quinta-feira, 19 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23278: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte IV

1. Parte IV da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte IV

Sobre o assassinato dos Majores e para que fique registado como a mancha mais negra que trouxe da Guiné, foi este acontecimento.

Recordo como fosse hoje. Dia vinte de Abril de 1970. Cerca de dois meses antes sentimos sopros de liberdade e que a guerra se aproximava do fim. Naquela zona da Guiné, as nossas tropas movimentavam-se com liberdade havendo ordens de se evitarem contactos com o PAIGC. As escoltas para Bissau faziam-se sem armas. O Chefe da guerrilha da zona esteve no nosso Quartel trocando impressões com o nosso Comando. Levou umas caixas de batatas porque disse ele terem armas, mas não alimentos. Soldados nossos que gostavam de caçar, infiltravam-se no mato com muita tranquilidade.

Dia vinte de Abril. Levantei-me cedo para apanhar a escolta em mais uma ida minha a Bissau. Manhã cinzenta e triste.

 Verifiquei um movimento fora do normal no Quartel. Procurei saber o que se estava a passar. Baixinho me disseram que uns Majores iam para uma reunião com a guerrilha para acertarem o fim da guerra na Guiné.

Parti na escolta para Bissau sem qualquer arma de defesa tal como todos os militares que na mesma iam, com a missão de me protegerem e aos outros que a consultas externas iam ou para férias.

De regresso ao fim da tarde quase noite depois de a jangada ter atravessado o Rio Mansoa, uma patrulha chefiada pelo alferes Francisco da nossa Companhia 86, muito nervoso por nos ver sem qualquer arma de defesa, se dirigiu a mim como o mais graduado da escolta, para termos o máximo dos cuidados de não ligarmos as luzes dos meios de transportes que tínhamos porque se encontrava um grupo de guerrilha estranho na zona e que os Majores ainda não tinham regressado do mato o que era muito estranho e que algo estava fora do controle. 

Fiquei como todos os que comigo se encontravam em pânico.
Felizmente fazia luar. Todos nós apoquentados por não termos meios de defesa em caso de ataque da guerrilha. Em grande aceleração já que a estrada bem alcatroada o permitia como também, o luar nos iluminava.

São e salvos chegámos já bem noite ao Quartel no Pelundo. O ambiente que encontrei era pesado demais para o habitual. Toda a gente de rosto cabisbaixo. Na aldeia quando por lá tínhamos acabado de passar não se viu ninguém nas ruas. Perguntei ao primeiro militar com quem me cruzei o que se passava. Resposta seca. – Os Majores ainda não regressaram!

Aproximei-me da zona de Comando e o vai e vem era enervante. Soube naquele momento que a maior tristeza era não poder sair qualquer patrulha nossa ao encontro dos nossos Majores e demais acompanhantes. Tinha sido negociado um compromisso de, durante vinte e quatro horas, não haver qualquer movimento das nossas tropas para se evitarem confrontos. Tudo bem estudado pelo inimigo. Mesmo assim, os nossos militares e acompanhantes arriscaram já que, tinham como missão tentar acabar com a guerra.

Com uma noite mal dormida derivado a toda a agitação do dia anterior, levantei-me mais cedo que o habitual e, logo deparei com o General Spínola muito agitado e a chorar.

Soube que as nossas tropas tinham saído de madrugada à procura dos nossos Majores e demais acompanhantes. Dirigi-me rapidamente para o Posto Médico para saber pelo Dr. Dinis Calado quais os preparativos a tomar. Não foi necessário esperarmos muito porque vimos chegar a patrulha com as viaturas onde os nossos se tinham deslocado e, os corpos esfacelados, noutras viaturas.

Acompanhei o Médico até junto dos corpos para este examinar as causas das mortes e, se possível há quantas horas os casos teriam acontecido.  Com eles tinha seguido também um representante do Governo da Gâmbia que também todo cortado apresentava as suas mãos esfaceladas só em pedacitos de pele tanto como, os dois ex-guerrilheiros que com eles seguiram para servirem de intérpretes.

Verifiquei também que os jipes tinham os capôs com descrições a giz onde se podia ler o seguinte: - Nem só com homens as guerras se ganham.

Uma onda de raiva percorreu todo o meu corpo. Andei dois dias sem poder encarar um negro. A população da aldeia receosa não saiu de casa. Porem, ao fim da tarde do segundo dia, um grupo de homens vieram pedir armas e seguirem com os nossos para o mato procurando os assassinos. Este gesto da população veio a acalmar os ânimos.

Esta era a quarta e última reunião agendada com a guerrilha do Norte da Guiné para, a partir desta parte do território levar ao fim o conflito.

O Major Pereira da Silva que tinha conhecido em Buba, por várias vezes tinha-se encontrado com a guerrilha inclusive, dormido em seus acampamentos. O Major Passos Ramos conheci-o pouco tempo antes, quando veio ter comigo ao Posto Médico pedir-me uma aspirina para as dores de cabeça que naquele dia sentia, mas, só se não fizesse falta para os soldados. Homem extraordinário e muito estimado pelos nativos daquela zona. Do Major Osório, só de ouvir falar muito dele e das suas capacidades operacionais que tantas baixas iam causando ao PAIGC.
 
O Alferes Miliciano Mosca (meu colega de profissão civil) fazia parte dum grupo destinado à acção psicológica, da qual eu fazia parte também.

Devo acrescentar que os nossos militares foram para esta reunião sem com eles levarem qualquer arma conforme o combinado e, era também norma, a guerrilha não ter armas nestas reuniões. Acontece que estes guerrilheiros foram surpreendidos por um outro grupo de altas patentes contrárias ao fim do conflito. No grupo da guerrilha que se encontrava com os nossos, havia um infiltrado para dar o golpe final e liquidar de uma só vez a chamada fina flor dos nossos oficiais na Guiné.

Muitos fuzilamentos viemos a saber que aconteceram entre aqueles com quem os Majores se encontravam. Aos naturais de Cabo Verde que chefiavam o PAIGC não interessava os objetivos que se prepunham nestas reuniões e que eram acabar com a guerra. Daquela forma eles não faziam parte dos resultados finais, ou seja, de dois países unidos e independentes. Cabo Verde ficava sem qualquer hipótese de se tornar um país independente porque nunca foi Colónia de Portugal, mas sim, ilhas povoadas pelos Portugueses.

Com aqueles acontecimentos foi meu pensamento que Amílcar Cabral tinha os seus dias contados. Os guerrilheiros interessados no fim da guerra, e que escaparam aos fuzilamentos, não mais lhe perdoariam ter autorizado aquele massacre, isto porque Spínola mandou bombardear todas as bases conhecidas causando muitas baixas à guerrilha.

Ainda hoje ao escrever estes acontecimentos, retenho as imagens do passado que são as lembranças mais dolorosas daqueles tempos. Soube anos mais tarde por um colega meu natural da Guiné e que várias vezes com ele me encontrava em Lisboa, que o infiltrado naquele grupo e se gabava de ter matado os Majores, tinha posto fim à sua vida na prisão onde foi parar numa das várias revoltas que lá aconteceram, enforcando-se nesta. Teve o fim que merecia.
Pelundo > Dia da inauguração da escola e da residência para o professor, pelo General Spínola. Este fez um discurso arrasador para o Régulo Vicente. Isto aconteceu pouco tempo após o massacre dos três Majores, do Alferes, do representante do governo da Gâmbia e dos três ex-guerrilheiros do PAIGC.

Voltando ao meu dia a dia no Pelundo, breves dias depois da inauguração do Posto Médico Civil e da Escola, esta começou a funcionar com uma professora de origem cabo-verdiana, mais um irmão que a complementava. Cabe-me dizer, que a Escola possuía lateralmente residência para os professores.

Um dos casos de saúde que muito, desde então até aos dias de hoje, me preocuparam e me deixam indignado, está relacionado com as jovens, e algumas já menos jovens mulheres, que vão sofrendo mutilações sexuais.

A certa altura no ano de 1970 fui chamado por dois adultos ligados à família de Régulo Vicente, para os poder acompanhar a uma zona nos arredores da população e, deste modo, verificar alguns casos de saúde. Achei estranho, pedirem-me para ir fora do perímetro da população já que, ou vinham ao posto médico ao quartel ou solicitavam ajuda à companhia para fornecer meios de transporte para estes casos. Confesso que pensei duas vezes mas, falando para dentro de mim, achei que não deveria mostrar receio e confirmei que os seguiria e só, conforme o pedido deles.

Receoso à medida que muito me afastava para o interior do mato, chegamos a uma clareira onde se encontrava um grupo de jovens, neste caso rapazes. Seminus, com uma espécie de forquilha presa à anca para que o pénis ficasse no meio e, deste modo, não tocar nas suas pernas. Espantado e meio aterrorizado com o que meus olhos observavam, perguntei que barbaridade era aquela? Furiosos com a minha pergunta, resolveram entrar em ameaças já que me encontrava sozinho. Respondi, logo de seguida, que não lhes tinha medo, mas sabe Deus como eu me encontrava fragilizado. Então o que se passava. Fizeram a circuncisão com lâmina e a sangue frio àqueles jovens. Alguns deles apresentavam grandes infeções. Teriam que ser rapidamente tratados com antibióticos, mas queriam que eu me deslocasse lá ao que me recusei imediatamente. Pensaram bem e acabaram por ceder na condição de ser só eu a saber do caso e também apenas ser eu a tratá-los. Aproveitei, a ignorar os acontecimentos e exigir que me informassem do que estava a acontecer às jovens que eu soube se encontravam fora da população. Responderam-me que fazia parte do “Fanado” nas meninas e que constituía no corte do clitóris.

A minha indignação naquele momento foi enorme e acabei por lhes dizer que tudo o que observei e o que não vi, mas que me acabavam de descrever, era um crime de saúde pública pois, no caso das meninas, estavam a privá-las de satisfação de prazer sexual a partir daquele acto. Voltaram a não gostar de me ouvir e repetiram novas ameaças. Virei costas e regressei ao Quartel.

Durante os dias seguintes lá fui tratando das infeções aos rapazes e em algumas jovens também. Acrescento que por fim, aquando na festa final da realização do “Fanado”, reparei que duas ou três mulheres já com filhos faziam também parte do grupo.

Já em Portugal, por várias vezes citei este crime de saúde pública sempre que tinha na minha frente pessoas ligadas à saúde e naturais de África. Houve uma Médica que me respondeu dizendo que este assunto era culpa política do tempo de Salazar. E hoje? Pergunto de novo!
Pelundo > Refeitório dos Sargentos > Um colega da Granja de Bissau mais o chefe da secretaria. Este meu colega de nome Elói ,veio para Lisboa logo a seguir ao 25 de Abril, com quem continuei a encontrar-me.

Voltando de novo à parte militar, cabe-me dizer que quando tive que me ir juntar ao Batalhão no Pelundo e após a travessia do Rio Mansoa, a estrada que tínhamos de percorrer durante muitos quilómetros se encontrava em terra batida tal como a que nos separava da cidade de Teixeira Pinto. Como tal, os sapadores iam primeiro na frente picando o percurso, não fossemos apanhar minas na estrada. Assim, nos primeiros meses, verifiquei não só a construção das nossas novas instalações como aquelas estradas foram alcatroadas e lateralmente foi desmatado, de modo a dificultar ao inimigo realizar emboscadas.

Além do posto Médico e da Escola, foi também construída uma Igreja mais ou menos ao centro da aldeia.
A minha aproximação com a população foi diariamente aumentando, contribuindo para tal a jovem que cuidava da minha roupa de nome Judite. O carinho que ela me começou a dedicar e também todos os seus familiares, tornou-se conhecido na aldeia e no Quartel. Ainda hoje, aquando nos encontros para almoços do Batalhão alguns me falam dela.

Como referi em páginas anteriores, a minha missão na Guiné não se resumia apenas a cuidar da saúde dos nossos militares que comigo se encontravam, mas também da população. Uma outra missão me foi solicitada e se referia a ajudar os locais a cuidar das suas safras, de modo diferente da que efetuavam, de modo a poderem aumentar os seus bens alimentares.

Assim, além do arroz e mandioca, também semeavam feijão e amendoim (aqui conhecido por mancarra). Outras culturas como a bananeira, a papaia, a manga e o coco, sem esquecer o milho e a castanha de caju (esta uma das grandes riquezas da Guiné) mais as palmeiras das quais extraíam o óleo de palma para temperar os seus alimentos.

No Pelundo verifiquei que as culturas de sementeira (exemplo do feijão e do amendoim) após esta, os possuidores destas culturas só lá voltavam para a colheita. Deste modo, observei que as plantas infestantes eram mais que as plantas cultivadas. Acresce, e antes que me possa esquecer, que praticamente todo este trabalho era efetuado por mulheres, muitas delas com idade avançada que, bem cedo, ainda antes do Sol nascer, lá iam de sachola ao ombro para o campo.

As árvores que produziam as mangas, encontravam-se espalhadas ornamentando as ruas da aldeia. Estas árvores frutificavam com abundância, embora do meu ponto de vista técnico de fraca qualidade, já que seus frutos eram resinosos e muito fibrosos. A população mordiscava os frutos sugando o sumo.
As bananeiras que pude ver e observar bem, produziam bananas de tamanho muito reduzido embora muito saborosas. O tamanho do fruto era resultante das plantas não serem podadas. O pé da bananeira que produzir fruto deve ser eliminado para que outro que rebenta possa ser mais forte e assim produza cachos com frutos mais desenvolvidos.
Papaeiras vi muito poucas naquele local. Plantamos no último ano que lá estivemos, e em frente da entrada do Quartel, várias destas plantas frutíferas que foram fornecidas pelo meu colega da Guiné que chefiava a granja de Teixeira Pinto.

Assim, cumprindo a minha tarefa de ajuda técnica agrícola à população, falei com um dos filhos de Régulo Vicente, para acertarmos o dia e o lugar onde poderia dar uma palestra com os chamados Homens Grandes. Deste modo, acertei com eles uma manhã de fim-de-semana para não complicar com o meu horário de trabalho na saúde.

Com todo o grupo reunido num terreno que servia duma espécie de quintal, como previamente se tinha combinado, a palestra seria sobre o cultivo da mandioca cuja farinha era uma das bases da sua alimentação.
 
Este terreno encontrava-se inculto, não cavado e cheio de plantas infestantes. Esta escolha feita por mim teve um propósito de poder verificar em loco, como preparavam a terra. Pedi-lhes então que me fizessem a preparação do terreno conforme os seus hábitos para plantar as estacas de mandioca.

Um dos homens presentes segurou numa espécie de enxada e, com ela, foi virando leiva sobre leiva executando assim o camalhão sobre o qual se espetariam as estacas de mandioca.

Acabado por eles este trabalho, tomei a palavra, dizendo-lhes que com aquele amanho da terra se justificava terem plantas com raízes tão rudimentares que produziam tão pouca farinha tão necessária para a sua alimentação. Aconselhei-os primeiro a cavarem toda a terra, sacudirem dela todas as ervas e então, construírem o camalhão onde com a terra fofa aplicariam as estacas de modo a produzirem raízes grossas e, como tal, mais farinha.

Responderam-me em coro que daquela maneira dava manga de trabalho. Nega doutor, disseram-me eles. Respondi então que de outro modo não valia a pena eu ensinar-lhes formas da aumentarem a produção de bens alimentares. Fiquei desiludido.

Falei dias depois com o meu colega guineense, pessoa muitas vezes já citada nesta minha passagem por este país Africano. Alertou-me para desistir de lhes dar conselhos, dizendo-me serem pessoas que não gostavam muito de vergar as costas.

Guiné 61/74 – P23277: (Ex)citações (408): Os Serviços de Reordenamento da Guiné pelo BENG 447 e tropas de quadrícula, apoiados pelas populações locais (José Câmara)

1. Mensagem do nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 16 de Maio de 2022 onde nos fala, a pedido do editor Luís Graça, da cooperação da 3327 com a população no reordenamento de  de Bissássema:

Mano Carlos, amigos e companheiros,
O Luís Graça sugeriu que um simples comentário meu fosse publicado como “poste” e pediu-me a adição de mais algumas fotos.
Tal como afirmei no comentário inicial, a minha integração nas tropas africanas da Guiné aconteceu alguns dias antes da CCaç 3327/BII17, a minha companhia ter ido para Bissássema, subsector de Tite. Fiz os possíveis para me colocar no “terreno”, mas admito a possibilidade de alguma falha factual. As fotos que tenho foram-me cedidas por diferentes fontes, a quem presto a devida vénia.


Dito isto, para além do serviço militar da sua responsabilidade nas matas da Guiné, importa realçar o trabalho insano desenvolvido por aquela CCaç 3327/BII17 em prol das populações daquela zona e que perduraram no tempo.
Sem lá ter estado, os meus companheiros daquela companhia certamente compreenderão no meu desabafo, o orgulho que ainda hoje sinto pelo seu trabalho, pela sua abnegação, pelo seu sacrifício, pelo respeito pelas populações locais, pelo seu companheirismo, pela amizade que desde então perdura entre todos.


Este foi o comentário que fiz ao Poste Guiné 61/74 - P23252: 18º aniversário do nosso blogue (14): até meados de 1971, o Serviço de Reordenamentos do BENG 447, com o apoio das unidades militares e as populações locais, construiram 8 mil casas cobertas a colmo e 3880 cobertas a zinco e que mereceu a atenção do Luís Graça:

"Caros amigos e companheiros,

Eu saí para as tropas africanas nas vésperas da minha companhia, a CCaç3327/BII17, ir para o sector de Tite. Os dados que a seguir registo foram tirados da História da Unidade e de alguma consulta com os meus companheiros que lá estiveram.

A CCaç 3327/BII17 assumiu a responsabilidade de Bissássema, subsector de Dita, no dia 19 de Novembro de 1971, altura em que deu início a uma das suas responsabilidades, o reordenamento de Bissássema. Com a ajuda das populações daquele local, até ao fim do mês de Maio de 1972, construiu 100 (cem) casas cobertas a zinco. Relembro aqui que era Chefe de Tabanca o guineense Augusto, várias vezes referenciado em outros artigos.

Após a construção daquelas casas, ainda antes do tempo das chuvas, a companhia construiu mais um edifício para ser usado como messe da oficiais e sargentos. Os edifícios destinados ao aquartelamento também sofreram remodelações com a cimentação de paredes e chãos, sendo que a cantina das praças foi aumentada para sala de convívio.

Durante o período foi acabada a estrada e alcatroamento da que ligava Bissássema a Tite. Também foi construído um furo artesiano, tendo a CCaç 3327/BII17 procedido à construção dos fontenários. Também se fez a electrificação do perímetro. Também se procedeu à abertura e manutenção de uma agropecuária que visava a melhoria da agricultura e das espécies animais.

E mais, talvez a melhor obra da CCaç 3327, pelo impacto que poderá ter tido na vida das pessoas, sobretudo as crianças de então, foi a construção de duas escolas e o professorado (por militares) do ensino primário. Para o interesse que possa ter para a nossa história, a companhia tinha duas equipas na construção das casas. Não posso precisar o número de militares em cada equipa, mas o pessoal envolvido andaria por um pouco mais de duas secções e junte-se a isso um pelotão destacado em Tite. A falta desses efectivos nas actividades militares era compensada com a adição de dois grupos de milícias, os Pelotões de Milícias n°s 294 (38 milícias) e 295 (39 milícias) perfeitamente integrados nos grupos de combate da companhia.”

Foto 1 – Construção de uma casa no Reordenamento de Bissássema. Na foto o 1.° Cabo At Inf José Silveira Leonardes, o Sold At Inf João Lourenço de Avelar Ventura e o Sold At Inf Idalmiro Neves de Melo procedem à cobertura da nova casa.
Foto 2 – Aspecto da Tabanca de Bissássema. Os dois primeiros edifícios faziam parte do aquartelamento.
Foto 3 – Coluna auto onde são bem visíveis elementos da CCaç 3327 e dos Pelotões de Milícia (desconheço o nome dos dois milícias na foto). De frente para nós, na fila de trás, da esquerda para a direita: o 1.° Cabo Jorge Manuel da Ponte Moniz (já falecido) e o Furriel Mil Henrique Francisco Garrido. Com as costas viradas para nós e pela mesma ordem, o 1.° Cabo Telegrafista Álvaro Ferreira Pereira, o Sold Manuel Alberto da Silva Rocha (já falecido) e o 1.° Cabo Carlos Manuel da Silva.
Foto 4 – Da esquerda para a direita: o Sold At Inf NM 11532470, Raimundo Henrique da Silva, (já falecido) e o 1.° Cabo At Inf NM José Marcelino Gonçalves de Sousa, no regresso de uma operação à Península da Junqueira onde foi apreendido algum material IN.
Foto 5 – 1.° Cabo José Sousa (CCaç 3327/BII17) junto do Monumento da CCav 2765 aos seus mártires de guerra.
Foto 6 – O mesmo monumento, mas do outro lado, com a inscrição da CCaç 3327 com o cuidado em juntar a inscrição dos Pelotões de Milícias.
Foto 7 – Cópia de um documento da História da Unidade referindo a visita do Ministro da Defesa Horácio Sã Viana Rebelo.
Foto 8 – O Alferes Agostinho Morgado Barata Neves (2), se bem julgo saber, na altura a comandar o aquartelamento de Bissássema, cumprimentando o Ministro da Defesa, Horácio Sá Viana Rebelo. O Alferes Francisco João Magalhães (1), coadjuvado que foi pelo Fur Mil Manjuel Lopes Daniel e, no impedimento deste, pelo Fur Mil João Alberto Pinto Cruz, era o oficial responsável pelas construções do Reordenamento de Bissássema, aguarda a sua vez para cumprimentar o Ministro da Defesa Nacional. Entre outros oficiais, o General Spínola (3) acompanhou esta visita Ministerial.
Foto 9 – Documento retirado da História da Unidade que atestam alguns dos trabalhos realizados pela CCaç 3327/BII17 no reordenamento de Bissássema e arredores (escolas de Feninque e Fóia. Estes trabalhos prolongaram-se e foram concluídos no mês de Novembro e primeira semana de Desembro.
Foto 10 – Elementos da CCaç 3327/BII17 na capinação e limpeza do auqrtelamento de Bissássema.
Foto 11 – O 1.° Cabo At Inf Carlos Manuel Fragoso de Medeiros conduzindo as suas tropas, devidamente “fardadas” para o tempo, os alunos (as) da escola primária mantida pela CCaç 3327/BII17.

O ensino escolar foi, certamente, uma boa herança deixada pela CCaç 3327 na então Província Ultramarina da Guiné.

Abraço transatlântico.
José Câmara
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Nota do editor

Vd. poste de 10 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23252: 18º aniversário do nosso blogue (14): até meados de 1971, o Serviço de Reordenamentos do BENG 447, com o apoio das unidades militares e as populações locais, construiram 8 mil casas cobertas a colmo e 3880 cobertas a zinco

Último poste da série de 8 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 – P23247: (Ex)citações (407): Pedaços da vida militar. A tropa e o caminho rumo à Guiné. (José Saúde)

Guiné 61/74 - P23276: Convívios (927): A Magnífica Tabanca da Linha reabre hoje, em Algés, no Restaurante Caravela de Ouro, ao fim de mais de dois anos de pandemia... Uma luzidia representação do Porto, de "O Bando" (incluindo 3 escritores), vem animar este 48º convívio, já histórico...


Uma foto de família, já antiga, do "Bando do Café Progresso, das Caldas à Guiné", tirada por ocasião dos seus 10 anos de existência... Legenda: "Em 10/11/2017,  o Bando em Mogadouro, a caminho de Vila For". 

Na altura ainda eram vivos o Jorge Teixeira (Portojo) (o quinto da fila de trás, a contar da direita, se não erro), e o Joaquim  Peixoto (o terceiro da primeira fila, a contar da direita). 

Mas, já agora, aqui ficam os seus nomes, da esquerda para a direita: 1ª fila: João,  Jorge Teixeira, António Tavares, Zé Manel Cancela, Xina, Valdemar,  José Ferreira (o que único que usa chapéu... preto), Cibrão, Joaquim Peixoto,  António Carvalho e Fernando Súcio; 2ª fila: Jorge Lobo, um elemento não identificado (por detrás do Cancela), Ricardo Figueiredo, Alberto, Eduardo Campos, Freire, Manuel, e António Pimentel... 

Grande parte deles são também membros da Tabanca Grande, mas faltam aqui nomes como o Eduardo Moutinho. Não sabemos quem tirou a foto

Foto: página do Facebook do Bando (2017), com a devida vénia


1. Ao fim destes dois anos e tal de pandemia de Covid-19 que obrigaram a fechar as nossas Tabancas e a impedir os nossos convívios regulares, a Magnífica Tabanca da Linha, com sede em Algés, Oeiras, abre as portas de par em par (, do "reservado" do Restaurante Caravela d' Ouro) (*) para receber cerca de 9 dezenas de convivas, os "magníficos" do costume, os "meninos da Linha", mais uma luzidia representação do Porto, a mais famosa tertúlía literária, memorialística, cultural, recreativa, gastronómica, almocarística, jantarística e escursionista resgistada originalmente sob o nome Bando do Café Progresso, das Caldas à Guiné e, mais familiarmente conhecida nas redes sociais como os "Bandalhos", agora sem pouso certo (deixaram o Café Progresso e voltaram à vida nómada). O Bando, apesar de tudo, tem um chefe que é o Bandalho-Mor, Jorge Teixeira. 

Eis a lista dos "Bandalhos" que ainda vinham há um bocado no comboio da manhã que há de chegar a Santa Apolónia, e que o António Carvalho me confirmou pelo telemóvel. Diga-se, de passagem, que não é uma simples representação dos "Bandalhos", é uma verdadeira "deputação":

  • António Carvalho (escritor)
  • Eduardo Campos
  • Eduardo Moutinho Santos (régulo também da Tabanca de Matosinhos)
  • Fernando Súcio
  • Francisco Baptista (escritor)
  • Jorge Teixeira (Bandalho-mor)
  • José António Sousa
  • José Ferreira da Silva (escritor)
  • José Manuel Cancela
  • José Sousa
  • Ricardo Figueiredo 

Estão 3 limusines em Santa Apolónia à espera dos "Bandalhos" para os levar até magnífica mesa da Tabanca da Linha.  É tudo gente que vem por bem, apesar do seu indisfarçável (e às vezes truculento) "humor tripeiro": além de 3 escritores, já consagrados, o grupo incluiu dois juristas,  cujos préstimos estão sempre disponíveis para as pequenas e grandes ocasiões, o Eduardo Moutinho Santos e o Ricardo Figueiredo. 

Só soube  há dias do evento, ao falar ao telefone com o meu vizinho Humberto Reis e depois ontem  com o António Carvalho, o Manuel Resende (régulo da Magnífica Tabanca da Linha), o Jorge Ferreira e o Manuel Gonçalves (que vai lá estar com a sua companheira e a minha querida amiga Tucha, e uma neta), e ainda pelo anúncio que o Francisco Baptista aqui fez no blogue:

(...) "No próximo dia 19, irei com alguns camaradas do Porto, ao almoço da Tabanca da Linha, que, tendo como Régulo o camarada Manuel Resende, cada vez ganha mais fama pelas bebidas e cozinhados que revigoram o corpo, aquecem a alma e ajudam a criar um alegre convívio, que todos os ex-combatentes da Guiné apreciam.

Tal como eu dois outros camaradas (António Carvalho e José Ferreira da Silva) levaremos livros , eu já li os três e gostei muito, experiências diferentes, estilos diferentes, mas todos interessantes." (...).

Pessoalmente bem gostaria de partilhar as alegrias deste convívio, hoje 5.ª feira, e dar um abraço fraterno, repleto de saudades, a toda a rapaziada fixe que vai lá estar, de Norte a Sul. Razões de saúde (estou em convalescença e recuperação, depois de uma recentíssima artoplastia total ao joelho esquerdo). Mas o abraço vai na mesma, virtual, com uma especial saudação ao régulo da Magnífica Tabanca da Linha, Manuel Resende... Espero que, apesar do espaço amplo e arejado do restauarnte Caravela D'Ouro, todos se saibam proteger uns aos outros, usando a máscara sanitária que já faz parte desde março de 2020, da nossa indumentária... (LG)

PS - Ainda bem que o nosso talentoso e transmontano Francisco Baptista também já leu o livro que escreveu e que tem vindo a apresentar a vários públicos.  Diz que gostou (do dele, e dos outros). E eu também posso acrescentar que gostei... e estou sempre a incentivar a malta para escrever.



Um excelente cartão de visita dos Bandalhos... porque nem só de pão vive o homem (e muito menos o camarada que comprou bilhete para as Caldas e foi parar à Guiné). (**)

2. Ainda sobre o historial dos "Bandalhos"... Na sua página do Facebook lê-se:


(...) Tudo começou porque em 10/11 de Abril de 1967, um grupo de ex-camaradas do Porto se encontrou nas Caldas da Rainha no RI5. Seguiram a 24 de Junho para a EPA, em Vendas Novas de onde debandaram a 12 de Setembro.

Quase todos se reencontraram em Paramos/Espinho a 25 de Setembro. Laços de amizade foram-se cimentando. A partir de Fevereiro/Março de 1968 debandaram de novo: Lamego, Gaia, Tomar, Santa Margarida, Torres Novas foram alguns dos destinos.

Até que chegou a Guiné e muitos outros destinos nos separaram. Regressados todos entre Maio e Junho de 1970, alguns de nós víamo-nos por aí, até que o tenaz Fernando Jorge Teixeira, mais conhecido por Presidente JTeix.45, conseguiu ir reunindo um pequeno grupo, que hoje só faz desgraças por onde passa. O Bando não é enorme, mas tem correspondentes e muitos amigos e ex-camaradas com percursos idênticos.

Bandalhos desde Janeiro de 2009, a sua História pode ser vista e lida em http://bando-do-cafe-progresso.blogspot.pt/ (...)
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Notas do editor:

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23275: (In)citações (206): Maria Ivone Reis (1929-2022), a primeira enfermeira paraquedista que eu conheci, em 1967, no Porto (Rosa Serra)

A então ten enf pqdt Ivone Reis,
em Cacine, 12/12/1968.
Foto: António J. Pereira
da Costa
 (2013)



1. A Maria Ivone Reis (1929-2022) deixou-nos, há dias, aos 93 anos (*). 

Era a decana das 46 enfermeiras paraquedistas 
que passaram pelos palcos da guerra do ultramar / guerra colonial, tendo feito parte do 1.º curso de enfermeiras paraquedistas, realizado em Tancos, no BCP, em maio, junho, julho e agosto de 1961, 
o curso das célebres Seis Marias que eram,
 além dela, a Maria Zulmira André Pereira (1932-2010); a Maria Arminda Pereira (n. 1937); a Maria de Lourdes (mais conhecida por "Lourdinhas"); a Maria do Céu (Policarpo); e a Maria da Nazaré (falecida em 9/5/1984). Do grupo inicial de onze voluntárias, só terminaram o 1.º curso, com sucesso, estas seis Marias.

A nossa camarada e amiga Maria Arminda (Santos pelo casamento) passa agora a ser a veterana deste grupo de mulheres excecionais, cuja história de vida deveria ser melhor conhecida de todos nós, portugueses. De qualquer modo, já temos sobre elas (e feito por elas), o livro "Nós, Enfermeiras Paraquedistas", 2.ª edição, coordenado pela Rosa Serra (Porto, Fronteira do Caos, 2014, 439 pp.).


No nosso blogue temos, além disso, mais de 130 referências com o descritor "enfermeiras pára-quedistas". E uma série específica, intitulada "As nossas queridas enfermeiras paraquedistas" de que se publicaram até à data 33 postes (**).

Por sugestão do Miguel Pessoa, que é casado com outra querida amiga e camarada nossa, a Giselda (Antunes, apelido de solteira), decidi republicar este depoimento da Rosa Serra, natural de Vila Nova de Famalicão  sobre a Ivone Reis que ela conheceu no Porto, em 1967,  quando andava a recrutar jovens enfermeiras para a FAP.

A Rosa é muito mais nova, fez o 45.º curso de paraquedismo, sendo "brevetada" em 13 de março 1968, e graduada em alferes enfermeira paraquedista. Passou à disponibilidade em 1 de março de 1974 e tem sido, com a Maria Arminda e a Giselda,  uma das mais mais ativas e profícuas autoras de textos sobre a história das enfermeiras paraquedistas e as suas protogonistas. 

Este depoimento (poste P5971) é um bom retrato do perfil humano e psicoprofissional da nossa saudosa Maria Ivone Reis. Aproveitamos, entretanto,  para suprir um lamentável lapso nosso: o seu nome já há muito, desde 2009, deveria figurar na lista alfabatética dos membros da Tabanca Grande. E estávamos convencidos que sim, que lá figurava. Entra agora, a título póstumo, sob o nº 862.  Saibamos honrar a sua memória.


 A Ivone  Reis, a primeira enfermeira paraquedista que eu conheci

por Rosa Serra


Nós, aqueles que a conheceram e que com ela conviveram em diferentes períodos da sua vida, por diversas razões, não a esquecem e no meu caso pessoal tenho bem presente quem foi a Ivone, como sempre a vi e o que eu aprendi com ela.

A Enfermeira Ivone pertence ao grupo das 6 Marias, nome pelo qual ficou conhecido o 1.º curso de Enfermeiras Pára-quedistas portuguesas feito em 1961.

Foi ela que contactou as futuras candidatas, residentes na Cidade do Porto, que em 1967 tinham pedido por escrito à Força Aérea informações sobre cursos para Enfermeiras Pára-quedistas. Foi a Enfermeira Ivone a primeira a deslocar-se ao Porto para conhecer as 4 interessadas na candidatura ao curso, onde eu estava incluída.

Mais tarde, eu, já Enfermeira com boina verde na cabeça, estive em várias comissões com ela. Fazíamos uma grande diferença de idade; eu muito novinha, a Ivone uma senhora cheia de sabedoria e experiência. Logo percebi tratar-se de uma pessoa de princípios e moral muito vincados, nem sempre de fácil contacto, porque o seu grau de exigência era muito elevado, não só para quem estava à sua volta, mas para com ela mesmo.

Não se lamentava do seu cansaço nem de quem a magoasse com qualquer atitude menos simpática; mas também não se inibia de chamar a atenção sobre tudo o que eu ou outra enfermeira qualquer pudéssemos fazer e que ela considerasse pouco correcto, ou até mesmo deselegante.

Fazia gosto e não se poupava a esforços para que todas nós fossemos um exemplo de profissionalismo impecável, cumpridoras de normas militares sem deslizes, posturas e atitudes que se destacassem, de forma a sermos admiradas como grupo.

No meu caso pessoal percepcionei logo na primeira comissão que fiz com ela, a sua forma de estar e o seu rigor no desempenho da sua actividade como enfermeira em ambiente masculino e de guerra.

Várias vezes ela me chamou atenção por pequenas rebeldias insignificantes e atitudes que eu tomava, como entrar no helicóptero para ir fazer uma evacuação com o casaco de camuflado pendurado num ombro, de bolsa de enfermagem no outro e de t-shirt branca; era sabido que quando regressasse logo me dizia do perigo em usar a t-shirt em pleno mato pois tornava-me um alvo bem visível, além do aspecto pouco alinhado no uso do uniforme militar a bordo de uma aeronave.

Eu dizia-lhe para ela não se preocupar, porque eu era um alvo que não interessava a ninguém; e, quanto ao desalinho do casaco pendurado no ombro, um dia respondi-lhe que só o fazia porque tinha calor, não pelo clima da Guiné, que até era “fresquinho”, mas se calhar por estar a entrar em “menopausa” e ela esboçou um sorriso e respondeu-me:

− A menina gosta muito de brincar.

Eu nunca levava a mal o que ela me dizia, apesar de eu ser mesmo uma periquita ao lado dela; sempre soube apreciar as suas qualidades profissionais sobretudo em termos de organização e de uma verticalidade e sentido de dever pouco comuns, mesmo nessa altura.

Mais tarde, em Angola, as enfermeiras colocadas em Luanda viviam num apartamento de um edifício da Força Aérea, destinado a alojar militares e suas famílias. O ambiente era bem mais calmo que o da Guiné, o que nos permitia termos fins-de-semana, irmos à praia, convivermos mais tranquilamente com a comunidade civil ou com famílias de militares.

A Enfermeira Ivone sempre alinhou comigo nas horas de lazer, tal como respeitava se eu não a convidasse para ir comigo quando eu saía com um grupo de amigos ou familiares meus que lá se encontravam na época.

Em Angola eu estava colocada no BCP 21 e ela na Direcção do Serviço de Saúde da Força Aérea. Normalmente eu ia para o Batalhão com farda n.º 2 (saia, camisa e eventualmente blusão) e, claro, boina verde na cabeça. Um dia resolvi colocar num dedo um anel com uma pedra grande verde, que dava um bocado nas vistas; quando ela me viu sair com semelhante adereço, fardada, olhou para o dedo e com ar de espanto diz-me:

−  A Rosa esqueceu-se que está fardada? 

Eu respondi não e acrescentei:

−  Não me diga que não é giro… condiz mesmo bem com o verde da boina. − E  ia mostrando o dedo e dizendo: 
− É lindo, até devia estar orgulhosa de uma Enfermeira Pára-quedista estar assim tão gira.

Ela respondeu-me:

−  Nem por isso −  e virou-me as costas. Acredito que se foi rir às escondidas.

Mais tarde comentámos uma série de peripécias deste género que se passaram connosco e fartámo-nos de rir, e com aquele jeito típico dela, depois destas lembranças e passados tantos anos, acabava por dizer:

−  A menina era muito brincalhona, nunca consegui zangar-me consigo.

Estou a contar estes episódios porque sempre percebi que, por trás daquele ar rigoroso dela, estava uma mulher mais tolerante do que parecia, com uma capacidade de organização espantosa, uma noção de ética muito apurada, muito trabalhadora; e nunca a vi fazer uma crítica desagradável ou fofoqueira de ninguém e nem gostava que as pessoas que a rodeavam o fizessem.

Ao longo de todos estes anos mantive sempre contacto com ela, o que me permitiu tomar conhecimento de um espólio fantástico que ela foi recolhendo dos sítios por onde passou e organizando ao longo dos anos, tendo em vista a divulgação da história das Enfermeiras Pára-quedistas de quem ela tanto se orgulhava e que sempre se preocupou em não deixar cair no esquecimento. Foi sempre um bom exemplo para mim.

Rosa Serra

[Seleção / revisão e fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(**) Vd. a lista completa dos postes da série;

11 de janeiro de  2015 > Guiné 63774 - P14140: As nossas queridas enfermeiras paraquedistas (33): A minha homenagem a essas grandes mulheres Portuguesas (Abel Santos)

6 de janeiro de 2015 > Guiné 63774 - P14123: As nossas queridas enfermeiras paraquedistas (32): A morte da camarada Enfermeira Paraquedista Celeste Costa (Giselda Pessoa)

12 de dezembro de 2012 > Guiné 63774 - P10791: As nossas queridas enfermeiras paraquedistas (31): "É a Céu!", diz a Rosa Serra... Quanto ao resto, "tudo foi possível naquelas terras de África"...

9 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9168: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (30): Cerimónia de homenagem e comemoração dos 50 anos de incorporação das primeiras Enfermeiras Paraquedistas na Força Aérea Portuguesa (Miguel Pessoa)


3 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8990: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (27): Missão à Índia (II parte) (Maria Arminda)

1 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8976: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (26): Missão à Índia (I parte) (Maria Arminda)



28 de setembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7046: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (22): O Largo do liceu, em Bissau, onde moravam as enfermeiras pára-quedistas (Miguel Pessoa)


31 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6505: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (16): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (3): Maria Zulmira (Rosa Serra)


29 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6487: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (14): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (2): Maria Arminda (Rosa Serra)

27 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6478: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (13): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (1): As 11 candidatas (Rosa Serra)


20 de setembro de  2009 > Guiné 63/74 - P4979: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (11): Fartote de hortaliças (Giselda Pessoa)

11 de maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4318: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (10): Ivone Reis, Anjo da Guarda na Guiné, Angola e Moçambique (António Brandão)

7 de maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4295: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (9): O dia-a-dia de uma Enf Pára-quedista na Guiné (Giselda Pessoa)

14 de abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4181: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (8): A dar ao Ambu (Giselda Pessoa)

14 de março de 2009 > Guiné 63/74 - P4029: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-Quedistas (6): O anjo da guarda do Zé de Guidaje (Giselda Pessoa)

8 de março de 2009 > Guiné 63/74 - P3999: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (5): Justamente recordadas no Dia Internacional da Mulher

7 de março de 2009 > Guiné 63/74 - P3994: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (4): Uma civil, e transmontana de Sabrosa, na tropa (Giselda Pessoa)

(***) Último poste da série > 18 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23274: (In)citações (205): Os nossos livros são as memórias da nossa vida e da nossa passagem pela guerra da Guiné (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

(****) Vd. postes de:


13 de janeiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21766: (De)Caras (169): Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada, faz hoje 92 anos e é uma referência para outras outras mulheres e para nós, seus camaradas: excertos de um seu depoimento, publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais - Parte II (e última)

Guiné 61/74 - P23274: (In)citações (205): Os nossos livros são as memórias da nossa vida e da nossa passagem pela guerra da Guiné (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 16 de Maio de 2022:

O Zamith Passos, de há cinquenta e dois anos é um homem e um amigo que eu estimo e considero especialmente. Ele como furriel e eu como alferes, comandámos o 2.º pelotão da CCaç 2616, o melhor que pudemos, conjugando as experiências e conhecimentos de um e do outro.
Depois de anos sem contactos pela turbulência da vida, há alguns anos que nos reencontramos como velhos amigos e camaradas para lembrar as longas caminhadas pelo Chinconhe, pela Bolanha dos Passarinhos, outros locais arborizados, quentes e húmidos, pelo bar de sargentos e oficiais e outros locais que nunca esqueceremos.

Ele tem sido o organizador, nos últimos anos, dos almoços da Companhia. Convocou mais um que se realizou no passado dia 7 de Maio, na esplanada de um restaurante em Lisboa, na Zona da Expo/98, com boas vistas sobre o rio Tejo. O anterior, em que não pude estar presente, foi antes da pandemia em 2019 e estiveram presentes mais de cinquenta pessoas, entre ex-militares e familiares. Este ano havia somente 30 comensais, alguns foram morrendo, como o Paulo Fragoso, vítima de covid (meu grande amigo. Trocamos muitas mensagens e telefonemas), outros estão adoentados, outros menos sociáveis e mais recolhidos pelos três anos deprimidos, em que temos vivido.

Entre os camaradas, esteve também o General Pezarat Correia, distinto militar do 25 de Abril, do Conselho de Revolução, com obras relevantes editadas, de índole histórico e político-militar, doutorado pela Universidade de Coimbra, convidado por ter sido o Major de Operações do Batalhão 2898, a que pertencia a nossa companhia.
Gostei de me ter distinguido com um grande abraço, quando, através do Zamith Passos me identificou, não por feitos militares, mas por ter lido um artigo do livro "Cartas de Amor e de Dor" da escritora Marta Martins Silva, que ele prefaciou em que me dá um elogio tão grande, que eu só consigo justificar pela amizade e camaradagem pelos militares que comandou.

Buba > Eu e o Zamith Passos
Um abraço entre camaradas
Aspectos do convívio


Prefácio de Pedro Pezarat Correia no livro “Cartas de Amor e de Dor”, de Marta Martins da Silva; pp 17 e 18:

É nas cartas de alguns graduados, oficiais e sargentos milicianos, como Lobo Antunes, Francisco Baptista, Beja Santos, Graça de Abreu, Bação Leal, que aquela tomada de consciência é mais expressiva. A correspondência de Bação Leal tornou-se icónica: “Estou farto deste carnaval de cadáveres […] a única porta é o suicídio”. Não se suicidou, mas viria a morrer em operações em Moçambique. Francisco Baptista, quando em Março de 1970 embarcou para a Guiné, ia já “plenamente convencido da inutilidade dessa guerra”[2] António Graça de Abreu faz uma premonição reveladora de uma consciência avançada: “Aí em Portugal é que o PAIGC vai ganhar a guerra”. O contributo da luta dos movimentos de libertação para o que viria a ser o 25 de Abril, que ainda não está suficientemente estudado, é incontroverso.

[2] - Francisco Baptista, alferes miliciano, foi integrar a CCAÇ 2616 em Buba, que pertencia ao meu Batalhão, o BCAÇ 2892 com sede em Aldeia Formosa, no qual eu era oficial de operações, onde substituiu um alferes morto em operações, o que me permite confirmar inteiramente as situações que ele relata.

Agosto de 2021
Pedro de Pezarat Correia


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Os mortos sozinhos na capela (quem rezava por eles?)

Francisco Baptista embarcou para a Guiné a sentir-se "politicamente derrotado pois estava plenamente convencido da inutilidade dessa guerra", pelo que os dois anos de comissão foram-lhe muito penosos. "Antes da minha partida, tinha bem a noção das mortes que ocorriam nas três frentes da guerra, pois, pouco tempo antes, tinha estado durante três meses no Quartel-General de Lisboa, para onde eram comunicados diariamente os mortos. Os mortos da Guiné, um, dois, três, por dia - por vezes mais -, eram sempre em maior número. Tendo em conta o número de mortos, fiz um cálculo e, segundo as leis da probabilidade, achei que teria mais hipótese de regressar com vida do que o seu contrário, mas com cálculos ou sem eles os transmontanos que eu conheci não fugiam à guerra, pelo contrário; os rapazes que tinham emigrado, a salto, para a Europa, vinham todos à inspecção militar e a "dar a tropa", conforme expressão deles, muitas vezes já casados e com um grande prejuízo financeiro", começa por dizer Francisco Baptista.

As probabilidades estiveram efectivamente do lado de Francisco, que partiu para a Guiné no dia 19 de Março de 1970, no navio Alfredo da Silva, integrado na Companhia de Caçadores 2616 do Batalhão de Caçadores 2892. Ele voltou com vida, mas nem todos tiveram essa sorte. "Os momentos mais difíceis para mim, como para os outros, eram a morte de camaradas. Foi difícil, ainda dói, a morte do Albano, tão bom camarada, a morte do furriel Ferreira, éramos amigos, a morte de dois soldados milícias africanos, ao meu lado, sendo eu o responsável por essa força de combate", partilha.

Era impossível não sentir, mesmo quando - e foi o caso de Francisco - se nasceu nuyma aldeia do interior, "com costumes ancestrais onde a morte era tão natural como a vida". "Lembro-me de ir desde criança, ainda antes mesmo da idade escolar, aos funerais dos meus primos aina meninos, muitas vezes a ajudar a levar as urnas para o cemitério. Com dez anos assisti à morte do homem que mais amei, o meu avô paterno, lembro-me de tudo, da da minha mãe e das outras mulheres à volta da cama dele, da minha avó paterna a rezer orações antigas, que só ela conhecia, da respiração ofegante dele e do estertor da morte. O meu avô, o meu grande amigo, quis-me dizer como morre um homem, para eu saber enfrentar a morte com coragem. Na minha memória afetiva guardo esse dia com saudade mas sem mágoa, e com a mesma naturalidade como outros dias que passei com ele a regar a horta, ou à noite, nos serões da lareira". Mas na guerra a morte não era tão natural.


Texto de Francisco Baptista publicado no livro "Cartas de Amor e de Dor, de Marta Martins da Silva, pág. 262

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O último semestre da CCaç 2616, em Buba, foi um tempo malfadado. Todos os tipos de azares e desgraças, aconteceram. Além dos habituais ataques de armas pesadas ao aquartelamento, que dado os abrigos e valas existentes, não representavam grande perigo, houve toda a sorte de acontecimentos funestos. A Companhia sofreu com tudo isso quatro mortos e cerca de 20 feridos, alguns graves.

Em abono da verdade um morto e muitos feridos pertenciam a um Pelotão doutra Companhia do Comando de Aldeia Formosa que estava a reforçar a nossa. Este acidente foi provocado por uma granada de lança-granadas-foguete que depois de se lhe retirar a segurança para a introduzir na arma, com alguma inclinação a um metro e pouco do chão podia explodir. Foi isso que aconteceu junto à arrecadação do material provocando a morte imediata dum soldado e ferimentos, alguns muito graves, em cerca de quinze outros camaradas. Essa granada, penso que fabricada no Braço de Prata, teve poucos meses de utilização pois terá provocado outros acidentes noutros quartéis.

Houve de tudo, desde minas anti-pessoais e anti-carro a reencontros com a guerrilha no mato a três acidentes graves com diferentes tipos de granadas.
Este rol de desgraças penso que começou quando o Albano morreu e dois amigos dele ficaram gravemente feridos com a explosão de uma granada de mão.
Deste acidente penso que terá havido duas versões pelo que me abstenho de contar qualquer delas. Foi um acidente infeliz como houve tantos na Guiné.

Muitas armas e material explosivo, por vezes pouco seguro, deficiente instrução militar. Meses de relativo relaxe em que parecia que a guerra já tinha acabado, alternados com dias agitados por disparos e rebentamentos. Meses dum sol tropical escaldante alternados com meses de aguaceiros sem fim. A maior parte dos camaradas confinados durante quase dois anos a viver no aquartelamento, sem possibilidade de poderem gozar férias. Tudo isto criava condições propícias a todo o tipo de acidentes.

O Albano era pescador de Setúbal tal como os outros dois camaradas. Era discreto, diligente, trabalhador, popular entre todos os militares do quartel. Era um tipo de homem capaz de se relacionar com todos os outros, acima ou abaixo da sua escala hierárquica ou social, sem fazer concessões a ninguém. Só homens superiores conseguem ter este comportamento, porque para lá dos seus conhecimentos literários, técnicos ou artísticos, conseguem ter a visão correta da miséria e da grandeza dos seus semelhantes.

Tendo a idade da maioria de todos nós revelava já ser um homem mais maduro. A isso não seria alheio o facto de já ser casado e ter duas filhas e como tal ter tido cedo responsabilidades que obrigam um homem a crescer.

Lembro-me do seu corpo estar depositado na pequena capela do quartel a aguardar transporte para Bissau. Penso nisso, no choque que a sua morte provocou em todos e apesar disso na solidão de morte do seu corpo, sozinho na capela, abandonado por todos. Olho para o monitor do computador e parece que me revejo a passar próximo da capela, que ficava ao lado da estrada que levava ao cais, em frente à messe de oficiais, a pensar que o meu comportamento e o dos outros não estava a ser correcto em relação o Albano.

Vinha-me à memória a morte dos meus avós e do meu padrinho, velados em casa sempre com tanta gente à sua volta, toda a aldeia, parentes e amigos das terras próximas a entrar e a sair para nos cumprimentar e rezar pelos morto. Lembrava-me principalmente do meu avô materno Francisco, um homem calmo, meigo, amigo de tratar da horta, e de ir à "venda" beber um copo com os amigos. Para mim foi o melhor homem que alguma vez conheci e sempre ouvi os maiores elogios acerca dele, bom homem e um lavrador dos melhores.

Assisti à sua morte, recordo tudo, desde o quarto em que estava deitado, às rezas antigas, que não conhecia, que a minha avó paterna fez. Recordo também que quando expirou, a minha avó mandou vir um pão (dos grandes pães que a minha mãe cozia) e foi partido em duas partes para dar a dois pobres. Depois do funeral a minha mãe mandou dar um quartilho de azeite a todas pessoas da aldeia que dele precisassem. Não sei ou já esqueci qual o significado daquele pão.

Lembro-me dessas noites longas de velório com a minha mãe, tias, primas e outras mulheres sentadas em redor da urna sempre a rezar terços. Os homens demoravam-se pouco, saiam e depois ficavam na rua a falar das colheitas, dos animais, enfim das vidas em geral.

Na morte do camarada Albano, em Buba, faltou o amor e compaixão das mulheres para dar sentido e dignidade à despedida.
Éramos homens e jovens, não dávamos valor às cerimonias e rituais que existem e sempre existiram em todos os tipos de sociedades e têm um papel importante para repor a paz e a harmonia entre os vivos e os mortos.

As mulheres conhecem todos esses mistérios, sabem falar com os mortos e não têm pudor em chorar e em manifestar as suas crenças e a sua fé. Como dizia o poeta Louis Aragon, a mulher é o futuro homem. Eu diria que ela é o princípio e o fim do homem pois é ela que lhe dá a vida e que no final o entrega e recomenda aos deuses.

Em Buba não tínhamos padre e não me recordo de alguém que o substituísse com uma mensagem de despedida que reunisse todos os militares do quartel ou pelo menos a Companhia. Sei lá, esse ou outro gesto, como toda a Companhia formada em silêncio em frente à capela onde estava o corpo.


(Francisco Baptista, texto publicado a 21 de março de 2014 no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Texto de Francisco Baptista publicado no livro "Cartas de Amor e de Dor, de Marta Martins da Silva, pp. 263 e 264

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Com textos meus, editados no Blogue do Luís Graça e com outros textos, editei um livro que tem este e muitos outros textos, sobre a minha vida na Guiné e em Brunhoso, uma aldeia pobre de Trás-os-Montes, onde nasci e me criaram.

No próximo dia 19, irei com alguns camaradas do Porto, ao almoço da Tabanca da Linha, que tendo como Régulo, o camarada Manuel Resende, cada vez ganha mais fama pelos bebidas e cozinhados que revigoram o corpo, aquecem a alma e ajudam a criar um alegre convívio, que todos os ex-combatentes da Guiné apreciam.

Tal como eu dois outros camaradas levaremos livros , eu já li os três e gostei muito, experiências diferentes, estilos diferentes, mas todos interessantes.

Abraço
Francisco Baptista


Eis as capas dos livros:
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23196: (In)citações (204): As comemorações do dia 25 de Abril de 1974 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

Guiné 61/74 - P23273: Historiografia da presença portuguesa em África (317): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Fica provado que estes Anais do Conselho Ultramarino ajudam a provar e comprovar o que era a Senegâmbia Portuguesa neste período do século XIX: aquisições de território, a precariedade da vida nas praças e presídios, uma colónia sem fronteiras e com tensões permanentes. Leia-se com atenção o que escreve o capitão Ventura ao Visconde de Sá da Bandeira em 1857 e confirme-se o que era a vida em sobressalto, as benesses dos arrematantes das alfândegas que por sua vez pagavam ao Exército, o estado deplorável de quase tudo, e a imagem de uma Guiné potencialmente fértil mas muito esquecida pela governo de Lisboa.

Um abraço do
Mário



Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (4)

Mário Beja Santos

Perguntará o leitor que importância se pode atribuir às matérias constantes nestes anais. A primeira parte da resposta passa por atribuir importância ao Conselho Ultramarino, um órgão que iniciou a sua vida em tempos de Filipe II, teve interrupções, e mesmo com outras designações chegou a abril de 1974. As obras que estão em consulta na Biblioteca da Sociedade de Geografia referem-se concretamente ao período encetado na governação de Fontes Pereira de Melo e que irá durar até à década seguinte. Iniciei a consulta na série 1.ª, vai de fevereiro de 1854 a dezembro de 1858, a edição é da Imprensa Nacional, 1867. Tem-se a sensação quando se folheia estes anais que têm qualquer coisa a ver com o Diário da República colonial, o Conselho Ultramarino funcionava junto do Paço, refere nomeações, condecorações, composição de comissões, autorização de despesas… No artigo anterior, detetei agora, cometi o erro ao considerar que a parte oficial destes anais incluíam pareceres e até estudos, é redondamente falso, a parte oficial contempla a legislação, toda a outra matéria é versada na parte não oficial.

E agora, uma breve explicação sobre a vida neste período do Conselho Ultramarino que os investigadores consideram um dos mais brilhantes e dinâmicos da sua história. Ele insere-se no período da Regeneração, este conselho teve este período áureo entre 1851 a 1868. Deve-se a quê? Em julho de 1851, tendo triunfado a Regeneração, Fontes Pereira de Mello decretou um novo Conselho Ultramarino, a fonte inspiradora terá sido Almeida Garrett. Era composto por sete vogais efetivos e sete extraordinários. No seu trabalho sobre a história do Conselho Ultramarino, Marcello Caetano, em publicação da Agência Geral do Ultramar datada de 1867, fala das suas amplas competências: tinha de ser necessariamente ouvido sobre importantes matérias legislativas, governativas e da administração, e tinha poder para emitir consulta nos recursos contenciosos entrepostos para o Governo dos atos dos governadores coloniais; podia tomar a iniciativa de estudar e propor providências a adotar pelo governo, fiscalizar e recrutar o funcionalismo ultramarino. Missão especial era a de velar pela execução das leis sobre o tráfico da escravatura e de estudar a colonização, dirigindo para o mundo ultramarino a emigração que se encaminhava para o estrangeiro. As resoluções do Conselho eram convertidas em consultas, provisões ou portarias, conforme os casos. Em 1854, iniciou-se a publicação do boletim e anais do Conselho Ultramarino. Os anais eram a parte oficial contendo os atos do Governo e da administração, consultas do Conselho, resoluções dos tribunais superiores, relatórios, etc., e a parte não-oficial era constituída pelo acervo de memórias, notícias, narrativas e quaisquer estudos sobre matéria colonial.

Deixamos para este último trabalho referência a dois documentos, o primeiro tem a ver com a Ilha das Galinhas e o seu possuidor, tem a data de 1830, o segundo é assinado por José Ventura, Capitão do Exército, é dirigido ao Visconde de Sá da Bandeira, ministro da Marinha e Ultramar e a sua data é 1857. O primeiro documento esclarece as condições ajustadas entre o rei de Canhabaque, Damião, e Joaquim António de Matos, pelas quais este último toma conta da referida ilha (posteriormente, Joaquim António de Matos ofereceu a Ilha das Galinhas à Coroa. A Ilha das Galinhas é cedida em junho de 1828, no mês seguinte Matos mandou construir uma propriedade de casas. O rei Damião, como doador, ficou obrigado a fazer saber a todos os reis de Canhabaque e das diferentes ilhas dos Bijagós que dera a referida ilha a Matos.

E seguem-se aspetos curiosos que merecem registo. “No caso de ataque de qualquer gentio vizinho, será obrigado (como fica desde já) o dito rei Damião a repeli-lo com os seus soldados e vassalos, auxiliando o novo possuidor por toda a maneira a que não seja invadido, obrigando-se Joaquim António de Matos a fornece-lo de bala e pólvora a defender, no caso de desinteligência, o que Deus não há de permitir. Obriga-se mais o dito rei Damião a não consentir que estrangeiro algum possa em qualquer ponto da dita ilha fazer casa e estabelecer-se, e a repelir por meio de força qualquer tentativa para esse fim; declara-se que são ingleses, franceses e espanhóis os estrangeiros. Sendo de costume, no tempo de inverno, passarem alguns gentios de outras ilhas à dita ilha para lavrarem terrenos, e montear elefantes, de ora em diante o farão com permissão do novo possuidor; havendo, como há, muitos elefantes na ilha, os dentes dos que se matarem, metade fica pertencendo ao rei Damião e a outra metade a um novo possuidor; o novo possuidor, depois de obter a licença de Sua Majestade, obriga-se a mandar construir uma capela e ter um padre zeloso no serviço de Deus e d’El Rei”. Lavrou-se esta declaração que aparece assinada pelo tabelião José Francisco da Serra, assina o rei Damião e juntam-se o nome de várias testemunhas. Dado em Bissau em 9 de março de 1930.

Décadas depois, o Capitão Ventura dirige-se ao Visconde de Sá da Bandeira: “Tendo servido na Guiné Portuguesa por espaço de quatro anos e meio, sendo Governador de Cacheu e Comandante do Destacamento de Artilharia de Primeira Linha em Bissau, tenho a honra de submeter à consideração de Vossa Excelência alguns esclarecimentos acerca daquelas nossas possessões, por saber o quanto Vossa Excelência se interessa no aumento e prosperidade das colónias do Ultramar”. Reconheça-se que o Capitão Ventura é pragmático e não faz redondilhas, a saber: em Cacheu é importante a substituição da paliçada por muro de pedra e cal; o quartel do destacamento, estava coberto de palha deve ser telhado para maior solidez e conservação; é telegramático a explicar a economia de Cacheu: o seu maior e principal comércio consiste em arroz, cera e couros, que os negociantes vendem aos ingleses, franceses e norte-americanos, em troca de outras fazendas, tais como tabaco, pólvora, aguardente e outros; no distrito de Cacheu a abundância de boas madeiras para a construção de navios; em Bissau acha-se em péssimo estado o cais do desembarque, e a casa de alfândega ainda não foi edificada; retoma uma matéria que outros iam enfatizando quanto ao funcionamento da alfândega: o sistema de serem arrematados os rendimentos das alfândegas da Guiné tem produzido desfalque para os interesses da Fazenda e bastantes lucros aos arrematantes, seria da maior conveniência para o Governo que as ditas alfândegas fossem administradas por conta do Estado; no rio Grande de Bolola, dado o facto de haver muitas feitorias, conviria que se estabelecesse um posto fiscal; tinha sido decretado aumento de vencimento para a tropa que serve na Guiné só que a medida não fora posta em execução; as igrejas de Bissau, Geba, Cacheu, Farim e Ziguinchor tinham párocos, mas os padres das igrejas de Farim e Ziguinchor achavam-se em Cacheu devido às reparações nas respetivas igrejas, convinha que se concluíssem os reparos necessários para não privar aqueles povos do culto divino.

E muito curioso é o final da exposição do Capitão Ventura, vale a pena reproduzi-lo na íntegra:
“O clima de Guiné é mau, e muito principalmente no tempo das águas, que é de maio a novembro. Os europeus que para ali vão servir sofrem bastante na sua saúde, e quase sempre ficam padecendo do baço, fígado e outras moléstias interiores, sendo eu também um dos que muito padeci; contudo, tendo bastante regularidade de vida, abstendo-se da cacimba que tanto mal causa de noite, e do ardente sol, quanto as circunstâncias o permitirem, isto logo no começo da sua residência naquele clima, porque passado certo espaço de tempo, se adquira estar, por assim dizer, aclimatado, julgo que se pode existir sem grande receio, procurando fugir na prática de quaisquer excessos sempre ruinosos.
É o que posso informar por alguns conhecimentos que ali adquiri dos costumes daqueles povos e das suas necessidades, sentido não poder fazer igual informação pelo que respeita a algumas das ilhas do arquipélago pela pouca residência que nelas tive, o que melhor poderão fazer indivíduos que ali tenham residido e permanecido por mais tempo”
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É patente que o investigador e o curioso não perdem tempo em folhear demoradamente estes Anais do Conselho Ultramarino.

Guiné Portuguesa, mapa do século XIX, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
Bissau, José Luís de Braun, 1780, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
Rio Grande de Bissau, Planta da foz, desde a ponta de Bambe até à ponta de Balantas, com o ilhéu dos Pássaros, ilha de Bissau e Ilhéu do Rei, José Luís de Braun, 1778, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P23255: Historiografia da presença portuguesa em África (316): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23272: Parabéns a você (2067): Joaquim Fernandes Alves, ex-Fur Mil Art da CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23268: Parabéns a você (2066): António Pinto, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 506 (Nova Lamego, Geba, Madina do Boé, Beli e Bolama, 1963/65)