quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21943: (D)o outro lado do combate (65): a morte de Areolino Cruz (Bafatá, 1944-Cubucaré, 1965), professor do ensino básico no Cantanhez (Jorge Araújo)

Citação: Mikko Pyhälä (1970-1971), "Estudantes da escola Areolino Cruz",

(com a devida vénia)

 

 


Citação: Mikko Pyhälä (1970-1971), "Dormitório da escola Areolino Cruz",




O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo.


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE

A MORTE DE AREOLINO CRUZ OCORREU EM DEZEMBRO DE 1965, DURANTE A «OPERAÇÃO RESGATE» DA FORÇA AÉREA REALIZADA NA REGIÃO DE TOMBALI (CANTANHEZ)

- ERA PROFESSOR DO ENSINO PRIMÁRIO NA BASE DE CUBUCARÉ -

 

1. – INTRODUÇÃO


Promessa feita; promessa cumprida, conforme deixei expresso no P21000 (23.05.2020) - «PAIGC - Quem foi quem: Areolino Cruz, professor do ensino primário, que alegadamente terá perdido a vida ao tentar salvar os seus alunos durante um bombardeamento, em Cubucaré, em 17 de Fevereiro de 1964 (Cherno Baldé / Jorge Araújo)».(*)


De facto, a data acima não poderia estar correcta, fazendo fé em documentos rubricados pelo próprio Areolino Cruz, encontrados com datas posteriores, relativos ao desempenho da sua actividade de professor, em Cubucaré, razão para ter suscitado este "mistério".


Daí que, com a presente narrativa pretendemos esclarecer, em definitivo, este enigma, onde fazemos questão de cumprir o que havíamos prometido: (sic) "logo que saiba da verdadeira data e factos relacionados com a sua morte, faremos um texto com uma pequena biografia… para memória futura". (**)


Areolino Cruz, de nome completo: Areolino Lopes da Cruz Júnior, filho de Augusto Lopes da Cruz e de Domingas da Rocha Cruz, nasceu em 14 de Janeiro de 1944 (6.ª feira), em Bafatá. Morreu, como se infere da nossa investigação, em Cubucaré, na Região de Tombali (Cantanhez), entre 17 e 20 de Dezembro de 1965, de acordo com as circunstâncias relatadas no ponto 3 deste texto.


Eis, então, o que conseguimos apurar.


2. – DIVULGAÇÃO OFICIAL DA OCORRÊNCIA


A notícia da morte de Areolino Cruz foi divulgada no Boletim mensal «LIBERTAÇÃO», Órgão de informação oficial do PAIGC, edição n.º 62, Janeiro de 1966, classificado de "número especial". O texto que abaixo citamos foi retirado da página 11.

 



O CAMARADA AREOLINO CRUZ MORREU NO SEU POSTO


Atingido gravemente durante um assalto colonialista às regiões libertadas do sul, caiu no seu posto o camarada Areolino Cruz, responsável da Educação e do Estado Civil no Comité Regional de Catió.


O camarada Areolino, que teve perante o inimigo um comportamento exemplar, impondo-se a todos os companheiros pela sua coragem e pelo seu sacrifício, foi ferido quando tinha passado o momento mais crítico da batalha, morrendo poucos instantes depois.


Tendo feito estudos liceais em Bissau e Portugal, o camarada Areolino, que contava apenas 22 anos de idade [incompletos], participou, logo após a sua admissão no Partido, nas primeiras missões de reconhecimento no nordeste do país, integrado numa formação de guerrilha. Tendo beneficiado posteriormente de uma bolsa de estudos, o nosso camarada foi durante algum tempo estudante da Universidade de Leninegrado.

 

 


A morte do camarada Areolino Cruz é uma grande perda para a nossa luta. O nosso camarada, que compreendeu progressivamente a razão do nosso Partido, tornou-se num dos melhores e mais dinâmicos militantes do sul do país, onde a sua acção muito contribuiu para o desenvolvimento da instrução. O seu nome fica, de resto, estreitamente ligado à acção do nosso Partido nesse domínio, pois foi o camarada Areolino que fundou, em Cubucaré (Chão dos Nalus) a primeira escola do Partido.


O nome do camarada Areolino Cruz ficará registado, para sempre, na memória de todos nós, inspirando a nossa coragem e determinação e reforçando a nossa dedicação ao Partido e à gloriosa luta de libertação do nosso povo.

 




Citação: (1966), "Libertação", n.º 62, Ano 1966, Janeiro de 1966,

Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral - Vasco Cabral
 

Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44415 (com a devida vénia).


2.1 - CARTA DE CONDOLÊNCIAS ENVIADA POR LUÍS CABRAL A NINO VIEIRA, CMDT DA FRENTE SUL, EM 05JAN66


Luís Cabral (1939-2009), ao ser informado das diferentes ocorrências que envolveram a estrutura militar acantonada na região de Tombali (Cantanhez), e em substituição do Secretário-Geral, Amílcar Cabral (1924-1973), que à data se encontrava em Cuba, a fim de participar na «Primeira Conferência Tricontinental - Havana 1966», agendada para decorrer entre 3 e 15 de Janeiro, tomou a iniciativa de escrever uma carta a Nino Vieira, responsável pela Frente Sul, lamentando todas as más notícias, em particular as perdas humanas, onde, de entre elas, estava incluído o Areolino Cruz.


Do documento de duas páginas, citamos apenas os primeiros quatro parágrafos, precisamente aqueles que se relacionam com o presente objectivo.


Conacri, 5 de Janeiro de 1966 (4.ª feira)


Caro camarada NINO,


"Fazemos votos para que tu e os camaradas estejam gozando óptima saúde e prontos para darem mais um passo em frente na luta gloriosa pela libertação do nosso povo.


Lamentamos profundamente a morte dos camaradas e elementos do povo, durante os bombardeamentos que vocês sofreram na semana de 16 a 23 de Dezembro [p.p.]. Era de esperar que esta teria de ser forçosamente a reacção do inimigo, depois das perdas que sofreu durante a época das chuvas, em todos os pontos da nossa terra.


Estamos certos de que os bombardeamentos que vocês fizeram aos quarteis inimigos tiveram resultados positivos e que com os meios de que dispomos agora, vocês poderão intensificar essa acção, de grande interesse para a insegurança e desmoralização do inimigo.

Os camaradas de Cubisseco têm de reforçar o cerco ao inimigo e a vigilância para evitar que façam vitimas nos momentos de desespero." (…)

 


Citação: (1966), Sem Título, 
Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral

Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35063 (com a devida vénia).

 

3. – A «OPERAÇÃO RESGATE» DA FAP E OS SEUS FUNDAMENTOS

Como suporte documental, e bibliográfico, socorremo-nos do trabalho de investigação de José Matos. «A guerra das antiaéreas na Guiné (1965/1970), divulgado no P16968, cujo original está publicado na Revista Militar n.º 2601, de Outubro de 2018, citando, na íntegra, o texto que está relacionado com o histórico sobre este ponto:

 


Os primeiros ataques à antiaérea do PAIGC

Decisão:


A Força Aérea apercebe-se do problema em finais de 1965 e, rapidamente, o Comando da Zona Aérea de Cavo Verde e Guiné (ZACVG) lança uma operação de ataque para eliminar a ameaça. Em Dezembro de 1965, são mobilizados vários meios aéreos para a execução da «Operação Resgate». Dois aviões de patrulhamento marítimo P2V5 Neptune vindos da Ilha do Sal juntam-se, em Bissalanca, na Base Aérea n.º 12 (BA12), a um C-47 Dakota adaptado para bombardeamentos nocturnos, doze T-6G, um Dornier Do-27 e a um Alouette III.


A operação começa na noite de 17 de Dezembro de 1965 (6.ª feira), com o sobrevoo das posições da guerrilha na zona de Cafine pelo C-47 e o lançamento de granadas iluminantes. A guerrilha responde de imediato com fogo antiaéreo, sendo então bombardeada pelos P2V5 equipados com bombas de 750 libras (325 kg). Os bombardeamentos continuam ao longo da noite em mais três vagas de ataque e prolongam-se na noite de 19 de Dezembro (domingo), embora aí já sem resposta da guerrilha, tendo a operação terminado no dia seguinte (2.ª feira). Embora a reacção antiaérea tenha sido significativa, há apenas a registar, durante a operação, dois impactos em dois T-6G e um impacto num P2VC5, em ambos os casos sem consequências. (…)


4. – SÍNTESE BIOGRÁFICA DE AREOLINO CRUZ (19 / 22 ANOS)

       - FACTOS NARRADOS NO TEXTO OFICIAL


4.1 - EM 05JAN63 > INSCRITO NO ESTÁGIO DE JORNALISMO NO SENEGAL E BOLSA DE ESTUDOS PARA CURSAR MEDICINA


Dakar, 05 de Janeiro de 1963 (sábado)


Relatório sobre o trabalho do Bureau do PAIGC em Dakar, assinado por José E. Araújo

 



Citação: (1963), "Relatório sobre o trabalho do Bureau do PAIGC em Dakar", 
Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral

Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41403 (com a devida vénia).

 

4.2 - EM 10JUL63 > NA GUERRILHA COM NORBERTO ALVES (PIRADA)


 Pirada, 10 de Julho de 1963 (4.ª feira)

Caro [Pedro] Pires,


Saúde em primeiro lugar e acima de tudo. Nós vamos indo bem graças a Deus. O portador desta carta é um camarada que se encontra doente talvez por causa da frieza. Ele costuma ter dores na região lombar (?). É preciso tratá-lo bem para que ele possa voltar depressa porque é um elemento precioso para a nossa zona e é adjunto do nosso responsável. Ontem quando voltámos da sabotagem que fomos fazer em Pirada ele foi atacado fortemente por tal doença que só muito dificilmente pôde marchar em braços. Fomos obrigados a sair do mato essa noite e entregá-lo numa tabanca vizinha pois que chovia torrencialmente e ele não podia de modo nenhum estar exposto à intempérie… (P20994).

 


Citação: (1963), Sem Título, 
Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral

Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36865 (com a devida vénia).

 

4.3 - EM 30SET63 > COMO ESTUDANTE EM LENINGRADO - CHEGADA

Leningrado, 30 de Setembro de 1963 (2.ª feira)


Caro Luís [Cabral]


Faço votos ardentes que esta lhe encontre desfrutando duma óptima saúde, bem como todos os camaradas. Eu vou indo bem graças a Deus, após uma boa viagem. Começo por lhe apresentar as minhas desculpas por não ter escrito há mais tempo a dar notícias mas devo-lhe dizer que estive durante uma semana em Moscovo, sem saber o enderenço que havia de enviar, uma vez que me encontrava provisoriamente sem saber o tempo limite. Actualmente como já deve ter notado, encontro-me em Leninegrado [São Petersburgo após 1991] na Faculdade Preparatória de Línguas. (…)

 


Citação: (1963), Sem Título, 
Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral
 

Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36462 (com a devida vénia).


4.4 - EM 17JUN64 > COM "GUIA DE MARCHA" PARA A "ZONA 11" A/C DE NINO VIEIRA


Conacri, 17 de Junho de 1964


"Vai o camarada Areolino Cruz apresentar-se ao camarada João Bernardino Vieira (Nino) na zona 11, para ser integrado nos serviços de instrução (ensino) no chão dos Nalus. O camarada Areolindo Cruz, que era estudante e tomou parte activa no complô contra o Partido, está sujeito a uma sanção suspensa de expulsão do Partido. Por isso, não tem quaisquer direitos de membro do Partido e deve ser rigorosamente controlado pelos responsáveis. Deve ser enviado um relatório mensal sobre a sua conduta, ao Secretário-Geral."

 


Citação: (1964), "Guia de Marcha", 
Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, 

Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36462 (com a devida vénia).


4.5 - EM 22JUL64 > COMO PROFESSOR DO ENSINO PRIMÁRIO NA BASE DE CUBUCARÉ


Zona Sul [Cubucaré?], 22 de Julho de 1964 (4.ª feira)


Requisição de material escolar rubricada por Areolino Cruz

 


Citação: (1964), "Requisição de material de ensino", 
Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral,  

Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40014 (com a devida vénia).

Sem mais…

► Fontes consultadas:

(1) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07177.062. Título: Libertação. Número: 62. Ano: 1966. Data: Janeiro de 1966. Directores: Amílcar Cabral, Luís Cabral, Vasco Cabral e Dulce Almada. Observações: Órgão do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabra – Vasco Cabral. Tipo Documental: IMPRENSA.


 

Ø  (2) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 04618.082.008. Título: Lamenta a morte de camaradas e elementos do povo durante os bombardeamentos. Remetente: Luís Cabral. Destinatário: Nino Vieira. Data: Quarta, 5 de Janeiro de 1966. Observações: Doc incluído no dossier intitulado correspondência dactilografada (de Amílcar Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral para os Responsáveis da Zona Sul e Leste). Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.


 

Ø  (3) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07075.147.014. Assunto: Relatório sobre o trabalho do Bureau do PAIGC em Dakar. Assunto: Relatório assinado por José Eduardo Araújo, remetido ao Secretariado Geral em Conacri, sobre o trabalho do Bureau de Dakar. Contactos oficiais, tentativa de conseguir audiências junto das autoridades do Senegal. Publicações do Bureau, nota de imprensa, discursos de Amílcar Cabral, declaração de Dezembro de 1960, dois últimos comunicados, etc.; vinda da Dulce [Almada] para o Boletim e programa de rádio. Enfermeiro de Ziguinchor. Inscrição de Areolino da Cruz no estágio de jornalismo. Questões dos ex-militares do exército colonialista. Oportunistas, regresso do Labery, Có e Mendy em Marselha; Barre, "Union des Forces Progressistes Capverdiennes". Lourenço [Gomes], requisição de fundos para missão. José Eduardo Araújo, bolsa de estudos. Data: Sábado, 5 de Janeiro de 1963. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Relatórios XI 1961-1964. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.


 

Ø  (4) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 04611.061.015. Assunto: Informações sobre doença do portador da carta. Sabotagem em Pirada. Pedido de ajuda financeira para alimentos e munições. Borges, Bebiano, Konko. Remetente: Areolino Cruz, Kanfrandi Ká. Destinatário: Pedro Pires. Data: Quarta, 10 de Julho de 1963. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Correspondência manuscrita 1961-1964. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.


 

Ø  (5) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 04619.102.034. Remetente: Areolino Lopes da Cruz. Destinatário: Luís [Cabral]. Data: Segunda, 30 de Setembro de 1963. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Correspondência 2.º semestre 1963 (interna PAIGC). Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.


 

Ø  (6) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 04606.045.074. Título: Guia de Marcha. Assunto: Guia assinada por Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, fazendo seguir Areolino Cruz para se apresentar a João Bernardo Vieira (Nino), na Zona 11. Data: Quarta, 17 de Junho de 1964. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Cartas e textos dactilografados enviados por Amílcar Cabral 1960-1967. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.


 

Ø  (7) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07065.084.016. Título: Requisição de material de ensino. Assunto. Requisição de material de ensino, assinada por Areolino Cruz, para a zona Sul. Data: Quarta, 22 de Julho de 1964. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Material militar 1964-1965. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.

 

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

 

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

08Fev2021
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Guiné 61/74 - P21942: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (8): O valor da seringa

1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos hoje a última estória desta série enviada a 7 de Fevereiro de 2021 ao nosso Blogue.


8 - O VALOR DA SERINGA

Faltava sempre alguma coisa, na hora da rendição, fossem os atacadores de umas botas, o testo de uma panela, uma cavilha da G3, ou até a culatra de um obus. Quando havia um ataque a um aquartelamento era relativamente fácil, no respetivo auto, incluir a perda de parte de um produto, de um elemento de um qualquer equipamento ou mesmo considerar a sua destruição integral. Na tropa chamava-se a isso o desenrascanço, umas vezes seria uma forma expedita de alguém se livrar da injustiça de pagar por algo de que não tinha sido responsável, mas, nalguns casos não era senão uma vigarice para encobrir furtos.

Quando cheguei a Mampatá tive que acusar a receção de uma série de equipamentos onde se incluía um atrelado sanitário, material para pequenas cirurgias, seringas e outras miudezas. O meu antecessor queria que eu assinasse tudo, quase sem ver e, não sei se propositadamente, deixou tudo para o último dia, o dia de todos as pressas. Fui muito claro e franco:
- Venho avisado para o comportamento costumeiro das rendições, sei que vão faltar algumas pequenas coisas, aliás de pouca monta, como já confirmei, também não sou pessoa para estragar a vida a ninguém, quero por isso que me apresentes uma relação escrita do que falta, só para meu uso pessoal.
Assinei então o auto de receção, confirmando a existência da carga sem qualquer falta, permitindo que o meu camarada regressasse a Lisboa sem problemas. Ele dizia-me que já assim tinha acontecido aquando, dois anos antes, da rendição, entre ele e o seu antecessor.

Nenhum prejuízo resultou da falta daqueles objetos, alguns deles já em desuso, razão pela qual não fazia sentido adotar outra atitude eventualmente mais rígida. Mais tarde, pensava eu, logo se veria a volta a dar ao problema. Os meses foram lentamente passando sem que eu me quisesse sujeitar a pedinchar ao Sargento e ao Capitão da Companhia a colaboração na elaboração de um auto de destruição de forma a que o material em falta fosse abatido à carga. Fui empurrando com a barriga, porque, naquelas circunstâncias, quanto mais tarde melhor, e eu até podia, com o meu dinheiro, comprar o material em falta, quando julgasse oportuno, que não era nenhuma fortuna.

A inesperada chegada do 25 de Abril, quase concomitante com o fim da comissão, veio, num primeiro momento, facilitar-me a vida, porque, julgava eu, que acabada a guerra, já não me teria que submeter à operação da transmissão dos materiais a nova companhia, mas, simplesmente, seria feita a doação de todo o equipamento e medicamentos remanescentes aos representantes do novo governo. Enganara-me, o material seria ainda entregue a uma companhia recém-chegada ao território. De pronto, evitando a sujeição aos trâmites burocráticos da tropa, encarreguei o meu amigo 1.º Cabo Enfermeiro Celso Mendes, de, na sua ida a Bissau para uma consulta, adquirir com o meu dinheiro, o material em falta, livrando-me de qualquer problema, aquando da rendição da nossa companhia ou de fazer a outrem o que não gostaria que a mim me fizessem. Por outras palavras: quando o dinheiro puder resolver não devemos, por causa dele, arranjar problemas de consciência ou outros.

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Nota do editor

Último poste da série de 22 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

Guiné 61/74 - P21941: Historiografia da presença portuguesa em África (253): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
A tese de doutoramento de Carlos Lopes na Sorbonne constitui um indesmentível esforço para procurar clarificar a presença Mandinka e a fundação do reino do Kaabú, que se espalhou essencialmente nas terras do que são hoje os países da Guiné-Bissau, Gâmbia e Senegal. Este reino do Kaabú marca o fim do Império do Mali, deu origem a um Estado autónomo em que os Mandinka detinham grande poder político e cultural. Carlos Lopes consultou inúmera documentação que permite trazer luz à estruturação social Kaabunké, à organização do seu território e à sua consolidação graças fundamentalmente ao tráfico de escravos. Chegados ao século XIX, os Mandinka envolveram-se numa prolongada guerra com a etnia Fula, perderam a capital Kansalá, o Mansa suicidou-se, acabou o seu reinado, os Fulas ascendiam ao poder.
Iremos no próximo número apreciar as conclusões apresentadas por Carlos Lopes face à herança Kaabunké, há ali observações com muita dinamite.

Um abraço do
Mário


A Guiné antes e durante a presença portuguesa:
Kaabunké, um trabalho admirável de Carlos Lopes, historiografia incontornável (2)


Mário Beja Santos

O
importantíssimo trabalho do historiador Carlos Lopes sobre o reino do Cabo detalha a expansão Kaabunké, o seu declínio e a sua herança. Sobre a expansão e lógica do poder falou-se no número anterior, vejamos agora como se passou da consolidação ao declínio. O Kaabú era um reino de escravatura, vivia do tráfico negreiro. E o autor observa: “O tráfico prejudicou o desenvolvimento de outros sistemas de produção orientados para a produção de mercadorias e enviesou o comércio para uma troca ainda mais desigual do que as anteriores”. O fenómeno decorria do acordo das aristocracias do Kaabú, da sua aliança de interesses e dos negócios com os europeus. A aristocracia vive dos impostos e da guerra, e esta lógica de funcionamento desce até às aldeias, tem a caução dos poderes religiosos. O autor estuda atentamente as lendas sobre a queda de Kansalá e retém uma frase de um autor português de 1945, Viriato Tadeu, em Contos do Caramô: “Na Guiné de bandeira portuguesa, só há brancos e Mandingas. O resto são os pobres coitados”. Subentende-se que estava a subir de tensão a luta entre poderes a partir do século XVIII. O Kaabú entrara em declínio devido ao permanente sobressalto da guerra e à reorientação do comércio transatlântico. Os Fulas tinham começado a revoltar-se contra a exploração Malinké, vão começar as longas guerras entre dois Estados – Kaabú e Futa-Jalo. Os Malinké não desistiam de ser os senhores do território e vão enfrentar os franceses no Senegal. Os territórios do Kaabú precisavam cada vez mais do poder militar, a centralização política ia-se esboroando. Chegara-se também a um limiar intolerável na coexistência pacífica entre o Islão e o animismo, quer Fulas quer Mandingas estavam agora confrontados com uma lógica de Guerra Santa. Isso devia-se ao papel crescente do Islão, até então o poder islâmico tratava o relacionamento interétnico com uma enorme flexibilidade. Não é novidade para ninguém que ainda hoje os chamados islamizados da Guiné não prescindem de amuletos tradicionais, aliás, a penetração do Islão no meio animista socorreu-se do uso de talismãs que encerravam versículos do Corão. Escreve Carlos Lopes: “O Kaabú é o símbolo de uma coabitação islamo-animista desde o século XII e esta relação foi sempre favorável ao primeiro, através dos tempos. Foi por o Sudão Ocidental estar em plena transformação no século XVIII que o Islão continuou a progredir. Os Fulas do Futa-Jalo não são a principal razão, mas antes a ponta do icebergue”. Mas também na Senegâmbia meridional os europeus iam pondo de pé uma nova estratégia de conquista territorial, a partir do momento em que o tráfico de escravos tem os seus dias contados havia que redefinir a presença colonizadora, e franceses, ingleses e portugueses facilmente se entenderam neste ponto: havia que destruir os grandes espaços políticos, sabendo de antemão que teriam que conviver com sociedades islamizadas.

A situação do Kaabú também se agravara devido a novos conflitos relacionados com as interpretações islâmicas de diferentes confrarias (a Tijaniya e a Kadiriya), apoiadas por chefes diferentes. Havia lugares de peregrinação até aos centros religiosos islâmicos. “No século XVIII, o Islão tornou-se mais militante que nunca, não apenas devido à existência das confrarias, mas também por ser apenas desse meio que provinham as elites educadas e alfabetizadas. Hoje em dia, ainda é possível distinguir diferenças significativas entre as práticas religiosas das diferentes confrarias, mas as grandes querelas dos séculos XVIII e XIX estão ultrapassadas, o que prova bem como o essencial dos argumentos tinha sido uma natureza política”.

Algo de profundamente novo tinha acontecido nas sociedades Fulas, a partir do século XVIII eram inteiramente dirigidas por chefes religiosos. “A evolução política do Futa-Jalo introduzirá discórdias graves entre os Fulas que estão cativos dos Malinké do Kaabú, que podiam aliás contar com aliados no interior da estrutura social Kaabunké. Uma parte das camadas intermédias Kaabunké está insatisfeita e recetiva a uma aliança com novos interesses, que utilizarão o Islão como porta-estandarte”. Portugueses e franceses estavam atentos ao crispar destas tensões, reduziram o volume de trocas com os chefes Malinké, começou o isolamento das regiões e no Futa-Jalo sentiu-se que o apoio europeu estimulava os Fulas a lançar uma ofensiva. É exatamente o que escreve Carlos Lopes, o Kaabú já não conseguia manter o controlo indireto das várias províncias que constituíam a sua base territorial. Havia por um lado a penetração europeia e a pressão do Futa-Jalo fazia perigar as formações políticas existentes desde a época medieval. E vão-se dar batalhas que culminarão com a queda de Kansalá. Atenda-se agora a considerações um tanto controversas, umas, e complementares ao que nós já sabíamos sobre o colonialismo português na Guiné no século XIX: “O verdadeiro fim do Kaabú e o verdadeiro início da colonização coincidem no tempo. Estão ligados, pois ambos se desenvolveram a partir do tráfico negreiro. O fim deste foi o princípio do fim do Kaabú. Mas os colonos tinham uma estratégia económica. No final do século XIX, os colonialismos vão intervir indiretamente no jogo político com o objetivo confesso de controlarem o território – era a lógica da Conferência de Berlim. No Senegal, os franceses produziram estratégicas económicas virando-se para a exploração da mão-de-obra local e para a sua utilização como mercadoria de troca. Vai ser assim com a cultura do amendoim. Em 1846, Aurélia Correia já tinha uma plantação respeitável em Bolama, bem como João Marques de Barros. A presença portuguesa ia-se reduzindo a Norte, a hostilidade africana era clara, como Andrade Corvo escreveu em 1884, falando de um gentio bárbaro e indómito, que raramente está em completa paz, e que muitas vezes abusa da nossa falta de força na Senegâmbia Portuguesa. Não devemos iludir-nos acerca das condições do nosso domínio da Guiné”. Ao tempo, e segundo ainda Andrade Corvo, havia concelhos em Bissau, Bolama e Cacheu; dependendo do primeiro Geba, do segundo Buba, e do terceiro Farim e Ziguinchor. Quem irá dar configuração a uma boa parte do que é hoje a Guiné-Bissau foi Honório Pereira Barreto.

No Sul da colónia, a situação era muito instável, como recorda Carlos Lopes: “Os portugueses tinham procurado assinar tratados no Forreá para controlarem integralmente esta região, mas tiveram problemas com Bakar Kidali. Um dos indícios disto é o ataque de Mamadu Paté de Koyade ao entreposto de Buba. Aliás, os portugueses não intervieram nas lutas intestinas do Forreá, embora apoiassem indiretamente os escravos a revoltarem-se contra os seus donos, fornecendo-lhes armas”. São tempos de acordos com os Fulas. Mas a lógica colonialista era imparável, houve destituições e nomeações de chefes locais impostas por Paris ou Lisboa. “O exemplo de Alfa Yaya que procurou desesperadamente manter o controlo do Labé, Kaabú, Forreá e Kadé ilustra bem o desespero dos últimos grandes homens políticos africanos dessa outra época. Nem ele nem Mussa Molo serão bem-sucedidos. O século XIX terminava uma História de África. E o Kaabú tornava-se para a história da região o fim de um ciclo histórico: o dos poderes independentes africanos. Os colonialismos invasores acabavam de destruir um sistema político e económico secular”. Iremos seguidamente falar da herança Kaabunké, sem dúvida o ponto mais polémico da tese de doutoramento de Carlos Lopes.

(continua)
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Notas do editor

Último poste da série de 17 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21911: Historiografia da presença portuguesa em África (252): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21940: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (22): A forma peculiar de tapar o forno de cozer o pão, no Minho... com a sua licença, com a bosta de boi (Joaquim Costa)



Tabanca de Candoz > 7 de setembro de 2013 >
 A porta do forno onde hoje não já  não e faz a broa de milho,mas continua a fazer-se o anho assado com arroz de forno... Antigamente a porta  do forno era "calafetada" com bosta de boi e/ou cinza... Hoje já não o "gadinho", e a porta, em ferro, foi feita à medida... Foto de Luís Graça (2013)

Cortesia de A Nossa Quinta de Candoz (2013).

1. Mensagem de Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar:


Data: terça, 23/02/2021 à(s) 14:54
Assunto: A forma peculiar de tapar o forno

Meus caros, Luís, Carvalho e Valdemar, os meus amigos acabaram de "borrar" a minha escrita. (#)

Já que me descobriram a careca (cada vez mais difícil de cobrir!), aqui vai a história toda:

Como já afirmei, adorava em participar em todas as fases da vida do milho, particularmente a última, lambuzando-me com as sopas de vinho, mas fugia como o diabo da cruz do balde da m****

Pegar no balde, atravessar toda a aldeia até ao lavrador, bater à porta com o homem mandando-me entrar e apregoando para toda a aldeia: 

 É entrar, é entrar, m**** quentinha acabada de c****!

Entrar na corte do gado com os inquilinos,  de cornos afiados,  resmungando com a invasão da sua privacidade. Meter a mão na m****, todo acagaçado, enchendo o balde. Fazer o calvário no regresso a casa,  escondendo-me aqui e ali na procura de uma fuga discreta.

Já a meio do caminho, no silêncio da aldeia ouvir a voz de trombone do "tolinha" da terra:

 Toquem os sinos a rebate, tapem os vossos narizes, fechem portas e janelas que vem aí o rapaz da m**** . 

Não era nada fácil..., mas era por uma boa causa!

Um AB
Joaquim Costa
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Nota do editor:

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21939: Notas de leitura (1343): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte II: os "mentideros' de Bissau (Biafra, 5ª Rep) e ainda e sempre a retirada de Madina do Boé (Luís Graça)


Guiné > Região do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, "Os Tufas (Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Beli e Madina do Boé, 1966-68) > 1967 > Madina do Boé: vista aérea, tirada de DO 27, c. 1967. As tão faladas colinas do Boé... "O resto era deserto", diz o fotógrafo..

Foto (e legenda): © Manuel Caldeira Coelho (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro

FERREIRA, José Pardete - O paparratos : novas crónicas da Guiné : 1969-1971. Lisboa : Prefácio, D.L. 2004. 169 p., [12] p. il. : il. ; 24 cm. (História militar. Memórias de guerra). ISBN 972-8816-27-8.


1. Continuação da nota de leitura (*):

Este livro, "O paparratos : novas crónicas da Guiné : 1969-1971", publicada sob a chancela editorial da Prefácio,  surge numa coleção , "História Militar" que tem quatro séries: "Batalhas e campanhas"; "Armas de Portugal"; "Memórias de guerra"; e "Estudos e documentos".

A coleção, que se reclama de um "conceito inovador". pretende conciliar a investigação historiográfica com a produção literária e memorialística, como é o caso deste livro do nosso saudoso camarada José Pardete Ferreira, que foi alf médico. no CAOP. Teixeira Pinto (1969) e no HM 241 (1969/71).

O alferes miliciano médico João Pekoff (heterónimo criado pelo José Pardete Ferreira, ou se não mesmo o seu "alter ego") chega a Teixeira Pinto, ao CAOP,  em meados de fevereiro de 1969 (pág. 30). Em Bissau, onde o seu batalhão de origem (, que apostamos ter sido o BCAÇ 2861,) desembarcou em 11/2/1969,  deve ter estado alguns escassos dias, em trânsito, antes de apanhar uma DO-27 que o levou até à capital do chão manjaco , de qualquer modo o tempo suficiente para começar a conhecer alguns dos pontos obrigatórios do roteiro dos cafés e restaurantes da tropa...

Alguns eram obrigatórios como o café Bento, mais conhecido por 5ª Rep, junto à fortaleza da Amura onde estava  instalado o  QG/CCFAG [Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné], com as suas 4 Rep[artições]. 

Era o grande "mentidero" de Bissau, onde os "apanhados do clima", vindos do mato, "desenfiados" ou em trânsito, partilhavam notícias e histórias com a malta do "ar condicionado"... Chegados a Bissau, os "periquitos" apanhavam logo ali os "primeiros cagaços", histórias tenebrosas de Madina do Boé, de Gandembel, de Guileje, etc., aquartelamentos no mato, felizmente, longe, muito longe de Bissau e do seu "bem-bom"...

Pardete Ferreira, de cultura francófona,  descreve assim a 5ª Rep, com inegável bom humor, para não dizer sarcasmo, comparanda-a com a situação de um aquartelamento do mato, Tite, na região de Quínara, perto de Bissau em linha recta, pelo que, quando era atacado ou flagelado, toda a gente ficava a saber e até a ver (pp. 54/55):

"(...)  Toda a Guiné Portuguesa tinha esta classificação de zona cem por cento de risco. Naquele território, era indiferente passar calmamente uma soirée [sic] na 5ª Rep ou no aquartelamento de Tite. 

"Na 5º Rep, a arma era  um copo de  uma beberagem qualquer, que ia aquecendo na mão e  que ia sendo municiada periodicamente. O único risco era constituído pelos perdigotos, por vezes sólidos estilhaços de mancarra, que o companheiro de conversa lançava, aproveitando o estar longe do interface do corpo a corpo.

"Em Tite, que se situa mesmo em frente da 5ª Rep, do outro lado do Geba [, na margem esquerda], apenas a alguns quilómetrps à vol d'oiseau [sic], a arma que se tinha na mão era das verdadeiras, daquelas que matam.

"Aquela cómoda sala do QG [Quartel General], no teatro operacional, dava lugar a um abrigo onde o combate mordia. No QG, pelo barulho podia adivinhar-se que Tite estava seguramente a embrulhar, podendo ver-se  as cores das balas tracejantes e ter uma ideia  da intensidade do assalto,pela quantidade e duração do fogo de artifício.

"Na 5ª Rep, assistindo-se ao espetáculo, beberricando um whisky ou despejando rapidamente uma mulher grande [, basuca ?], quase sem tempo para descascar a mancarra acompanhante, estava-se exactamente dentro  dos limites do mesmo Teatro Operacional da Guerra. Todo o pedaço daquela terra era território de guerra. O risco tinha uma graduação muito  relativa, embora fosse sempre uma probabilidade.

"Não se fizeram operações de black out [sic] como treino para a remotíssima hipótese de um ataque dos MiGs da Guiné-Conacry ? Houve quem  dissesse que afirmar isto era um verdadeiro disparate, na medida em que  os MiGs de Conacry eram de um modelo tão antigo que. se atacassem Bissau,  teriam que pedir o favor de ser reabastecidos em combustível no aeroporto de Bissalanca, a fim de poderem regressar à sua base de partida" (...).


2. Na 5ª Rep ou no "Biafra", a messe de oficiais dos Adidos,  o nosso médico terá ouvido logo, ao chegar,  os ecos,  ainda muito frescos,  da tragédia ocorrida no dia 6 desse mês de fevereiro de 1969, no rio Corubal, em Cheche, na sequência da retirada do quartel de Madina do Boé (e que ele vai reconstituir, de maneira superficial e algo fantasiosa, no capítulo XVII, pp. 117-121 de "O Paparratos").

A comoção que "o desastre do Cheche" provocou nas NT prolongou-se por todo esse 1º semestre de 1969, pelo menos, ao ponto de eu ouvir diferentes relatos dos trágicos acontecimentos quando cheguei a Contuboel, em princípios de junho,  para dar instrução aos futuros soldados guineenses da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, e depois, já em na segunda metade de julho de 1969, quando fomos colocados em Bambadinca, às ordens do BCAC 2852 (1968/70). 

A ideia com que os "periquitos", de olhos e ouvidos bem abertos,  ficavam, das conversas até às tantas da noite, regadas com cerveja ou uísque, era que Madina do Boé bem poderia ter sido o Dien Bien Phu português, o que, sabemo-lo hoje, era manifestamente exagerado. 

De qualquer o quartel fora evacuado com o (falso) argumento de que o sítio não tinha qualquer interesse estratégico para as NT. A "inteligência" spinolista não conseguir prever os efeitos perversos desta decisão: a retirada de Madina do Boé veio fragilizar o flanco sul e sudeste do "chão fula" e sobretudo será bem explorada pela propaganda e diplomacia de Amílcar Cabral.(**)

Pardete Ferreira não viveu, diretamente, esse desastre, não participou da Op Mabecos Bravios, mas ouviu também relatos, alguns apocalípticos ou fantasiosos, como eu,  mas ter-se-á documentado minimamente para escrever o "Paparratos". O mito e a realidade andam, muitas vezes,  de mãos dadas, o que numa obra de ficção é perfeitamente aceitável; como o próprio o diz, este não é um  trabalho historiográfico, é um "romance"... 

Podiam, entretanto,  apontar-se alguns exemplos de "factos" criados pelo narrador, que passamos a destacar em subtítulo.


(i) A 1221º Companhia de Paraquedistas foi  "a última a evacuar Madina do Boé" (pág. 117) [, referência à 121ª CCP / BCP 12, comandada pelo cap prqd Terras Marques, que no livro é o tenente paraquedista  Teixeira Martins]

Os paraquedistas não participaram na Op Mabecos Bravios, pelo que não fazia sentido a presença ali do [José Manuel] Terras Marques. Creio que o autor quis fazer uma homenagem a um militar que ele admirava, com quem acamaradou e inclusive fez amizade, no CAOP, e depois em Bissau, enquanto esteve, ano e meio, no HM 241.  E inclusive terá mantido essas relações de amizade na vida civil.  

Sabe-se que o Teixeira Martins [, ou melhor, o Terras Marques] fez duas comissões no TO da Guiné.  E pelo que corre nas redes socais, dos testemunhos de paraquedistas que foram por ele comandados, era um oficial com grande carisma, conhecido pelo "Tigre". E o próprio criador do Paparratos e do João Pekoff não o desmente, ao traçar o seu perfil;

(...) "O Pára Teixeira Martins tinha uma pontaria de exceção. Treinava sempre os seus homens com bala real".  (...). Ah!, e muito importante: dava sempre o exemplo!.

"Como capitão, tinha como guarda-costas o 118. (...) Na sua segunda comissão consecutiva, era um militar experiente, Muito calmo, parecendo dormir, saltava repentinamente e iniciava o tiro, sem que os mais novos tivessem dado por isso. Malditos periquitos. (...)  (pág. 120).

Ora este 118, o guarda-costas do capitão pára  seria nada mais nada menos do que o Cabo 80, que tem, no nosso blogue, alguns referências como sendo outra figura mítica do BCP 12. Foram-lhe atribuídas duas cruzes de guerra por feitos valorosos no CTIG.  Na vida civil, o seu nome completo era o  Jaime Manuel Duarte de Almeida, "Dois senhores da guerra", chamou-lhes o nosso Jorge Félix (***).

Há aqui um outro tenente, cuja identifidade não conseguimos decifrar. No livro "O Paparratos" e no capítulo respeitante a Madina do Boé, surge como o tenente pára Lemos Neves.. Quem seria este oficial  L...N... ? 

Escreve o autor:

(...) "Fez questão de ser o último homem a sair  dessa terra, que mais tarde vai ser a primeira Capital da República da Guiné-Bissau, dita Independente". (...) Nascido na Guiné (...), não vira ele  seus pais e sua irmã serem chacinados pelos turras ? Iniciando o serviço militar como miliciano, acabou por fazer em seguida a Academia Militar e logo após, em Tancos,  obteve o Brevet de Paraquedista ao qual juntou a Boina Verde, pouco tempo depois" (...).

Assim, de repente, só nos lembramos de um paraquedista guineense, pertencente ao BCP 12, o hoje cor ref  e empresário, Chauki Danif, nascido em Bafatá há mais e setenta anos,  e que eu conheci pessoalmente no lançamento do livro do cor prqd ref Moura Calheiros, "A Últma Missão", na Academia Militar, em 29 de novembro de 2010. Tanto quanto sei, ninguém da sua família   morreu, na Guiné, no início da guerra, por acções terroristas.


(ii) "Havia pelo mnos um Batalhão para evacuar" (pág. 118)

A unidade de quadrícula de Madina do Boé era a CCAÇ 1790, comandada pelo cap inf José Aparício. Béli já fora  retirada, em 15 de julho de 1968, em plena época das chuvas. Era um destacamento onde havia um pelotão da CCAÇ 1790.  

Como é largamente sabido, as vítimas do desastre do Cheche foram forças da CCAÇ 2790 e da CCAÇ 2405 (, esta pertencente ao BCAÇ 2852, sediado em Bambadinca),  que atrevessavam o rio, de jangada,  na última viagem. 


(iii) Havia "alguns abrigos reforçados" (...), "construídos à pressa" e que, segundo se dizia, eram "à prova de morteiro 120" (pág. 118)


Não nos é possível confirmar ou infirmar esta afirmação. Não sabemos se o BENG 447 teve tempo ou condições para construir alguns "bunkers" em Madina do Boé.  De resto, havia questões logísticas complexas a resolver (, transporte de materiais de contrução, etc.) e já em junho de 1968 parecia estar tomada a decisão de evacuar Madina do Boé, tal como Beli. 

Como escreveu Hélio Felgas, a companhia de Madina estava ali apenas a defender-se a si própria, quando era precisa noutros pontos do território.


(iv) "Aquela de meter um aquartelamento no vale aconchegado entre os únicos terrenos elevados [colinas] de todo o território guineense parecia não lembrar a minguém" (pág. 118)

Também não sabemos. ao certo, desde quando passou a haver tropa na antiga tabanca de Madina do Boé. O subsector de Madina do Boé (tal como o Buruntuma) foi criado ao tempo do BCAÇ 512, em 23 de maio de  1965.

Segundo o nosso colaborador permanente, José Martins, a primeira unidade a instalar-se em Madina do Boé, foi a CCAV 702 / BCAV 705. Permanceu lá de maio de 1965 a abril de 1966, quando terminou a sua comissão de serviço. A última, como se sabe, foi a CCAÇ 1790, que retira do local em 6 de fevereiro de 1969 (Op Mabecos Bravios).

É possível que o PAIGC tenha utilizado, do outro lado da fronteira, o novo e temível morteiro 120, que se estreou no TO da Guiné, em setembro de 1968, contra Gandembel (****).

Em suma, sobre a retirada de Madina do Boé e o desastre de Cheche, o autor não traz (em 2004), nada de novo. E resume a narrativa do acidente a um ou dois parágrafos,  E comenta do seguinte modo: apesar do "bom planeamento" (pouco habitual mum país que gosta de "magníficos improvisos",os quais , de um modo geral, até "costumam correr bem"), tudo vai correr mal no fim, como sabemos (pág. 119).  

O tema vai ser depois debatido no nosso blogue quase até à exaustão, levando ao confronto de diferentes versões. 

(Continua)

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(**) Vd. poste de 10  de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21531: Casos: a verdade sobre... (14): as razões da retirada de Madina do Boé em 6 de fevereiro de 1969... Já oito meses antes, em 8 de junho de 1968, havia saído uma Directiva do Comando-Chefe da Guiné para a transferência da unidade ali estacionada, a CCAÇ 1790, comandada pelo cap inf José Aparício

(***) Vd. poste de 28 de dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5552: FAP (42): Dois senhores da guerra: O Cabo 80 e o Cap Pára Terras Marques (Jorge Félix)

Guiné 63/74 – P21938: Estórias avulsas (102): Um frango que voou depois de morto (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)



1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Ascenção (ex-Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, Cacheu, 1971/73), com data de 21 de Fevereiro de 2021:


Um frango que voou depois de morto

Esta história passou-se em dezembro de 1970.

Finda a cerimónia de Juramento de Bandeira nas Caldas da Rainha eu o meu amigo José Alves Martins, natural de Almeida, apanhámos o comboio para o Porto.
Este meu amigo e colega já do tempo de estudante no ISEP teve a assistir à cerimónia de juramento de bandeira um irmão que no fim lhe deu um frango e uma garrafa de vinho, muito bem acondicionado, que seria um óptimo almoço.

Entrámos no comboio e ao arrumar a nossa bagagem na bagageira por cima das nossas cabeças, no momento que o meu amigo procurava arrumar o precioso almoço, o comboio ao passar nas agulhas de acesso à linha começou a oscilar violentamente provocando o desequilíbrio do meu amigo, por azar a janela estava aberta, resultando que o frango voou pela janela direitinho para a berma da linha.
Lá foi o almoço que iríamos partilhar!

Passámos uma fome de rato até sairmos para mudar da Linha do Oeste para a Linha do Norte, o dinheiro era pouco mas lá nos safamos enquanto esperávamos por novo comboio.

Nunca mais vi este meu amigo, sei que foi para a Escola de Oficiais e posteriormente para Moçambique.
Gostava muito de lhe dar um abraço, tem conta no Facebook mas parece-me que não visita a página.

Os meus cumprimentos.
Joaquim Ascenção

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de janeiro de 2021 > Guiné 63/74 – P21780: Estórias avulsas (101): Um petisco indegesto para o jantar (Acácio Mares, ex-Fur Mil Inf)