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Nota do editor
Último poste da série de 3 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22592: Parabéns a você (1994): Hélder Valério de Sousa, ex-Fur Mil TRMS - STM (Piche e Bissau, 1970/72)
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 10 de outubro de 2021
sábado, 9 de outubro de 2021
Guiné 61/74 - P22614: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (17): as meninas do rio Gambiel, no regulado do Cuor, à pesca...
Foto nº 1A
Foto nº 1
Foto nº 3
Foto nº 4
Foto nº 5
Guiné-Bissau > Leste > Região de Bafatá > Setor de Bambadinca > Regulado do Cuor > Rio Gambiel > Junho de 2021
Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mensagem de Patrício Ribeiro (português, natural de Águeda, da colheita de 1947, criado e casado em Nova Lisboa, hoje Huambo, Angola, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde meados dos anos 80 do séc. XX, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda; membro da nossa Tabanca Grande, com 107 referências no blogue):
Data - 05/10/2021, 22:39 (há 3 dias)
Assunto - Fotos de Finete, Bambadinca, pesca
Luís,
Conforme teu pedido (, "Patrício, quando passares lá pelos meus lados - Contuboel, Bafatá, Bambadinca, Fá Mandinga, Xime, Xitole, Saltinho, Rio Corubal - bate umas chapas"), mando-te fotos do Leste.
Tu e o Beja Santos, poderão encontrar nestas fotos as bisnetas … (dos vossos camaradas de armas) à pesca no rio Gambiel, nos finais de julho de 2021. (Fotos nºs 1 e 2).
Junto à ponte de betão que atravessa o rio (Foto nº 3), no meio da bolanha onde se cultiva o arroz no tempo da chuva, entre Finete e Bantajã, perto de Bambadinca, onde as bajudas e mulheres, se juntaram às dezenas para fechar o rio, com as sua redes artesanais, para pescarem na maré baixa. (Fotos nºs 4 e 5).
Esta pesca, é muito comum nos diversos rios da Guiné, com água até ao peito e com o balde à cabeça.
O rio, um pouco mais a nascente, é alimentado por lagoas de água doce, onde há mais de 30 anos eu comprava peixes para a alimentação dos meus colegas de trabalho.
Neste rio e lagoas, eu também “pescava” patos bravos para as minhas refeições, quando durante 3 anos, tive uma casa na tabanca de Gambiel, para os meus trabalhos nos diversos projetos da empresa pública de madeira SOCOTRAN, financiados pela Cooperação Sueca.
Esta ponte (sobre o rio Gambiel, afluente do Rio Geba Estreito) foi construída depois da Independência (Foto nº 3).
Em 1998, era uma das muitas fronteiras; entre os militares da Junta militar do Ansumane Mané do lado norte, e os militares da Guiné-Conacri, que apoiavam o presidente 'Nino' Vieira que estavam do lado sul, tinham carros blindados na encosta de Bantajã debaixo das árvores.
Quando por lá passei de viatura a caminho de Dacar, levando alguns amigos comigo, para apanhar avião para Lisboa, não fomos autorizados a sair de Bissau. Tivemos que fugir… apanhámos muitos sustos, passamos por 20 controlos militares e policiais, até Dacar. Nesta altura, o aeroporto de Bissau, esteve fechado durante muitos meses.
Tabanca onde anteriormente a Soares da Costa e a Somec, Empresas Portuguesas de Construção Civil, tinham as suas pedreiras, para as extrações da pedra duralite, semelhante ao granito, utilizada nas maiores construções de obras publicas, pós-independência. (Vamos ver os comentários que o nosso amigo António Rosinha tem, sobre o assunto !!!???)
Nota: Ver o que o nosso amigo Beja Santo escreveu nos seus livros sobre esta zona, e continua a escrever …
Abraço, Patricio Ribeiro
IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau , Guine Bissau
Tel,00245 966623168 / 955290250
www.imparbissau.com
impar_bissau@hotmail.com
Guiné >Leste > Região de Bafatá > Carta de Bambadinca (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bambadinca, Nhabijõs, Mato Cão, Finete, Mero, Santa Helena, Bantajá,Ponta Brandão, Fá Mandinga, Canturé, Missirá, Aldeia do Cuor, rio Geba e tio Gambiel... Lugares "míticos" que alguns de nós conhecemos...
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)
Nota do editor:
Último poste da série > 2 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22589: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (16): Mais algumas fotos dos meus passeios: Bolama, junho de 2021
Guiné 61/74 - P22613: Os nossos seres, saberes e lazeres (471): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (19): Das obras emblemáticas do Museu do Caramulo aos Painéis de Nuno Gonçalves (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2021:
Queridos amigos,
Visitar o Museu Nacional de Arte Antiga é uma itinerância clássica, um dever para com as Belas-Artes que nos modelam e remodelam as formas de o viver e de o sentir. O pretexto era a presença de algumas obras-primas do Museu do Caramulo, que eram aqui expostas enquanto lá se faziam obras. Havia que decidir, logo de seguida, se se ia visitar a exposição de D. Manuel I ou se ascendia aos diferentes andares para se saudar obras amigas de sempre, preferiu-se a segunda alternativa, a compensação é sempre grande, faltou ir cumprimentar a Custódia de Belém, por ironia está agora na exposição do Venturoso, mais uma razão para aqui voltar em breve. E aqui se faz um pequeno relato das alegrias vividas, até se conversou com peritas que restauram os Painéis de Nuno Gonçalves que me ajudaram a sair conformado com as mesmas dúvidas com que aqui entrei, e seguramente levarei para a tumba.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (19):
Das obras emblemáticas do Museu do Caramulo aos Painéis de Nuno Gonçalves
Mário Beja Santos
Para mim é sempre o Museu das Janelas Verdes, os pretextos das visitas eram sempre, para a minha mãe, os presépios de Machado de Castro, a Baixela Germain, a Custódia de Belém, a arte Namban, o Boch das tentações e o prato de substância, os Painéis de Nuno Gonçalves. Sabe-se lá se não houve um processo subliminar nestas sucessivas incursões, em que ao longo de décadas fui vendo os melhoramentos deste precioso museu para a minha atração permanente pelas Belas-Artes. Tinha lido a notícia de que o Museu do Caramulo enviara para os Paços Perdidos do Museu Nacional de Arte Antiga um conjunto de peças de alto quilate, não resisti, juntei dois em um, primeiro matei saudades desta coleção organizada por Abel de Lacerda e depois segui para o interior do museu. Antes li o seguinte texto:
“Aproveitando o encerramento do Museu do Caramulo para a requalificação dos espaços museográficos, foi feita uma seleção das obras de arte mais emblemáticas que se conservam naquele museu, trazendo-as à fruição do público lisboeta. Procura-se assim dar a conhecer a um maior número de pessoas estas preciosidades, desconhecidas para muitos.
Ao primeiro Picasso que se expôs em Portugal, juntam-se Amadeo de Souza-Cardoso, Maria Helena Vieira da Silva e Eduardo Viana, mas também belos exemplares de pintura antiga, destacando-se obras de autores como Grão Vasco, Isembrandt, Quentin Metsys e Frei Carlos. Acrescenta-se a esta seleção objetos de artes decorativas, como uma das tapeçarias da série conhecida como “à maneira de Portugal e da Índia”, raras peças de porcelana chinesa e obras de arte Namban. Este conjunto de peças é enriquecido pelas criações de jovens artistas recentemente incorporadas nas suas coleções. Incontornáveis, quando falamos de Museu do Caramulo, são os automóveis. A coleção, única em Portugal, será invocada por um exemplar, de pequenas dimensões, de um Bugatti, um dos mais belos clássicos da industrial automobilística mundial”.
Fui a correr, a data de encerramento prevista era 26 de setembro. Se gostassem muito, ainda teria tempo de voltar. Gostei o suficiente para voltar, deixo-vos aqui algumas recordações.
São obras de tema religioso de insuperável qualidade, foi muito bom que tivessem vindo até Lisboa, nesta casa também há obras de Quentin Metsys, Grão Vasco ou Frei Carlos, nada como alargar horizontes, comparando outros discursos destes génios da pintura.
Abel de Lacerda não era peco a pedir, escrevia aos artistas e muitos acediam a ofertar as suas obras para o Museu do Caramulo. Este magnífico quadro é de Raoul Dufy, são as cores do mestre, as suas formas ingénuas, aquele traço peculiar que revela o primado da simplicidade, nada se esconde, não há truques académicos, todo o espaço é compreensível, obriga a olhar em todas as direções e o resultado é altamente compensador, Dufy devia ser um homem feliz ou então aparentava muito bem.
É um belo Souza-Cardoso, regista a sua marca de água a que não faltam reminiscências do cubismo e do surrealismo, sobretudo é uma imagem do seu Portugal, das suas estadias em Manhufe, daquele mundo rural à volta do Marão, ele regressa ao país quando começou a I Guerra Mundial, morrerá jovem devido à gripe espanhola, mas esta fase de labor em Portugal é um legado formidável de quem, para além de génio vanguardista, tinha vincado o seu olhar camponês.
E este quadro de Picasso tem história, na sala projetava-se um documentário da RTP, este grande senhor da pintura universal a produzir a obra, causa calafrios como se pode ter assim o talento à flor da pele.
Vista a exposição, prossegue a veneração pelos grandes mestres, de novo Quentin Metsys, confesso que comecei a interessar-me por este grande nome da pintura graças ao Professor Luís Reis Santos, fui amigo de um dos seus filhos que me levou a Coimbra e o notável investigador lançou-se, horas a fio, a falar-me deste prodigioso flamengo e como algumas das suas obras-primas são hoje privilégio do nosso património. Enquanto contemplava esta Nossa Senhora das Dores, recordei o inesquecível serão, a lição de um investigador sempre de discurso apaixonado. Mal sabia ele que tinha conquistado um prosélito.
Cinjo-me a um pormenor deste quadro de Boch, depois dos Painéis de Nuno Gonçalves deve ser o mais contemplado, por nacionais e estrangeiros, é tudo linguagem codificada, até se tem a ilusão de que Boch era surrealista, ora o que ele nos põe a admirar é uma abordagem da espiritualidade nesse mundo de demónios, mostrengos, abortos da natureza, desastres cósmicos, o que sobreleva é a lição da santidade, aprende a ver para seres melhor, o que parece torcido e retorcido, de pernas para o ar, é lição para a tua vida, parece dizer este mago que nunca nos cansa o olhar.
E que dizer desta matéria bruta de onde Rodin vai esculpir a formosura, pondo em profundo contraste a rudeza da pedra não trabalhada onde emerge o prodígio das formas, uma sensualidade quase irrestrita, a beleza em repouso?
Encaminho-me para os Painéis de Nuno Gonçalves que sei estarem a ser restaurados. Desde que a museografia deste andar ganhou estas formas, todo este espaço amplo aparece bem ocupado por imagens que noutro ordenamento seguramente não nos chamariam tanto a atenção. É uma mostra assombrosa de escultura onde o tema religioso é primordial, são os chamamentos do divino que parecem sair do silêncio, é um retorno à Igreja das catedrais, destes seres exemplares que ocupavam a crença dos homens como incentivos à perfeição, à generosidade, ao amor pelos outros. Este esplendor museográfico tenho-o como inultrapassável, qualquer grande museu do mundo acolheria estas soluções de percorrer em galeria a lição dos santos e a convocatória da nossa vida para alcançar o paraíso.
O que aconteceu foi o seguinte, a idade aconselhou que esticasse as pernas, havia mobiliário para contemplar Nuno Gonçalves em trabalhos de restauro, eis que se abre uma porta de onde saem duas senhoras, provavelmente peritas naqueles labores do retoque e requalificação, não me faltou pudor para lhes ir pondo perguntas, foram muitíssimo gentis e todas as dúvidas que eu tinha, como eu esperava, ficaram sem resposta: de onde vêm os painéis, quem é o seu autor, aonde e como estavam expostos, o que representam. Agradeci e fiquei especado, não há nada na arte portuguesa que supere esta emoção de ver tanta gente representada quando os outros génios contemporâneos faziam retratos, punham Cristo na Cruz ou mostravam caldeirões do inferno, aqui está gente que me fixa no olhar e de frente, parece uma amostra de uma nação em marcha, talvez seja devaneio meu, mas que saio daqui orgulhoso desta mostra do ser humano, é a minha clamorosa verdade.
São só lembranças da arte Nanbam e do muito fascínio que este Oriente nos incutiu, até aos dias de hoje. Não esqueço uma exposição que aqui vi de ourivesaria de Goa, coisas que um senhor guardou metodicamente e mandou para o Banco de Portugal, quando se deu a queda da Índia. São objetos que assombram, são obras que parecem ter sido concebidas, estas que aqui vos mostro, para nos fazer sonhar ou talvez para também mostrar que somos desinibidos na comunicação e talvez por isso mesmo continuamos a peregrinar por Franças e Araganças, e aí somos respeitados. E chega de conversa, não há nada como preparar o espírito para rememorar o que se viu e preparar novas andanças.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 2 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22591: Os nossos seres, saberes e lazeres (470): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (11) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Visitar o Museu Nacional de Arte Antiga é uma itinerância clássica, um dever para com as Belas-Artes que nos modelam e remodelam as formas de o viver e de o sentir. O pretexto era a presença de algumas obras-primas do Museu do Caramulo, que eram aqui expostas enquanto lá se faziam obras. Havia que decidir, logo de seguida, se se ia visitar a exposição de D. Manuel I ou se ascendia aos diferentes andares para se saudar obras amigas de sempre, preferiu-se a segunda alternativa, a compensação é sempre grande, faltou ir cumprimentar a Custódia de Belém, por ironia está agora na exposição do Venturoso, mais uma razão para aqui voltar em breve. E aqui se faz um pequeno relato das alegrias vividas, até se conversou com peritas que restauram os Painéis de Nuno Gonçalves que me ajudaram a sair conformado com as mesmas dúvidas com que aqui entrei, e seguramente levarei para a tumba.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (19):
Das obras emblemáticas do Museu do Caramulo aos Painéis de Nuno Gonçalves
Mário Beja Santos
Para mim é sempre o Museu das Janelas Verdes, os pretextos das visitas eram sempre, para a minha mãe, os presépios de Machado de Castro, a Baixela Germain, a Custódia de Belém, a arte Namban, o Boch das tentações e o prato de substância, os Painéis de Nuno Gonçalves. Sabe-se lá se não houve um processo subliminar nestas sucessivas incursões, em que ao longo de décadas fui vendo os melhoramentos deste precioso museu para a minha atração permanente pelas Belas-Artes. Tinha lido a notícia de que o Museu do Caramulo enviara para os Paços Perdidos do Museu Nacional de Arte Antiga um conjunto de peças de alto quilate, não resisti, juntei dois em um, primeiro matei saudades desta coleção organizada por Abel de Lacerda e depois segui para o interior do museu. Antes li o seguinte texto:
“Aproveitando o encerramento do Museu do Caramulo para a requalificação dos espaços museográficos, foi feita uma seleção das obras de arte mais emblemáticas que se conservam naquele museu, trazendo-as à fruição do público lisboeta. Procura-se assim dar a conhecer a um maior número de pessoas estas preciosidades, desconhecidas para muitos.
Ao primeiro Picasso que se expôs em Portugal, juntam-se Amadeo de Souza-Cardoso, Maria Helena Vieira da Silva e Eduardo Viana, mas também belos exemplares de pintura antiga, destacando-se obras de autores como Grão Vasco, Isembrandt, Quentin Metsys e Frei Carlos. Acrescenta-se a esta seleção objetos de artes decorativas, como uma das tapeçarias da série conhecida como “à maneira de Portugal e da Índia”, raras peças de porcelana chinesa e obras de arte Namban. Este conjunto de peças é enriquecido pelas criações de jovens artistas recentemente incorporadas nas suas coleções. Incontornáveis, quando falamos de Museu do Caramulo, são os automóveis. A coleção, única em Portugal, será invocada por um exemplar, de pequenas dimensões, de um Bugatti, um dos mais belos clássicos da industrial automobilística mundial”.
Fui a correr, a data de encerramento prevista era 26 de setembro. Se gostassem muito, ainda teria tempo de voltar. Gostei o suficiente para voltar, deixo-vos aqui algumas recordações.
São obras de tema religioso de insuperável qualidade, foi muito bom que tivessem vindo até Lisboa, nesta casa também há obras de Quentin Metsys, Grão Vasco ou Frei Carlos, nada como alargar horizontes, comparando outros discursos destes génios da pintura.
Abel de Lacerda não era peco a pedir, escrevia aos artistas e muitos acediam a ofertar as suas obras para o Museu do Caramulo. Este magnífico quadro é de Raoul Dufy, são as cores do mestre, as suas formas ingénuas, aquele traço peculiar que revela o primado da simplicidade, nada se esconde, não há truques académicos, todo o espaço é compreensível, obriga a olhar em todas as direções e o resultado é altamente compensador, Dufy devia ser um homem feliz ou então aparentava muito bem.
É um belo Souza-Cardoso, regista a sua marca de água a que não faltam reminiscências do cubismo e do surrealismo, sobretudo é uma imagem do seu Portugal, das suas estadias em Manhufe, daquele mundo rural à volta do Marão, ele regressa ao país quando começou a I Guerra Mundial, morrerá jovem devido à gripe espanhola, mas esta fase de labor em Portugal é um legado formidável de quem, para além de génio vanguardista, tinha vincado o seu olhar camponês.
E este quadro de Picasso tem história, na sala projetava-se um documentário da RTP, este grande senhor da pintura universal a produzir a obra, causa calafrios como se pode ter assim o talento à flor da pele.
Vista a exposição, prossegue a veneração pelos grandes mestres, de novo Quentin Metsys, confesso que comecei a interessar-me por este grande nome da pintura graças ao Professor Luís Reis Santos, fui amigo de um dos seus filhos que me levou a Coimbra e o notável investigador lançou-se, horas a fio, a falar-me deste prodigioso flamengo e como algumas das suas obras-primas são hoje privilégio do nosso património. Enquanto contemplava esta Nossa Senhora das Dores, recordei o inesquecível serão, a lição de um investigador sempre de discurso apaixonado. Mal sabia ele que tinha conquistado um prosélito.
Cinjo-me a um pormenor deste quadro de Boch, depois dos Painéis de Nuno Gonçalves deve ser o mais contemplado, por nacionais e estrangeiros, é tudo linguagem codificada, até se tem a ilusão de que Boch era surrealista, ora o que ele nos põe a admirar é uma abordagem da espiritualidade nesse mundo de demónios, mostrengos, abortos da natureza, desastres cósmicos, o que sobreleva é a lição da santidade, aprende a ver para seres melhor, o que parece torcido e retorcido, de pernas para o ar, é lição para a tua vida, parece dizer este mago que nunca nos cansa o olhar.
E que dizer desta matéria bruta de onde Rodin vai esculpir a formosura, pondo em profundo contraste a rudeza da pedra não trabalhada onde emerge o prodígio das formas, uma sensualidade quase irrestrita, a beleza em repouso?
Encaminho-me para os Painéis de Nuno Gonçalves que sei estarem a ser restaurados. Desde que a museografia deste andar ganhou estas formas, todo este espaço amplo aparece bem ocupado por imagens que noutro ordenamento seguramente não nos chamariam tanto a atenção. É uma mostra assombrosa de escultura onde o tema religioso é primordial, são os chamamentos do divino que parecem sair do silêncio, é um retorno à Igreja das catedrais, destes seres exemplares que ocupavam a crença dos homens como incentivos à perfeição, à generosidade, ao amor pelos outros. Este esplendor museográfico tenho-o como inultrapassável, qualquer grande museu do mundo acolheria estas soluções de percorrer em galeria a lição dos santos e a convocatória da nossa vida para alcançar o paraíso.
O que aconteceu foi o seguinte, a idade aconselhou que esticasse as pernas, havia mobiliário para contemplar Nuno Gonçalves em trabalhos de restauro, eis que se abre uma porta de onde saem duas senhoras, provavelmente peritas naqueles labores do retoque e requalificação, não me faltou pudor para lhes ir pondo perguntas, foram muitíssimo gentis e todas as dúvidas que eu tinha, como eu esperava, ficaram sem resposta: de onde vêm os painéis, quem é o seu autor, aonde e como estavam expostos, o que representam. Agradeci e fiquei especado, não há nada na arte portuguesa que supere esta emoção de ver tanta gente representada quando os outros génios contemporâneos faziam retratos, punham Cristo na Cruz ou mostravam caldeirões do inferno, aqui está gente que me fixa no olhar e de frente, parece uma amostra de uma nação em marcha, talvez seja devaneio meu, mas que saio daqui orgulhoso desta mostra do ser humano, é a minha clamorosa verdade.
São só lembranças da arte Nanbam e do muito fascínio que este Oriente nos incutiu, até aos dias de hoje. Não esqueço uma exposição que aqui vi de ourivesaria de Goa, coisas que um senhor guardou metodicamente e mandou para o Banco de Portugal, quando se deu a queda da Índia. São objetos que assombram, são obras que parecem ter sido concebidas, estas que aqui vos mostro, para nos fazer sonhar ou talvez para também mostrar que somos desinibidos na comunicação e talvez por isso mesmo continuamos a peregrinar por Franças e Araganças, e aí somos respeitados. E chega de conversa, não há nada como preparar o espírito para rememorar o que se viu e preparar novas andanças.
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 2 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22591: Os nossos seres, saberes e lazeres (470): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (11) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P22612: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte III: Mafra, maio-junho de 1964
Amadora > Academia Militar > 1963 > Não é em Mafra, é na Amadora, na Academia Militar. ao tempo em que lá andava o nosso querido amigo, camarada ecoeditor(jubilado) Virgínio Briote... Cadetes de saída para fim de semana.
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que acaba de falecer esta semana (*).
Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue=: Virgínio Briote. Estes excertos, gentilmente cedidos pelo autor ao José Martins, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).
Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)
Diário de Guerra
por Cristóvão de Aguiar
(Continuação)
1964
Maio, 1 – Fala-se numa possível revolução no dia de hoje.
Até agora, nada. Mas, apesar de ser boato, as forças da ordem estão em vigilância absoluta nos quartéis, de onde ninguém pode sair. Nem nós, instruendos do C.O.M., temos dispensa.
Maio, 2 – Estes instrutores militares são de uma crueldade mazinha.
Aos sábados e às segundas-feiras, a instrução é sempre mais dura do que nos outros dias, para que o fim-de-semana fique estragado, sobretudo para quem o vai passar para fora de Mafra, e não dorme na noite de domingo para segunda.
Hoje, sábado, por exemplo, o meu pelotão foi para o C.E.M.E.F.E.D., mesmo ao pé do Convento, para fazermos o pórtico. Este consiste em uma estrutura de cimento armado, com mais de três metros de altura, no cimo da qual existe um rectângulo formado por vigas com não mais do que trinta centímetros de largura.
O exercício consistia em subir lá para cima por umas escadinhas, com a espingarda, e depois andarmos com a arma poisada em ambas as mãos para nos equilibrarmos. Por vezes em passo acelerado.
Recusei-me a fazer tal exercício. Eu e alguns mais. Sinto vertigens e não estava para me estatelar de tal altura no chão duro e ficar maltratado para o resto da vida. O alferes não reagiu mal à recusa. Apenas disse que teríamos, no final do curso, nota mais baixa. Que se lixe a nota e o brio militar. Mas, a maior parte do pelotão lá subiu e fez tudo quanto lhe foi ordenado. Só de os ver cá de baixo arrepiava. Ainda para mais com chuva e lama...
Às segundas-feiras, iniciamos a instrução com um cross de muitos quilómetros, espingarda em bandoleira, para anular o descanso (?) do fim-de-semana. Puta de vida esta! E a procissão ainda vai no adro...
Maio, 6 – Mudei de caserna há duas semanas.
Meti uma pretensão escrita ao comandante de companhia, que, entretanto, foi promovido a capitão. O meu pedido foi deferido. O Vítor Branco é agora meu companheiro. As nossas tarimbas ficam rente uma à outra, perto da entrada dos lavatórios e retretes.
Hoje à noite, vão aparecer, lá dentro, panfletos revolucionários das JAPs (Juntas de Acção Patriótica). Há bocado, ao entrar na porta-de-armas, não sei como não deu o oficial de dia pela minha barrigona de grávida de muitos meses. Quando me apanhei cá dentro, até suspirei de alívio. O Nogueira e Silva é muito mais calmo do que eu. O Vítor nem se fala. E o Camargo, apesar de nervoso, também disfarça muito bem.
Maio, 7 – Ainda não tinha tocado a alvorada e já o oficial de dia estava na caserna a passar revista aos cacifos.
Fingi que estava a dormir, mas ele abanou-me e lá lhe fui abrir o meu. E lá foi rosnando, entre dentes:
- Há por aí uns sacanas de uns gajos que querem pôr o quartel em polvorosa; apareceram uns panfletos comunistas em várias instalações sanitárias, mas ainda se vão foder todos que é um regalo.
Fiz-me desentendido e, depois da revista, voltei para o beliche. Não apanhou rastro de panfletos em nenhum dos cacifos da caserna. O Vítor Branco sorriu para mim, à socapa. Guardo o caderninho destes apontamentos debaixo do colchão e nunca me esqueço de o levar para Coimbra. Qualquer dia ainda me lixo.
Coimbra, Maio, 10 – Resolvi deixar o caderninho deste diário bem guardado na minha República, aqui em Coimbra.
Daqui em diante, vou passar a escrever em folhas soltas. Depois, trago-as comigo todos os
A tarde, passei-a no quartel com o Nogueira e Silva, que se encontra castigado. O comandante da unidade, um coronel tirocinado, deu-lhe uma punição de três fins-de-semana sem sair.
Há dias, numa livraria da Vila, estava o Nogueira e Silva a ver livros ao lado de um sujeito à paisana. Às tantas, esse senhor, vira-se para o cadete pitosga e dispara:
– O nosso cadete não me conhece?
(*) Postes anteriores:
Maio, 1 – Fala-se numa possível revolução no dia de hoje.
Até agora, nada. Mas, apesar de ser boato, as forças da ordem estão em vigilância absoluta nos quartéis, de onde ninguém pode sair. Nem nós, instruendos do C.O.M., temos dispensa.
Maio, 2 – Estes instrutores militares são de uma crueldade mazinha.
Aos sábados e às segundas-feiras, a instrução é sempre mais dura do que nos outros dias, para que o fim-de-semana fique estragado, sobretudo para quem o vai passar para fora de Mafra, e não dorme na noite de domingo para segunda.
Hoje, sábado, por exemplo, o meu pelotão foi para o C.E.M.E.F.E.D., mesmo ao pé do Convento, para fazermos o pórtico. Este consiste em uma estrutura de cimento armado, com mais de três metros de altura, no cimo da qual existe um rectângulo formado por vigas com não mais do que trinta centímetros de largura.
O exercício consistia em subir lá para cima por umas escadinhas, com a espingarda, e depois andarmos com a arma poisada em ambas as mãos para nos equilibrarmos. Por vezes em passo acelerado.
Recusei-me a fazer tal exercício. Eu e alguns mais. Sinto vertigens e não estava para me estatelar de tal altura no chão duro e ficar maltratado para o resto da vida. O alferes não reagiu mal à recusa. Apenas disse que teríamos, no final do curso, nota mais baixa. Que se lixe a nota e o brio militar. Mas, a maior parte do pelotão lá subiu e fez tudo quanto lhe foi ordenado. Só de os ver cá de baixo arrepiava. Ainda para mais com chuva e lama...
Às segundas-feiras, iniciamos a instrução com um cross de muitos quilómetros, espingarda em bandoleira, para anular o descanso (?) do fim-de-semana. Puta de vida esta! E a procissão ainda vai no adro...
Maio, 6 – Mudei de caserna há duas semanas.
Meti uma pretensão escrita ao comandante de companhia, que, entretanto, foi promovido a capitão. O meu pedido foi deferido. O Vítor Branco é agora meu companheiro. As nossas tarimbas ficam rente uma à outra, perto da entrada dos lavatórios e retretes.
Hoje à noite, vão aparecer, lá dentro, panfletos revolucionários das JAPs (Juntas de Acção Patriótica). Há bocado, ao entrar na porta-de-armas, não sei como não deu o oficial de dia pela minha barrigona de grávida de muitos meses. Quando me apanhei cá dentro, até suspirei de alívio. O Nogueira e Silva é muito mais calmo do que eu. O Vítor nem se fala. E o Camargo, apesar de nervoso, também disfarça muito bem.
Maio, 7 – Ainda não tinha tocado a alvorada e já o oficial de dia estava na caserna a passar revista aos cacifos.
Fingi que estava a dormir, mas ele abanou-me e lá lhe fui abrir o meu. E lá foi rosnando, entre dentes:
- Há por aí uns sacanas de uns gajos que querem pôr o quartel em polvorosa; apareceram uns panfletos comunistas em várias instalações sanitárias, mas ainda se vão foder todos que é um regalo.
Fiz-me desentendido e, depois da revista, voltei para o beliche. Não apanhou rastro de panfletos em nenhum dos cacifos da caserna. O Vítor Branco sorriu para mim, à socapa. Guardo o caderninho destes apontamentos debaixo do colchão e nunca me esqueço de o levar para Coimbra. Qualquer dia ainda me lixo.
Coimbra, Maio, 10 – Resolvi deixar o caderninho deste diário bem guardado na minha República, aqui em Coimbra.
Daqui em diante, vou passar a escrever em folhas soltas. Depois, trago-as comigo todos os
fins-de-semana, para as juntar ao caderno. O seguro morreu de velho.
Mafra, Maio, 13 – Hoje, numa aula conjunta de filosofia militar, chamemos-lhe assim, com todas as companhias do C.O.M., o major encarregado da prelecção semanal passou parte do tempo a falar sobre subversão nos quartéis.
Arengou sobre os inimigos da Pátria e, como exemplo de subversão, leu um panfleto que tinha aparecido há dias nas instalações sanitárias das três casernas dos cadetes. Pediu-nos a todos vigilância sobre o inimigo que já se encontrava entre nós e incentivou-nos à sua denúncia, que a Pátria em armas assim o exigia de seus filhos legítimos.
Maio, 20 – Mais panfletos, desta vez comentando os comentários do nosso major na última aula de quarta-feira e incitando os cadetes à subversão.
Estava mesmo bem escrito. Na aula da semana que vem, com o major e com todas as companhias do C.O.M. juntas, não posso ficar ao pé dos meus amigos. É uma questão de precaução.
Junho, 10 – Apesar do feriado, não fui a Coimbra.
Passei o dia por aí. De manhã fui ao café Frederico e, sem querer, vi a parada militar na televisão. Até me arrepiei. Sobretudo com as condecorações póstumas.
Mafra, Maio, 13 – Hoje, numa aula conjunta de filosofia militar, chamemos-lhe assim, com todas as companhias do C.O.M., o major encarregado da prelecção semanal passou parte do tempo a falar sobre subversão nos quartéis.
Arengou sobre os inimigos da Pátria e, como exemplo de subversão, leu um panfleto que tinha aparecido há dias nas instalações sanitárias das três casernas dos cadetes. Pediu-nos a todos vigilância sobre o inimigo que já se encontrava entre nós e incentivou-nos à sua denúncia, que a Pátria em armas assim o exigia de seus filhos legítimos.
Maio, 20 – Mais panfletos, desta vez comentando os comentários do nosso major na última aula de quarta-feira e incitando os cadetes à subversão.
Estava mesmo bem escrito. Na aula da semana que vem, com o major e com todas as companhias do C.O.M. juntas, não posso ficar ao pé dos meus amigos. É uma questão de precaução.
Junho, 10 – Apesar do feriado, não fui a Coimbra.
Passei o dia por aí. De manhã fui ao café Frederico e, sem querer, vi a parada militar na televisão. Até me arrepiei. Sobretudo com as condecorações póstumas.
A tarde, passei-a no quartel com o Nogueira e Silva, que se encontra castigado. O comandante da unidade, um coronel tirocinado, deu-lhe uma punição de três fins-de-semana sem sair.
Há dias, numa livraria da Vila, estava o Nogueira e Silva a ver livros ao lado de um sujeito à paisana. Às tantas, esse senhor, vira-se para o cadete pitosga e dispara:
– O nosso cadete não me conhece?
Resposta pronta do Nogueira e Silva, estendendo-lhe a mão:
– Não, não tenho esse prazer, mas apresento-me, sou fulano.
O homem não gostou e disse-lhe:
– Compareça no meu gabinete amanhã de manhã, sem falta; não sabe que, pelo Regulamento Militar, é obrigado a conhecer o seu comandante?
Junho, 19 – Iniciámos a semana de campo.
Viemos de Mafra até à Praia de Santa Cruz, a pé, com a mochila às costas e a espingarda em bandoleira. Estamos acampados nuns pinhais não muito longe do areal. Cheguei com os pés esfolados. Felizmente que hoje à noite não estou de guarda. Posso ir dormir para a tenda, que compartilho com o Júlio Freches. Dormir vestido, claro. Só se descalçam as botas.
Junho, 24 – Ontem à noite estivemos brincando à guerra.
Estive de sentinela ao acampamento. Havia-as de vinte em vinte metros, formando um cordão à volta do aquartelamento de campanha. Escuro que nem breu. Não se reconhecia um vulto.
A dado momento, sinto aproximar-se uma patrulha. Dou voz de alto e de imediato debitei a senha para que o comandante da patrulha me respondesse com a contra-senha. Só assim lhe poderia dar autorização para prosseguir.
Tinha-se esquecido dela e eu não quis deixá-lo passar. Mas o capitão vinha também integrado na patrulha, apenas para ver como se portavam os homens da sua companhia. Soube-o, não porque o tivesse visto, reconheci-o tão-só pela voz. Disse-me ele então:
– Deixe lá passar, nosso cadete e apresente-se amanhã de manhã junto da tenda do comando.
Logo que terminou o exercício e clareou o dia, fui-me apresentar ao capitão. Só me queria conhecer. Fiquei fulo comigo mesmo por ter sido tão militarista e tive algum nojo de mim... Afinal, a lavagem a que eu e os meus camaradas havíamos sido sujeitos durante cinco meses estava dando os seus frutos.
Junho, 26 – Terminou a semana de campo.
Regressámos em duas colunas, uma de cada lado das bermas da estrada, mochila às costas e espingarda em bandoleira, caminhamos em direcção ao convento. Vem toda a gente derreada, os pés em ferida, o corpo empastado de suor velho.
À entrada da Vila de Mafra vejo o casarão pesado e balofo e até se me exulta o coração como se regressasse a casa após uma longa ausência. Antes de chegarmos à porta-de-armas, ouve-se a Banda do Regimento. Toca para nós marchas militares.
E não é que os nossos pés ganham leveza, as feridas se calam, o peito se ergue, os braços pegam de fender o ar com altivez e dos olhos rebentam lágrimas de um prazer sensual?
Ao passarmos em continência ao lado da Banda Regimental já não somos os mesmos maltrapilhos que regressam alquebrados de um teatro simulado de guerra.
Creio que foram os Espartanos que ganharam uma batalha, com um general coxo e gago, que os Atenienses lhes haviam mandado por escárnio. Enquanto lutavam, o general cantava-lhes, com a afinação dos gagos, cantos bélicos que enchiam os guerreiros de ânimo. Foi o meu velho professor de História do terceiro ano, o Doutor Ruy Galvão de Carvalho, quem nos contou este episódio.
Junho, 28 – Juramento de Bandeira em frente do Convento de Mafra.
Não só não junto a minha voz ao coro, como também faço figas... Juro o raio que os parta! Fim do primeiro ciclo de instrução. A especialidade são mais dois meses. Ao todo sete. É demais. É este o primeiro curso que tem tamanha duração.
O Estado Maior justificou o prolongamento por se tratar de oficiais que vão ter a responsabilidade de comandar homens em teatro de guerra. E cinco meses de instrução, incluindo recruta e especialidade, como vinha sendo praticado até agora, era pouco tempo. Vou continuar em Mafra, que a minha especialidade é a de atirador de infantaria. Nem os testes psico-técnicos, aos quais respondi com sinceridade, me valeram.
Muitos camaradas vão para outras unidades receber a instrução, consoante a especialidade que lhes calhou. Os que entraram para a Força Aérea foram os mais sortudos. No sorteio que há dias se fez, tirei o número quarenta e sete. Como eram sessenta os cadetes pedidos ao Exército pela Força Aérea, deviam ser para lá transferidos os que haviam tirado os primeiros sessenta algarismos, isto segundo o critério de sorteios anteriores.
Ainda alimentei grandes esperanças e esfreguei as mãos de contentamento durante algum tempo. Mas, dias depois, viu-se perfeitamente o critério seguido. Primeiro, as cunhas. E, para não dar muito nas vistas, os dois ou três números mais próximos delas.
Por exemplo, entraram para a aviação o 70, 71, 72, depois o 19, 20, 21, depois o 120, 121, 122, e assim por diante, sem qualquer ordem ou aparente critério. Ninguém deu pio, mas toda a gente percebeu. O Camargo e o Vítor Branco tiveram sorte e lá vão para a Ota dentro de dias. O nosso grupinho desmanchou-se, cada um para seu lado, ligações cortadas. Com a queda há semanas de Nikita Krutchev baralharam-se muitos espíritos.
Junho, 19 – Iniciámos a semana de campo.
Viemos de Mafra até à Praia de Santa Cruz, a pé, com a mochila às costas e a espingarda em bandoleira. Estamos acampados nuns pinhais não muito longe do areal. Cheguei com os pés esfolados. Felizmente que hoje à noite não estou de guarda. Posso ir dormir para a tenda, que compartilho com o Júlio Freches. Dormir vestido, claro. Só se descalçam as botas.
Junho, 24 – Ontem à noite estivemos brincando à guerra.
Estive de sentinela ao acampamento. Havia-as de vinte em vinte metros, formando um cordão à volta do aquartelamento de campanha. Escuro que nem breu. Não se reconhecia um vulto.
A dado momento, sinto aproximar-se uma patrulha. Dou voz de alto e de imediato debitei a senha para que o comandante da patrulha me respondesse com a contra-senha. Só assim lhe poderia dar autorização para prosseguir.
Tinha-se esquecido dela e eu não quis deixá-lo passar. Mas o capitão vinha também integrado na patrulha, apenas para ver como se portavam os homens da sua companhia. Soube-o, não porque o tivesse visto, reconheci-o tão-só pela voz. Disse-me ele então:
– Deixe lá passar, nosso cadete e apresente-se amanhã de manhã junto da tenda do comando.
Logo que terminou o exercício e clareou o dia, fui-me apresentar ao capitão. Só me queria conhecer. Fiquei fulo comigo mesmo por ter sido tão militarista e tive algum nojo de mim... Afinal, a lavagem a que eu e os meus camaradas havíamos sido sujeitos durante cinco meses estava dando os seus frutos.
Junho, 26 – Terminou a semana de campo.
Regressámos em duas colunas, uma de cada lado das bermas da estrada, mochila às costas e espingarda em bandoleira, caminhamos em direcção ao convento. Vem toda a gente derreada, os pés em ferida, o corpo empastado de suor velho.
À entrada da Vila de Mafra vejo o casarão pesado e balofo e até se me exulta o coração como se regressasse a casa após uma longa ausência. Antes de chegarmos à porta-de-armas, ouve-se a Banda do Regimento. Toca para nós marchas militares.
E não é que os nossos pés ganham leveza, as feridas se calam, o peito se ergue, os braços pegam de fender o ar com altivez e dos olhos rebentam lágrimas de um prazer sensual?
Ao passarmos em continência ao lado da Banda Regimental já não somos os mesmos maltrapilhos que regressam alquebrados de um teatro simulado de guerra.
Creio que foram os Espartanos que ganharam uma batalha, com um general coxo e gago, que os Atenienses lhes haviam mandado por escárnio. Enquanto lutavam, o general cantava-lhes, com a afinação dos gagos, cantos bélicos que enchiam os guerreiros de ânimo. Foi o meu velho professor de História do terceiro ano, o Doutor Ruy Galvão de Carvalho, quem nos contou este episódio.
Junho, 28 – Juramento de Bandeira em frente do Convento de Mafra.
Não só não junto a minha voz ao coro, como também faço figas... Juro o raio que os parta! Fim do primeiro ciclo de instrução. A especialidade são mais dois meses. Ao todo sete. É demais. É este o primeiro curso que tem tamanha duração.
O Estado Maior justificou o prolongamento por se tratar de oficiais que vão ter a responsabilidade de comandar homens em teatro de guerra. E cinco meses de instrução, incluindo recruta e especialidade, como vinha sendo praticado até agora, era pouco tempo. Vou continuar em Mafra, que a minha especialidade é a de atirador de infantaria. Nem os testes psico-técnicos, aos quais respondi com sinceridade, me valeram.
Muitos camaradas vão para outras unidades receber a instrução, consoante a especialidade que lhes calhou. Os que entraram para a Força Aérea foram os mais sortudos. No sorteio que há dias se fez, tirei o número quarenta e sete. Como eram sessenta os cadetes pedidos ao Exército pela Força Aérea, deviam ser para lá transferidos os que haviam tirado os primeiros sessenta algarismos, isto segundo o critério de sorteios anteriores.
Ainda alimentei grandes esperanças e esfreguei as mãos de contentamento durante algum tempo. Mas, dias depois, viu-se perfeitamente o critério seguido. Primeiro, as cunhas. E, para não dar muito nas vistas, os dois ou três números mais próximos delas.
Por exemplo, entraram para a aviação o 70, 71, 72, depois o 19, 20, 21, depois o 120, 121, 122, e assim por diante, sem qualquer ordem ou aparente critério. Ninguém deu pio, mas toda a gente percebeu. O Camargo e o Vítor Branco tiveram sorte e lá vão para a Ota dentro de dias. O nosso grupinho desmanchou-se, cada um para seu lado, ligações cortadas. Com a queda há semanas de Nikita Krutchev baralharam-se muitos espíritos.
(Continua)
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Nota do editor:
(*) Postes anteriores:
8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22611: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte II: Mafra, fevereiro-março de 1964
8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22609: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte I: Mafra, janeiro de 1964
8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22609: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte I: Mafra, janeiro de 1964
sexta-feira, 8 de outubro de 2021
Guiné 61/74 - P22611: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte II: Mafra, fevereiro-março de 1964
Lisboa > Benfica > Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandella > 27 de novembro de 2008 > Cristóvão de Aguiar,à esqureda, na apresentação da nova edição do seu livro "Braço Tatuado".
Foto (e legenda): © José Martins (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que acaba de falecer.
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que acaba de falecer.
Publicámos, no devido tempo, em 2009, há cerca de 12 anos, este "Diário de Guerra", que nos chegou às mãos, por intermédio do José Martins (ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70).
A grande maioria dos nossos leitores não teve oportunidade de conhecer este notável texto, de que se publicaram 11 postes (, muito espaçados, entre janeiro e setembro de 2009).
O "Diário de Guerra", do Cristóvão de Aguiar, abarca um período de tempo de seis anos, desde a entrada do autor em Mafra, em 26 de janeiro de 1964, para fazer a recruta e dar início ao Curso de Oficiais Milicianos até ao fim da comisão na Guiné (onde foi alf mil, CCAÇ 800, Contuboel e Dunane, 1965/67) e o "difícil regresso à vida civil", entre 1967 e 1970.
Estes textos fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).
Na altura a revisão e fixação do texto foi da responsabilidade do nosso coeditor (hoje, jubilado) Virgínio Briote. Mais uma vez agradecemos ao José Martins a sua sensibilidade e a sua generosidade ao servir de intermediário entre o nosso blogue e o escritor, e ao aceitar organizar o texto para publicação no blogue, com a devida autorização do autor.
Esta é também uma forma de homenagearmos a memória do nosso camarada açoriano Cristóvão de Aguiar.
1964
Fevereiro, 3 – Afinal, houve fim-de-semana.
Mas, aqui, nunca nada é dado como certo. Deve fazer parte da filosofia da instrução esta constante expectativa em que nos fazem andar as altas patentes. Assim como o boato. Só no sábado de manhã, depois da ginástica de aplicação militar, mais dura do que nos dias precedentes, é que nos deram carta de alforria.
Fui a Coimbra passar parte da tarde e a noite de sábado e o domingo todo o dia, até às dez da noite, hora da camionete. Vi-a a uma janela do lar. Cumprimentei-a, mas não vi jeitos de ela querer alguma coisa comigo. Agora estou arrependido de me ter derramado em duas folhas de carta. Paciência.
Tenho alguns músculos do corpo doloridos, mas já me vou sentindo besta. Não preguei olho durante a noite de domingo noite de domingo - a camionete chegou a Mafra, três horas e pouco antes de principiar a instrução e ao contrário da maioria dos camaradas não consigo dormir em transportes. Viajo por dentro de mim e chego sempre à Ilha, onde Ela ficou. Apesar de estar tresnoitado, aguentei bem a dureza militar do dia.
Fevereiro, 4 – Quando um homem aflito se abre a medo com alguém e logo depois se acha falando a mesma linguagem, ilumina-se-lhe o íntimo do prazer que os primeiros cristãos deviam sentir quando um desenhava um peixe no chão e o outro lhe respondia com o mesmo gesto...
O Júlio Freches do meu pelotão, que tem a sua tarimba ao lado da minha, tornou-se meu amigo. Ele iluminou-se e eu acendi-me. O Júlio engraxava as botas ao pé de mim, o tempo e a tinta escorrendo pelos dedos. A caserna era, ao meio-dia e ao fim da tarde, após a instrução, uma enorme caixa e banco de engraxador profissional. As nossas conversas eram ciciadas como na penumbra de um confessionário. E quem poderá revelar o segredo da confissão?
Fevereiro, 24 – Principiei o dia e a semana com um cross de cinco quilómetros.
Já vou tendo resistência de atleta. Nenhum do pelotão arreou, o que satisfez o alferes, que ia à frente marcando o ritmo. Depois, fomos para a tapada, para recebermos instrução sobre granadas e explosivos. Um alferes da 1ª companhia ficou sem um dedo. Rebentou-lhe um detonador nas mãos.
Março, 5 – O meu fato-macaco cheira mal que se farta.
Não admira. Estive quase toda a manhã a rastejar e a dar cambalhotas na lama. Só não consegui saltar a vala. Caí dentro dela e fiquei com as botas e as meias encharcadas. Mas secaram. As meias e as botas e o fato zuarte. No próprio corpo. Faz parte do endurecimento do corpo e da alma.
Março, 19 – Mudámos de comandante de pelotão.
O terceirense foi de novo mobilizado, desta vez para a Guiné. Houve jantar de despedida na Ericeira. Foi o pelotão em peso. Era um alferes maluco, mas no trato não era desumano.
Uma segunda-feira, cheguei mais tarde a Mafra, por se ter avariado a camionete. Pelo regulamento, tinha obrigação de ser castigado. Felizmente que me mandou à caserna vestir a farda de trabalho e disse-me que, por ele, não vira nada nem de nada sabia. Fechou os olhos. Alguns camaradas de outros pelotões não tiveram a mesma sorte. Apanharam um fim-de-semana de castigo. Chama-se a isto solidariedade entre ilhéus!
O novo comandante é um aspirante da Academia, que acabou de fazer o seu tirocínio aqui em Mafra. É um puto reguila, que nos vai fazer a vida ainda mais negra. Traz todo o tesão de mijo da Academia.
Março, 20 – Dos novos aspirantes tirocinados que aqui ficaram nesta unidade, há dois que foram meus colegas no Liceu.
O Luciano e o Rocha, de Ponta Delgada e de Água de Pau, respectivamente. A primeira vez que os vi, fiz-lhes a continência, não fosse o diabo tecê-las. Havia muitos militares por perto. Riram-se. Conversaram comigo sem qualquer problema, mas disseram-me que, sempre que estivessem outros graduados à vista, devia bater-lhes a pala. Por causa das coisas.
Não admira. Estive quase toda a manhã a rastejar e a dar cambalhotas na lama. Só não consegui saltar a vala. Caí dentro dela e fiquei com as botas e as meias encharcadas. Mas secaram. As meias e as botas e o fato zuarte. No próprio corpo. Faz parte do endurecimento do corpo e da alma.
Março, 19 – Mudámos de comandante de pelotão.
O terceirense foi de novo mobilizado, desta vez para a Guiné. Houve jantar de despedida na Ericeira. Foi o pelotão em peso. Era um alferes maluco, mas no trato não era desumano.
Uma segunda-feira, cheguei mais tarde a Mafra, por se ter avariado a camionete. Pelo regulamento, tinha obrigação de ser castigado. Felizmente que me mandou à caserna vestir a farda de trabalho e disse-me que, por ele, não vira nada nem de nada sabia. Fechou os olhos. Alguns camaradas de outros pelotões não tiveram a mesma sorte. Apanharam um fim-de-semana de castigo. Chama-se a isto solidariedade entre ilhéus!
O novo comandante é um aspirante da Academia, que acabou de fazer o seu tirocínio aqui em Mafra. É um puto reguila, que nos vai fazer a vida ainda mais negra. Traz todo o tesão de mijo da Academia.
Março, 20 – Dos novos aspirantes tirocinados que aqui ficaram nesta unidade, há dois que foram meus colegas no Liceu.
O Luciano e o Rocha, de Ponta Delgada e de Água de Pau, respectivamente. A primeira vez que os vi, fiz-lhes a continência, não fosse o diabo tecê-las. Havia muitos militares por perto. Riram-se. Conversaram comigo sem qualquer problema, mas disseram-me que, sempre que estivessem outros graduados à vista, devia bater-lhes a pala. Por causa das coisas.
Hoje de manhã, no render da guarda e do oficial de dia, a Banda do Regimento tocava a marcha Angola é Nossa. Toda a gente estava em sentido. Eu, que estava ao pé de um dos muros da parada, fui-me encostando vagarosamente a ele. Ainda não tinha aquecido nem as costas nem o rabo ao encosto, e o Rocha de longe fazendo-me um gesto muito delicado e sub-reptício para que me pusesse direito.
Mais tarde, quando teve oportunidade de falar comigo, disse-me que tinha sido o comandante da companhia que lhe tinha chamado a atenção a meu respeito. E como na tropa as ordens são dadas em cadeia, ele teve de a transmitir. Pena não ter chamado um sargento. Tenho de tomar cuidado, que os estudantes de Coimbra são, aqui, considerados subversivos...
Março, 25 – Corre por aí que temos bufos por todo o lado.
Até no próprio pelotão os há. Disseram-me que ontem foi visto um cadete sentado a uma mesa, sozinho, num café da Vila, com um microfone disfarçado no quépi, estrategicamente abandonado sobre o tampo. Hoje fiz versos...
Março, 27 – Há dois meses com uma farda e uma espingarda, que, de tanto andar comigo, já me parece um membro do corpo.
Quando a não tenho, e raro é, fico com a impressão de que me falta qualquer coisa. É a besta, salvo seja, crescendo cada vez mais dentro de mim. Durmo como uma pedra e até engordei.
Hoje, à tarde, na Vila, com a dispensa de recolher e da terceira refeição no bolso, eu e o Camargo fomos jantar num restaurante barato, para variar. A dada altura, disse-me que queria falar comigo. Mas ali, não, que havia muitos ouvidos. Fomos então passear para um descampado.
E disse-me longamente da sua justiça. No fim da parlenga, perguntou-me:
– Queres pertencer à organização? – respondi-lhe que sim senhor, que não me importava nada. – Depois serás contactado por alguém; temos muito trabalho a fazer no quartel.
(Continua)
__________
Nota do editor:
(*) Último poste da série > 8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22609: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte I: Mafra, janeiro de 1964
Guiné 61/74 - P22610: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2021:
Queridos amigos,
Paulo Guilherme já regressou a Bambadinca, recomeçaram as andanças da guerra, há para ali uma atmosfera frenética, o batalhão de caçadores aguarda a todo o instante que cheguem os substitutos e até parece que a guerra deu tréguas com a exceção de uma singularidade que é a pressão em permanência do PAIGC sobre as tabancas em autodefesa. Ir-se-á abandonar aquela que estava mais ao extremo, em direção ao Xitole, de nome Moricanhe, a fatura virá depois, a pressão sobre a região do Cossé. E há o patrulhamento ofensivo de nome Beringela Doce, apanhou-se a coluna de reabastecimento ou de reaprovisionamento, o Paulo bem falou com o comandante que se estava a pagar a outra fatura, o abandono da Ponta do Inglês, ele encolheu os ombros, era problema para quem o vinha substituir. Deste modo se vivia a guerra. E de novo o serviço de justiça vai convocar Paulo para Bissau, ele vai testemunhar a santa inocência de Quebá Sissé que matou no acidente mais estúpido Uam Sambu, ao alvorecer de 1 de janeiro de 1970.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Páginas de comentários de Annette Cantinaux, constantes de um dossiê com a comissão de Paulo Guilherme, papéis que ela trouxe para organizar em Lisboa, havia inúmeros pedidos de explicação, ela pôs uma folha exterior a apensar um rol de imagens, aerogramas, até ordens de serviço e textos avulsos daquele alferes miliciano que voltara recentemente de Bissau; nessa folha exterior escreveu laconicamente: “Só de mim para mim”.
Nunca tive umas férias de verão como estas, com tanta ternura, com tanto desvelo deste meu adorado companheiro, recebeu com a maior afabilidade Jules, deu-nos a conhecer tanta beleza, sei que um dia destes tenho que regressar, um intérprete não pode falhar ao chamamento, é o seu modo de vida, tenho que cuidar de mim e dois filhos e continuar a pensar seriamente o que é que eu e o Paulo desejamos do futuro.
É um país surpreendente, a uma hora de Lisboa, na região Oeste, entramos num mundo frutícola e vinícola, há lindos castelos, visitei a Lagoa de Óbidos cheia de reentrâncias, o Paulo insistiu em mostrar a Jules onde passava as férias na sua juventude, um local chamado Foz do Arelho, um mar encapelado, uma vista panorâmica à esquerda em direção a Peniche, era um dia sem bruma, avistavam-se uns pontos ao fundo, o Paulo informou que eram as ilhas Berlengas, tenho a promessa de que lá iremos quando eu voltar a Portugal. Há praias lindíssimas, tomei uma fotografia de um pôr-do-sol na Praia da Areia Branca, tínhamos ido à Lourinhã visitar uma igreja que o Paulo disse ser do período manuelino e falou-nos daquela arquitetura que dias depois, já o Jules regressara a Bruxelas, encontrei no Convento de Tomar, em todo o seu esplendor, parecido só no Mosteiro dos Jerónimos, que me deixou emudecida, quando lá entrei pela primeira vez pensei que era o casco de um navio.
Mesmo em férias, o Paulo tinha que enviar artigos para publicações, organizou espaço no seu escritório para estarmos os dois, abri este dossiê, bem volumoso por sinal, estamos em maio de 1970, ainda faltam alguns meses para a comissão de Paulo terminar, um dia em agosto, no porto do Xime, entrará numa lancha da Marinha, regressará a Bissau, a guerra acabou. Uma vez dei comigo a pensar que sou um pouco como Xerazade, sei que é um comentário amargo, Xerazade tinha a cabeça a prémio se deixasse de contar histórias, a nossa relação não será afetada, estou absolutamente convicta, quando acabar a história da comissão. Mas afeiçoei-me a esta história, àquele período dos preparativos, ao modo como ele se integrou nas comunidades do Cuor, como ultrapassou aquele vexame de dois dias de prisão simples, acusado de não estar a dar o máximo para assegurar a segurança do quartel, ele que escrevia para todos, que sonhava todos os dias com o conforto, a segurança e o bem-estar dos dois destacamentos de que era responsável. Demorei a entender como ele se sentiu um tanto estrangeiro por ir viver para Bambadinca, alteraram-se as relações com as populações, fracionaram-lhe o pelotão, foi incumbido, permanentemente, de emboscadas, patrulhamentos, colunas de abastecimento, de trazer e levar feridos, sacos de arroz, munições, convocado para operações, grande parte delas sem pés nem cabeça. De saúde abalada, foi para Bissau, regressou tonificado a Bambadinca, rememora ainda hoje aquela experiência que viveu no hospital militar, não só o que se passou na Neuropsiquiatria, mas por ter presenciado um pesadelo que ignorava, os amputados medem-se uns aos outros e consolam-se quando têm mais membros que os comparados.
Tenho feito perguntas ao Paulo sobre o ambiente que ele encontrou em Bambadinca, o batalhão está pronto a partir, aguarda o substituto, o próprio pelotão do Paulo já não é o mesmo, saiu muita gente, vieram também substitutos. É um período em que aparentemente o PAIGC está mais calmo ou diversificou a estratégia, menos agressivo no Xime, no Xitole e Mansambo, mas flagelando cruelmente as tabancas em autodefesa, é um período de flagelações constantes na linha que vai de Amedalai a Moricanhe. Soube-se no Cuor que ele regressara, o régulo veio com comitiva convidá-lo a assistir à inauguração do gerador elétrico, era a linha do progresso no Cuor. Devia ter dito que não, continua a pensar que ainda era muito cedo para se poder aplacar tão grande saudade, disse que sim, como se Missirá e Finete, o Cuor por inteiro, não fizessem parte da recordação mais terna e inviolável do seu tempo guinéu. Combinou com o capitão Figueiras e lá partiram para o evento, aos primeiros alvores da manhã, foi recebido ruidosamente, conseguiu guardar distâncias, enquanto viajava pelo Geba estreito recordou as dezenas de cartas enviadas para a engenharia, talvez a primeira fosse datada de outubro de 1968, promessas não faltaram, e agora estava ali, sabe-se lá porque lhe passou a ideia pela cabeça, uma faísca que parecia anunciar um tornado não era mais do que toda a luz elétrica que dava sinal de vida, um bonito contraste com as chapas zincadas que faiscavam à crueza do sol, soltaram-se umas lágrimas rebeldes entre os aplausos e a risada da população.
E volta para Bambadinca e é convocado pelo major de operações para o tal patrulhamento ofensivo, da sua inteira responsabilidade, tem um nome um tanto cómico, Beringela Doce, estão o major e ele na sala de operações, ele acompanha o movimento do ponteiro no mapa: sai de Amedalai, contorna Ponta Coli, avança para Gundaguê Futa-Fula, importa contornar as bases do Baio e do Burontoni, procurar sinais da presença do inimigo e seguir cuidadosamente para Ponta Varela, sai de manhã cedo, regressa no dia seguinte à tarde, algo como mais de 30 horas e um número incontável de riscos. Guardo os rascunhos que o Paulo ataviou, trouxe mesmo uma carta desta região do Xime, mas desta feita fazia-se acompanhar de secções de pelotões de milícias, inclusivamente gente de Finete e Amedalai, não foi envolvida a unidade militar do Xime, sabiam que não podiam sair do quartel, na medida em que o Paulo e os seus homens iam percorrer Ponta Varela. Uma noite destas conversei com o Paulo sobre tudo o que se passou: não havia indícios de passagem de população ou militares do PAIGC entre Amedalai e Ponta Coli, e mesmo até Chicamiel, a razão parecia ser muito simples, estava-se a alcatroar a estrada entre Xime e Bambadinca com alta proteção. Tenho aqui um papel do Paulo em que diz ter ouvido desabafos das milícias, estava anunciado que se ia abandonar Moricanhe e não havia já ilusões que seria a região de Badora a próxima a ser altamente flagelada. Há mesmo um comentário escrito pelo Paulo sobre a progressão até Ponta Varela: sinais muito antigos, mesmo indícios de uma antiga barraca do PAIGC, só em Ponta Varela é que encontrámos trilhos batidos, andámos sempre a corta-mato, pernoitámos entre Gundaguê Beafada e Madina Colhido.
Os acontecimentos dolorosos surgiram na manhã seguinte, vai-se de Ponta Varela até às proximidades do Poidon, nisto ouve-se tiroteio, acontecera que o soldado Serifo Candé viu avançar em sua direção uma coluna de lavradores ou de reabastecimento, não deu tempo para se perceber exatamente o quê e quem, Serifo atira uma rajada, feriu um homem e uma mulher, os outros fugiram, deixando para ali sacos de arroz e esteiras, pediu-se evacuação Y, perdida que estava a surpresa, regressou-se ao Xime e partiu-se imediatamente para transportar as milícias para os respetivos destacamentos. E tenho aqui um aerograma, um texto de profundo desalento em que o Paulo escreveu a um amigo a contar a conversa com o comandante, este insistia em policiamentos semanais para intimidar o PAIGC, não tinha ilusões, só as tropas especiais é que podiam desalojar forças tão enquistadas no terreno dos santuários, aprendera-se muito com uma operação chamada Lança Afiada, por ali se tinha andado doze dias até que a tropa regressou exausta e profundamente combalida, houve mesmo evacuações de barco no Corubal, gastara-se uma fortuna para resultados nulos, tinham-se apreendido umas toneladas de arroz, uns velhos desdentados e uns canhangulos, o PAIGC, inevitavelmente, saíra robustecido deste jogo do gato e do rato, o Paulo replicou que era indispensável manter Moricanhe e mudar a rota das operações, o Poidon era um celeiro, havia que aprender de uma vez por todas que se devia recuperar a posição da Ponta do Inglês. No final desse aerograma o Paulo observava que fora um discurso inútil, este batalhão está de partida, vamos ver se poderá passar a mensagem para quem dentro de dias vai chegar. É nisto que o tenente Pinheiro me informa que tem que estar dentro de dois dias em Bissau, é testemunha abonatória de Quebá Sissé, o amável cozinheiro de Missirá, que ao amanhecer do dia 1 de janeiro daquele ano, ao subir para uma viatura metera o dedo no gatilho da espingarda ferindo mortalmente Uam Sambu, que tombou para o regaço de Paulo, lá foram desvairados para a enfermaria de Bambadinca, mas nada se podia fazer mais, Uam espirara durante o voo em direção ao hospital militar. Enquanto arruma um saco de trastes para voltar a Bissau, Paulo conversa consigo próprio, é crucial que o magistrado perceba que se tratou do mais estúpido e funesto dos acidentes e que Quebá Sissé é um homem bom entre os bons.
(continua)
Nota do editor
Último poste da série de 1 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22585: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (72): A funda que arremessa para o fundo da memória
Queridos amigos,
Paulo Guilherme já regressou a Bambadinca, recomeçaram as andanças da guerra, há para ali uma atmosfera frenética, o batalhão de caçadores aguarda a todo o instante que cheguem os substitutos e até parece que a guerra deu tréguas com a exceção de uma singularidade que é a pressão em permanência do PAIGC sobre as tabancas em autodefesa. Ir-se-á abandonar aquela que estava mais ao extremo, em direção ao Xitole, de nome Moricanhe, a fatura virá depois, a pressão sobre a região do Cossé. E há o patrulhamento ofensivo de nome Beringela Doce, apanhou-se a coluna de reabastecimento ou de reaprovisionamento, o Paulo bem falou com o comandante que se estava a pagar a outra fatura, o abandono da Ponta do Inglês, ele encolheu os ombros, era problema para quem o vinha substituir. Deste modo se vivia a guerra. E de novo o serviço de justiça vai convocar Paulo para Bissau, ele vai testemunhar a santa inocência de Quebá Sissé que matou no acidente mais estúpido Uam Sambu, ao alvorecer de 1 de janeiro de 1970.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (73): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Páginas de comentários de Annette Cantinaux, constantes de um dossiê com a comissão de Paulo Guilherme, papéis que ela trouxe para organizar em Lisboa, havia inúmeros pedidos de explicação, ela pôs uma folha exterior a apensar um rol de imagens, aerogramas, até ordens de serviço e textos avulsos daquele alferes miliciano que voltara recentemente de Bissau; nessa folha exterior escreveu laconicamente: “Só de mim para mim”.
Nunca tive umas férias de verão como estas, com tanta ternura, com tanto desvelo deste meu adorado companheiro, recebeu com a maior afabilidade Jules, deu-nos a conhecer tanta beleza, sei que um dia destes tenho que regressar, um intérprete não pode falhar ao chamamento, é o seu modo de vida, tenho que cuidar de mim e dois filhos e continuar a pensar seriamente o que é que eu e o Paulo desejamos do futuro.
É um país surpreendente, a uma hora de Lisboa, na região Oeste, entramos num mundo frutícola e vinícola, há lindos castelos, visitei a Lagoa de Óbidos cheia de reentrâncias, o Paulo insistiu em mostrar a Jules onde passava as férias na sua juventude, um local chamado Foz do Arelho, um mar encapelado, uma vista panorâmica à esquerda em direção a Peniche, era um dia sem bruma, avistavam-se uns pontos ao fundo, o Paulo informou que eram as ilhas Berlengas, tenho a promessa de que lá iremos quando eu voltar a Portugal. Há praias lindíssimas, tomei uma fotografia de um pôr-do-sol na Praia da Areia Branca, tínhamos ido à Lourinhã visitar uma igreja que o Paulo disse ser do período manuelino e falou-nos daquela arquitetura que dias depois, já o Jules regressara a Bruxelas, encontrei no Convento de Tomar, em todo o seu esplendor, parecido só no Mosteiro dos Jerónimos, que me deixou emudecida, quando lá entrei pela primeira vez pensei que era o casco de um navio.
Mesmo em férias, o Paulo tinha que enviar artigos para publicações, organizou espaço no seu escritório para estarmos os dois, abri este dossiê, bem volumoso por sinal, estamos em maio de 1970, ainda faltam alguns meses para a comissão de Paulo terminar, um dia em agosto, no porto do Xime, entrará numa lancha da Marinha, regressará a Bissau, a guerra acabou. Uma vez dei comigo a pensar que sou um pouco como Xerazade, sei que é um comentário amargo, Xerazade tinha a cabeça a prémio se deixasse de contar histórias, a nossa relação não será afetada, estou absolutamente convicta, quando acabar a história da comissão. Mas afeiçoei-me a esta história, àquele período dos preparativos, ao modo como ele se integrou nas comunidades do Cuor, como ultrapassou aquele vexame de dois dias de prisão simples, acusado de não estar a dar o máximo para assegurar a segurança do quartel, ele que escrevia para todos, que sonhava todos os dias com o conforto, a segurança e o bem-estar dos dois destacamentos de que era responsável. Demorei a entender como ele se sentiu um tanto estrangeiro por ir viver para Bambadinca, alteraram-se as relações com as populações, fracionaram-lhe o pelotão, foi incumbido, permanentemente, de emboscadas, patrulhamentos, colunas de abastecimento, de trazer e levar feridos, sacos de arroz, munições, convocado para operações, grande parte delas sem pés nem cabeça. De saúde abalada, foi para Bissau, regressou tonificado a Bambadinca, rememora ainda hoje aquela experiência que viveu no hospital militar, não só o que se passou na Neuropsiquiatria, mas por ter presenciado um pesadelo que ignorava, os amputados medem-se uns aos outros e consolam-se quando têm mais membros que os comparados.
Tenho feito perguntas ao Paulo sobre o ambiente que ele encontrou em Bambadinca, o batalhão está pronto a partir, aguarda o substituto, o próprio pelotão do Paulo já não é o mesmo, saiu muita gente, vieram também substitutos. É um período em que aparentemente o PAIGC está mais calmo ou diversificou a estratégia, menos agressivo no Xime, no Xitole e Mansambo, mas flagelando cruelmente as tabancas em autodefesa, é um período de flagelações constantes na linha que vai de Amedalai a Moricanhe. Soube-se no Cuor que ele regressara, o régulo veio com comitiva convidá-lo a assistir à inauguração do gerador elétrico, era a linha do progresso no Cuor. Devia ter dito que não, continua a pensar que ainda era muito cedo para se poder aplacar tão grande saudade, disse que sim, como se Missirá e Finete, o Cuor por inteiro, não fizessem parte da recordação mais terna e inviolável do seu tempo guinéu. Combinou com o capitão Figueiras e lá partiram para o evento, aos primeiros alvores da manhã, foi recebido ruidosamente, conseguiu guardar distâncias, enquanto viajava pelo Geba estreito recordou as dezenas de cartas enviadas para a engenharia, talvez a primeira fosse datada de outubro de 1968, promessas não faltaram, e agora estava ali, sabe-se lá porque lhe passou a ideia pela cabeça, uma faísca que parecia anunciar um tornado não era mais do que toda a luz elétrica que dava sinal de vida, um bonito contraste com as chapas zincadas que faiscavam à crueza do sol, soltaram-se umas lágrimas rebeldes entre os aplausos e a risada da população.
E volta para Bambadinca e é convocado pelo major de operações para o tal patrulhamento ofensivo, da sua inteira responsabilidade, tem um nome um tanto cómico, Beringela Doce, estão o major e ele na sala de operações, ele acompanha o movimento do ponteiro no mapa: sai de Amedalai, contorna Ponta Coli, avança para Gundaguê Futa-Fula, importa contornar as bases do Baio e do Burontoni, procurar sinais da presença do inimigo e seguir cuidadosamente para Ponta Varela, sai de manhã cedo, regressa no dia seguinte à tarde, algo como mais de 30 horas e um número incontável de riscos. Guardo os rascunhos que o Paulo ataviou, trouxe mesmo uma carta desta região do Xime, mas desta feita fazia-se acompanhar de secções de pelotões de milícias, inclusivamente gente de Finete e Amedalai, não foi envolvida a unidade militar do Xime, sabiam que não podiam sair do quartel, na medida em que o Paulo e os seus homens iam percorrer Ponta Varela. Uma noite destas conversei com o Paulo sobre tudo o que se passou: não havia indícios de passagem de população ou militares do PAIGC entre Amedalai e Ponta Coli, e mesmo até Chicamiel, a razão parecia ser muito simples, estava-se a alcatroar a estrada entre Xime e Bambadinca com alta proteção. Tenho aqui um papel do Paulo em que diz ter ouvido desabafos das milícias, estava anunciado que se ia abandonar Moricanhe e não havia já ilusões que seria a região de Badora a próxima a ser altamente flagelada. Há mesmo um comentário escrito pelo Paulo sobre a progressão até Ponta Varela: sinais muito antigos, mesmo indícios de uma antiga barraca do PAIGC, só em Ponta Varela é que encontrámos trilhos batidos, andámos sempre a corta-mato, pernoitámos entre Gundaguê Beafada e Madina Colhido.
Os acontecimentos dolorosos surgiram na manhã seguinte, vai-se de Ponta Varela até às proximidades do Poidon, nisto ouve-se tiroteio, acontecera que o soldado Serifo Candé viu avançar em sua direção uma coluna de lavradores ou de reabastecimento, não deu tempo para se perceber exatamente o quê e quem, Serifo atira uma rajada, feriu um homem e uma mulher, os outros fugiram, deixando para ali sacos de arroz e esteiras, pediu-se evacuação Y, perdida que estava a surpresa, regressou-se ao Xime e partiu-se imediatamente para transportar as milícias para os respetivos destacamentos. E tenho aqui um aerograma, um texto de profundo desalento em que o Paulo escreveu a um amigo a contar a conversa com o comandante, este insistia em policiamentos semanais para intimidar o PAIGC, não tinha ilusões, só as tropas especiais é que podiam desalojar forças tão enquistadas no terreno dos santuários, aprendera-se muito com uma operação chamada Lança Afiada, por ali se tinha andado doze dias até que a tropa regressou exausta e profundamente combalida, houve mesmo evacuações de barco no Corubal, gastara-se uma fortuna para resultados nulos, tinham-se apreendido umas toneladas de arroz, uns velhos desdentados e uns canhangulos, o PAIGC, inevitavelmente, saíra robustecido deste jogo do gato e do rato, o Paulo replicou que era indispensável manter Moricanhe e mudar a rota das operações, o Poidon era um celeiro, havia que aprender de uma vez por todas que se devia recuperar a posição da Ponta do Inglês. No final desse aerograma o Paulo observava que fora um discurso inútil, este batalhão está de partida, vamos ver se poderá passar a mensagem para quem dentro de dias vai chegar. É nisto que o tenente Pinheiro me informa que tem que estar dentro de dois dias em Bissau, é testemunha abonatória de Quebá Sissé, o amável cozinheiro de Missirá, que ao amanhecer do dia 1 de janeiro daquele ano, ao subir para uma viatura metera o dedo no gatilho da espingarda ferindo mortalmente Uam Sambu, que tombou para o regaço de Paulo, lá foram desvairados para a enfermaria de Bambadinca, mas nada se podia fazer mais, Uam espirara durante o voo em direção ao hospital militar. Enquanto arruma um saco de trastes para voltar a Bissau, Paulo conversa consigo próprio, é crucial que o magistrado perceba que se tratou do mais estúpido e funesto dos acidentes e que Quebá Sissé é um homem bom entre os bons.
(continua)
Pôr-do-sol na praia da Areia Branca
Trancoso, cidade medieval
Penedono, célebre pela sua castanha
Os achados arqueológicos de Freixo de Numão
Barbearia Chiado, no Bissau Velho
A azáfama no cais do Pidjiquiti
Guarita do antigo comando da defesa marítima da Guiné, hoje chefia do Estado-Maior da Armada
Uma evacuação em Madina Colhido (regulado do Xime) durante a operação Boga Destemida
Batelões civis navegando no rio Geba em direção a Bambadinca
____________Nota do editor
Último poste da série de 1 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22585: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (72): A funda que arremessa para o fundo da memória
Guiné 61/74 - P22609: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte I: Mafra, janeiro de 1964
Mafra > EPI > Março de 1967 > "Fotografia do meu pelotão (1.º Pelotão da 1.ª Companhia de Instrução) do COM de janeiro de 1967, desfilando de regresso à parada da EPI, depois do juramento de bandeira. Nesta foto, do meu álbum de guerra, estou em 3.º lugar na 1.ª fila. O sargento, que empunha uma FBP, não conta.
"A foto foi tirada por um familiar de um camarada soldado-cadete. A foto é de março de 1967. Ainda fiquei mais cerca de 3 meses em Mafra para a especialidade de atirador de infantaria."
Foto (e legenda): © Eduardo Moutinho Santos (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Publicámos, no devido tempo, em 2009, há cerca de 12 anos, o "Diário de Guerra", do nosso camarada e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021) (*), que nos chegou às mãos, por intermédio do José Martins (ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70).
A grande maioria dos nossos leitores não teve oportunidade de conhecer este notável texto, de que se publicaram 11 postes (, muito espaçados, entre janeiro e setembro de 2009).
O "Diário de Guerra" abarca um período de tempo de seis anos, desde a entrada do autor em Mafra, em 26 de janeiro de 1964, para fazer a recruta e dar início ao Curso de Oficiais Milicianos (**) até ao fim da comisão na Guiné (onde foi alf mil, CCAÇ 800, Contuboel e Dunane, 1965/67) e o "difícil regresso à vida civil", entre 1967 e 1970. (***)
Estes textos fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).
1964
Janeiro, 26 – Acabei de chegar.
O casarão do convento é tão frio e tão feio, que tenho o coração a doer e vontade de chorar. Quem me dera agora na Ilha, o ventre materno para onde volto sempre que me sinto abandonado.
Durante a viagem de boleia de Coimbra para Lisboa, bem se esforçou o Carlos Candal, meu amigo e companheiro de República, por me animar. Está na tropa, na capital, e só amanhã vou principiar o Curso de Oficiais Milicianos. Fiquei na caserna número quinze, no terceiro piso, a maior de todas, de tecto abaulado e baixo.
Acabei de fazer a cama, como soube e pude. Segui atentamente a demonstração de um habilidoso furriel que exibiu as suas capacidades domésticas com mãos rápidas e tarimbeiras para um grupo de novos cadetes que entraram na caserna, debaixo de forma, para tomar posse do cacifo e do beliche. Também nos deu sábias instruções sobre disciplina, latrocínio de quartel e obediência.
Fiquei soldado-cadete número mil cento e catorze, barra sessenta e quatro. Depois de arrumar as minhas coisas e de mudar de roupa, fui até o Bar do Cadete, no piso do rés-do-chão, e lá encontrei o Camargo, que chegara na véspera. Já envergava o seu fato-macaco militar cor de azeitona.
Os meus passos naqueles túneis perdiam-se de perdidos que estavam. E logo amaldiçoei o empreiteiro de tal enormidade arquitectónica e as ordens religiosas que ali se encafuavam praticando as piores patifarias em nome de uma fé codificada. Tanto eu como o Camargo parecíamos dois fantasmas navegando por dentro das botas e do fato zuarte. Não ficámos na mesma caserna. Ele ficou na um, a antiga capela, juntamente com o Nogueira e Silva. Ao Vítor Branco, ilhéu da Madeira, coube a dois, a mais pequena e a mais aconchegada das três. Foi-me apresentado pelo Camargo. Fazemos um molhinho de solidariedade.
Janeiro, 27 – Esta noite não preguei olho.
Acolhido na caserna com uma caterva de jovens como eu, senti, ao deitar-me, uma tristeza encharcando-me os ossos e um desânimo só semelhante ao da criança perdida dos pais por entre uma multidão de desconhecidos, numa feira ou num arraial de festa de padroeira. Mas, ali, na caserna, não havia altifalantes como nos recintos das festas para anunciar a criança perdida.
Ali, naquele enorme dormitório, com um nauseabundo odor a pés, a ventosidades sonoras e a outras sorrateiras mas enjoosas, estava mesmo perdido para sempre. Mesmo que de mim próprio fizesse um grito de terror. Um toque, ainda madrugada escura, estranho, fez-me levantar do leito da insónia. Era o toque da alvorada. Depois de fardado, olhei-me de alto a baixo, e achei-me ridículo. Só não chorei por vergonha. Fiz a cama como quem escreve o a, e, i, o, u pela primeira vez. Estava ainda na primeira classe atrasada...
Mafra, Janeiro, 28 – Fiquei a pertencer ao quarto pelotão da terceira companhia de instrução.
O comandante da companhia, um tenente goês, é muito aparatoso nas continências. Parece um sinaleiro a apascentar o trânsito. Que mundo este!
O comandante do meu pelotão, o quarto da companhia, é um açoriano da Ilha Terceira. Mas ainda não me dei a conhecer, nem deve ser preciso, que ele deve-me topar pela pronúncia. Pelo que lhe já ouvi, deve ser um grande maluco e vai-nos decerto pôr a todos no mesmo estado. Já esteve em Angola cumprindo uma comissão e segundo consta fez lá das suas.
Hoje passámos o dia a aprender a fazer continência e a distinguir os postos. As aulas são na parada, com o pelotão formado em U. Aos superiores trata-se por meu. Meu isto, meu aquilo. Aos inferiores, por nosso. O cadete Carvalhosa, que tira apontamentos do que ouve ao alferes e está sempre muito atento à lição, como se estivesse nos bancos da Universidade, passou a tratar o cabo lateiro da arrecadação do material por meu cabo. O alferes foi aos arames com a atoarda. Ninguém pode sair do quartel para a Vila, após a instrução - ainda não sabemos comportar-nos militarmente. E não se sabe se vamos a fim-de-semana.
Janeiro, 29 – O comandante de pelotão mandou-nos formar.
E explicou-nos que a formatura era sagrada. Não se podia falar, mexer, rir ou sequer pensar. Creio, no entanto, que alguns pensaram. Depois afivelou uma cara de mau e afirmou que era proibido haver doentes. Só o médico poderia comprovar, porque assim determinava o Regulamento... Não está no Regulamento - era quanto bastava para se dar uma resposta menos regulamentar.
Janeiro, 30 – Escrevi-lhe para Coimbra uma longa carta.
Antes de para aqui vir, estive com ela e outras colegas no bar da Faculdade de Medicina, mas não tive coragem de me declarar. Fi-lo há pouco numa longa carta que por acaso principiei a escrever ainda na República, a semana passada.
Se for a fim-de-semana, vou tentar encontrar-me com ela e hei-de obter uma resposta. Mora num lar de freiras, ao lado da República. Não há-de ser difícil chegar-lhe à fala. Ainda não cicatrizei a ferida da outra, a da Ilha, e já estou a meter-me noutra...
Hoje, na segunda hora de instrução, com o pelotão formado em U, a aula versou sobre o conceito de pátria, como vem nas fichas da instrução, que esclarecem que se deve apresentar aos instruendos significativos exemplos da nossa História para lhes incutir os verdadeiros valores.
O nosso alferes pegou no manual e principiou a ler:
Janeiro, 31 – Iniciámos de manhã o estudo da espingarda Mauser, que se divide em dez partes, a saber...
O alferes ia chamando os cadetes por ordem numérica. Todos receberam a velha Mauser – "A vossa noiva, estimai-a como à vossa noiva..."
Saímos hoje para a Vila, depois da instrução da tarde na tapada. Mas não tivemos dispensa do recolher, nem da terceira refeição. Foi preciso fazer uma formatura de saída. O oficial de dia veio-nos passar minuciosa revista. À barba, ao cabelo, à graxa das botas ou dos sapatos da ordem, ao vinco das calças da farda número um, aos botões da camisa e da farda! Dois camaradas não foram autorizados a sair. Tinham os pêlos da barba a arranhar.
Voltámos ao quartel antes da terceira refeição. Como estava a chuviscar, fez-se a formatura para o jantar no corredor em frente do refeitório. Chama-se o corredor La Couture e nele andam jipes e outras viaturas militares. Na formatura do recolher tinha tanto sono que cabeceava em pé, enquanto o sargento de dia lia a ordem, fazia a chamada e distribuía o correio.
O Magalhães recebeu um telegrama da namorada, já aberto. O instruendo fazia anos. E o sargento, com ar de gozo, leu alto: Amo-te, stop, Madalena... Quando chegou ao meu número, pus-me em sentido e bati com os tacões das botas. Depois de ter mandado destroçar, fui para a cama. Eram nove e pouco da noite. Nunca dormi tão bem em toda a minha vida.
(Continua)
(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021
Na altura a revisão e fixação do texto, para efeitos de publicação neste blogue, foi da responsabilidade do nosso coeditor (hoje, jubilado( Virgínio Briote. Agradecemos ao José Martins a sua sensibilidade e a sua generosidade ao servir de intermediário entre o nosso blogue e o escritor, e ao aceitar organizar o texto para publicação no blogue, com a devida autorização do autor.
Está é também uma forma de homenagearmos a memória do nosso camarada açoriano Cristóvão de Aguiar que,como escritor,é dono de uma vasta obra (publicada na totalidade pelas Edições Afrontamento).
Foto: Wook (com a devida vénia...)
Diário de Guerra
por Cristóvão de Aguiar
1964
Janeiro, 26 – Acabei de chegar.
O casarão do convento é tão frio e tão feio, que tenho o coração a doer e vontade de chorar. Quem me dera agora na Ilha, o ventre materno para onde volto sempre que me sinto abandonado.
Durante a viagem de boleia de Coimbra para Lisboa, bem se esforçou o Carlos Candal, meu amigo e companheiro de República, por me animar. Está na tropa, na capital, e só amanhã vou principiar o Curso de Oficiais Milicianos. Fiquei na caserna número quinze, no terceiro piso, a maior de todas, de tecto abaulado e baixo.
Acabei de fazer a cama, como soube e pude. Segui atentamente a demonstração de um habilidoso furriel que exibiu as suas capacidades domésticas com mãos rápidas e tarimbeiras para um grupo de novos cadetes que entraram na caserna, debaixo de forma, para tomar posse do cacifo e do beliche. Também nos deu sábias instruções sobre disciplina, latrocínio de quartel e obediência.
Fiquei soldado-cadete número mil cento e catorze, barra sessenta e quatro. Depois de arrumar as minhas coisas e de mudar de roupa, fui até o Bar do Cadete, no piso do rés-do-chão, e lá encontrei o Camargo, que chegara na véspera. Já envergava o seu fato-macaco militar cor de azeitona.
Os meus passos naqueles túneis perdiam-se de perdidos que estavam. E logo amaldiçoei o empreiteiro de tal enormidade arquitectónica e as ordens religiosas que ali se encafuavam praticando as piores patifarias em nome de uma fé codificada. Tanto eu como o Camargo parecíamos dois fantasmas navegando por dentro das botas e do fato zuarte. Não ficámos na mesma caserna. Ele ficou na um, a antiga capela, juntamente com o Nogueira e Silva. Ao Vítor Branco, ilhéu da Madeira, coube a dois, a mais pequena e a mais aconchegada das três. Foi-me apresentado pelo Camargo. Fazemos um molhinho de solidariedade.
Janeiro, 27 – Esta noite não preguei olho.
Acolhido na caserna com uma caterva de jovens como eu, senti, ao deitar-me, uma tristeza encharcando-me os ossos e um desânimo só semelhante ao da criança perdida dos pais por entre uma multidão de desconhecidos, numa feira ou num arraial de festa de padroeira. Mas, ali, na caserna, não havia altifalantes como nos recintos das festas para anunciar a criança perdida.
Ali, naquele enorme dormitório, com um nauseabundo odor a pés, a ventosidades sonoras e a outras sorrateiras mas enjoosas, estava mesmo perdido para sempre. Mesmo que de mim próprio fizesse um grito de terror. Um toque, ainda madrugada escura, estranho, fez-me levantar do leito da insónia. Era o toque da alvorada. Depois de fardado, olhei-me de alto a baixo, e achei-me ridículo. Só não chorei por vergonha. Fiz a cama como quem escreve o a, e, i, o, u pela primeira vez. Estava ainda na primeira classe atrasada...
Mafra, Janeiro, 28 – Fiquei a pertencer ao quarto pelotão da terceira companhia de instrução.
O comandante da companhia, um tenente goês, é muito aparatoso nas continências. Parece um sinaleiro a apascentar o trânsito. Que mundo este!
O comandante do meu pelotão, o quarto da companhia, é um açoriano da Ilha Terceira. Mas ainda não me dei a conhecer, nem deve ser preciso, que ele deve-me topar pela pronúncia. Pelo que lhe já ouvi, deve ser um grande maluco e vai-nos decerto pôr a todos no mesmo estado. Já esteve em Angola cumprindo uma comissão e segundo consta fez lá das suas.
Hoje passámos o dia a aprender a fazer continência e a distinguir os postos. As aulas são na parada, com o pelotão formado em U. Aos superiores trata-se por meu. Meu isto, meu aquilo. Aos inferiores, por nosso. O cadete Carvalhosa, que tira apontamentos do que ouve ao alferes e está sempre muito atento à lição, como se estivesse nos bancos da Universidade, passou a tratar o cabo lateiro da arrecadação do material por meu cabo. O alferes foi aos arames com a atoarda. Ninguém pode sair do quartel para a Vila, após a instrução - ainda não sabemos comportar-nos militarmente. E não se sabe se vamos a fim-de-semana.
Janeiro, 29 – O comandante de pelotão mandou-nos formar.
E explicou-nos que a formatura era sagrada. Não se podia falar, mexer, rir ou sequer pensar. Creio, no entanto, que alguns pensaram. Depois afivelou uma cara de mau e afirmou que era proibido haver doentes. Só o médico poderia comprovar, porque assim determinava o Regulamento... Não está no Regulamento - era quanto bastava para se dar uma resposta menos regulamentar.
Janeiro, 30 – Escrevi-lhe para Coimbra uma longa carta.
Antes de para aqui vir, estive com ela e outras colegas no bar da Faculdade de Medicina, mas não tive coragem de me declarar. Fi-lo há pouco numa longa carta que por acaso principiei a escrever ainda na República, a semana passada.
Se for a fim-de-semana, vou tentar encontrar-me com ela e hei-de obter uma resposta. Mora num lar de freiras, ao lado da República. Não há-de ser difícil chegar-lhe à fala. Ainda não cicatrizei a ferida da outra, a da Ilha, e já estou a meter-me noutra...
Hoje, na segunda hora de instrução, com o pelotão formado em U, a aula versou sobre o conceito de pátria, como vem nas fichas da instrução, que esclarecem que se deve apresentar aos instruendos significativos exemplos da nossa História para lhes incutir os verdadeiros valores.
O nosso alferes pegou no manual e principiou a ler:
"Temos, por exemplo, D. Duarte de Almeida, o decepado, o porta-bandeira ou alferes, que ofereceu com o seu gesto heróico um verdadeira lição de patriótico amor, abnegação e audácia.
"Outro feito que dignifica as páginas doiradas da nossa História é o praticado por D. João de Castro, Vice-Rei da Índia, que num acto valoroso, cortou, como penhor, as venerandas barbas... E a propósito, nossos cadetes, quero lembrar-vos que na formatura para terceira refeição vou passar revistas às barbas e cabelos"..
"Outro feito que dignifica as páginas doiradas da nossa História é o praticado por D. João de Castro, Vice-Rei da Índia, que num acto valoroso, cortou, como penhor, as venerandas barbas... E a propósito, nossos cadetes, quero lembrar-vos que na formatura para terceira refeição vou passar revistas às barbas e cabelos"..
Janeiro, 31 – Iniciámos de manhã o estudo da espingarda Mauser, que se divide em dez partes, a saber...
O alferes ia chamando os cadetes por ordem numérica. Todos receberam a velha Mauser – "A vossa noiva, estimai-a como à vossa noiva..."
Saímos hoje para a Vila, depois da instrução da tarde na tapada. Mas não tivemos dispensa do recolher, nem da terceira refeição. Foi preciso fazer uma formatura de saída. O oficial de dia veio-nos passar minuciosa revista. À barba, ao cabelo, à graxa das botas ou dos sapatos da ordem, ao vinco das calças da farda número um, aos botões da camisa e da farda! Dois camaradas não foram autorizados a sair. Tinham os pêlos da barba a arranhar.
Voltámos ao quartel antes da terceira refeição. Como estava a chuviscar, fez-se a formatura para o jantar no corredor em frente do refeitório. Chama-se o corredor La Couture e nele andam jipes e outras viaturas militares. Na formatura do recolher tinha tanto sono que cabeceava em pé, enquanto o sargento de dia lia a ordem, fazia a chamada e distribuía o correio.
O Magalhães recebeu um telegrama da namorada, já aberto. O instruendo fazia anos. E o sargento, com ar de gozo, leu alto: Amo-te, stop, Madalena... Quando chegou ao meu número, pus-me em sentido e bati com os tacões das botas. Depois de ter mandado destroçar, fui para a cama. Eram nove e pouco da noite. Nunca dormi tão bem em toda a minha vida.
(Continua)
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Notas dos editores VB / LG:
(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021
(**) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P3823: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (I): Mafra, Janeiro de 1964
(**) Vd. postes de:
7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4917: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (X): O difícil regresso à vida civil (Jan - Jun 1967)
10 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4932: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (XI): Final (Mai68-Jan70)
quinta-feira, 7 de outubro de 2021
Guiné 61/74 - P22608: Blogpoesia (750): "Guiné-Bissau - Canchungo", por Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70)
1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 4 de Outubro de 2021:
Bom dia Carlos Vinhal
Aqui estou retomando o envio de coisinhas minhas mas para todos.
Espero que tenham passado este tempo em que desapareci daqui, bem dispostos e de boa saúde.
Para que não fiques sem trabalho, aqui vai a Vila de Teixeira Pinto.
Um Abraço para os Membros da Tabanca Grande, em especial para os Régulos.
Albino Silva
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Último poste da série de Albino Silva de 10 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22272: Blogpoesia (740): "Guiné-Bissau - Canchungo", por Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70)
Último poste da série Blogpoesia de 26 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22573: Blogpoesia (749): "Na proximidade do espaço e do tempo"; "A aproximação dos rios"; "Palavras doces" e "Armadilhas", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728
Bom dia Carlos Vinhal
Aqui estou retomando o envio de coisinhas minhas mas para todos.
Espero que tenham passado este tempo em que desapareci daqui, bem dispostos e de boa saúde.
Para que não fiques sem trabalho, aqui vai a Vila de Teixeira Pinto.
Um Abraço para os Membros da Tabanca Grande, em especial para os Régulos.
Albino Silva
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Último poste da série de Albino Silva de 10 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22272: Blogpoesia (740): "Guiné-Bissau - Canchungo", por Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70)
Último poste da série Blogpoesia de 26 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22573: Blogpoesia (749): "Na proximidade do espaço e do tempo"; "A aproximação dos rios"; "Palavras doces" e "Armadilhas", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728
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