Portuguesas na África Ocidental e Oriental; na Ásia Ocidental; na China e na Oceânia”, importante trabalho de Lopes de Lima sobre a Guiné, 1844 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
É assim mesmo, o caminho faz-se caminhando, digo-o sem falsa modéstia, é muitíssimo agradável ir conhecendo autores que nos revelam com precisão a Guiné num dado período. A Guiné de José Joaquim Lopes de Lima é um território quase ignorado por efeito dos grandes conflitos liberais que prosseguem depois da derrota do miguelismo.
Lopes de Lima fazia parte do Conselho da Rainha D. Maria, era Capitão de Fragata da Real Armada, Cavaleiro da Ordem da Torre e Espada.
A Marinha deverá orgulhar-se deste trabalho em seis volumes e, quanto à Guiné vemos confirmadas as consequências do desleixo e incúria: o recuo da presença portuguesa, a pressão dos franceses e atenda-se ao que o conselheiro escreve sobre a região de Bissau, é mesmo pungente.

Um abraço do
Mário


O importante trabalho de Lopes de Lima sobre a Guiné, 1844

Mário Beja Santos

Lopes de Lima, autor de “Ensaios sobre as Possessões Portuguesas na África Ocidental e Oriental; na Ásia Ocidental; na China e na Oceânia” em três volumes reserva no seu primeiro livro largas referências ao Arquipélago de Cabo Verde e à Guiné Portuguesa. É sobre o “extremo ocidental do Sudão” que nos vamos pronunciar. Começa por fazer a narrativa do descobrimento e dos primeiros tempos de comércio, diz em dado passo: “Desde 1462 que o resgate em todos estes rios desde o Senegal até o Mitombo em Serra Leoa ficou exclusivo de facto (e de direito desde 1466) dos moradores da Ilha de Santiago. Aonde esse nosso trato a princípio engrossou muito foi no Rio Senegal, e aí prometia já grande proveito no ano de 1488, quando o Príncipe Jalofo Bemoim veio a Portugal pedir ajuda a D. João II, o qual o fez baptizar em Setúbal com o nome de D. João e mandou com ele uma armada de 20 caravelas comandada por Pêro Vaz da Cunha, para o meter de posse desse reino usurpado”. Levava-se igualmente materiais para fazer uma igreja, as coisas correram mal, o comandante matou o príncipe, não se fica a saber bem o fundamento da execução, D. João II ficou furioso com este desfecho infeliz.

Faz menção dos portos de Recife, Portudal e Joal, associados ao comércio praticado por judeus portugueses, investigadores como Eduardo Costa Dias e José da Silva Horta fizeram um estudo deste comércio e da realidade dos judeus portugueses na Senegâmbia. Mais adiante refere: “No período filipino perdeu-se tudo quanto estava na posse portuguesa do Cabo de Santa Maria, a Norte, e do Cabo da Verga, a Sul. Eu passo agora a tratar do que ainda é nosso”. E faz uma descrição pormenorizada de Cacheu, do tráfico de escravos, da Companhia do Grão Pará e Maranhão (1755) que construiu a muito custo a praça de Bissau. Falando do presídio de Farim, tece a seguinte observação: “Todos os negociantes de Cacheu têm em Farim os seus feitores e de lá recebem a maior parte da courama e marfim que exportam, bem como muita cera e algum ouro, a troco de armas, pólvora, tabaco, missanga, prata e cobre para manilhas”. Refere igualmente Zinguinchor: “É uma aldeia de 300 habitantes livres e uns 400 escravos, cercada de tabanca com três baluartes de adobes, nas quais se encontram oito peças desmontadas”.

Estamos em pleno século XIX, a presença portuguesa sofre cada vez maior concorrência, os franceses instalam-se no Casamansa: “No ano de 1828, os franceses de Goreia, sem atenção à antiquíssima posse da Coroa de Portugal no comércio exclusivo daquele rio Casamansa, apossaram-se do Ilhéu dos Mosquitos e ali fundaram um miserável estabelecimento; e não contentes com isso, fizeram em 1836 uma nova feitoria em Selius (por nós denominada Selho) acima de Zinguinchor". Repertoria vários presídios, logo o de Bolor, em território Felupe, extremo de uma extensa praia que se estende desde a Aldeia de Jafunco, a norte fica a Aldeia de Bolor. E continua a sua narrativa falando de praças e feitorias no rio de Guinala, nos presídios de Geba e de Fá, dá pormenores sobre Bolama e a Ilha das Galinhas. Onde a sua descrição é minuciosa tem a ver com Bissau, é importante ouvi-lo:
“A Fortaleza dista uns cem passos da borda da Praia, tendo em frente da porta principal dois grandes poilões que servem de marca aos navios que vão dar fundo. É neste espaço, o qual se estende um pouco para oeste além dos muros, mas ao alcance de artilharia, que umas duzentas choupanas, entre as quais surgem cinco ou seis cobertas de telhas, constituem a chamada povoação portuguesa, aonde residem uns poucos de negociantes, comissários das casas inglesas da Gâmbia e franceses de Goreia; e tudo mais são cristãos negros, Grumetes da praça: esta povoação nem ao menos é, como as outras em Guiné, cercada de uma estacada: o gentio de todas as partes entra nela armado a toda a hora do dia e da noite, introduz-se sem cerimónia pelas casas dos moradores a pedir aguardente ou o que lhe dá na vontade e praticam sem receio toda a casta de tropelias: os mesmos Grumetes fazem aos nossos contínuas perrarias, e animados pela impunidade chegam a rebelar-se e tomar armas contra a praça”.

Descreve primorosamente o Ilhéu do Rei e depois volta à Ilha de Bissau: “Meia légua ao oeste do porto de Bissau fica na mesma ilha a aldeia dos Papéis de Bandim, estação permanente de contrabandos que muito danam nos rendimentos da alfândega de Bissau, porque os navios estrangeiros em desprezo da nossa bandeira vão à vista dela traficar naquele porto directamente com o gentio”. Dá todas as coordenadas da ilha de Bissau, comprimento e largura, que está dividida em seis distritos com régulos diferentes, depois interioriza-se a sua viagem, fala no Impernal, no reino de Antula, entra-se na boca do rio Geba onde estão Balantas e Beafadas, menciona o macaréu, dizendo que é perigoso para as embarcações e cita André Alvares de Almada: “Esta navegação é perigosa por causa da água do macaréu que é encher este rio lá em cima com três mares somente. Estando a maré vazia, dando três mares fica praia-mar de todo; e antes de virem estas marés se ouve roncar um grande espaço, e mete medo às pessoas que nunca viram isto. E correm as embarcações grande risco, mas já os pilotos delas sabem as conjunções, e as tomam de maneira que não perigam. Algumas caravelas nossas de até 60 moios, que algumas vezes lá vão, no passar, quando dá a água do macaréu usam desta maneira. Têm algumas amarras e estão prestes com elas e o navio amarrado. Tanto que dão aqueles mares que sobre ele vão aleando muito depressa sobre ele as amarras, e desta maneira passam sem perigo, porque se estivessem com a amarra abitada não deixariam de se sobrarem. São acometidas algumas vezes as embarcações pequenas por cavalos-marinhos".

São descrições primorosas, e para não estafar mais o leitor refira-se o que ele nos diz do presídio de Geba: “Cem milhas distante de Bissau, Geba é aldeia portuguesa de cristãos pretos, poucos mulatos, e cinco ou seis brancos: não tem estacada nem fortificação alguma, e ali vivem os cristãos de lá e os que vão de Bissau em tão boa paz com os Mandingas muçulmanos e mesmo com os vizinhos Beafadas, que um pequeno destacamento é tão inútil como inconveniente”. E sentencia: “É mister que o Governo saiba de uma vez que estes destacamentos de 7, 4 ou 3 soldados, espalhados pelos presídios da Guiné, ordinariamente até vão desarmados ou meio armados: são estes soldados escolhidos pelos governadores e oficiais mais influentes das praças para irem naqueles sertões mercadejar para eles, no que unicamente se empregam, enquanto o Cofre da Província lhes paga para o bom serviço militar das praças, aonde todos reunidos infundiriam mais respeito. Por inútil tenho também o haver ali um comandante militar, que nada comanda: melhor seria a terra governada por um capitão-mor. Geba é um grande mercado, aonde concorre muita courama, muito marfim, bastante cera, algum ouro e todos os mais géneros deste país em grande abundância, os quais se resgatam a troco de sal, cola e mercadorias da Europa: o grande comércio de Bissau se reduziria a bem pouco se lhe faltasse Geba, e bem assim o do Cacheu faltando-lhe Farim e Zinguinchor. Não me canso de repetir que uma Companhia em Guiné a quem se concedesse como exclusivo o comércio do interior dos rios tiraria avultadíssimos lucros”.

Não hesito em considerar esta obra de Lopes de Lima como de muito valor, tal como as memórias de Honório Pereira Barreto, o relato de Travassos Valdez, são documentos fundamentais para conhecer o estado da Guiné no século XIX, no turbilhão do liberalismo.

Há muito que procurava uma imagem impressiva do dendém, cultura que tanto peso tem na Guiné. Nestes acasos que são as descobertas que faço na Feira da Ladra encontrei este postal angolano que, sem desprimor, me fez voltar rapidamente ao Mercado de Bambadinca e ao seu porto de onde esta preciosa matéria-prima seguia regularmente nas embarcações civis para Bissau. Aqui está em bruto o ingrediente com que se fabrica o óleo de palma.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20704: Historiografia da presença portuguesa em África (202): "A Guiné Através da História", pelo Coronel Leite de Magalhães; Cadernos Coloniais, Editorial Cosmos (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20797: O que é feito de ti, camarada? (12): Virgílio Teixeira, "aquarentenado" em Vila do Conde...


Foto nº 1 > Vila do Conde > 15 de março de 2020 >  O Virgílio Teixeira, equipado para furar a "quarentena"...


Foto nº 2 > Vila do Conde > 21 de março de 2020 >  Vista do mar, ao fim da tarde, a partir da Rua da Independência


Foto nº 3 > Vila do Conde > 12 de março de 2020 > Av Júlio Graça, parque, muro exterior,  a caminho do Lidl

Fotos (e legendas: © Virgílio Teixeira (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem, com data de 31/03/2020, 19:47, do nosso amigo e  camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, chefe do conselho administrativo, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), e que vive em Vila do Conde:

Amigos e camaradas,

Depois de ler isto (*) não fico indiferente, comecei a escrever do meu ponto de vista e sem nenhuma ideia em concreto, o que se está a passar agora com esta Pandemia que nos apareceu. É para continuar, pois preciso de desabafar esta dor que nos assola a todos.


Vou juntar algumas fotos de uma série de mais de 500, onde se mostra,  numa pequena localidade [, Vila do Conde,] o desânimo e tristeza deste país e do mundo.
Voltarei com mais,
Até logo,
A COVID-19 não passará!
Abreijos. Virgílio


2. Texto que nos mandou, a seguir, o Virgílio Teixeira, com fotos de que fizemos uma seleção:

A PANDEMIA DO SÉCULO XXI

Chegou lentamente no inicio do ano de 2020, primeiro na China, mas não se deu grande importância, era uma ‘epidemia’ nova centrada na cidade de Whan na China, passou a chamar-se de Corona Vírus, era uma nova forma do antigo Corona SARS, que nunca ouvi falar antes, e tinha passou por cá apenas há alguns anos.

Depressa se estendeu a outros países, devagarinho, e assim em Março de 2020 já estava instalada em muitos países de todos os Continentes, entrou em Portugal, passamos a tratar de ‘Pandemia’ um nome estranho, para mim, mas que significava que atingia todos os países isto é, o Planeta todo.
Matava sem deixar rasto, no principio ninguém ligava muito, mas em breve passamos a ter os números reais de infectados e mortos em todos os países, incluindo Portugal.

O Governo decretou o Estado de Emergência, uma nova realidade, estava tudo confinado a casa e só os operacionais – da saúde, dos transportes, da alimentação e pouco mais – tinham carta verde para sair sem ser apanhado pelo controle que, entretanto, foi apertando, mais e mais. O País parou, tudo o que era actividade não essencial à vida fechou portas, lojas e estabelecimentos foram fechando e colocando os seus papeis de avisos nas portas.

Devido ao COVID-19, uma nova espécie de Corona Vírus, que apareceu no final de 2019, era o nome mau e terrível que passou a chamar-se a este estado descontrolado.

COVID-19

É o nome que está na ordem do dia, não se fala nem escreve sobre mais nada. Os números de infectados, mortos, os poucos que se curavam, são as estatísticas do dia, sobrepondo-se aos números do Orçamento do Estado, à classificação das equipas, aos banais assuntos sem importância a que antes se dava relevo.

Estou a escrever isto, hoje dia 30 de Março de 2020, pois já não sei mais que fazer, para passar o tempo fechado dentro de casa, e sem perceber patavina do que significa, o que é este vírus assassino, que ninguém sabe explicar, cada um lança um palpite, e os debates televisivos acontecem minuto a minuto, sem nada sair de concreto. Eu confesso-me um ignorante de primeira linha, pois nunca dei grande importância a estes coisas de saúde, talvez por felicidade minha, nunca passei, quer em família, quer pessoalmente por uma situação destas, terrível em termos de saúde, daí o meu desinteresse anterior e a minha ignorância, sei que não estou no bom caminho, mas foi assim que vivi até aos 77 anos.

Os dramas acontecem com números diabólicos, não poupam ninguém, esta mortalidade é transversal a todas as classes sociais, religião, raça, sexo, ricos e pobres, famosos e anónimos, novos e velhos, homens e mulheres, jovens e crianças.

Os mortos não têm sequer um funeral, são empilhados à espera de vez para serem cremados, única forma de matar o vírus, os velórios e o luto ficarão para mais tarde, quando tudo passar, se realmente vai passar totalmente.

Vila do Conde > Esplanadas, vazias, da marginal
O isolamento social é uma forma de travar a pandemia, que ninguém já sabe em concreto como se transmite, e agora passou a ter outro palavrão – a mitigação -, o estado em que não se sabe de onde vem a contaminação, pode ser tudo ou nada, é a ignorância e a impotência do ser humano, que nunca se preparou para uma situação destas, pois já se passaram mais de cem anos desde a ultima peste, e os países só pensaram nas defesas da guerra convencional, da guerra biológica, da guerra atómica, de homens contra homens, e não cuidaram de se acautelar contra a mãe natureza, que decide tudo em última instância, não é uma critica a ninguém é apenas a constatação de um facto.

Eu não me dou bem com o isolamento, por isso há 15 dias que ele existe oficialmente, mas não há nenhum dia que não saia de casa, tenho de fazer o abastecimento das necessidades do dia a dia e não quero que falte nada, vivo apenas com a minha mulher nesta chamada quarentena, e ela depende de mim, pois não sai de casa, é oficialmente uma pessoa de risco agravado, não só devido à idade, mas a outros problemas colaterais, por exemplo híper tensão.

Vila do Conde > Café Concerto
Por isso quando saio para as compras diárias, aproveito umas horas, quer de manhã ou de tarde, e ando a fazer quilómetros e a fotografar o «deserto» onde estamos metidos, quero gravar em imagens as lojas e estabelecimentos fechados, as ruas, avenidas e praças desertas, para memória futura. [Fotos nºs 1, 2 e 3]

Dia após dia, mais portas se fecham, até que hoje quase nada está aberto, tirando as farmácias, lojas de pão e supermercados, tudo à fila mas com espaços grandes uns dos outros, dizem, por causa das gotículas que podem andar no ar, que eu não acredito de todo, por isso não ando assim com tanta paranoia, talvez eu ainda não esteja crente do que está a acontecer, mesmo com as centenas de mortes que diariamente são anunciadas pelos órgão de comunicação, mais alarmistas do que realistas, mas têm de vender tempo de antena, em tempos de crise, quando não há mais compradores nem tanto para vender.

Metro de Vila do Conde
Isto tudo vem a propósito que ontem, sexta feira, fiz um esticão maior, fui até à Estação do Metro e vi uma situação nunca vista, sem ninguém, com tantas vagas para estacionar, nas informações avisava que havia em todas as linhas uma composição de meia em meia hora e que não era preciso mais pagar nem validar bilhetes, estava tudo desligado, e as portas abriam-se automaticamente, para ninguém apanhar o vírus por causa disso. E eu que tinha comprado o passe para o mês de Março todo, fiz apenas uma viagem e nunca mais entrei noutro, quer eu bem como a minha mulher, que desde há uns meses tínhamos o passe para as nossas deslocações de lazer ao Porto, já que no carro era impensável, não tenho paciência de filas intermináveis.

Vila do Conde > Espaço da feira semanal, vazio
Antes tinha passado pelo mercado da vila, onde se faz a feira semanal e estava tudo deserto, nem uma pessoa se via, em dias de outrora apinhados de gente. Como vão sobreviver todos os que dependem desta actividade, agora proibida, isto faz-me pensar em cenários brutais, mais para a frente, e não vai levar muito tempo.

Então passei pelo Centro, tem lá um florista, a minha mulher já se tinha queixado que saio todos os dias, duas vezes e nunca me lembro dela, não lhe levo um miminho… Ia comprar uma flor ou um pequeno ramo, mas não o fiz, não queria falar com mais ninguém.

Vila do Conde > A minha rua, Av Baltazar do Couto
Cheguei ao meu empreendimento a caminho de casa, e temos muitas floreiras e jardins com flores selvagens, que afinal são de todos, minhas inclusive. Fui arrancando uma aqui outra acolá, algumas eram difíceis de partir os ramos. Fui à garagem, tenho lá um facalhão, peguei nele e fui arrancar mais algumas, eram pelo menos de 4 ou 5 tipos de flores. Na garagem, inventei um ramo, que nunca tinha feito, mas já vi muitas vezes a fazerem. Juntei aquilo tudo à minha maneira, mas precisava de atar, não tendo nada, foi mesmo com um pedaço de corda grossa.

Cheguei a casa, ofereci-lhe o ramo, acho que ela gostou bastante, colocou num vaso, tirei-lhe uma foto como ela estava vestida e penteada, fiquei com a sensação de dever cumprido. Afinal a necessidade aguça o engenho.

Não sei o que se está a passar, isto é, não compreendo como tudo isto aconteceu, vejo países como a Itália e agora Espanha, com centenas de mortes por dia, e eu não sei como ajudar, pelo contrário, ainda faço pior, segundo as instruções, a sair todos os dias e não por pouco tempo, ando duas a três horas e uns quilómetros a pé, e faço umas dezenas de novas fotos em todas as saídas.

Sei que tomo as precauções que acho suficientes, visto um blusão de inverno, um chapéu de abas largas de Verão, uma máscara de papel, pois não há outras, luvas de algodão e por cima quando tenho de pegar algo, um par de luvas de borracha, e quando chego vai tudo para a máquina de lavar, faço a limpeza de mãos e cara, e uso o novo sabão azul para me lavar, dizem que é desinfectante e por outro lado faz bem ao meu problema da polpa dos dedos, que me dizem tratar-se de psoríase, mas com isto posso eu bem.

Ninguém sabe na realidade o que se passa nos Hospitais, louvo os profissionais da saúde e todos os que ajudam, no esforço impressionante do dia a dia, para manter vivos a maior parte dos internados, sem condições, pois nenhum sistema foi implementado nem pensado antes para ocorrer a situações destas.

Nunca me passou pela cabeça, que nesta idade viesse a viver uma guerra com um inimigo invisível que mata sem olhar a meios. Vivi, conforme outros da mesma geração, hoje com 65 a 80 anos, uma guerra diabólica em África, fomos requisitados à força e mandaram-nos combater um inimigo a sério, cada um durante dois anos, e sem as condições mínimas de subsistência, a maioria chegou viva, mas muitos ficaram pelo caminho, nunca regressaram, ou vieram em caixas de pinho, do outro lado do mar.

Vila do Conde > O meu Posto de Trabalho.
Troquei o escritório, pela Sala
Outros vieram evacuados com os mais variados ferimentos ou doenças, e todos os que sobreviveram sofrem hoje da síndrome de pós stress traumático, mesmo aqueles que se recusam em reconhecer essa mazela. Durante 13 anos o nosso país enfrentou uma guerra em 3 frentes de combate, coisa que nenhum outro país fez antes nem depois. É uma façanha e um orgulho para a capacidade dos Portugueses se adaptarem a formas de vida que nunca pensaram, foram e não tinha escolhas, a não ser aqueles, que escoltados em fantasias politicas, fugiram do país, e só regressaram quando tudo tinha acabado, estes não são os heróis, mas os cobardes e traidores, eles andam por aí, como se nada fosse e arranjaram poleiros nos organigramas dos diversos governos deste Estado Português.

Agora este Estado, como forma de combater a Pandemia, pede apenas aos jovens que fiquem em casa sentados nos sofás, quando os seus avôs, 60 anos antes, foram obrigados a ir para uma guerra que não era deles.

Mas o que mais me incomoda é mesmo a mudança de hábitos, um deles, deixar os sapatos fora de casa,  os suecos com quem convivi nos finais do ano de 1969, já faziam isso, e eu achava uma mania, nunca aprendi, até hoje. (**)
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P20796: Parabéns a você (1778): Carlos Pedreño Ferreira, ex-Fur Mil Op Esp do COMBIS e COP 8 (Guiné, 1971/73) e Gina Marques, Amiga Grã-Tabanqueira


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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Março de 2020 > Guiné 61/74 - P20790: Parabéns a você (1777): Abel Rei, ex-1.º Cabo At Art da CART 1661 (Guiné, 1967/68); António Graça de Abreu, ex-Alf Mil Inf do CAOP 1 (Guiné, 1972/74); Benjamim Durães, ex-Fur Mil Op Esp do BART 2917 (Guiné, 1970/72) e Rosa Serra, ex-Alf Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Guiné, 1969)

terça-feira, 31 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20795: O que é feito de ti, camarada? (11): António Graça de Abreu, no seu segundo cruzeiro de volta ao mundo... Fez ontem anos, e manda notícias, a partir do MSC - Magnifica, a navegar no Oceano Índico


MSC -Magnifica > Cruzeiro de Volta ao Mundo > Oceano  Índico > 30 de março de 2020 > "O jantar dos meus 73 anos (...), com dois casais portugueses [, incluindo o Constantino Ferreira e a esposa Elisa, aqui em primeiro plano], no MSC Magnifica, no Oceano Indico, a norte da Austrália. A caminho de Colombo e do Mediterrâneo onde devemos chegar dentro de três semanas. Sem coronavírus. Espero."

Foto (e legenda): © António Graça de Abreu (2019). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada e amigo  António Graça de Abreu [ ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74),  membro sénior da Tabanca Grande, com 250 referências no nosso blogue], começou a "dar sinais de vida" em 22 do corrente... Até então sabíamos apenas que ele andava "embarcado"... Agora sabemos que também está "aquarentenado", não podendo ele e os demais passageiros e tripulantes sair a terra, nos portos onde o MSC - Magnifica tem que aportar para se reabastecer...  Em 28 do corrente, mandou-nos esta nota do seu "diário de bordo".


Em navegação, Oceano Atlântico, 
18 de Janeiro de 2020

por António Graça de Abreu

Este grande hotel flutuante, de quatro estrelas e meio, que dá pelo nome de Magnifica, pertence à MSC, uma das maiores companhias de navegação do mundo e foi construído em 2010 nos estaleiros STX Europe, em Saint Nazaire, colada a Nantes, na França atlântica. 

A madrinha de baptismo deste navio de 95 mil toneladas foi a sempre jovem Sophia Loren. Sob a proteção das estrelas de cinema, vou então fazer um pouco de propaganda ao navio, que me perdoe o leitor que conhece as coisas dos cruzeiros de cor e salteado.(#)

O Magnifica navega, no máximo, a 23 nós por hora, ou seja, a uns 43 quilómetros. Com mar calmo, a velocidade de cruzeiro -  e estamos num navio de cruzeiros - , é mais baixa, uns 35 quilómetros por hora, o que significa que em 24 horas percorremos cerca de 800 quilómetros. 

O paquete - era assim que se chamavam antigamente estes navios - , conta com 1.259 camarotes, distribuídos por dezasseis pisos, e pode transportar 3.220 passageiros. Não vem propriamente lotado porque há resmas de gente, bem abonada em euros,  que, sem se preocupar com gasto, viaja sozinha, ocupando um só camarote. Não querem zangas, nem mau ambiente permanente com o companheiro ou companheira com quem teriam de compartilhar a cama ou o espaço reduzido da cabina. 

Os tripulantes são, no máximo, 945 distribuídos por 52 nacionalidades, A maioria são indonésios, filipinos, indianos, empregados vindos do Brasil ou dos países do leste da Europa, muitos deles com as tarefas mais humildes, não menos dignas mas creio que mais mal pagas, como as limpezas, a manutenção, a restauração. 

Como a companhia MSC é italiana, são dessa origem o comandante e a maioria dos oficiais. Todo este pessoal, muito profissional, procura manter o Magnifica a navegar com perfeição, assegurando os bons serviços de um navio em jornada de quatro meses pelos cinco cantos e mil recantos do mundo. 

Os dois mil e duzentos passageiros desta viagem também correspondem às mais variegadas e díspares nacionalidades, são gente a puxar para o idoso que só agora, após convulsionadas e trabalhosas vidas, tem tempo disponível, problemas familiares resolvidos e uns bons milhares de euros, ou dólares, na conta bancária para viajar durante a terça parte de um ano por terras e mares distantes. 

Há sobretudo franceses a quem sorriu a desejada retraite, alemães sempre metódicos e organizados, italianos e espanhóis, mais alegres e expansivos, aparentemente abertos a todos os prazeres do cruzeiro, mais uns vinte portugueses, às vezes pendurados num fado lacrimejante e triste, com malhão e corridinho à mistura. 

Há ainda suecos, noruegueses, finlandeses, checos, croatas, suíços, austríacos, norte-americanos, chineses, japoneses, etc. Entre os passageiros, não identifiquei pessoas negras, de países africanos, nem me apercebi da presença de muçulmanos. Há bastantes, sim, mas entre os simpáticos tripulantes. Os eventuais passageiros de África não terão poder económico para pagar estas viagens, os seguidores do Islão talvez considerem que este tipo de vida num navio repleto de infiéis, não estará de acordo com os princípios da sua religião, Entre outras preversões, bebe-se muito álcool, comem-se toneladas e toneladas de carne de porco, dança-se e ouve-se muita música decadente. 

Também os mais fundamentalistas defensores do meio ambiente recusariam este cruzeiro. Greta Thunberg, a menina sueca, convidada a fazer-nos companhia durante apenas um dia de viagem, após uma discussão com o comandante do navio, teria talvez vontade de o lançar ao mar. É verdade que o Magnifica, tal como todos os grandes navios de cruzeiro que sulcam os mares, consome uma barbaridade de gasóleo, algumas toneladas por hora, o que polui os oceanos. Para atenuar a malfeitoria, através de uma fundação própria, a MSC criou, com uma pequena percentagem dos seus lucros, um fundação que se destina a gerir a conservação dos oceanos e dos fundos marinhos.

A viagem de Volta ao Mundo é  dispendiosa e cara, no entanto, se considerarmos que são quatro meses cheios de pequenos luxos e mordomias, não haverá motivos para lamentar o dinheiro gasto. São 19 mil euros, num camarote duplo, com varanda, ou, como é o meu caso, são 14 mil euros, por um camarote duplo, com uma janela redonda, com vista de mar. 

Temos quinze excursões para os mais diversos lugares incluídas no preço do cruzeiro, mas há que contar, pelo menos, com outras tantas, ou mais, excursões cujos preços oscilam entre os 60 e os 150 euros, cada uma.

Todas as noites acontecem espectáculos na grande sala do teatro, com mil lugares. Às vezes são shows a moda do Cirque du soleil. com trapezistas. malabaristas, contorcionistas ou então noites mais completas com os bailarinos e bailarinas residentes a imitar o que de melhor se faz na Broadway, naturalmente não tão espectacular. Há cantores de ocasião ou grupos folclóricos contratados nos lugares de paragem do navio. 

O Magnifica trouxe também desde Itália um conjunto de cantores e músicos clássicos, São o Maschera in Musica capazes de encher de suprema qualidade qualquer palco do mundo. O primeiro concerto, com excertos de óperas de Verdi e de Puccinni e o segundo, com uma recolha de canções populares napolitanas, deixaram-me estupefacto de prazer. Ai vão os nomes de alguns dos cantores e músicos: Ivanna Speranza, uma fabulosa soprano nascida na Argentina que foi aluna de Luciano Pavarotti e cantou em tournées com o José Carreiras, o maestro e violinista Michel Manfrin e um virtuoso, um paganinizinho do violino, o baritono Oscar Garrido Bassoco, de voz potente e clara, acariciando as palavras e a rima, faz levitar a melodia e embevece a plateia, Davide Daniels, o pianista, vai buscar ao branco e negro dos teclados harmonias que afagam sensibilidades adormecidas.

Come-se e bebe-se muito bem no navio. Há quatro restaurantes e um buffet no 13.º andar que funciona quase 24 horas por dia. Há jantares temáticos dedicados a comidas dos países ou regiões que vamos atravessando e o vinho branco, tinto ou rosé é servido à descrição nos almoços e jantares. Provém de boas garrafeiras italianas, francesas e argentinas. Lá mais para a frente haverá vinho chileno, neozelandês e australiano. 

Existe um grande número de actividades para entreter o turista. Temos aulas de taijiquan e pilates, de danças de salão, do tango ao foxtrot, da salsa à valsa, quem quiser aprender italiano ou inglês, ou simplesmente recostar-se ao sol dos trópicos, conta com as muitas espreguiçadeiras espalhadas pelo navio. Existem duas piscinas, uma interior outra exterior e seis jacuzzis com água sempre a 37 graus. Temos na proa do navio, um bonito ginásio, muito bem equipado.

Os principais bares tem, ao lado, uma pista de dança onde uns tantos artistas dos acordes entram pela noite dando música a quem estiver interessado. Quase tudo isto acontece em outros navios de cruzeiros, variando no entanto, de acordo com a qualidade do barco e da companhia.
Temos conferencistas em varias línguas que, quase dia sim dia não, nos fazem palestras, com um power point auxiliar, sobre os lugares que vamos conhecer. 

No que nos diz respeito, quando a língua espanhola funciona como charneira com o português, vem um italiano ainda jovem chamado Massimo Cannoleta, com excelente domínio do idioma castelhano, que nos leva com facilidade, entusiasmo e clareza até Cabo Verde ou ao Brasil.

O Magnifica conta ainda com um casino com roleta, black jacket e slot-machines e com lojas onde se vendem desde o trivial necessário para o dia a dia, como pastas de dentes, sabonetes, pentes ou shampôs a relógios caros e baratos, a joias, a whiskies velhos, a charutos do melhor que se fabrica em Cuba ou na República Dominicana. 

Existe uma sala fechada, ventilada, especialmente destinada aos empedrenidos fumadores, grupo a que felizmente já não pertenço há mais de trinta anos. Existe ainda uma biblioteca, uma sala onde se pode jogar cartas ou xadrez, um spa, com tratamentos de pele, cabeleireiro e massagens que costuma ter bastantes clientes com tanta velharia no navio, presa por parafusos e cordéis enchendo os camarotes do Magnifica.
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# O meu primeiro cruzeiro de volta ao mundo aconteceu de 1 de Setembro de 2016 a 18 de Dezembro de 2016,  no navio Costa Luminosa ligeiramente maior do que este Magnifica.
Ver o meu livro Noticias (Extravagantes) de uma Volta ao Mundo, Lisboa, Nova Vega, 2018, doravante citado como Noticias (Extravagantes).

[Revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Guiné 61/74 - P20794: Manuscrito(s) (Luís Graça) (181): Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 - Macau, 1926): poesia para dizer em voz alta à janela ou à varanda, uma boa terapia contra os "irãs maus" que infestam agora os poilões das nossas tabancas.


Camilo Pessanha 150 Anos  > Capa (Com a devida vénia...)




1. No dia mundial da poesia,19 de março de 2020 (*), passei uma parte do dia  a dizer, em voz alta, sonetos da "Clépsidra e Outros Poemas de Camilo Pessanha" [, org. João de Castro Osório, 6ª ed, Lisboa, Edições Ática, 1973,210 pp, (Coleção Poesia)]. 

Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 - Macau, 1926): um autor que, confesso, conhecia mal, e em relção qual tinha algum preconceito, justamente pela sua poesia finessecular, de" fim de século", simbolista, decadentista, orientalista... Não devemos, todavia,  fixar-nos nos preconceitos, nos estereótipos, nas ideias feitas..., que são vendas nos olhos.

A força imagética, a originalidade e a musicalidade  dos seus sonetos acabaram por surpreender-me e encantar-me, tal como um melhor conhecimento da sua biografia: sabia apenas que se tinha "autoexilado" em Macau, durante três décadas (1894-1926), comunidade com quem manteve uma relação de amor-ódio,  e que era um sinólogo (aprendeu cantonês,  conhecia 3500 caracteres e foi tradutor de poetas chineses,) e que, em Macau, prolongou a boémia coimbrã e tornou-se dependente do ópio, tendo ali exercido funções como professor, advogado e juiz. Parece que não era bem amado pela comunidade macaense da época, conservadora, puritana, de moral judaico-cristã.

Expoente máximo do simbolismo, entre nós, é  considerado o Verlaine português...  É, na realidade, mais do que isso: é um dos grandes poetas europeus, um "poeta maior" e, no nosso caso, um dos grandes percursores da nossa poesia moderna, tal como o Cesário Verde, poeta de quem gosto muito. Influenciou ou marcou outras poetas, de quem também eu gosto muito (o Mário Sá Carneiro, o Fernando Pessoa, a Forbela Espanca, a Sophia de Melo Breyner Adresen, o Eugénio de Andrade...). 

No Camilo Pessanha, também aprecio o lado artesanal da construção poética, a obsessiva procura da perfeição, da maestria... Espantoso, era um poeta que decorava os seus poemas e depois rasgava os seus autógrafos, os seus escritos...

É muito provável que parte da sua obra se tenha perdido...A 1ª versão da "Clépsidra" foi publicada em 1920 (,seis anos antes do poeta morrer), em Lisboa, longe de Macau, por iniciativa da sua amiga, a feminista de 1ª geração, republicana, escritora e pedagoga Ana Castro Osório (Mangualde, 1872 - Lisboa, 1935) por quem ele tivera uma paixão nunca correspondida (, fizera-lhe um pedido de casamento, que ela recusou, mas mantiveram a sua amizade até à morte do poeta, em 1926, aos 58 anos, vencido pelo ópio e a tuberculose pulmonar). 

Selecionei, da "Clépsidra" (**), quatro poemas, para serem ditos em voz alta às nossas varandas, nestes dias estranhos em que estamos confinados nas nossas casas, em plena pandemia da COVID-19. 

Gritar ou dizer poesia em voz alta, à janela ou à varanda, pode ser uma boa terapia contra os "irãs maus" que infestam agora os poilões das nossas tabancas.

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Inscrição

Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
O! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
(p. 27)



Caminho 

I
Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d' harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.


II


Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
- Bom dia, companheiro - te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.

É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.

É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto

Que chorámos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.



III

Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.

Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...

Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...

Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar 
- encher a alma.

(pp. 31/33)



Camilo Pessanha 

in: "Clépsidra e Outros Poemas de Camilo Pessanha", org. João de Castro Osório, 6ª ed (Lisboa, Edições Ática, 1973, 210 pp, Coleção Poesia).


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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20759: Manuscrito(s) (Luís Graça) (180): De quarentena, no Dia Mundial da Poesia... Revisitando o poema "Da Falagueira a Buruntuma"


(**) clepsidra | s. f.

clep·si·dra

substantivo feminino

Relógio antigo, de origem egípcia, que media o tempo pelo escoamento de água num recipiente graduado.

"clepsidra", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/clepsidra [consultado em 31-03-2020].

segunda-feira, 30 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20793: Notas de leitura (1277): O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2017:

Queridos amigos,

Se vos trago à reflexão o artigo saído do punho do Coronel Vaz Antunes sobre conversações que teve no último dia de Junho de 1973 com alegados negociadores da fação guineense do PAIGC, que terão entusiasmado Spínola, há que ter em conta todas as alterações do xadrez político-militar daquele tempo: os mísseis Strela, o endurecimento das relações entre Marcelo Caetano e Spínola, a visita de Costa Gomes em Junho, no rescaldo dos acontecimento de Guileje, Gadameal-Porto e Guidage, e em que se definiu a retração do dispositivo em termos tais que Spínola se apercebeu que era o princípio do fim; a nível do PAIGC, caminhava-se para novo Congresso que preparava a radicalização política, com consequências desastrosíssimas para a diplomacia portuguesa, e muito mais. Spínola perdera o é dos acontecimentos, a fação guineense ficou entregue a si própria.

É convergência de todos estes fatores que preludiam o 25 de Abril, o encontro em território senegalês, no último dia de Junho de 1973 é demonstrativo de que os combatentes guineenses caminham para a sua própria independência, o tempo político em Portugal já não permitia consolidar a tal Guiné melhor.

Um abraço do
Mário


O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto

Beja Santos

Cor António Vaz Antunes
O Coronel António Vaz Antunes elaborou um documento, datado de 1987, intitulado “Guiné: Uma diligência interrompida. Porquê?”. O documento é público, o leitor interessado tem dele acesso através do link indicado em rodapé.[1]

Encontrei-o na Biblioteca da Liga dos Combatentes, em dia sim, pois emprestaram-me a importante história dos Paraquedistas na Guiné e a Engenharia Militar na Guiné, de que já se fez as competentes recensões.

A diligência que o General Spínola pediu ao Coronel António Vaz Antunes, de acordo com esta versão, poderia ter tido o condão de mudar o curso da guerra travada na Guiné. Mas vamos aos factos, tome-se o que escreveu o Coronel Vaz Antunes.

Este militar estava ligado à Operação Guidage, naturalmente desgastante, naquele terrível Maio de 1973. Recebeu a ordem do Comando-Chefe para montar um Comando avançado em Cuntima. O oficial chega à Companhia e o Comandante da mesma não escondeu a sua surpresa, terá suposto que a sua capacidade para enfrentar a situação não era suficiente. No dia 29 de Junho três helicópteros aproximam-se da pista, coisa que não acontecia há meses. Numa conversa a sós, Spínola explica-lhe o que o levou ali:

“No tom mais cordial que imaginar-se se possa, contou-me o que tinha sido a sua acção desde que chegara à Guiné, nos contactos com o Presidente Senghor, com os comandos do PAIGC nos tempos de Amílcar Cabral e as suas diligências na interferência da escolha do próximo secretário-geral do PAIGC, cuja eleição iria ocorrer dentro de dias”.

O Coronel Vaz Antunes ouvia tudo com muita atenção mas não compreendia a natureza desta abertura, esta abordagem de temas tão secretos. Sempre bem-humorado, e sem nunca lhe explicar a natureza dos aspetos tão confidenciais, Spínola regressou a Bissau.

A 30 de Junho, tudo se precipita, Vaz Antunes é procurado por um Fula que era um agente de informações com o nome de código Padre, algo se sabia pertencente ao Front da Guiné Conacri. Conheciam-se, Padre era um elemento de peso, chegara a ir com um agente da DGS de Farim até Bissau de avião. Padre surpreendeu completamente Vaz Antunes: “pediu que fizesse uma mensagem relâmpago para Bissau solicitando a presença do General Spínola nesse dia, ali em Cuntima, para um contacto com alguns dirigentes do PAIGC”.

Vaz Antunes entendia agora a visita da véspera. Começa a troca de mensagens, Bissau responde que não é possível a deslocação àquela hora, 16 horas. Padre mostrou-se angustiado, pediu então a Vaz Antunes para comparecer na referida reunião. Depois de algumas peripécias, Vaz Antunes atravessa a fronteira no marco n.º 104. Na noite cerrada, chegou um automóvel que parou a duas centenas de metros do qual saíram dois indivíduos que se dirigiram para Vaz Antunes e Padre. “Tratava-se do representante pessoal do comandante-geral das forças do PAIGC”.

O interlocutor foi direto:

“Andamos há já 10 anos nesta luta. Somos agora menos do que quando começámos. Actualmente não nos entendemos com o escalão político: eles são cabo-verdianos e comunistas e nós somos guinéus, combatentes e não comunistas. Desejamos apenas uma Guiné melhor. Já chegámos à conclusão de que, sozinhos, não somos capazes de a fazer, mas sê-lo-emos convosco. A nossa proposta é muito simples: em dia e hora que se combine acaba a guerra, nós seremos integrados nas forças da Guiné, sem recriminação nem vingança”.

Vaz Antunes promete rapidamente comunicar o teor desta mensagem a Spínola. A 1 de Julho apresenta-se no Palácio do Governo em Bissau. Será recebido ao fim da tarde. Ouvida a mensagem, Spínola liga para Lisboa, telefona para António Fragoso Allas, o chefe da DGS em Bissau, pede-lhe para regressar urgentemente à Guiné.

Em Agosto Vaz Antunes entrou de licença. Aqui soube da substituição de Spínola por Bettencourt Rodrigues, foi à tomada de posse deste, pareceu-lhe que o discurso do novo Governador e Comandante-Chefe não estava em sintonia com tudo o que se passara anteriormente. Padre, manifestou-se em Farim, mais tarde, desgostoso por se aperceber de que tudo voltara ao princípio, não se entendia o porquê do retrocesso.

E chegamos ao final da história:

  “Um dia, no bar do Estado-Maior do Exército, já em 1976, contava o caso a uns camaradas, dado que a manutenção do segredo já não tinha razão de ser. O então Major Monge estava ao lado interrompeu-o e disse: 'Afinal foi o meu Coronel quem provocou o 25 de Abril' . Fiquei atónito. Mas imediatamente me veio à memória que tinha lido dias antes uma informação do General Costa Gomes para o governo de Marcelo Caetano segundo a qual para Portugal era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada… Porquê?”.

A narrativa do Coronel Vaz Antunes levanta inúmeras questões. É facto historicamente comprovado que naquele mês de Junho, antecedendo o Congresso do PAIGC, que ratificou Aristides Pereira como dirigente máximo do PAIGC, a linha guineense, com todas as cautelas, procurava uma posição de força para evitar um controlo maioritário de líderes cabo-verdianos. Nino sabia-se vigiado, Osvaldo Vieira já não contava, o rumo de ofensiva militar alterara completamente os acontecimentos, era certo e seguro avançar-se para uma declaração unilateral da independência, criando um ainda mais serrado cerco à diplomacia portuguesa. Padre não estaria na posse de informações quanto ao confronto já instalado entre Marcelo Caetano e Spínola, hoje bem conhecido através da epistolografia trocada, o Primeiro-Ministro proibira Spínola de negociar com o PAIGC o quer que fosse.

Seguramente que Fragoso Allas conseguira chegar até ao núcleo dos combatentes guineenses que não se conformavam com a liderança cabo-verdiana em perspetiva. Recorde-se que Aristides Pereira foi hábil, no mando supremo ficou ele, Luís Cabral e Nino Vieira. Mas de Junho para Julho, acontecera algo de decisivo para a desmotivação de Spínola: era fundamental retrair o dispositivo militar, com sacrifício de populações e quartéis nas fronteiras, Lisboa não tinha dinheiro para acompanhar a escalada armamentista do PAIGC, a partir daquele momento era o PAIGC quem estabelecia as regras do jogo, atacando e flagelando onde lhe apetecia e numa posição muitíssimo forte, sabendo que os mísseis Strela impediam a presença da Força Aérea.

Inconformado com a situação, prenúncio de perigos maiores e sabendo já que se caminhava para a declaração unilateral de independência, o que acarretaria a possibilidade da presença de exércitos amigos do PAIGC, Spínola afasta-se de tudo, vem para Lisboa preparar a sua resposta política, o livro Portugal e o Futuro. Não se entende o final do artigo do Coronel Vaz Antunes exatamente por que foi Marcello Caetano e não Costa Gomes quem disse que era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada.

Ainda pouco se sabe sobre os primeiros meses tresloucados de 1974, quando Marcello Caetano decidiu por sua conta e risco abrir negociações secretas com os movimentos de libertação. O que hoje é seguro é que a Guiné já estava fora dos seus planos, congeminou um cessar-fogo antes que fosse demasiado tarde.

[1] - Aceder ao documento em:
http://ultramar.terraweb.biz/06livros_antoniovazantunes_Guine_uma_diligencia_interrompida.htm
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20781: Notas de leitura (1276): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (51) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20792: Da Suécia com saudade (66): As fábricas de vodka, o coronavírus e o fantástico humor... lusitano (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)



Recorte de imprensa: título de caixa alta do DN - Dagens Nyheter, 23/3/2020 >  "Sverige går samman: Handspriten slut – flera vodkafabriker ställer om för att leverera"... [Foto da fábrica de
 de vodka Lantmännens-Reep em Nyköping. Foto: Lantmännens. Cortesia do Joseh Belo  (e reproduzida aqui com a devida vénia...)]


1. Mensagem do Joseph Belo, domingo, 29/03, 09:55

[Casa do régulo da Tabanca da Lapónia, vizinho do Pai Natal]




Segundo o jornal de grande tiragem "Dagens Nyheter" [, de 23 de março de 2020], as quatro maiores fábricas suecas de vodka estão agora (também !) a produzir desinfetante para lavagem de mäos.

E eu a julgar que já tinha visto "tudo" na vida!

Um abraço,
José Belo


PS - As fábricas de vodka, o virus e...o fantástico humor lusitano.

Depois de enviar a vários camaradas a notícia quanto ás fábricas de vodka suecas estarem agora também a produzir desinfetante para as lavagens das mãos, recebi esta resposta, que é um requinte de humor lusitano: "Só devem ter mudado... o rótulo !"

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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20757: Da Suécia com saudade (65): "Ao luar, entre nevões, até as renas parecem pavões" (José Belo)

Guiné 61/74 – P20791: (Ex)citações (363): Os conflitos e a dedicação do povo (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Os conflitos e a dedicação do povo


Camaradas, 

O momento sanitário que irreversivelmente fustiga a humanidade global, por via de um inimigo invisível que dá pelo nome de Covid-19, leva-nos, amiúde, procurar no nosso baú eternas lembranças de outras guerras, Guiné em concreto, onde fomos simplesmente atores numa peleja onde existiam duas frentes em combate, conhecendo-se, então, quem era afinal o inimigo nas trincheiras da morte. Combatia-se com armas de fogo, cujos resultados foram catastróficos. 

Hoje, o figurino mudou e a invisibilidade do inimigo não conhece, por ora, a vacina para a sua cura.

Neste âmbito, resolvi debitar mais um texto que surge no meu último livro "Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74", para vos "matar" um pouco do vosso tempo da quarentena que, por força real das circunstancias, fomos submetidos. 

Os conflitos e a dedicação do povo
Gratidão
Olhares distantes das mulheres grandes

Há histórias hilariantes de vida onde a encruzilhada da guerrilha se cruzou com a nobreza exótica de gentes que compartilhavam sentimentos comuns. A gratidão do povo guineense, no dar e receber, era enorme. O confronto no terreno, sendo real, não eliminava de todo um contacto permanente com uma população civil que se desfazia no ato “de bem servir” a tropa tuga.
Não vou, por razões realmente díspares, debruçar-me sobre acontecimentos reais da chamada guerrilha no terreno a qual, na minha modesta opinião, estava, aparentemente, condenada ao fracasso. Negociar? Talvez! Restava saber quando e como o processo poderia eventualmente evoluir.
A Guiné apresentava, no seu todo, um cenário deveras perspicaz tendo em conta a sua curta dimensão territorial e a forma como o PAIGC controlava os buracos no espaço. As emboscadas, ou os ataques aos quartéis, teriam pressupostamente um maior ronco se os guerrilheiros fossem possuidores de conhecimentos mais profícuos sobre a sua minuciosidade em usar as armas, ou na conceção mais exata em preparar uma guerrilha que, para nós, se apresentava transversalmente desigual.
O PAIGC contava com a ajuda de guerrilheiros cubanos que comandavam alguns dos estratos operacionais. Comentava-se, à época, que a sua operacionalidade assumia-se deveras importante nos confrontos. Tinham largos anos de experiência na guerrilha, comentava-se no interior dos arames que delimitavam os aquartelamentos no mato.
O IN abastecia-se com armamento russo, sendo disso exemplo as kalachinikovs, normalmente utilizadas nos confrontos diretos, a que se associavam armas de calibre superior. Ainda assim, as nossas tropas debitavam capacidades quando deparadas com o conflito. Foram heróis!
Esta minha análise, embora sintética, enquadrou-se em absoluto quando pela primeira vez me deparei com a fragilidade, penso eu, do IN. Estávamos no mês de novembro de 1973. Na transparência de um dia levado ao êxtase, tinha completado 23 risonhas primaveras, sendo que da metrópole tinham chegado queijos de ovelha e enchidos alentejanos, comestíveis enviados carinhosamente pela minha saudosa mãe, sendo que o “material”, embora escasso, foi de pronto devorado pelos meus companheiros de lides, lembro-me que pelo meio da festança e das muitas cervejas emborcadas, chegou, inesperadamente, uma mensagem que nos deixou algo desalentados.
Cerca das quatro horas da tarde, e sem que nada o fizesse prever, fui chamado ao capitão Ramalhete, o militar graduado que controlava o gabinete de operações, que me colocou a par das novidades acabadinhas de chegar: “temos conhecimento de um grupo IN perto da tabanca (não me lembro do seu nome), sendo urgente a nossa intervenção. Prepare o grupo de imediato e siga para o terreno”. E assim foi.
A estrada ligava Nova Lamego a Piche. Uma hora depois estávamos em contacto com a realidade da guerrilha. Em pé, e de peito aberto, o Jau (guia), já conhecedor do perigo que a situação impunha, aconselhava a deitar-me uma vez que o risco ganhava uma maior grandeza.
Vincando a minha condição de ranger, tentei apaziguar as hostes porque a reação do IN, à primeira vista, parecia-me algo dispersa. A sua cadência de tiro um pouco anárquica e os sons da sua algazarra confusa. O certo é que o tiroteio serenou e a malta, antes de anoitecer, retirou sem prejuízos de maior monta.
No dia seguinte, em reconhecimento ao local, constatou-se que se tratou de um grupo, quiçá em instrução, que deixou antever inexperiência, permitindo que o pessoal no terreno não tivesse sofrido sequelas físicas, nem tão-pouco baixas para engrossar o rol de jovens infelizes tombados em combate.
Lembro a maneira como o meu camarada ranger Rui Fernandes Álvares, furriel miliciano, e do meu curso em Lamego, ironizou a situação quando chegado ao quartel e comentou o diabólico contacto: “vi um turra a fugir, apenas com uma perna, de arma na mão e a dar tiros em todas as direções. Fugia que nem uma lebre”.
Depois, embevecia-se a fazer o filme ao pormenor e a malta ria que se desunhava. O Rui era um rapaz de bom trato, com um coração enorme e oriundo do concelho de Boticas. As suas telas cinéfilas, entretanto desenhadas, eram divinais. O seu nome jamais me fugiu da memória. A sua inclinação para criar um bom ambiente era brilhante. Um moço porreiro. Brincava com as fatalidades da guerra.
O Rui, tal como a maioria da rapaziada que pisava o palco da guerrilha, não meditava, creio, a preceito com os buracos impensáveis que a guerra impingia ao infeliz soldado chamado “carne para canhão”, propunha-se, isso sim, a disfarçar os confusos e agrestes contornos que o conflito colocava no terreno.
Éramos jovens. Não temíamos as adversidades que o rosto da mata adensada e das estreitas picadas impunham. E tantas foram as ocasiões em que a despreocupação em cima do Unimog, já caquético, nos conduzia a uma pura brincadeira não temendo o momento seguinte.
Recordo uma tarde a caminho de Piche a viatura que seguia atrás embater na traseira daquela que rolava à sua frente e a malta a atirar-se para o chão embrenhado entre as granadas da bazuca, do morteiro 60 e das G3 que transportávamos nas mãos. Um arrepio entrou-me no corpo dado que os arranhões provocados nas minhas pernas e braços deixaram marcas. Um “acidente” que, felizmente, não causou vítimas a bordo. Tudo correu bem. Mas… ficou o aviso.
Colocando de parte as ações da guerrilha, e as vitimizações que ela provocou, vou referir uma alegação que sempre considerei nobre: A GRATIDÃO! Não me recordo que em tempo algum tivesse sentido a nefasta opinião que a população guineense se mostrasse desordeira sempre que solicitada a um eventual pedido para uma pontual colaboração e humildemente reconhecia que a nossa tropa era um meio intervencionista para a sua própria sobrevivência.
Dar e receber apresentava-se como uma reciprocidade maioritariamente perfeita. Reconheço que a sua posição no meio territorial não se apresentava nada fácil. Lidar com duas frentes da guerrilha, manifestava uma assimetria desigual. De um lado os guerrilheiros do PAIGC, homens eventualmente conhecidos na tabanca, filhos da terra, familiares, e com quem amiúde trocavam opiniões, assumindo-se estes como os verdadeiros mestres para libertarem o território dos ditos invasores brancos; do outro, a tropa “tuga” que lutava para defender pressupostos direitos alheios, desconhecendo por completo as razões pelas quais expunha o seu corpo à bala. Uma situação dúbia que determinava a neutralidade de uma população carenciada e sobretudo sofrida.
Neste contexto, ter-me-ei apercebido da verdadeira ação do povo. Lidar com as duas faces da moeda não era fácil. Um dia tivemos conhecimento que numa tabanca situada na zona de Gabu o PAIGC se havia ali instalado. A aproximação à tabanca careceu de cuidados redobrados. Mesmo assim lá chegámos sem problemas que afligissem o grupo. A nossa ação foi pronta.
As informações recolhidas no local foram, a princípio, escassas. O chefe de tabanca dizia desconhecer a existência de guerrilheiros inimigos naquele local e era convictamente apoiado por quase toda a população. Só que pelo meio da conversa alguém se descuidou. O Jau, perito nestas andanças e sempre atento, apercebeu-se e toca a pôr o homem que bufou a confessar.
Ficámos a saber que um grupo de guerrilheiros pernoitou na noite anterior na tabanca, mataram uma vaca, comeram e beberam, fizeram uma festa e ao romper da aurora partiram para um novo rumo.
Esta conceção, tida como perfeitamente atendível, sublinha o reconhecimento de um povo em guerra que brigava, apenas, pela sua sobrevivência. Aliás, a forma como toda a população se entregava a uma missão plenamente percetível, deixava antever que o seu sentimento puro de dar e receber não suspendia os começos que a guerrilha, desde o seu início, lhe propusera.
Numa viagem memorial aos idos da década de 1970, recordo os tempos passados na Guiné em que recebi e dei momentos de enorme gratidão. Um abraço sentido para o povo da Guiné!



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. também o último poste desta série: