quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21626: Tabanca Grande (506): António Marreiros, natural de Sagres, a viver há 48 anos no Canadá, ex-alf mil em rendição individual, CCaç 3544 (Buruntuma, 1972) e CCAÇ 3 (Bigene e Guidage, 1972/74): senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 822


Foto nº 1


Foto nº 2

Fotos (e legendas): © António Marreiros (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Mensagem de António Marreiros, a viver há 48 anos no Canadá (Victoria, BC, British Columbia), ex-alferes miliciano em rendição individual na Companhia CCaç 3544, "Os Roncos", Burumtuma, 1972,  e, meses depois, transferido para Bigene/Guidage, CCaç 3, até Agosto 1974 (*):


Date: sexta, 4/12/2020 à(s) 01:00
Subject: Hoje ...e 48 anos antes

Olá,  Luís Graça,

Depois de uma volta a pé nesta tarde cinzenta de Dezembro, fui à procura da caixa com fotos antigas e encontrei o grupo de Buruntuma e Bigene. Vou tentar copiar algumas mas não sei a melhor maneira de mandar:  Messenger, WhatsApp,  ou assim?

Para me registar na Tabanca aqui vai a minha foto tirada em Março [deste ano] no Algarve [Foto nº 2]  e …48 anos antes,  no rio Cacheu a caminho de Bolama ...e ainda muito "pira"! [Foto nº 1]. Penso que ainda tenho nalgum sítio aquele colar nativo feito com osso de peixe.

Sim, pelo apelido  de família [, Marreiros,] viste que sou algarvio! Nasci em Sagres e um mês depois de vir da Guiné estava numa longa viajem para este lado do Pacífico…

Nos primeiros 10 anos foi difícil regressar a casa periodicamente, mas com o tempo surgiram mais possibilidades e hoje volto  pelo menos cada 2 anos.

Ainda não respondi ao amigo Crisóstomo,  de New York, mas vou fazê-lo, ele foi tão pronto em me contactar!

Só agora é que tive coragem de abrir os outros links que me mandaste (P) …Tive dificuldade em ler a vivida descrição do ataque a Guidage e as emboscadas  (Amilcar Mendes, 38.ª CCmds) de Maio de 1973, porque eu fiz parte da tropa que se juntou aos Comandos nessa coluna que conseguiu finalmente chegar  a Guidage.

Tenho um nó no estômago outra vez... ver os nomes dos dois alferes que se perderam e toda aquele caos que se seguiu (eles voltaram dias depois a Bigene com a ajuda dos soldados africanos que conheciam o mato)…

Vou ler mais, mas noutro dia…
Um abraço do Canadá.
António Marreiros


2. Comentário do editor LG:

Camarada Marreiros, em meu nome pessoal, dos demais editores, colaboradores permanentes  e o resto da Tabanca Grande (que abaraça um leque de mais 8 centenas de camaradas que passaram pelo CTIG de 1961 a 1974), eu saúdo e faço votos para que te sintas sempre bem, ao nosso lado, sentado à sombra do nosso poilão...

Passas a ser nº 822... E o teu nome passa a constar permanentemente da lista alfabética, de A a Z, dos membros da Tabanca Grande, constante da coluna estática do blogue, no lado direito.

Peço desculpa de, no comentário anterior (*), ter confundido a tua segunda companhia, que não é a CCAÇ 19 (que estava em Guidage), mas sim a CCAÇ 3, da qual temos meia centena de referências. Mais à frente, no ponto 3, apresento-te um resumo do historial da CCAÇ 3.

 Em relação às tuas dúvidas... Tudo o que nos quiseres mandar (fotos, digitalizadas com boa resolução, em formato jpg, de preferência; ou textos em word ou pdf), usa de preferência o meu endereço de email, o mesmo que usaste agora: luis.graca.prof@gmail.com.

O nosso blogue tem algumas regras, simples, pacíficas, consensuais, que podes consultar aqui.

Mas, no essencial, devo dizer-te o seguinte, para te sentires inteiramente confortável aqui e à vontade para partilhares as tuas memórias, sem constrangimentos.

O Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, criado em 2004, é um espaço, de informação e de conhecimento, mas também de partilha e de convívio, abertos a todos os combatentes que conheceram o TO da Guiné, entre1961 e 1974). 

O nosso comportamento (bloguístico) deve estar  de acordo com algumas regras ou valores, sobretudo de natureza ética:

(i) respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem);

(ii) manifestação serena mas franca dos nossos pontos de vista, mesmo quando discordamos, saudavelmente, uns dos outros (o mesmo é dizer: que evitaremos as picardias, as polémicas acaloradas, os insultos, a insinuação, a maledicência, a violência verbal, a difamação, os juízos de intenção, etc.);

(iii) socialização/partilha da informação e do conhecimento sobre a história da guerra do Ultramar, guerra colonial ou luta de libertação (como cada um preferir);

(iv) carinho e amizade pelos nossos dois povos, o povo guineense e o povo português (sem esquecer o povo cabo-verdiano!);

(v) respeito pelo inimigo de ontem, o PAIGC, por um lado, e as Forças Armadas Portuguesas, por outro;

(vi) recusa da responsabilidade colectiva (dos portugueses, dos guineenses, dos fulas, dos balantas, etc.), mas também recusa da tentação de julgar (e muito menos de criminalizar) os comportamentos dos combatentes, de um lado e de outro;

(vii) não-intromissão, por parte dos portugueses, na vida política interna da actual República da Guiné-Bissau (um jovem país em construção), salvaguardando sempre o direito de opinião de cada um de nós, como seres livres e cidadãos (portugueses, europeus e do mundo);

(viii) respeito acima de tudo pela verdade dos factos;

(ix) liberdade de expressão (entre nós não há dogmas nem tabus); mas também direito ao bom nome;

(x) respeito pela propriedade intelectual, pelos direitos de autor... mas também pela língua (portuguesa) que nos serve de traço de união, a todos nós, lusófonos.

Não menos importante:

(xi) defendemos e garantimos a propriedade intelectual dos conteúdos inseridos (texto, imagem, vídeo, áudio...).

(xii) em contrapartida, uma vez editados, os "postes" não poderão ser eliminados, tanto por decisão do autor como do editor do blogue, mesmo que o autor decida deixar de fazer parte da Tabanca Grande.

(xiii) qualquer outra utilização desses conteúdos, fora do propósito do blogue (ou da página do Facebook da Tabanca Grande), necessita de autorização prévia dos autores (por ex., publicação em livro).

Dito isto, camarada António Marreiros, esperemos que partilhes também connosco alguns dos "segredos" que vais contar à tua neta, relativamente àquele período da tua vida (cerca de 3 anos) em que estiveste ao serviço do Exército Português... Happy Cristmas!... Luís Graça

PS - Noutra oportunidade, falar-te-ei do nosso camarada A.Marques Lopes, cor inf DFA,  que foi também alf mil na CCAÇ 3, tendo estado em Barro, em 1968. É autor do livro "Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015), autobiografia escrita sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, e que conta a história de António Aiveca. É um dos históricos da Tabanca Grande. Tem cerca de 250 referências no nosso blogue.
 


3. Companhia de Caçadores nº 3  (CCAÇ 3) > Ficha de Unidade:
 
Comandantes:

Cap Art Samuel Matias do Amaral
Cap Inf Cassiano Pinto Walter de Vasconcelos
Cap Inf Carlos Alberto Antunes Ferreira da Silva
Cap Inf José Olavo Correia Ramos
Cap Art Carlos Alberto Marques de Abreu
Cap Art Fernando José Morais Jorge
Cap Inf João da Conceição Galamarra Curado
Cap Inf Carlos Alberto Caldas Gomes Ricardo
Cap Cav Nuno António Amaral Pais de Faria
Cap QEO João Pereira Tavares
Alf Mil Inf José Manuel Levy da Silva Soeiro
Cap Inf Manuel Gonçalves Mesquita
Cap Mil Inf José Maria Tavares Branco
Cap Mil Inf António Eduardo Gouveia de Carvalho
Cap Mil Inf José Maria Tavares Branco

Divisa: "Amando e Defendendo Portugal"

Início: lAbr67 (por alteração da anterior designação de 1ª CCaç)
Extinção: 31Ago74

Síntese da Actividade Operacional

Em 1Abr67, foi criada por alteração da anterior designação de 1ª Companhia de Caçadores.
.
Era uma companhia da guarnição normal do CTIG, constituída por quadros metropolitanos e praças indígenas do recrutamento local.

Continuou instalada em Barro, mantendo-se então integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1894, com dois pelotões destacados em reforço do BCaç 1887 e estacionados em Binta e Jumbembém, este depois em Canjambari a partir de finais de Set67. 

Ficou sucessivamente integrada no dispositivo e manobra dos batalhões e comandos que assumiram a responsabilidade da zona de acção do subsector de Barro.

Após recolha dos pelotões instalados em Binta e Canjambari em 20Jul68, destacou, em meados de Out68, um pelotão para Guidage, tendo assumido, em 09Mar69, a responsabilidade do subsector de Guidage por troca com a CArt 2412 e destacando então dois pelotões para Binta, sendo especialmente orientada para a contrapenetração no corredor de Sambuiá, onde em 2l/22Jan69 tomou parte
na operação "Grande Colheita", realizada pelo COP 3.

Em 22Fev72, rendida em Guidage pela CCaç 19, assumiu a responsabilidade do subsector de Saliquinhedim, onde substituiu a CCaç 2753 e ficou integrada no dispositivo e manobra do COP 6 e depois do BArt 3844.

Em 08Dez72, foi substituída, transitoriamente, por forças da CArt 3358 no subsector de Saliquinhedim e foi colocada em Bigene para onde se deslocou, por escalões, em 26Nov72 e 08Dez72 e onde assumiu a responsabilidade do respectivo subsector em substituição da CCaç 4540/72, ficando então novamente
integrada no dispositivo de contrapenetração no corredor de Sambuiá.

Em 31Ag074, as praças africanas tiveram passagem à disponibilidade e, após desactivação e entrega do aquartelamento de Bigene ao PAIGC, o restante pessoal recolheu a Bissau, tendo a subunidade sido extinta.

Observações
Não tem História da Unidade. Tem Resumo de Actividade referente ao período
de Mai73 a Set74 (Caixa n." 129 - 2.a Div/d." Sec, do AHM).

Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas de unidade: Tomo II - Guiné - (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002), pp. .627/628
_________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21561: O nosso livro de visitas (207): António José de Sousa Marreiros, que vive no Canadá (Victoria, BC): foi alf mil, em rendição individual, CCAÇ 3544 (Buruntuma, 1972) e CCAÇ 19 (Bigene e Guidaje, 1973/74)

Guiné 61/74 - P21625: Historiografia da presença portuguesa em África (242): Revista Estudos Ultramarinos, 1959 - n.º 2 - Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

Impossível não ficar atónito quando uma revista dirigida por Adriano Moreira, do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, com data de 1959, publicar poesia de Agostinho Neto ou Viriato da Cruz, as conclusões do I Congresso dos Escritores e Artistas Negros e também uma extensa mensagem dirigida por Sékou Touré (seguramente escrita por mão alheia) onde se exaltam as culturas africanas e se procede a uma minuciosa análise do processo cultural do colonizador. 

Impossível os doutrinadores do Estado Novo estarem completamente alheados das grandes mudanças que se estavam a operar em África desde 1957, esta documentação era um libelo acusatório para o regime e a sua doutrina imperial. Mas há paradoxos incompreensíveis, a explicação plausível, caso exista ultrapassa a nossa compreensão.

Um abraço do
Mário



Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (1)

Mário Beja Santos

Já se referiu que a Revista Estudos Ultramarinos, que tinha como Director Adriano Moreira, ele também Director do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, não deixa de nos surpreender, à distância de cerca de seis décadas, e num tempo em que já pairava no ar o sinal de efervescência da luta anticolonial, a publicação de textos de figuras que se irão distinguir nessa luta ou apresentações ideológicas a que o regime frontalmente se opunha. Por exemplo, na amostra de poesia ultramarina constam nomes como os de Agostinho Neto, Francisco José Tenreiro, Noémia de Sousa, Osvaldo Alcântara, Tomás Medeiros ou Viriato da Cruz.

E na secção de documentos, as surpresas não param. Logo, mesmo em francês, a resolução do I Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, que se realizou na Sorbonne (Paris), entre 19 e 22 de setembro de 1956. Regista-se a satisfação pelo inventário efetuado às diversas culturas negras que tinham sido até então sistematicamente mal conhecidas, subestimadas e por vezes destruídas; reconhecia-se a necessidade imperiosa de proceder a uma redescoberta da verdade histórica e a uma revalorização das culturas negras, pondo termo à apresentação errónea ou tendenciosa dessa verdade: 

“O nosso Congresso presta homenagem às culturas de todos os países e aprecia a sua contribuição para o progresso da civilização, compromete os intelectuais negros a defender, a ilustrar e a fazer conhecer no mundo os valores nacionais dos seus povos.

Nós, escritores e artistas negros, proclamamos a nossa fraternidade com todos os outros homens e esperamos deles que manifestem para com os nossos povos a mesma fraternidade”
.

O texto seguinte parece-nos incrível como se permitiu a sua publicação. Trata-se da mensagem intitulada “A cultura africana na luta da libertação”, foi enviada por Sékou Touré ao II Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros que se reuniu em Roma de 26 de março a 2 de abril de 1959. Quem redigiu a mensagem foi seguramente um intelectual e ideólogo próximo do ditador, sente-se um certo pendor marxista. 

“A cultura de um povo é necessariamente determinada pelas suas condições materiais e morais. O homem e o seu meio constituem um todo. Todo o povo livre e soberano tem melhores condições para a expressão dos seus valores culturais que um país colonizado, privado de toda a liberdade e cuja cultura está num estado de sujeição”

A projeção pessoal de Sékou Touré não fica de fora: 

“O líder político é, pelo facto de a sua comunhão de ideias e de acção com o seu povo, o representante de uma cultura. O homem, antes de se tornar o líder de um grupo, de um povo ou de uma parte do povo, fez inevitavelmente uma escolha entre o passado e o futuro. É assim que ele representará e defenderá os valores antigos ou sustentará, impulsionará o desenvolvimento, o enriquecimento constante de todos os valores do seu povo”.

 Deixa-se claro o que distingue um líder reacionário de um progressista, segue-se a exaltação dos líderes das democracias populares, recorda-se que a cultura árabe difere da cultura latina e adverte-se como os imperialistas utilizam os valores culturais (científicos, técnicos, económicos, literários e morais) para justificar e manter o seu regime de exploração e de opressão.

Para combater a descolonização é importante ter em conta que não basta somente o descolonizado libertar-se da presença colonial. A colonização, para se afirmar, tem sempre necessidade de criar e manter um clima psicológico favorável à sua justificação. É uma ciência de despersonalização do povo colonizado, subtil nos seus métodos e destinada a falsificar o psiquismo natural do povo colonizado.

O complexo do colonizado ainda é um fantasma permanente que se manifesta pelo uso do capacete, dos óculos de sol, símbolos da civilização ocidental.

  “Os nossos livros escolares das escolas coloniais levavam-nos a aprender a guerra dos gauleses, a vida de Joana d’Arc ou de Napoleão, a lista das diferentes regiões francesas, os poemas de Lamartine ou o teatro de Molière, como se África nunca tivesse tido história, passado, existência geográfica, vida cultura… Os nossos alunos eram apreciados devido à sua aptidão para esta política de assimilação cultural integral.

 O colonialismo, através das suas diversas manifestações, gabava-se de ter ensinado a nossa elite, nas escolas, as ciências, a técnica, a mecânica ou a electricidade, e a influenciar muitos dos nossos intelectuais. Como se fossem proprietários destes conhecimentos universais, pois eles são os mesmos, quando se fala em práticas cirúrgicas, em Londres, Praga, Belgrado ou Bordéus; os processos de cálculo do volume de um corpo são idênticos em Nova Iorque, Budapeste ou Berlim; e o Princípio de Arquimedes é idêntico na China ou nos Países Baixos; não há uma química russa nem uma química japonesa, há a química.

Na Guiné criámos a nossa própria escola de administração exactamente para contrariar este estado de inferioridade que marca os programas e a natureza do ensino colonial. As potências coloniais e a necessidade de homens que produzissem, que criassem, mão-de-obra qualificada: para cortar madeira, agricultores eficientes, trabalhadores para as poderosas companhias coloniais; e igualmente era também necessário travar as grandes endemias que ameacem as populações, que possam reduzir a mão-de-obra, e assim os poderes coloniais criaram corpos de médicos africanos com a determinação de fazer um corpo subalterno. 

Assim, no plano do conhecimento puro, no plano dos conhecimentos universais, o ensino dispensado em África era voluntariamente inferior e limitado às disciplinas que permitem uma melhor exploração das populações. Por outro lado, o ensino primário e secundário visava constantemente a despersonalização e a dependência cultural. É preciso denunciar este falso sentimentalismo que consiste em acreditar que somos devedores ao aporte de uma cultura imposta em detrimento da nossa. É preciso abordar o problema objectivamente. Quantos dos nossos jovens estudantes fizeram, sem disso darem conta, o processo da cultura africana submetendo-se à cultura da potência colonial? 

A cultura é a maneira como uma dada sociedade dirige e utiliza os recursos do seu pensamento. Fomos levados a aprender o nome de intérpretes eminentes do colonizador, perdemos as referências tradicionais da nossa cultura. Quantos dos nossos jovens estudantes citam Bossuet ignorando a vida de Alhaji Omar Tal? Quantos intelectuais africanos foram levados inconscientemente a desfazer-se das riquezas da nossa cultura para registar as concepções filosóficas de um Descartes ou de um Bergson?”

(continua)

Sékou Touré
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Nota do editor:

Último poste da série de 2 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21603: Historiografia da presença portuguesa em África (241): Um olhar sobre a Guiné, estávamos em 1905, por Alfredo Loureiro da Fonseca, no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21624: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (4): Da Lapónia sueca com... humor (José Belo)



Suécia > Lapónia > O corvo e a garrafa de vodca... (Foto enviada por J. Belo) 

[Em Portugal, também é conhecida como gralha conzenta ou gralha de capuz, corvus cornix, mas não integra a Lista Sistemática das Aves de Portugal Continental]


José Belo


1. Mensagem de José Belo, ex-alf mil, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); cap inf ref, jurista, autor da série "Da Suécia com Saudade"; vive na Suécia  há mais de 4 décadas; régulo da Tabanca da Lapónia (a única tabanca de um homem só, em todas as Tabancas Federadas na Tabanca Grande); tem mais de  180 referências no nosso blogue; membro da nossa Tabanca Grande desde 8 de março de 2009]


Data - 08/12/2020, 21:08

Assunto - Humor em tempos difíceis

Com este, em todos os aspectos, típico corvo da Lapónia Sueca,  os Votos de um Feliz Natal e Bom Novo Ano!

J.Belo

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21623: Parabéns a você (1903): Amaro Samúdio, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 3477 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21610: Parabéns a você (1902): José Pereira, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 5 (Guiné, 1966/68) e Manuel Carvalho, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 2366 (Guiné, 1968/70)

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21622: In Memoriam (376): Raul Albino (1945-2020): recordando as peripécias da formação e partida da CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851, com menos duas baixas de vulto, à chegada a Bissau




Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > Da esquerda para a direita, o primeiro é o Raul Albino, o segundo é o Francisco [Henriques da] Silva e a seguir o Medeiros Ferreira. Só falta nesta fotografia de grupo o Beja Santos. Também aqui falta o Comandante da Companhia, Capitão Vargas Cardoso.  O Medeiros Ferreira iria desertar antes do embarque para o CTIG; o Beja Santos iria, em rendição individual, comandar o Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70).

Foto (e legenda): © Raul Albino (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Em memória de um camarada e amigo, um histórico da nossa Tabanca Grande,  que nos deixa, precocemente, o Raul Albino (1945-2020) (*)...

Para avivar e honrar  a sua memória, não podíamos deixar de voltar a reproduzir aqui este excerto da História da CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851, história essa publicada por ele,  no nosso blogue, pelo menos em dezoito postes,  entre 2006 e 2010 (**). 

Em papel, ele organizou e publicou dois volumes com a história dos "Lynces de Có", o segundo dos quais,  em 2008, com a participação especial de Vargas Cardoso (ex-comandante da companhia) e do João Bonifácio, que emigrou para o Canadá (ex-fur mil SAM). E ainda com a coordenação fotográfica do Maurício Esparteiro (ex-1º cabo, o talentoso fotógrafo da companhia). 

Desse segundo volume, com excelente execução gráfica, possuímos uma cópia, que o Raul nos oferecera em tempos.  No prefácio, o antigo comandante, cor inf ref Vargas Cardoso,  fez um grande elogio ao Raul Albino justamente pela sua capacidade de  manter vivo, até então, o espírito da CCAÇ 2402, os "Lynces de Có". Nesse II volume estão documentados os 10 primeiros convívios anuais do pessoal, entre 1982 e 2007.
 

História da CCAÇ 2402 > Uma cruz pesada para o alf mil at inf MA Raul Albino, logo no início da comissão, com duas baixas de vulto, as de Beja Santos e Medeiros Ferreira

por Raul Albino (2006)


Partida para a Guiné


A Companhia de Caçadores 2402 do Batalhão de Caçadores 2851 formou-se no Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora.

Embarcou no paquete Uíge a 24 de Julho de 1968, com destino à Guiné. O BCAÇ 2851 (Mansabá e Galomaro, 1968/70]  foi acompanhado na viagem pelo BCAÇ 2852 [, Bambadinca, 1968/70].

Achei imensa graça a esta poesia popular, sentida, do soldado António Maria Veríssimo, militar da nossa companhia, retirada do seu livro de poesia Diversos.


Uíge! Volta para a terra,
Muda de rota, de direcção,
Não nos leves para a guerra.

Por favor! Pára p’ra pensar,
Não corras tanto,
Navega mais devagar.

Somos crianças, que vais deixar
Na guerra do Ultramar.
Porque não queres a rota mudar ?

Uíge! Não sigas p’rá guerra,
Muda de direcção! Muda de rota!
Volta p’rá nossa terra.


A M Veríssimo


[Formação da Companhia]

Mas voltemos um pouco atrás, mais propriamente à altura em que a companhia se formava na Amadora, comandada pelo então Capitão Vargas Cardoso.

Estive inicialmente incluído na formação, em Évora, de uma companhia independente com destino a Timor. A minha felicidade era imensa, como podem calcular. O quartel de preparação da companhia era o RI 16, aquartelamento que na altura mais parecia um museu militar em decadência. Não possuía instalações suficientes, pelo que os oficiais eram convidados a procurar alojamento no exterior. A alimentação também era no exterior, salvo erro, numa unidade de artilharia, que não recordo o nome.

Do que me recordo bem – além da simpatia para connosco das raparigas que estudavam em Évora – era do parque de obstáculos para o treino dos militares:

(i) A Ponte interrompida estava tão interrompida pela podridão das madeiras, que foi considerada vedada ao trânsito;

(ii) A Vala estava seca, o que não seria de estranhar nos tempos actuais com as temperaturas elevadíssimas que temos, mas naquela época só se tinha alguma rotura e como os engenheiros tinham ido para a guerra, as valas tinham virado alfobres, com alguma terra no fundo e ervas a crescer;

(iii) As Paliçadas estavam decadentes, com a madeira apodrecida, não aconselhando a sua utilização sem um seguro contra todos os riscos;

(iv) O Pórtico dava graça de tão baixo que era, parecendo ter-se enterrado no chão com o tempo, mas mantendo-se gloriosamente de pé, com as cordas puídas pendentes;

(v) Lá nos entretínhamos a saltar o Muro e mais algumas brincadeiras. Mesmo o muro, devido à idade avançada, a altura mais alta (1ª), parecia a intermédia (2ª) e a intermédia, devido ao desgaste, estava quase alinhada com a baixa (3ª). Um paraíso portanto. E como eu gostava de lá estar …

Mas foi sol de pouca dura. Ao fim de cerca de três semanas de exercícios, chega uma ordem de dissolução da companhia e redistribuição dos militares. Para mim saiu-me na rifa a rendição individual de um aspirante de uma companhia em preparação na Amadora que iria seguir para a Guiné, a CCAÇ 2402.

Qual pára-quedista, fui cair no meio de um barril de pólvora, que outro nome não se pode dar à composição do quadro de oficiais da companhia em formação. Inicialmente o quadro de oficiais era constituído pelos membros abaixo indicados e eu vi-os, na altura, da seguinte forma:

(i) Capitão Vargas Cardoso

Militar de carreira, de perfil autoritário, muito organizado, com tendência para controlar tudo e todos. Gostava de ser considerado como um pai para todos os seus militares;

(ii) Aspirante Francisco Silva

Formação académica no sector das Letras, politizado tanto quanto a vida académica o permitia, parecia ser um militar apostado em cumprir a sua comissão sem hostilizar ninguém. Para melhor o identificar, ele foi, há poucos anos atrás, Embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, além de outros cargos diplomáticos;

(iii) Aspirante Medeiros Ferreira

Formação académica no sector das Letras, altamente politizado, parecia querer levar a comissão até ao fim, mas, se assim era, depressa compreendeu que essa pretensão não era fácil de concretizar. Creio que todos se recordam dele, foi Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal;

(iv) Aspirante Beja Santos

Também oriundo do sector das Letras, politizado, este elemento dispensa apresentação, pois todos o conhecem, pelo menos, como um dos nossos tertulianos mais versáteis na arte de bem escrever, como o Tigre de Missirá, ou pela sua cruzada em defesa do consumidor;

(v) Aspirante Raul Albino

Resto eu, com formação Contabilística e não politizado. Esta minha formação permitiu-me ser inicialmente seleccionado para o CSM [, Curso de Sargentos Milicianos], a especialidade de Contabilidade e Pagadoria, o que me tornou no mais feliz dos militares ao cimo da terra. 

Mais uma vez a sorte me foi madrasta, pois acabei – não sei como – por ser reclassificado para o COM [, Curso de Oficiais Milicianos], nas especialidades de Atirador Especial e Minas e Armadilhas. Será que viram em mim a capacidade de disparar números e armadilhar escritas?

Viria a crescer posteriormente com a Informática, ao longo de 30 anos na IBM, na especialização de grandes e médios sistemas. Os micro sistemas têm sido para mim um hóbi de velho, que tem a virtude de me manter afectiva e minimamente ligado aos tempos do pioneirismo informático da minha juventude.

– Mas – dirão vocês – onde está o barril de pólvora?

Pois, o barril consistia no clima explosivo que se tinha criado no relacionamento entre o Capitão e os seus Aspirantes.

Quando eu chego ao grupo, vejo o Capitão preocupado com a circunstância de levar para a Guiné a dupla Medeiros Ferreira/Beja Santos, sobre os quais não conseguia ter o controlo pretendido e com a perspectiva do relacionamento vir a degradar-se ainda mais com o passar do tempo.

Quanto ao Francisco Silva, não o vi preocupado em sua relação, talvez pensando que ele seria mais fácil de controlar. Algum tempo após a minha chegada, confidencia-me ele (por estas palavras ou semelhantes):

- Sabes? Creio que temos letrados a mais na companhia! – ao que eu lhe retorqui:

- Bem, para compensar, agora tem-me a mim que não sou de Letras, sou de Números!

Depressa me apercebi ao longo desta conversa, por sinal bastante infeliz, que não era mais que uma tentativa de aliciamento da minha pessoa para a sua causa. Tentativa semelhante ter-me-á feito o Medeiros Ferreira. Tentativas inúteis, porque eu era um indivíduo convictamente independente, avesso a alinhamentos e não politizado. Além disto era ingénuo, porque julgava que me podia manter neutral, com o equilíbrio existente a manter-se ao longo da comissão.

Ainda hoje uma dúvida me afecta a alma. Terá a minha resistência a alinhamentos, – comunicada ao Medeiros Ferreira – influenciado de algum modo o desenrolar dos acontecimentos que se seguiram no seio do grupo?

Duas a três semanas antes da partida da companhia, eu era enviado com um sargento, em avião militar, para a Guiné, com a missão de preparar a chegada da companhia em termos de material e equipamento. O que se terá passado durante esse período de tempo, escapou-me, na altura, ao meu conhecimento pessoal, razão pelo qual não o abordo aqui (...).

A minha surpresa não teve descrição, ao constatar que a companhia chegava à Guiné com duas baixas no quadro de Oficiais: o Medeiros Ferreira (**) e o Beja Santos. 

O capitão tinha ganho a primeira batalha (pessoal), mesmo antes de chegar ao teatro de guerra. Senti a minha cruz começar a ficar mais pesada...

Raul Albino

[Revisão e fixação de texto para efeitos de edição neste blogue:  LG]
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Notas do editor:



(**) Vd. postes de:


19 de setembro de  2010 Guiné 63/74 - P7010: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (18): Terceiro ataque ao Olossato

(***) José Medeiros Ferreira (Ponta Delgada, 1942 - Lisboa, 2014) destacou-se na crise estudantil de 1962, foi desertor da guerra colonial (1968), vuiveu na Suiça, onde se licenciou em História, pela Universidade de Genebra (1972). Depois do 25 de abril,   foi eleito deputado à Assembleia Constituinte (1975), pelo Partido Socialista, e exerceu o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional (1976–1978), chefido por Mário Soares. Foi professor universitário (Faculdade de Ciências Sociais, Universidade NOVA de Lisboa).

Guiné 61/74 - P21621: Pensamento do dia (25): Grafito, logo existo... Ou a pandemia de Covid, romântica "ma non troppo"... Afinal, os grafiteiros das nossas cidades são uns meninos de coro quando comparados com alguns que se mudaram para as redes sociais...como o Facebook e o Twitter, diz o Jimmy Wales, o criador da Wikipedia


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados.[Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Não sou caçador de grafitos...nem aprecio a generalidade dos nossos grafiteiros (, embora possamos distinguir entre grafitos e pichagens)... 

Há um em cada cem que tem algo para comunicar aos outros, e tem talento literário ou pictórico. Na maior dos casos, as pichagens são atos solitários ou lutas entre indivíduos ou bandos rivais, com ou sem conotação política.

Sobre os restantes 99, não me pronuncio, não comento. Há sociólogos e antropólogos que se dedicam ao seu estudo e à importância da "arte urbana" como forma de contestação social, participação direta e democratização dos espaços públicos... Enfim, faço uma distinção entre "arte urbana" e "pichagens"...

Se calhar não passam de gritos contra a solidão: "Grafito, logo existo!"...

Não gosto da poluição estética que os grafiteiros provocam nas nossas cidades... Além disso, canibalizam-se uns aos outros, na fossanguice de conquistar um metro quadrado de fama para os rabiscos e tags indecifráveis (a não ser para os iniciados). 

Como não gosto da poluição estética provocada pelos painés e cartazes de  publicidade comercial (que apesar de tudo tem regras de afixação). 

Como não gosto da distribuição selvagem dos cartazes e outros meios de propaganda política, em especial nos períodos eleitorais...

São, a par do trânsito automóvel,  e dos guetos (dos ricos e dos pobres), algumas das razões por que  as nossas cidades se tornaram num pesadelo, que nem sequer é climatizado, se tivermos em conta o desastre urbanístico dos últimos 100 anos ( incluindo os quase 50 anos de poder autárquico democrático).

Mas também não gosto das cidades completamente assépticas, limpas, sem sons nem cheiros... Muito menos sem bandos de crianças... Lisboa estava à beira da "gentrificação", na véspera da pandemia da Covid-19, com os lisboetas a serem expulsos da sua cidade... 

Não queremos uma cidade-museu, apenas para fruição estética ou usufruto turístico, asséptica, sem merda, sem lixo... Para isso, basta-nos o céu (ou o silêncio do cemitério) quando morrermos... 

Dito isto, aprecio alguma da "arte de rua" (ou "arte urbana")  que se faz nas nossas vilas e cidades... Dizem até que Lisboa é hoje um dos grandes centros mundiais de produção de "arte urbana"... Não sei, nunca dei a volta ao mundo para poder comparar... 

De qualquer modo,  não aprovo a "vandalização" dos nossos equipamentos sociais, monumentos, estátuas, paredes, muros, meios de transporte, sinalética rodoviária, portas, portões, etc. Há a contestação social, a ação política, o vandalismo e  a delinquência, se bem que a linha de fronteira nem sempre seja fácil de delimitar ao longo da história... 

Antes do 25 de Abril, o Bordalo II ou o Alexandre Farto (mais conhecido como Vhils) seriam presos por danificar a propriedade (pública ou privada). Ou até mais: por serem subversivos... Hoje dizem que são dois génios... e eu também acho. Mas começaram por ser "grafiteiros".... 

A pichagem também já se fazia, clandestinamente, como forma de protesto político, antes do 25 de Abril... Mas hoje tem menos riscos: na loja do chinés, há "sprays" de todas as cores, feitios e preços... O "spray" pode ser uma arma, como é o teclado do computador ou a caneta ou o pincel...

Dito isto, confesso que de vez em quando não resisto a "tirar um chapa" aos trabalhos dos nosso grafiteiros... Estarei com isso a "legitimar" e até a "glorificar", enquanto cidadão, os grafitos e as pichagens ?

O ser humano sempre foi grafiteiro, desde os nossos antepassados, podendo recuarmos até à arte rupestre do paleolítico; em Foz Coa, por exemplo, perdemos uma barragem, ganhámos um parque de arte rupestre, dos mais importantes do mundo... As árvores dos nossos jardins também era "grafitadas" pelos nossos pais e avós... Até nas rochas da praia, encontramos frases de amor, essas ao menos inocentes, ingénuas, inofensivas, gravadas a canivete: "Amo-te"...

Os nossos braços, na Guiné, também era "grafitados", embora com pobre imaginação: as nossas tatuagens não passavam de expressões singelas como "amor de Mãe" ou "sangue, suor e lágrimas"...

Acho bem que haja espaços da cidade (prédios em ruina ou em vias de demolição...), públicos e privados, onde se possa praticar a "arte urbana" com as devidas autorizações (, dos proprietários, dos autarcas, etc:) e à luz do sol... Mas isso é outra história que não cabe aqui desenvolver.

Mas, afinal, ainda pior talvez que o "lixo urbano visual", produzido por muitos dos nossos grafiteiros, são as "redes sociais", com destaque para o Facebook e o Twitter, no entender de Jimmy Wales, criador da Wikipédia... 

Achei piada há dias a um desabafo do nosso Zé Manel Lopes: "Já pensei sair deste poço de esterco [, o Facebook,], apenas me seguraram alguns amigos, que vejo pouco"... [Zé, tens razão, e não basta um litro de creolina para limpar o esterco.]

Deixo, à apreciação e ao comentário dos nossos leitores, alguns exemplos, de "frases grafitadas" que nos interpelam, quando passamos na rua ou ou passeamos nos nossos jardins... Se calhar a maior parte de nós, passa por elas sem já lhes ligar qualquer atenção... Banalizaram-se, são apenas poluição visual, tal comos os insultos, as mentiras e as mensagens de ódio que lemos no Facekook...

Foto nº 1 > "A romantização da quarentena é previlégio (sic) de classe" [O autor queria dizer..."privilégio"];

Foto nº 2 > "Não uso sutiã, não preciso de nada que me sustente"

Foto nº 3 > "Aprender é um processo, primeiro apreendes, depois aprendes"

Estas três primeiras fotos são recentes (27 de novembro de 2020) e foram tiradas dentro (fotos nº 1 e nº 2) ou fora (foto nº 3) do Jardim da Cerca da Graça, inaugurado em meados de 2015...  As fotos nº 4  e nº 5 são um pouco mais antigas, tiradas em 21 de setembro de 2019, no Caracol da Graça, Mouraria.

Mas, para mim, o mais genial dos "grafitos" da nossa guerra, que já li, foi a frase inscrita na parede, algures num quartel em Mueda, no norte de Moçambique,  por volta de 1968/70 (Vd. foto a seguir). 

No fundo, é uma variante do aforismo, "homo lupus homini" (, o homem é o lobo do homem), atribuído ao dramaturgo romano Plauto (254-184 a.C.). Na Guiné, no nosso tempo,  ainda não havia lojas de chineses nem "sprays" à venda, ao preço da mancarra... 

Se houvesse, talvez as paredes dos nossos quartéis, numa bela manhã, pudessen aparecer todas grafitadas, como as ruas das nossas cidades, com alguns insultos bem apropriados a  certos  "senhores da guerra" (, de um lado e do outro)...




Moçambique > Mueda > CART 2369 (1968/70) > O 2º sargento miliciano Sérgio Neves (que também passou pela Guiné), irmão do nosso camarada Tino Neves, junto a um mural onde se lê: "Em Mueda, os cordeiros que entram, são lobos que saem. Adeus, checas". Recorde-se que o checa, em Moçambique, era o nosso pira ou periquito, na Guiné (ou maçarico, em Angola).

Foto: © Tino Neves (2007). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagen: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14389: Pensamento do dia (24): No Dia do Pai... Mensagem ao meu pai, esse homem duro e autoritário que morreu aos 59 anos para grande pena minha (Francisco Baptista)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21620: In Memoriam (375): Raul Albino (1945-2020), ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851 (Có, Mansabá e Olossato - 1968/70), e quadro técnico da IBM durante 30 anos

IN MEMORIAM

RAUL ALBINO (1945-2020)
RAUL ALBINO
Ex-Alf Mil MA da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851
, Mansabá e Olossato, 1968/70)


1. Às 02H36 da manhã de hoje, o nosso camarada Jaime Bonifácio deixava este comentário num poste de aniversário do malogrado Raul Albino:

Caro Luis,
Não sei se esta será a maneira mais prática, e também não tenho a data correta, mas na semana passada (hoje estamos a 6 de Dezembro de 2020) recebi aqui no Canadá a triste notícia do falecimento do ex-Alferes Miliciano Raul Albino que pertenceu a CCAÇ2402/BCAÇ 2851 - CTIG 1968/70.

Em meu nome pessoal envio as minha mais sinceras condolências a esposa Sra. D. Rolina e filhos.
Foi um amigo dos seus amigos e pela sua alma generosa merece descansar em paz.

Obrigado
João Bonifácio
Ex-Fur Mil do SAM
CCAÇ 2402/BCAÇ 2851
Guiné, 68/70



2. O editor de serviço, sabendo que o nosso camarada Rui Silva tinha os contactos do Raul Albino, telefonou-lhe para lhe pedir que confirmasse esta triste notícia.

Passados poucos minutos recebemos a confirmação da notícia vinda do Canadá.
Em contacto telefónico para casa do Raul, pela sua filha ficamos a saber que este nosso amigo tinha sido internado no hospital, na passada segunda-feira, dia 30 de Novembro, vindo a falecer na sexta, dia 4 de Dezembro.


A Tertúlia e os Editores do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, enviam as mais sentidas condolências à nossa amiga Rolina, esposa do Raul, (que entre 2009 e 2015 participou com o marido nos nossos Encontros Anuais), aos seus filhos e aos demais familiares.

O Raul estava connosco desde 17 de Setembro de 2006, tendo participado logo no nosso I Encontro Nacional, em Outubro do mesmo ano na Ameira.
Ameira, 06OUT2006 > I Encontro Anual do nosso Blogue > O Raul Albino é o primeiro à direita, mesmo atrás do nosso editor Luís Graça.
Monte Real, Palace Hotel, 18ABR2015 > X Encontro Anual do nosso Blogue > Raul Albino recebe da mão do nosso Editor Luís Graça o Certificado da sua 10.ª presença em Encontros Nacionais.
Monte Real, Palace Hotel , 4 de Junho de 2011 > VI Encontro Nacional da Tabanca Grande > Dois homens do Oio, o Raul Albino e o Rui Silva
Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > De pé e da esquerda para a direita, o primeiro é o Raul Albino, o segundo é o Francisco [Henriques da] Silva e a seguir o Medeiros Ferreira. Só falta nesta fotografia de grupo o Beja Santos. Também aqui falta o Comandante da Companhia, Capitão Vargas Cardoso.


3. Comentario adicional do nosso editor LG:

Carlos, é uma tristíssima notícia, a que nos dás. O Raul Albino foi logo, desde o nosso I Encontro Nacional, na Ameira, em 6/10/2006, um dos mais entusiásticos apoiantes do nosso blogue. Como sabes, ele era informático, trabalhou três dezenas de anos na IBM, era um histórico da IBM, e ele próprio fez um belíssima brochura com a história da sua unidade. Ele preocupava-se muito com o futuro, a segurança e o desenvolvimento do nosso blogue...

Recordo-me de já em 2011, em Monte Real, ele ter falado comigo sobre a necessidade de encontrar ou explorar novas soluções informáticas para um blogue como o nosso que tinha crescido demasiado, sobretudo a partir de 2008...Por uma razão ou outra, fomos adiando a criação de um grupo de trabalho onde ele próprio gostaria de participar... Entretanto, em 26 de abril 2018 recebemos dele a triste notícia de que já não poderia vir  mais vir aos nossos encontros:

(...) Amigo Vinhal,

A minha ausência nos dois anos anteriores tem uma explicação que vos devo comunicar, depois de uma presença regular de 10 anos seguidos.

Tinha de ser uma razão de peso, de saúde, evidentemente. Não é uma doença mortal, mas é uma doença incapacitante que me leva a alegria de viver e parece não ter solução médica, nem grande alivio para as dores. Estou a falar de problema da coluna vertebral com afetação do nervo ciático.

O médico operador não lhe quer tocar após ter analisado uma Ressonância Magnética. Como as medicações existentes não produzem qualquer efeito aceitável, o médico cirurgião nem me receitou qualquer medicação, porque os efeitos adversos são enormes, sem que causem alivio assinalável.

Já nem posso arriscar a conduzir o automóvel por distâncias superiores a 50 kms. Alguns dias as dores são toleráveis, mas não sei quais são, só sei que são raros. Dizem que, por vezes, o tempo resolve o assunto. Se isso algum dia acontecer, solicitarei a alguém que me dê uma boleia, sempre sujeita a cancelamento muito perto da viagem.

Que o vosso convívio corra pelo melhor. O relógio devia retroceder, mas sabemos que isso é impossível e a vida está-nos a abandonar aos poucos, afetando o quorum dos convívios. Um grande abraço para ti, para a Dina, para o Luís Graça e restantes tabanqueiros. Passem bem.

Raul Albino (...)

Lamentámos a sua ausência, nos nossos convívios, mas sempre na esperança de uma possível recuperação. O casal Albino e o casal Vinhal tinham, de resto,  uma bela relação de amizade, desenvolvida e fortalecida a partir dos nossos encontros anuais ate´2016.
 
A ausência do Raul agora é mesmo definitiva, com a sua morte física. Mas ele será sempre lembrado pro nós, enquanto estivermos vivos, aqui sentados à  sombra do nosso poilão.

Nos próximos dias vamos rever alguns dos postes que nos deixou com a sua história pessoal  e a história dos seus camaradas da CCAÇ 2402. Deixo aqui a minha solidarieade na dor à sua família e aos seus amigos e camaradas mais próximos. Quando um de nós morre, todos morremos um pouco. 

Até sempre, camarada e amigo Raul!

Guiné 61/74 - P21619: Notas de leitura (1328): “Socialismo na Guiné-Bissau: problemas e contradições no PAIGC desde a independência”, na Revista Internacional de Estudos Africanos, N.º 1, Janeiro-Junho 1984 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2018:

Queridos amigos, 

Desconhecia a publicação (terá tido vida efémera) e li com agrado este artigo de Patrick Chabal [1951 - 2014] onde ele faz a súmula das principais teses com que trabalhou para o seu doutoramento em Cambridge. Impressiona a largueza da análise e a precisão da síntese, o cientista começa por fazer o chamamento dos muitos créditos auferidos pelo PAIGC pelo seu papel como movimento revolucionário e disserta sem habilidades sobre os porquês do falhanço da via socialista na Guiné-Bissau, em total dissonância com a linha de Cabral, os governantes do PAIGC cometeram todos os erros que Cabral previra, e com o falhanço económico encontraram os necessários bodes expiatórios na fratura política. 

Tudo preto no branco, escrito com rigor e numa linguagem viva e desenvolta.

Um abraço do
Mário



Um artigo de Patrick Chabal sobre o socialismo na Guiné-Bissau, 1984

Beja Santos

Quando está a preparar a sua tese de doutoramento sobre o título “Amílcar Cabral as Revolutionary Leader”, apresentada na Universidade de Cambridge, Patrick Chabal procede a uma súmula dos principais assuntos que há a abordar na sua investigação, publica-a sob a forma de artigo denominando-o “Socialismo na Guiné-Bissau: problemas e contradições no PAIGC desde a independência” será dado à estampa na Revista Internacional de Estudos Africanos, N.º 1, Janeiro-Junho 1984.

Quando Chabal visitou a Guiné-Bissau e Cabo-Verde em 1979, sente que na Guiné já se vive uma crise profunda, o país endivida-se a olhos vistos, o descontentamento é indisfarçável, tão indisfarçável como a orfandade de Cabral, os seus continuadores são figuras menores. 

De tudo quanto vê, procura em artigo traçar as linhas gerais para uma discussão aprofundada do socialismo na Guiné-Bissau, começa por analisar o que foi a luta armada, depois a natureza do Estado pós-colonial e mais adiante expõe o significado e as implicações do socialismo na Guiné-Bissau.

Enuncia em primeiro lugar as razões pelas quais o PAIGC foi um movimento nacionalista lusófono que ganhou renome mundial: pela forma como lutou, pelo esforço demonstrado na tentativa de reconstrução política, social e económica nas áreas onde tinha desempenho proeminente; pela condução discreta e autónoma como o líder do PAIGC obtinha apoios no chamado bloco socialista e no mundo ocidental e como tivera sucesso na mobilização das populações rurais intentando mobilizá-las para a atividade política a par do esforço na luta armada. 

Chabal reconhece que o processo de guerra nacionalista fora caldeando o PAIGC para uma organização política tão mobilizadora como a ação militar. O seu esforço de impulsionar uma coesão interétnica, Cabral conseguiu que o PAIGC se mantivesse flexível para com os quadros militares a serem premiados na hierarquia; e observa que Cabral se absteve, tanto quanto possível,  de utilizar uma fraseologia socialista ortodoxa, apoiava-se quase exclusivamente na ideologia pragmática e valorizava a procura de soluções para os problemas sociais, económicos e políticos. 

Quando desapareceu da cena política, em janeiro de 1973, deixara o PAIGC com ideologia e desenvolvida uma notada trama diplomática que excedia de longe a importância da Guiné-Bissau como país. Fora sempre o dínamo da CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Africanas, recebia armamento dos soviéticos, mantinha boas relações com a China e tornara público que o PAIGC aderira a uma política muito rigorosa de não alinhamento, Holanda, Escandinávia e o Conselho Mundial das Igrejas foram indispensáveis para o fácil reconhecimento diplomático da Guiné-Bissau antes e depois do 25 de abril.

O Estado pós-colonial nasceu de visíveis contradições: o PAIGC ambicionava expandir a todo o país as estruturas políticas que trazia da luta armada e esbarrou logo com a macrocefalia de Bissau, não dispunha de qualquer experiência de domínio de centros urbanos e não estava clarificada a distinção entre o partido e o Estado, 

Cabral tinha antevisto uma “ideologia socialista indígena” que em muito excedia o PAIGC, era a janela de oportunidade para manter atuantes as populações agrícolas de todo o país, uma parte determinante da Guiné nunca se identificara com o PAIGC, a esperança depositada era num sistema político instituído como poder popular. Isso nunca veio a acontecer, a tal pequena burguesia que se suicidaria no altar da democracia revolucionária não desistiu de abancar prontamente na orgânica estatal. Em Bissau concentrou-se o poder político, a área de decisão e sobretudo a área de indecisão: como incrementar a agricultura e implementar um modelo industrial. E é no novelo destas contradições que começa a ganhar força a extrema fragilidade da integração política da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.

Como observa Chabal, esta política de unidade fora exclusivamente congeminada por Cabral, não há qualquer documento histórico de que este propósito unitário alguma vez tivesse feito o seu caminho, a própria intelectualidade guineense e cabo-verdiana eram contrárias ou, quanto muito, mantinham um estado de ceticismo profundo. 

Lançados em empreendimentos de industrialização que ruíram prontamente pela base, deixando o país financeiramente encalacrado, acirradas as tensões, logo que procurou o inimigo dentro da cidadela, régulos, funcionários leais aos portugueses e a tropa dos Comandos, ia crescendo a atmosfera de intimidação e terror, faltava o arroz, não se estabelecia a ligação entre a cidade e o campo, os projetos constitucionais de Cabo-Verde e da Guiné foram a faísca que espoletou o golpe de Estado.

Até esse golpe de Estado, o PAIGC não obteve resposta, não definiu uma linha clara para um projeto de desenvolvimento económico que acelerasse uma certa autossuficiência alimentar, a classe política vivia ofuscada pelo tal modelo industrial que se lhe afigurava como o farol do progresso. Não houve programa de modernização agrária, não se criou um sistema cooperativo, os Armazéns do Povo tornaram-se a prazo num pesadelo e mais uma fonte de descontentamento. 

1980, o ano do golpe de Estado, devido à incapacidade na prossecução de uma política agrária decente, saldou-se em mais de 50% dos alimentos essenciais a serem importados. Chabal passa em revista esses projetos falhados, desde os automóveis Citroen, passando pelo projeto da fábrica de açúcar do Gambiel, a fábrica de frutos e enlatados de Bolama e o complexo agroindustrial do Cumeré.

O autor debruça-se sobre o aparelho de Estado do PAIGC pós-Cabral. Após a independência, era numeroso o grupo que apostava na industrialização por ser a via mais eficaz para a transformação socialista. Aquela vanguarda não ouviu os representantes dos seus apoiantes rurais, começou a agir fora da realidade, divorciou-se dos camponeses, não conseguiu uma fórmula de coesão entre Bissau e as zonas rurais. Assim se deu o descrédito desse modelo de desenvolvimento socialista que se queria sobrepor aos interesses rurais específicos. 

Chabal reflete sobre o caminho que Cabral intentara seguir dentro dos parâmetros de um sistema político onde houvesse uma elevada coesão. Cabral não tinha ilusões de que o futuro económico do pequeno país dependia de um trabalho penoso, uma vida extremamente difícil na ausência de matérias-primas e de riquezas de subsolo. 

Como se estivesse a denunciar os erros da governação de Luís Cabral, Chabal transcreve uma passagem de uma entrevista que Basil Davidson fizera a Cabral, em que este relevara a sua dedicação absoluta à causa do desenvolvimento e do bem-estar dos campos:

“A abordagem global que nós temos é que todas as decisões estruturais devem ser baseadas nas necessidades e condições dos nossos camponeses. […] Acima de tudo, nós queremos descentralizar tanto quanto for possível. Essa é a razão por que estamos inclinados a pensar que Bissau não continuará a ser a nossa capital no sentido administrativo. […] Acerca da política económica depois da libertação, a prioridade estará no aumento da produção de alimentos. A agricultura está em primeiro lugar. Nós não temos ilusões: a Guiné é um país pequeno e comparativamente pobre. Continuaremos pequenos em tamanho e por um período longo continuaremos pobres”.

Esta era a “linha de Cabral” que não foi posta em prática.

Recorde-se que este artigo se confina a uma análise que vai desde a luta armada até ao golpe de Estado de 14 de novembro de 1980.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21596: Notas de leitura (1327): "A Caixa de Correio de Nossa Senhora", por António Marujo; Círculo de Leitores e Temas e Debates, Outubro de 2020 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21618: Facebook...ando (57): Confúcio e o confucionismo, ontem e hoje: visita ao templo de Pingyao, 2011 (António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74)





República Popular da China > 平遥 Pingyao  > 2011 > Templo de Confúcio


Texto (e fotos):  © António Graça de Abreu (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Com a devida vénia ao autor, nosso amigo e camarada,  reputado sinólogo, um texto muito interessante sobre o templo de Pingyao, dedicado a Confúcio.


António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1 (Teixeira Pinto, Mansoa, Cufar, 1972/74), autor de "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp), de que já publicámos no nosso bogue dezenas e dezenas de excertos; tem já perto de 270 referências no nosso blogue; é um incansável viajante, já deu duas voltas ao mundo em cruzeiro; escritor, divulgador da cultura e civilizaçao chinesas; tradutor, premiado, da poesia clássica chinesa,


Facebook > António Graça de Abreu > 24 de novembro às 16:38 


Pingyao, China quase esquecida, província de Shanxi, na minha leitura, no Verão de 2011. Chuva no templo de Confúcio, cidade de 平遥 Pingyao

Chovia desalmadamente. A água do Verão caía abundante e certinha sobre os velhos telhados deste espantoso burgo de Pingyao, vestusta cidadezinha com 2700 anos de História. A chuva encharcava tudo, molhava as gentes até ao tutano do osso. Eu tinha o dia inteiro para mim e saí de manhã cedo, de guarda-chuva lilás decorado com flores (uma útil mariquice que comprei lá mais a norte, em Datong!) e os sapatos grossos de sola de borracha transformados em provisórias galochas.

Há dez anos atrás, quando da primeira estada em Pingyao, o visita ao templo de Confúcio havia-me passado ao lado. Desta vez não falhei, mesmo com revoadas de água do céu a assustar o obtuso turista de passagem. A chuva foi uma coisa má que acabou por se transformar numa coisa boa, havia pouca gente nas ruas e o conjunto de pavilhões dedicados ao velho mestre era quase só para mim.

Os templos de Confúcio (551 a.C- 469 a.C) encontram-se por todas as cidades chinesas. Começaram a ser levantados na dinastia Han em honra do filósofo, educador e moralista, conselheiro de príncipes e poderosos cujos ensinamentos, raramente cumpridos, modelaram o modo de pensar da sociedade chinesa.

Os complexos arquitectónicos dedicados a Confúcio seguem aproximadamente o modelo de construção dos templos budistas e taoistas, ou seja, um vasto espaço rectangular quase sempre de acordo com um eixo norte/sul, com entrada e saída pelo lado menor do rectângulo e dentro, uma sucessão de pavilhões até chegarmos ao principal com uma grande estátua ou pintura representando Confúcio. 

Nos pequenos pavilhões situados nas alas laterais vemos caligrafias, estelas em pedra gravadas com citações do mestre e, muitas vezes, como acontece no templo de Pingyao, encontramos estátuas em tamanho natural dos 72 díscipulos de Confúcio. Nos melhores templos budistas e taoistas, nas alas laterais, existem também estátuas dos luohan, os discípulos de Buda ou das mais destacadas figuras do taoismo. Confúcio chegou a ser seguido por 3.000 pessoas mas apenas 72 discípulos, com nome e tudo, ficaram na história como os grandes divulgadores do confucionismo. 

De resto, desde a dinastia Han (sec. III a.C.), o número 72 passou a estar associado a um conjunto de excelentes realizações. Não é por acaso que a cidade de Pinyao, -- circundada por muralhas ao longo de 6,2 kms. --, tem 72 torres, o número mágico que traz felicidade e boa governação ao pequeno burgo. 

Não por acaso, uma cidade para ser considerada importante deve contar com 72 olarias para o fabrico de faiança e porcelana. Não por acaso algumas das mais famosas montanhas da China têm 72 picos. 
Não por acaso o ideal do bom mandarim de antanho era possuir 72 concubinas para encher de desiquilibrados prazeres o seu leito ora requentado, ora requintado e fresco.

Nas capitais de província, nos maiores centros urbanos da China Clássica, ao lado dos templos de Confúcio construíam-se grandes complexos onde centenas ou milhares de jovens, e até gente mais entrada na idade se submetia, por norma de dois em dois anos, aos exames imperiais. Constituídos por complicadas provas democraticamente abertas a todos, obrigavam os candidatos a elaborarem textos com contributos para o bom governo do império, a escrever poesia e tinham como tema principal a análise dos Quatro Livros e dos Cinco Clássicos, obras do grande cânone confuciano, algumas delas presumivelmente compiladas pelo próprio Confúcio, com algumas semelhanças, pelo menos na importância civilizacional dos textos, com os nossos Antigo e Novo Testamento. 

Uma vez vencidos os exames imperiais, o que não era tarefa fácil, os letrados iriam desempenhar funções no governo do império, seriam os mandarins do poder e do mando.

Em anexo ao templo de Pingyao, tal como em muitos outros existentes em grandes cidades da China, realizavam-se os exames para a ascensão ao mandarinato, mas os espaços dedicados a Confúcio tinham, e têm ainda nos nossos dias, uma função didáctica e de crença na potencial ajuda do velho mestre para a obtenção de um grau académico que possibilite uma vida melhor, com poder e desafogo económico. 

É vulgar ver hoje nos templos dedicados Confúcio mães ajoelhadas diante da gravura do mestre, solicitando-lhe que interceda e apoie, por exemplo, a entrada dos filhos numa universidade.

O templo, como toda a Pingyao histórica e monumental, sofreu grandes obras de restauro há dúzia e meia de anos atrás. Depois da tormenta e destruições selvagens dos “guardas vermelhos”, na desgraçada e inculta Revolução Cultural, em 1966/68, tudo foi refeito e melhorado, e na China basta passarem uns dez anos sobre as reconstruções de arquitectura antiga para voltarmos a sentir a ambiência e os cheiros dos séculos. 

E o templo é mesmo, antiquíssimo. Foi construído no início da dinastia Tang (618-907), sofreu grandes obras de ampliação e restauro no século XII, na dinastia Song (960-1279), período durante o qual uns tantos ilustres filósofos e mandarins como Zhu Xi e Wang Anshi fizeram revivescer a doutrina e os valores de Confúcio, e deram corpo à corrente neo-confucionista.

Chovia em Pingyao. Não reverenciei o mestre mas passeei-me pela cidade e pelo templo. Há algo em mim que faz com que, quanto melhor conheço Confúcio e a sua doutrina, me afaste cada vez mais da filosofia confuciana. Os princípios são bons, exaltar os ritos do passado, pretender a rectidão, a benevolência, a justiça, lutar pela grande harmonia entre todos os homens são ideais elevados cuja intenção é conduzir a sociedades mais humanas e mais justas. 

A questão é que os ideais confucianos na China Antiga, na China Clássica, na China de sempre, hoje e em todos os cem mil recantos do mundo, nunca são cumpridos, ou pior, os homens fingem que os cumprem ou que os querem cumprir mas apropriam-se oportunisticamente dos valores e da moral do mestre, jamais a põem em prática e usam-na para mascarar os mais aviltantes comportamentos.

Chovia em Pingyao. Passeei-me pelo templo, um sorriso triste e molhado entre mim e o velho Confúcio. Depois continuei viagem.


[Revisão, fixação de texto e título, para efeitos de publicação neste blogue: LG]

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