quinta-feira, 23 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"



Luís Graça (2014)
1. Continuação da publicação de uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que podemos tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença e os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer"...


Por razões de força maior (doença terminal de uma pessoa, familiar,  que lhe é muito querida), o nosso editor está temporariamente com menos disponibilidade (física e mental) para editar o blogue, encontrando-se desde há uma semana no Norte (Madalena, Vila Nova de Gaia). Conta com os outros coeditores, 
 nomeamente com o sempre fiel, atento , discreto e incansável Carlos Vinhal, para ir mantendo todos os dias a "montra do blogue" devidamentee atualizada e renovada. 

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", a sua antiga página na ENSP/NOVA onde ensinou e investigou, durante quase quatro décadas, ajudando a formar médicos de saúde pública, médicos do trabalho, medicos de clinica geral e familiar, administradores hospitalares, gestores de serviços de saúde, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, técnicos de higiene e segurança, educadores e promotores de saúde, engenheiros, mestres, doutores, etc.... A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça, (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Ele espera, ao menos, que a leitura destes textos desperte algum interesse, tenha algum proveito para os nossos leitores e suscite alguns comentários (críticos)...  LG.


Graça, L. (2000) - Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa. Parte II : 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro'

Publicado, numa outra versão, no Médico de Família, III Série, 7 (Julho de 2000), pp. 40-44.

(Continuação) (*)


3. Estereótipos em relação aos médicos e à medicina



Na Europa cristã medieval, a medicina (do latim medicina, que também deu origem à palavra mezinha) — enquanto teoria da doença e prática terapêutica — tinha claramente retrocedido em relação ao legado greco-romano e árabe.

De facto, imperavam o dogmatismo e a superstição. O prognóstico era regulado pela astrologia, tal como na Babilónia (Lafaille e Hiemstra, 1990). O diagnóstico era praticamente limitado à observação das "águas" (urina) e, depois da Renascença, à tomada dos pulsos. A observação clínica estava posta de lado. O conhecimento da anatomia e da fisiologia do corpo humano era grosseiro, já que a dissecação de cadáveres era expressamente proibida pela Igreja. Daí o provérbio " Se queres conhecer o teu corpo, mata o teu corpo"... 

Quanto à terapêutica, resumia-se à magia e às orações, com algumas ervas pelo meio e sobretudo com muitas purgas e sangrias.

A par disso, não existiam hábitos de higiene pessoal nem de salubridade pública.  As condições sanitárias ambientais eram péssimas. As cidades medievais não tinham sistemas de abastecimento de água potável e  saneamento básico. Os despejos domésticos eram feitos para a via pública.

Quanto à tradição romana dos banhos públicos, de algum modo valorizada pela medicina judaica e árabe na península ibérica, sabemos como ela foi duramente combatida pelo cristianismo: por exemplo, homens da Igreja como São Jerónimo (c.343-420) não viam razões válidas para um cristão tomar banho depois do baptismo... se bem que na planta arquitectónica do célebre mosteiro de Sankt Gallen (Séc. IX) estivessem previstas latrinas e balneários (Graça, 1996).

Refira-se que este preconceito teológico em relação aos cuidados de higiene corporal vai ter consequências nefastas na saúde da população europeia (por exemplo, no caso da peste negra de 1347-1353).

Além disso, a teoria demoníaca da doença tinha então muito ascendente e, no caso das devastadoras epidemias que assolavam a Europa (sob o nome comum de "peste"), o bode expiatório eram geralmente os judeus ou outras minorias como as "bruxas" (ou sejam,  as mulheres com "poderes" terapêuticoss, mágicos ou maléficos). Ou até os próprios médicos, os comerciantes ricos, a nobreza, o alto clero e a corte real que sempre tinham mais meios de fugir, "depressa e para longe", dos sítios atingidos pela peste ou outras epidemis, de acordo com a aforismo da Escola de Salerno: Cito, longe, tardo, fuge, recedde, reddi (Mira, 1947. 415), ou seja, Foge depressa, vai para longe e volta devagar...

O ensino da medicina, por sua vez, era escolástico, ou seja, dominado pelo espartilho filosófico-teológico apesar de se ter assistido à criação e a um certo florescimento de algumas escolas médicas, umas absolutamente pioneiras e pluralistas (como foi o caso da Escola de Salerno, a civitas hippocratica onde, no virar do 1º milénio, se cruzavam as culturas judaica, cristã e muçulmana), outras já na sequência do desenvolvimento da universidade a partir de finais do Séc. XII (por ex., Bolonha em 1188, Valência em 1209, Oxford em 1214, Paris em 1215, Montpellier em 1220, Salamanca em 1230, Coimbra em 1279).

O ensino da medicina também beneficia da redescoberta dos autores gregos, por via da sua tradução para o latim na Escola de Salerno e sobretudo para o siríaco e para árabe, nomeadamente através da seita cristã dos nestorianos que se instalaram na Pérsia, a partir de 489.

Entre os seguidores de Nestório, patriarca de Constantinopla, condenado como herege no Concílio de Éfeso (431), há médicos e outros letrados que levam consigo numerosas obras de autores gregos (Hipócrates, Aristóteles, Dioscórides, Galeno, etc.). O contacto com os nestorianos foi decisivo para o desenvolvimento da medicina árabe.

Mais importante ainda é a tradução de dezenas de obras da medicina árabe para o latim medieval, graças nomeadamente a:

  • Constantino, o Africano (c. 1020-1087), em Itália (Salerno e Montecasssino);
  • Gerardo de Cremona (c. 1114-1187) em Espanha (Toledo, reconquistada pelos cristão em 1085); entre as muitas obras traduzidas por Gerardo conta-se o Cânone de Avicena, por volta de 1150).

No essencial, o ensino da medicina irá limitar-se, durante séculos, mais à reprodução (sucessivamente deformada) dos clássicos (sobretudo Galeno e Avicena) do que à aprendizagem dos seus métodos empíricos de diagnóstico e terapêutica, baseados na observação e até na experimentação.

Hipócrates e muitos outros autores gregos só serão redescobertos e lidos no original a partir da Renascença. Muitos manuscritos chegam então ao Ocidente com a queda de Constantinopla em 1453 e o fim do império bizantino.

Na antiguidade clássica greco-romana, a medicina era inseparável da filosofia, tal como o será da teologia entre os povos de religião monoteísta (os judeus, os cristãos e os muçulmanos). A ruptura epistemológica da medicina com o pensamento teológico e filosófico só se fará, muitos séculos depois, com o triunfo do positivismo em meados do Século XIX (e nomeadamente graças aos trabalhos de três figuras fundamentais: Bernard, Pasteur e Koch), sem esquecer obviamente toda uma plêiade de precursores, da Renascença ao Século das Luzes, que nas mais diversas áreas do conhecimento foram construindo as bases da moderna cultura científica (Goff e Sournia, 1985; Lyons e Petrucelli, 1991; Sournia, 1995) (vd. Caixa 1).




Quadro VIII— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o corpo, a anatomia,  a cirurgia e o cirurgião

Objecto

Provérbio

Anatomia Corpo

  • "Chegou a hora de pôr o cu na seringa"

  • "Homem e porco só depois de morto"

  • "Homem morto, cu de porco"

  • "Mais vale uma perna sã do que duas muletas"

  • "Mata o teu urso se queres ver o teu corpo"

  • "Naturalia non turpa" (1)

  • "O mal do olho coça-se com o cotovelo"

  • "Pôr as tripas ao sol"

  • "Se queres conhecer o teu corpo, abre o teu porco"

Cirurgia

  • "A pequeno mal, grande trapo" (Séc. XVII)

  • "Barriga que não leva dois jantares, facada nela"

  • "Mais vale um pé que duas muletas"

  • "Não mata mas dói"

  • "Por uma besta dar um coice, não se lhe há-de cortar a perna"

  • "Uma facada tem cura, mas a má palavra sempre dura"

Cirur-gião Mestre

  • "Deus é que sara e o mestre é que leva a prata"

  • "Dos feridos se fazem os mestres"

  • "Mão de mestre é unguento"

  • "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"

  • "Não há melhor cirurgião que o bem acutilado"

  • "O vinagre e o limão são meio cirurgião"

  • "Pratica e serás mestre"

  • "Quem se cura com benesses não vai à mão de mestres".


(1) Aforismo latino: "O que é natural [por exemplo, o corpo, os sues órgãos, 
a sua anatomia e a sua fisiologia] não envergonha"


Lentamente, e depois do gesto iconoclasta de Paracelso que, em 1520, queima publicamente as obras dos clássicos e passa a escrever em alemão, a medicina ocidental começa a afastar-se dum quadro teórico de referência que dominaria o ensino e a prática médicas durante quase milénio e meio. 

Mas essa ruptura epistemológica não vai ter efeitos imediatos nem na prática médica nem organização hospitalar. O hospital vai continuar tão fechado nos seus velhos regulamentos e hábitos como a própria universidade; esta, por sua vez, continuará de costas voltadas para o hospital até finais do Séc. XIX (1911, no caso português, ano da criação das Universidades de Lisboa e Porto e, portanto, das respetivas Faculdades de Medicina).

Os estudos sobre anatomia e fisiologia, nomeadamente a partir de A. Vesálio (1514-1564) e dos seus seguidores (Colombo, Fallopio, no Séc. XVI, Bonnet, no Séc. XVII, e Morgagni e Bichat, no Séc. XVIII), vão permitir o progressivo conhecimento do corpo humano (Quadro VIII), enquanto por outro lado surgem as primeiras técnicas de diagnóstico e terapêutica (auscultação, percussão, termómetro clínico, microscópio), lentamente aperfeiçoadas e divulgadas (Lyons e Petrucelli, 1991).

No Século XVIII, irá entretanto assistir-se ao desenvolvimento da prática e do ensino da medicina clínica, à cabeceira do doente, nomeadamente com H. Boerhaave (1668-1738), na universidade holandesa de Leiden, o qual introduz o termómetro e a lupa para uma observação clínica mais rigorosa. 

Por seu turno, a cirurgia, nomeadamente militar, faz progressos notáveis, apesar de ainda não poder contar com a anestesia, a antissepsia a assepsia e que só aparecerão em meados do Séc. XIX.


3.4. "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"


No polo oposto do físico e do cirurgião, está o boticário: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia", uma forma jocosa de ridicularizar a pobreza do arsenal terapêutico de que a medicina podia lançar mão, em contraste com o dinheiro que a botica arrecadava. Daí o aviso: "Foge do feio e do porcino, da botica e do remédio" (Quadro IX).

A arte farmacêutica é tão antiga como a arte médica, a ponto de se confundirem ou estarem intimamente relacionadas até à Alta Idade Média. A separação nítida entre a farmácia e a medicina, o seu ensino e a sua prática, dever-se-á aos árabes.

No entanto, a preparação de produtos de origem animal e vegetal, para prevenir as doenças, aliviar as dores ou curar as enfermidades, está documentada pelo menos desde o Egipto Antigo: por exemplo, o famoso papiro de Ebers (c. 1550 a. C.)  — do nome de Georg Ebers (1837-1898) a quem se deve o seu primeiro estudo, em 1875  — contém já uma lista de mais de 800 receitas, fórmulas ou prescrições terapêuticas e faz referência a mais de 7 mil substâncias medicinais (Lyons e Petrucelli, 1991; Dias, 1997).

Na Idade Média, o reconhecimento da actividade farmacêutica, como ofício, distinto da medicina, é atribuído à Escola de Salerno, fundada no Séc. IX, no sul da Itália.

Segundo leis promulgadas em 1240 pelo imperador Frederico II da Sicília e Nápoles, o médico estava proibido de ser proprietário de uma botica ou de preparar medicamentos, um princípio fundamental que irá influenciar toda a legislação posterior nesta matéria (Clément, 1995; Dias, 1997). E quanto à actividade farmacêutica, faz-se já a distinção entre os confectionnarii e os statunarii:

  • Os primeiros (confectionnarii) são produtores de mezinhas, percursores da indústria farmacêutica que se irá desenvolver na segunda metade do Séc. XIX: confeccionam por sua conta e risco, e de acordo com o estado da arte da sua época, os medicamentos que os médicos prescrevem para tratamento dos doentes;
  • Os statunarii, por seu turno, são meros comerciantes, limitando-se unicamente a vender as substâncias e os medicamentos simples, fornecidos pelos confectionnarii (Clément, 1995).

Não sabemos até que ponto havia, na época, acumulação dos dois ofícios. De qualquer modo, os statunarii estão mais próximos da figura do moderno farmacêutico do que do antigo boticário que, entre nós, também era um produtor de mezinhas.

Referindo-se à diferenciação técnica e social que já existia na Antiguidade Clássica entre a farmácia e a medicina, Dias (1997, Capº 4) diz o seguinte:

"Na Grécia eram várias as denominações utilizadas para os profissionais que lidavam com medicamentos, para além dos médicos (iatroi )":

  • Os mais comuns eram os pharmakopoloi (singular pharmakopolos), ou "vendedores de medicamentos (...) cujo estatuto social e cultura não seriam elevados";
  • Pelo contrário, os rhizotomoi (singular rhizotomos), ou cortadores de raízes, tinham outra importância e estatuto, sendo também maior a sua preparação e o seu nível de conhecimentos;
  • Outros grupos no campo farmacêutico incluíam os pharmakopoeoi (sing. pharmakopoeos), "preparadores de medicamentos", além dos preparadores de unguentos, os vendedores de misturas, os vendedores de especiarias e os vendedores de mirra;

Em Roma, vamos encontrar estas e outras categorias ligadas à produção e/ou comercialização de medicamentos, tais como os vendedores ambulantes e os vendedores fixos de medicamentos, os trituradores de drogas (pharmacotribae ou pharmacotritae ), os prepradores de cosméticos (pigmentari ) e os herbanários (herbarii ) (Dias, 1997).

Outra restrição imposta à actividade farmacêutica, em 1240, em Salerno, prendia-se com o prazo de validade dos produtos, armazenados na botica, e que passavam a estar sujeitos a inspecção: esses produtos não podiam ultrapassar o período de um ano após a data da sua aquisição (Dictionnaire médicale Dechambre, 1887, cit. por Clement 1995, p. 33).

Dias (1997, Cap. 6º) acrescenta que o édito de Melfi, promulgado por Frederico II em 1240, vinha também introduzir o princípio do "controlo dos preços dos medicamentos" bem como do "licenciamento e inspecção da actividade farmacêutica".

O boticário enquanto ofício, ou seja como corporação, é reconhecido em França, por alvará régio de 1514 (Clément, 1995). Mas já anos antes, em 1495, há notícia da criação da primeira botica hospitalar (no Hôtel-Dieu de Paris). Tratava-se, ao que parece, de uma medida de excepção, já que no hospital medieval eram o pessoal religioso que se ocupava da farmácia.

Depois da Revolução Francesa, o Estado vai regulamentar o exercício da actividade farmacêutica, através da lei de 21 de Germinal do Ano XI: a abertura de um estabelecimento farmacêutico bem como a preparação e a venda de medicamentos só são autorizadas aos farmacêuticos e desde que estes sejam, eles próprios, proprietários dos estabelecimentos.

A única excepção continuam a ser os hospitais que, sobretudo os menos importantes e com menos recursos, não tem farmacêuticos privativos, pagando uma avença ao boticário local para exercer a função a tempo parcial (o mesmo acontecendo em Portugal).

A partir do final do Séc. XVI, vamos já encontrar a figura do boticário hospitalar (e dos seus ajudantes), residindo no próprio estabelecimento e assistindo à visita médica dos doentes. No nosso país, esta inovação é bastante anterior, estando pelo menos consagrada no Regimento do Hospital Real de Todos os Santos (1504) e, mesmo anteriormente, no Hospital Termal das Caldas da Rainha (fundado em 1484).

Só no princípio do Séc. XIX, é que será criada em França a carreira dos farmacêuticos hospitalares (1802). As suas funções continuam a ser a preparação dos medicamentos, mas já de acordo com a farmacopeia em vigor.

Além disso, devem prestar contas anualmente, à comissão administrativa do estabelecimento hospitalar, da gestão da farmácia. De qualquer modo, durante muito tempo e até recentemente, o seu estatuto (admissão, nomeação, remuneração, incompatibilidades, competências, etc.) era técnica e socialmente inferior ao do médico (Graça, 1996).

No caso português, pode considerar-se como ponto de partida (histórico), para "a organização de serviços de saúde com diferenciação funcional" (Ferreira, 1990, p.85):

  • A separação das actividades do físico-mor e do cirurgião-mor (1460);
  • E o reconhecimento das funções dos boticários, os quais passaram, pelo menos, por lei, a substituir os médicos na preparação dos medicamentos (1461).

Mais especificamente, uma lei de 23 de Abril de 1461, de D. Afonso V, vem proibir aos físicos e cirurgiões a manufactura de mezinhas em suas casas, e aos boticários a administração de mezinhas aos doentes sem parecer do físico ou do cirurgião. 

Aquele diploma régio continha ainda importantes disposições sobre a produção, o comércio e o controlo dos fármacos, obrigando nomeadamente os boticários ao registo das receitas que aviavam, com o nome do prescritor e do cliente.

Merceeiros, especieiros e quaisquer outros ficavam igualmente proibidos de vender ao público medicamentos compostos nas localidades com boticário estabelecido. O mesmo se passava com os teriagueiros, em geral, judeus que vendiam de terra em terra a teriaga (um preparado utilizado como antítodo dos mais variados venenos, ou mais ou menos o equivalente à "banha da cobra" que ainda hoje se vende nas feiras das nossas vilas e aldeias) (Lemos, 1991; Mira, 1947).

Com o Regimento do Físico-Mor do Reino de 1521, os boticários passaram, por sua vez, a estar sujeitos à obrigação geral de exame de aprovação (Sobre a história da farmácia em Portugal, ver o excelente o site de J. P. Sousa Dias, alojado nas páginas da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa).

A intervenção régia neste domínio (complementada pela acção do município de Lisboa, por exemplo através do regimento de 26 de Agosto de 1497 que vem exigir a existência, nas boticas, de livros de registo das receitas aviadas, de tabela de preços, de pesos e medidas apropriados, etc. ) deixa adivinhar a natureza e a amplitude da indisciplina que continuava a reinar na época, tanto ao nível do exercício da prática médica (vd. Caixa 2) como da produção, distribuição, venda e consumo de medicamentos Daí provavelmente a origem e a razão de ser de provérbios como:

  • "Antes (gastar) aqui que na farmácia"
  • "Dourar a pílula";
  • "Em ferreiro não pegues, em farmácia não proves, em sapateiro não sentes";
  • "Há de tudo como na botica";
  • "Remédio caro faz sempre bem, se não ao doente, ao boticário" (Quadro IX).

Quadro IX — Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a farmácia, o farmacêutico e a terapêutica

Objecto

Provérbio

Botica/

Farmácia

  • "Antes aqui que na farmácia"

  • "Com uma pipa de água fabrica o boticário um lagar de dinheiro"

  • "Em Agosto apanha macela que livra da botica o uso dela"

  • "Em ferreiro não pegues, em farmácia não proves, em sapateiro nem sentes"

  • "Foge do frio e do porcino, da botica e do remédio"

  • "Há de tudo como na botica" (Séc. XVIII)

  • "Não bebas em botica, nem pegues em ferreiro"

  • "Não há botica sem receitas"

  • "Por causa de titica ninguém vai à botica"

  • "Se a tua casa é húmida, abre conta na botica"

Boti-cário/ Farma-cêutico

  • "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"

  • "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"

  • "No boticário está a chave do médico e no escrivão a do peito"

  • "Remédio caro faz sempre bem, se não ao doente, ao boticário"

  • "Quem tem doença, abra a bolsa e tenha paciência"

  • "Saúde o come que não boca grande"

Medica-mento/ Remédio

  • "Com um horto e um malvar há medicina para o lugar"

  • "Dourar a pílula"

  • "O bom remédio amarga na boca"

  • " O que não tem remédio remediado está"

  • "O tempo cura o enfermo e não o unguento"

  • "O tempo dá o remédio onde me falta o conselho"

  • "Para grandes males, grandes remédios"

  • "Para tudo há remédio senão para a morte"

  • "Pilulas engolem-se e não se mastigam"

  • "Pouca peçonha não mata"

  • "Tempo é remédio"

  • "Se a pílula bem soubera, não se dourara por fora"

  • "Uma pílula a tempo poupa nove"

Cura/ Terapêu-tica

  • "A má chaga má erva" (Séc. XVI)

  • "Com tempo tudo se cura"

  • "Enquanto há vida há esperança"

  • "Mal com mal se cura"

  • "Mastigar marmelada para os tísicos"

  • "Não adianta fugir com o cu à seringa"

  • "O que arde cura, o que aperta segura"

  • "Pior a cura que o mal"

  • "Se não morre do mal, morre da cura"

(Continua)

Caixa 1 - O legado hipocrático e arábico-galénico


A medicina hipocrática tem de ser entendida no contexto do desenvolvimento da filosofia grega   (e sobretudo dos filósofos naturalistas). Neles foi  Hipócrates (c. 460 - c. 377 a.C.) basear-se para construir a sua famosa teoria dos quatro humores   e do seu indispensável equilíbrio para explicar a doença e manter a saúde (Mossé, 1885; Sournia, 1995). Em termos sintéticos:

  • O universo (e, portanto, o corpo humano) é composto o do universo  por quatro elementos fundamentais: o fogo, a água, a terra e o ar;

  • A estes quatro elementos estão associadas quatro qualidades: o quente (fogo), o frio (água), o seco (terra), o húmido (ar);

  • A vida é mantida pelo equilíbrio de quatro humores, cada um procedente de uma determinada parte do corpo humano e tendo diferentes qualidades e funções:  (i) o sangue (coração),  que é quente e húmido; (ii) a fleuma (cérebro), fria e húmida; (iii) a bílis amarela (fígado), quente e seca; e (iv) a bílis (baço), fria e seca;

  • Do predomínio de um destes humores na constituição do indivíduo, resulta um determinado tipo fisiológico ou carácter: o sanguíneo, o fleumático, o colérico ou o melancólico;

  • doença não seria mais do que desequilíbrio dos humores;

  • O papel do médico é ajudar a physis a seguir os seus processos normais ou naturais;

  • De acordo com o aforismo hipocrático II. 22, "as doenças que resultam da plenitude são curadas por evacuação, as provenientes da vacuidade por repleção e, em geral, os contrários pelos contrários" (cit. por Sournia, 1995. 47, itálicos meus);

  • Daí o uso (e o abuso até ao Séc. XVIII) dos cautérios, sangrias, purgantes e vomitivos; no entanto, Hipócrates e a sua escola recomendava prudência no seu uso; também não davam excessiva importância aos medicamentos; valorizavam sobretudo o regime alimentar, o exercício físico e os bons ares.

Hipócrates é mais conhecido pelo célebre juramento que lhe é atribuído, ao que parece indevidamente (pelo menos na redacção que chegou até nós). Também se sabe muito pouco sobre a sua  vida, a não ser que (i) nasceu na ilha de Cós, (ii) era descendente de uma família de médicos, (iii) viajou muito no seu tempo e (iv) teve inúmeros discípulos. 

Sabe-se também muito pouco da sua teoria e da sua prática clínica:

  • Por Corpus Hippocraticum é conhecido o conjunto dos escritos (seus e da sua escola e seguidores) sobre o conhecimento médico da Antiguidade Clássica, de que o greco-romano Galeno foi sobretudo o grande divulgado;

  • Trata-se de uma colecção de 60 obras (escritas em diferentes épocas, entre o Séc. V e Séc. III a.C., por diferentes autores); o juramento de Hipócrates, por exemplo, faz parte provavelmente das obras mais tardias desta colecção;

  • De todas estas obras, as mais conhecidas são os Aforismos: traduzidos em latim no Séc. VI e depois em árabe e em hebreu, serão profusamente divulgados ao longo de toda a Idade Média;

  • Só no Séc. XV é que serão descobertas e traduzidas, para latim, directamente do grego, outras obras atribuídas a Hipócrates; talvez o mais interessante ainda sejam os seus casos clínicos, que irão despertar grande interesse na Europa do Séc. XVII.

O contributo da escola hipocrática terá sido sobretudo o de elaborar uma medicina racional (e não propriamente científica), constitutiva do acto médico, em que a prognosis precedia a diagnosis, e esta a decisão terapêutica e o tratamento. 

No entanto, sendo a saúde um estado de equilíbrio dinâmico, as drogas tinham um papel limitado na medicina hipocrática. Aliás, o próprio livro dos Aforismos começa com estas palavras, evocando a especificade e os limites da própria medicina: 

"A vida é curta e a arte [ de curar, ou seja a medicina] é longa, a ocasião fugidia,  a experiência enganadora, o juízo difícil" (tr. para o francês de E. Littré, cit. por Sournia, 1995.47).

Mas o mais famoso dos médicos da Antiguidade Clássica não é   Hipócrates mas, sim, Galeno, do séc. II (c.129- c.n199). Os seus escritos irão constituir as bases essenciais do ensino médico medieval até à reforma da universidade, já em pleno Ancien Régime, tal como de resto a obra de Dioscórides (c. 60). Por exemplo, as prescrições constantes da obra mais conhecida de Dioscórides, De materia medica (donde constam numerosas aplicações terapêuticas, baseadas em produtos minerais, vegetais e animais), serão copiadas e recopiadas durante 18 séculos, ou seja, até ao Séc. XIX (!).

Aliás, a farmacologia enquanto disciplina autónoma entrará só muito tardiamente na universidade: em 1891 é nomeado o primeiro professor de farmacologia nos EUA (John Jakob Abel, Universidade de Ann Arbor) e em 1905 na Inglaterra (University College London, Artur Cushney)(Lyons e Petrucelli, 1991).

De Galeno sabe-se o seguinte:

  • Nasceu em Pérgamo, por volta de 129, na Ásia Menor, e estudou medicina em Alexandria, a mais famosa escola médica da Antiguidade; aqui teve contacto com a obra de Herófilo (c. 335-280 a. C), e de Erasistrato (c. 300 a.C.-260 a.C.), considerado como os pais da anatomia e da fisiologia, respectivamente;

  • Foi cirurgião dos gladiadores da sua terra natal, tendo partido para Roma em 162; tornar-se-ia depois médico da corte do imperador Marco Aurélio e, com isso, famoso e rico;

  • Para além da prática clínica, interessou-se pela anatomia e a fisiologia; dissecou porcos e macacos e demonstrou que as veias continham sangue e não ar (contrariamente aos ensinamentos de Aristóteles); transmitiria, no entanto, para a posteridade uma errónea descrição do sistema de circulação.

Da sua vasta obra (cerca de 400 livros), resta cerca de um quarto. O seu ensino manteve-se praticamente intacto até à Renascença. O facto da sua autoridade ter sido reconhecida pela própria Igreja, fez com que se tornasse uma espécie de bíblica médica, para o melhor e para o pior. E todos aqueles que posteriormente ousaram contestar os seus ensinamentos de Galeno serão perseguidos, excomungados ou até mortos.

Não reconhecendo a força terapêutica que Hipócrates atribuía à natureza, o maior contributo de Galeno para o desenvolvimento da medicina ocidental terá sido a ideia de que os vários sintomas de doença podiam ser estudados e individualmente tratados, dependendo esse tratamento dos órgãos afectados pela doença. Esta concepção organicista da doença ainda constitui ainda hoje o essencial do paradigma biomédico da saúde/doença (Sournia, 1995). 

Há um provérbio popular que reflete a fama (mas também a divergência) entre os dois médicos mais famosos da Antiguidade Clássica: "Hipócrates diz que sim, Galeno diz que não".

Dos arabistas (mais do que dos árabes propriamente ditos, já que o termo se aplica a todos os autores que escreviam em árabe, incluindo os persas e os judeus), há que destacar Avicena (980-1037), o conhecido autor do Cânone da medicina.

Todavia, o mais famoso médico da Idade Média terá infelizmente sucumbido, na opinião de Sournia (1995. 89), à "embriaguez de um unicismo total": Para Avicena, "é o movimento dos astros que regula a data das sangrias e o prognóstico das doenças, a geometria dos polígonos determina a cicatrização das feridas, e o pulso, contado através da clépsidra de água, orienta o diagnóstico" .

  

Caixa 2 - Evolução do estatuto socioprofissional dos médicos e cirurgiões

Em princípio, poderiam exercer medicina todos aqueles que fossem diplomados (bacharéis) pela universidade portuguesa ou por universidade estrangeira, no respectivo curso. A prática abusiva da medicina por indivíduos sem a necessária qualificação levará, entretanto, D. João I (1357-1433) a ordenar, por carta real de 28 de Junho de 1392, que nenhum homem ou mulhercristão, mouro ou judeu, pratique a arte de curar sem primeiro se submeter a um exame de provas práticas feito perante o físico-mor (um cargo de nomeação régia que só será extinto em 1836).

Aqueles que eram aprovados no exame, obtinham uma carta autenticada com o selo real que lhes conferia o direito de exercer legalmente a prática da medicina. Previam-se já pesadas sanções pelo exercício ilegal da medicina, muito embora essa disposição não tivesse provavelmente grandes efeitos práticos. Esta carta real é considerada "a primeira disposição legislativa em relação ao exercício da medicina", segundo Lemos (1991, Vol. I. 73).

No Regimento do Físico-Mor, de 15 de Outubro de 1476, esse exame passa a estender-se aos próprios diplomados pela universidade, portuguesa ou estrangeira, o que não deixa de ser sintomático (Graça, 1996):

  • Estamos provavelmente perante a primeira tentativa de controlo do exercício da medicina pelos próprios médicos, sob a figura do físico-mor e, portanto, sob protecção do próprio poder régio;

  • Por outro lado, tudo indica que o número de diplomados em medicina por universidades estrangeiras tenha aumentado no Século XV.

Nesta época, a cirurgia era um simples ofício que se aprendia com a prática e experiência dos mais velhos, não estando o seu exercício regulamentado. Era, aliás, uma arte considerada menor, que exigia sobretudo força e destreza manuais, e como tal desprezada pelos médicos diplomados. Era praticada sobretudo pelos barbeiros (até a meados do Século XVIII).

Recorde-se que, segundo o Juramento de Hipócrates (vd. tradução de Littré, cit.por Sournia, 1995. 47-48), ao médico estava interdito o uso da faca (ou do bisturi): "Não praticarei a operação de corte, mas deixá-la-ei para as pessoas que dela se ocupam".

Só com o Regimento do Cirurgião-Mor, datado de 25 de Outubro de 1448, no tempo de D. Afonso V, é que passa igualmente a ser obrigatória a prestação de provas de habilitação para a prática da cirurgia. O exercício indevido da cirurgia passava também a ser punido com prisão.

O ofício de cirurgião só a partir do Século XVI é que começa a ser técnica e socialmente valorizado . Por exemplo, um alvará de 26 de Julho de 1559 vem restringir o seu exercício aos que fizessem ou tirassem o curso de dois anos do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS), com excepção dos diplomados pelas Universidades de Coimbra, Salamanca ou Guadalupe. Esta disposição não é, no entanto, confirmada  pelo Regimento do Cirurgião-Mor, de 12 de Dezembro de 1631.

Entretanto, no final do Séc. XVII, irão ser tomadas algumas providências relativas ao curso de cirurgia do HRTS:

  • Em 1693 exigia-se aos praticantes de cirurgia ou barbeiros, como habilitação mínima para frequentar o curso, o saber ler e escrever;

  • Por sua vez, o regimento de 1 de Julho de 1694 impõe já um numerus clausus (noventa alunos) e um internato de cinco anos (!).

Em 1758, o cirurgião-mor Soares Brandão volta a reiterar as exigências para admissão ao curso de cirurgia, ministrado naquele hospital: Saber ler e escrever, ter conhecimentos de ortografia e gramática da língua portuguesa, entre  outros requisitos (Mira, 1947).

Recorde-se que, contrariamente aos tratados médicos que eram obrigatoriamente escritos em latim, as obras sobre cirurgia e anatomia eram publicadas nas línguas vernáculas. Daí o professor de anatomia P. Dufau, no HRTS, ter aconselhado o seu brilhante aluno Manuel Constâncio, por volta de 1750, a estudar a "língua francesa para se aproveitar das excelentes obras que nela havia escritas" (Lemos, 1991, Vol. II.77).

Uma das saídas profissionais dos diplomados com o curso de cirurgia do HRTS era a marinha mercante, alistando-se como facultativos da tripulação, ou então o exército e a marinha de guerra, como facultativos militares.

Além Pirinéus, em França, a evolução do estatuto dos cirurgiões irá ser mais célere e, portanto,  mais favorável à reunificação da profissão médica (o que em Portugal só acontece tardiamente, muito depois da criação, em 1836, das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto):

  • Um passo importante no sentido do reconhecimento dos cirurgiões foi a criação, em França, da Academia Real de Cirurgia (em 1737);

  • Por outro lado, e não obstante a feroz oposição da conservadora Faculdade de Medicina de Paris, os cirurgiões passam inclusivamente a ter assento na Société Royale de Médecine, criada em 1778.

Aliás, já meio século antes, por decreto real de 23 de Abril de 1723, era reconhecida, em França,  a profissão de cirurgião. Em pleno Século das Luzes, P.-J. Desault (1738-1795) irá depois desenvolver o ensino da cirurgia à cabeceira do doente hospitalizado, podendo ser considerado o Boherhaave da cirurgia setecentista (Sournia, 1995).

Não obstante os progressos da prática clínica,  e  continuará a persistir, até ao final do Antigo Regime, uma dicotomia entre teoria e prática no campo da medicina. A maior parte da prática médica não era, de resto, controlada pelos próprios médicos, mesmo em país como a Inglaterra e a França onde  o associativisno médico estava mais desenvolvido.

Num texto significativo, L' Anarchie médicinale, publicado por um médico de Lyon, em 1772, pode ler-se: "La plus grande branche de la médecine pratique est entre les mains de gens nés hors du sein de l'art; les femmelettes, les dames de miséricorde, les charlatans, les mages, les rhabilleurs, les hospitalières, les moines, les religieuses, les droguistes, les herboristes, les chirurgiens, les apothicaires, traitent beaucoup plus de maladies, donnent beaucoup plus de remèdes que les medecins" (cit. por Foucault, 1972. 325. Itálicos nossos).

Entretanto, com a revolução francesa vão operar-se algumas mudanças decisivas no ensino e na prática da medicina e da cirurgia:

  • Em primeiro lugar, o ensino médico e cirúrgico é unificado;

  • Em segundo lugar, o latim cede o lugar ao francês;

  • Depois, são criadas cadeiras de prática clínica;

  • A atribuição de diplomas passa a depender da presença efectiva dos estudantes nas aulas de anatomia e nas enfermarias;

  • O hospital torna-se um verdadeiro local de aprendizagem;

  • E, last but not the leastIgreja perde a sua secular autoridade sobre o funcionamento das faculdades e dos hospitais.

Com o laicismo abre-se o caminho à inovação, à investigação e à independência científica. A pouco e pouco os ventos revolucionários acabam por chegar a toda a Europa, mesmo com um atraso de décadas, como acontecerá entre nós. Recorde-se nomeadamente o papel das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto (Mira, 1947):

  • À margem da Universidade de Coimbra, estas escolas  (e sobretudo a de Lisboa) irão dar um decisivo contributo para a unificação e afirmação da profissão médica;

  • Delas sairá a elite médica portuguesa da segunda metade do Século XIX.

Por outro lado, em 1841 ainda continuava o lento processo de secularização da Universidade de Coimbra, com a nomeação do seu primeiro reitor não eclesiástico...

 

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Nota do editor:

(*) ~Ultimo poste da série  > 20 de março de  2023  Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

Guiné 61/74 - P24163: Convívios (953): 38.º Encontro Nacional dos ex-Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 (Brá-Guiné), dia 20 de Maio de 2023 no Restaurante Cortiço - Tornada - Caldas da Rainha (Lima Ferreira, ex-Fur Mil)


O almoço realiza-se no dia 20 de Maio de 2023
Restaurante "O Cortiço", em Tornada - Caldas da Rainha

Inscrições para:
Lima - lf.limaferreira@gmail.com - Telemóvel 919 977 304
Araújo - f.g.araujo@live.com.pt - Telemóvel 963 154 718
Firmino - firmino.eugenio.47@gmail.com - Telemóvel 969 087 390

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24096: Convívios (952): Encontro do pessoal do BCAV 3846, no 50.º aniversário do seu regresso, dia 26 de Março de 2023, no Cartaxo (Delfim Rodrigues)

quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24162: Historiografia da presença portuguesa em África (360): As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Corresponde a um período em que Carreira desbravou imensa documentação nos arquivos, toda esta pesquisa sobre o comércio negreiro destinado primordialmente ao continente americano. Esta análise sectorial mostra claramente a crescente vigilância inglesa nas águas destes pontos da costa africana, mas igualmente muito ativa nas Antilhas. Resistiu-se por todos os meios, tentou-se enganar a vigilância, e a ninguém assombra que a escravatura tivesse recrudescido entre os povos da região, à falta da exportação. Ao tempo começa o comércio da mancarra, é uma nova lógica comercial que se instala, incentivar culturas e propor novos mercados de exportação, favoráveis aos propósitos coloniais. Aqui se deixa o testemunho de agradecimento a todos estes trabalhos pioneiros de Carreira, a historiografia anterior sempre fugiu a decifrar e a mostrar os cenários deste hediondo comércio.

Um abraço do
Mário



As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde

Mário Beja Santos

A Junta de Investigações Científica do Ultramar deu à estampa em 1981 um trabalho de António Carreira intitulado “O Tráfico de Escravos nos Rios de Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)”. Aqui se tem feito referência ao conjunto de obras de Carreira sobre o comércio negreiro, ele foi um pioneiro nestes estudos que hoje conhecem franco desenvolvimento. Aqui se pretende somente fazer referência, formalmente abolido que estava o tráfico, à sua repressão, o investigador alega escassez de informações nas pesquisas arquivísticas que fez. Atenda-se ao que ele escreve:
“Tudo indica que os negociantes de escravos residentes em Cabo Verde se tornaram extremamente dinâmicos a partir dos primeiros anos do século XIX – talvez na razão do aperto da fiscalização. Pelo menos é o que se conclui dos relatos das comissões mistas, quer a sediada na Boa Vista, quer a da Serra Leoa e pelo próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros português.
Os navios espanhóis apoiados em Cabo Verde navegavam com bandeira portuguesa e passaporte concedido pelo governo de Cabo Verde. À sombra dessa proteção acolhiam-se armadores espanhóis e um ou outro brasileiro, isto se falar numa espécie de caçadores furtivos procedentes de outras áreas.
Das listas oficiais de navios apresados, de 1835 a 1839, com escravos a bordo ou por simples indícios de se dedicarem ao tráfico e dos que foram declarados suspeitos de implicação no tráfico pelas comissões missões, referenciamos 36 armadores com um total de 55 navios. De entre os condenados, 14 transportavam escravos e 25 teriam a bordo mercadorias próprias para o negócio da escravatura.
Também estavam sujeitos a apresamento e confisco do casco os navios que tivessem: escotilhas com grades abertas; repartimentos, coberta corrida ou separações em maior número que é costume; tábuas aparelhadas para formar segunda escotilha; gargalheiras, algemas, anjinhos, cadeias ou outros instrumentos de contenção; maior quantidade de água em pipas ou tanques do que é necessário para o consumo da tripulação; quantidades extraordinárias de selhas, gamelas ou bandejas para a distribuição do rancho do que a necessária para o uso da equipagem; quantidade extraordinária de arroz, feijão, carne, peixe salgado, farinha de pau, mandioca, milho ou outras farinhas.
Pode dizer-se que se preparava o caminho que viria a permitir aos ingleses a imposição a Portugal das estipulações do Tratado de 3 de julho de 1842”
.

E assim nos aproximamos concretamente do comércio negreiro nos rios da Guiné e Cabo Verde. Carreira faz referência a uma carta de maio de 1835, o embaixador inglês Howard de Walden comunica ao ministro português que fora apresada em 14 de agosto de 1834 na ilha de Cuba a escuna Felicidade transportando a bordo 174 escravos pertencentes ao governador de Bissau. Desembarcados os escravos, a escuna foi levada para Serra Leoa e aí entregue à comissão mista. A escuna Felicidade estava inscrita no arquivo da Praia, nota-se, no entanto, uma discrepância em vários elementos, mas não deixa de ser flagrante a coincidência do nome do navio e o número de escravos apresados. Entre 1836 e 1839 terão sido apresadas embarcações com uma média anual de cerca de 1000 escravos. Interrogando-se quanto aos portos em que teriam sido embarcados os escravos, Carreira diz que talvez se possam apontar os rios Casamansa, Cacheu, Geba, ilhas de Bissau e dos Bijagós ou nas rias do Sul – Nuno, Pongo e ilha dos Ídolos – como sendo as áreas de procedência da maioria das carregações.

Continuamos a citar António Carreira:
“Para o volume de escravos apresados, os 41 transportados pela escuna Liberal que navegava com passaporte passado pelo governo de Cabo Verde, e detectados pelo brigue brisk, a 14 de abril de 1839, constituíram uma gota de água no imenso oceano de tráfico ilícito. E daquele número unicamente 3 foram dados como pertencentes a Honório Pereira Barreto, por cuja infração foi condenado pela comissão mista à pena de incapacidade de exercício de funções públicas por 5 anos, agravada com a multa de 2 contos de réis! Foi inegavelmente uma condenação política, a que talvez não tivesse sido estranha a influência dos próprios patrícios que lhe invejam a posição preponderante que desfrutava.
No actual estado das pesquisas arquivísticas sobre a matéria (arquivos de Lisboa e de Cabo Verde – já que na Guiné há absolutamente nada) apenas podemos indicar outro caso de tráfego ilícito, não por apresamento de navios e/ou escravos, este registado na correspondência da comissão mista da Serra Leoa e o Ministério da Marinha e do Ultramar. Ao dar a conhecer ao governo de Cabo Verde as conclusões da referida comissão, o Ministério dizia: O rio Nuno há 3 anos que não tem sido visitado por um navio de escravos; contudo, tem sofrido a influência do muito ativo comércio estabelecido em Bissau, de onde são enviados agentes ao rio Nuno a fim de comprar escravos que mandam para Bissau em ocasião oportuna. O negociante Caetano Nosolini tem tido a maior parte deste negócio e emprega para este fim em rio Nuno dois agentes europeus, além de gente de cor empregada em seu serviço. De 1841 em diante, a documentação encontrada alude com frequência a navios suspeitos em circulação nos rios de Guiné e a navios usando ilegalmente a bandeira portuguesa”
.

Tudo levava a crer que o comércio negreiro sofrera uma baixa sensível em quase todos os bens conhecidos mercados da costa africana, tão intensa era a vigilância dos cruzeiros britânicos. Carreira reflete do seguinte modo:
“É muito possível que em uma ou outra região os naturais tivessem assaltado e destruídos as instalações de recolha de escravos, libertando-os; mas isso sem carácter generalizado, pois na altura os régulos islamizados haviam já lançado a campanha contra os animistas, reduzindo-os à escravidão, e vendendo uns aos negreiros europeus (através dos Djilas) e outros no interior do continente, onde os utilizavam como força de trabalho, necessária à manutenção de todo o séquito próprio de régulos Fulas e Mandingas”. Carreira observa ainda que o tráfico ilícito continuava nas ilhas de Cabo Verde e mostra documentação. Há um relatório do Diretor da Alfândega de Bissau, datado de 22 de dezembro de 1857 e dirigido ao Visconde de Sá da Bandeira onde se afirma que em 1842 cessou completamente a exportação de escravos de Bissau e Cacheu. Carreira observa que esta informação não lhe parecesse inteiramente exata quanto a Bissau, pelo menos, e cita documentação contraditória. E, escreve mais adiante: “Tudo indica que houve um recrudescimento do tráfico ilícito nas zonas do interior que utilizavam Bissau como o melhor porto de saída de escravos, sobretudo oriundos de Geba. Por essa altura já havia sido desencadeada a guerra (1840) entre Fulas e Mandingas, e que viria a terminar com a derrota dos últimos, em 1853. E os vencidos nestas lutas, como era norma, foram vendidos nos mercados do interior e outras vezes levados para os portos da costa e negociados com os europeus, ou então passavam a engrossar os exércitos dos régulos e utilizados em trabalhos agrícolas e outras atividades de interesse mais direto dos chefes políticos e religiosos, designadamente no cultivo da mancarra”.

O investigador reconhece que traçou um panorama necessariamente parcelar e incompleto, teve mesmo que desistir de tentar fazer a contabilidade do número aproximado de escravos movimentados e portos onde teriam sido embarcados.


Castelo de São Jorge da Mina, construído pelos portugueses na Costa do Ouro (hoje Gana) em 1482, de onde saíram mais de 30 mil escravos rumo ao Brasil, em navios portugueses.
Foto com a devida vénia a vinteculturaesociedade

Cartaz do previsto Simpósio Internacional Cacheu Caminho de Escravos, bem procurei documentação, nada encontrei, provavelmente foi cancelado atendendo à pandemia
Foto com a devida vénia a Plataforma9

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24161: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte I: Eu estive lá (Mário Dias)

Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs cabos milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo): estiveram juntos na tropa, entre 1959 e 1960, até ao dia (novembro de 1960) em que o Domingos Ramos desertou, passando-se para o lado dos nacionalistas e independentistas do Amílcar Cabral (*)

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Passados tantos anos, continua a haver curiosidade, da parte dos nossos leitores, sobre o que se passou em Bissau, no cais do Pijiguiti (lê-se: Pidjiguiti), ou  Pindjiguiti (como escrevem, mais recentemente, os guineenses), ainda uns anos antes da guerra em que estivemos envolvidos.  No nosso blogue, publicámos logo no início duas versões, de Luís Cabral (na altura "guarda-livros" da Casa Gouveia) e do nosso camarada Mário Dias, um dos históricos do nosso blogue (**), e que frequentou, em 1959,  o 1.º CSM que se realizou na Guiné e de que fizeram parte alguns futuros quadros do PAIGC, como Domingos Ramos, o Constantino Teixeira ou o Rui Djassi.

Escrevemos na altura (***):

(...) O "massacre do Pidjiguiti"(sic) é um dos mitos fundadores do PAIGC. Aliás, marca o início da "luta de libertação nacional", na narrativa do PAIGC (que então se chamava apenas PAI).

Este depoimento do Mário Dias é uma peça importante para se fazer a história recente da Guiné-Bissau: reivindicações laborais dos  marinheiros do serviço da cabotagem das casas comerciais de Bissau (e, em particular, da Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF – Companhia União Fabril) estiveram na origem de graves tumultos que foram prontamente reprimidos pelas autoridades portuguesas.

O depoimento do Mário Dias terá que ser tido em conta pelos nossos historiadores (tanto de um lado como do outro). E sobretudo por nós, portugueses e guineenses, que temos direito à verdade. Eu só conhecia (e mal) a versão do PAIGC, que fala em massacre, em 50 mortos e mais de um centena de feridos. 



Notícia de primeira página do "Diário de Lisboa", edição de 4 de agosto de 1959 (em que o destaque ia para as peripécias da XXII Volta a Portugal em Bicicleta): a agència Lusa, noticiava, a partir de Lourenço Marques, um "fait-divers": "Elefantes trucidados pelo comboio no vale do Limpopo"... 

Fonte: Citação:(1959), "Diário de Lisboa", nº 13166, Ano 39, Terça, 4 de Agosto de 1959, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_17262 (2023-3-22)

Na época, é bom lembrá-lo,  a imprensa portuguesa não era livre, pelo que nunca nos poderia dar a, nós, metropolitanos, uma versão isenta dos acontecimentos. Havia a censura, a polícia política, o partido único, o Salazar... É bom não esquecê-lo. E, nós, adolescentes (eu tinha 12 anos), estávamos longe de pensar que a futura guerra da Guiné iria sobrar também para nós (dez anos depois, no meu caso)...

Infelizmente, não conheço investigação de arquivo sobre este assunto. Talvez o nosso amigo e membro da nossa tertúlia, Leopoldo Amado, possa fazer luz sobre este e outros acontecimentos que antecederam o início da guerrilha do PAIGC, na sua tese de doutoramento sobre a guerra colonial 'versus' guerra de libertação que eu estou ansioso por ver apresentada e discutida, em provas públicas, na Universidade de Lisboa. (...)

Guiné-Bissau > Bissau > 1976 >  Planta da cidade em mapa publicado a seguir à independência. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante). Imagem gentilmente cedida por A. Marques Lopes (2005).
 

Os acontecimentos do Pidjiguiti em Agosto de 1959: 

depoimento de Mário Dias (***)

Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959 (*****). Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto).

Para melhor entendermos a greve e consequente revolta dos marinheiros, há que recuar um pouco no tempo e no contexto em que se movimentava a actividade dos marinheiros.

As principais casas comerciais da Guiné (vou designá-las pelo nome abreviado como eram conhecidas), Casa Gouveia (CUF), NOSOCO, Eduardo Guedes, Ultramarina e Barbosas & Comandita, tinham ao seu serviço frotas de lanchas 
– umas à vela e outras a motor  – que utilizavam no serviço de cabotagem transportando mercadorias para os seus estabelecimentos comerciais e, no regresso, traziam para Bissau os produtos da terra, principalmente mancarra e arroz. A maioria deste tráfego era pelo rio Geba, até Bafatá e, para o Sul até Catió e Cacine.



Guiné > Bissau > 1969 > Cais do porto de Bissau. Foto tirada do lado do Pidjiguiti.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Anualmente, essas empresas se reuniam para acordarem os salários a pagar aos diversos elementos da tripulação das embarcações. Esse acordo tinha a finalidade de ajustar o salário nas várias frotas, de forma a evitar concorrência no engajamento do pessoal. É claro que, embora efectivamente todos os anos fossem aumentados, os marinheiros não eram tidos nem achados nestas reuniões. Era comer e calar à boa maneira da época. O mesmo se passava, aliás, em relação ao preço a praticar anualmente na compra do amendoim (mancarra) e que era fixado por tabela governamental, ouvidos os comerciantes. Os agricultores não era ouvidos nem tinham voto na matéria.

Acordo estabelecido, as várias firmas comerciais começaram a pagar aos marinheiros o novo salário. Porém, a Casa Gouveia não procedeu ao aumento e continuou a pagar pela tabela do ano anterior. Passaram-se meses e os marinheiros questionavam o gerente  –   na altura o ex-funcionário do quadro administrativo Intendente 
 [António] Carreira – sem resultados e até com uma certa sobranceria, tique que lhe deve ter ficado dos tempos de funcionário administrativo. Com o descontentamento a aumentar e ânimos cada vez mais exaltados se chegou à tristemente célebre tarde de 3 de Agosto de 1959.

E agora o relato dos acontecimentos por mim presenciados e conforme informações na altura colhidas.

Nesse dia passou por Bissau, a caminho de Angola, uma alta entidade da Força Aérea. Ocupava no governo, salvo erro, o cargo de Secretário de Estado de Aeronáutica 
 [na altura, Subsecretário de Estado da Aeronàutica, Kaúlza de Oliveira de Arriaga (1955 - 1961)].

Fosse qual fosse a sua função, a verdade é que tinha direito a honras militares à sua chegada ao aeroporto. Não havendo outra tropa com capacidades para tal missão, embora ainda recrutas e como tal impedidos regulamentarmente de prestar guardas de honra, acabámos por ser nós a fazê-lo. Bem limpos e engraxados, mauser com baioneta calada, luvas brancas, partiu a Companhia de Recrutas para Bissalanca.

A cerimónia decorreu de forma brilhante (nós éramos um espanto!) e iniciámos o regresso ao nosso quartel em Santa Luzia. Ao aproximarmo-nos da praça do Império, comecei a reparar que muita gente se dirigia apressadamente, alguns até corriam, em direcção ao rio. E, um pouco antes de atingida essa praça, fomos interceptados pelo comandante da companhia, capitão 
  [José Severiano]  Teixeira, que se dirigiu ao oficial que comandava a coluna, tenente Vaz Serra, com quem esteve a conversar por alguns momentos.


Guiné > 1970 > Vista aérea do Geba Estreito entre o Xime e Bafatá > Na época, a Casa Gouveia ainda tinha um serviço de cabotagem entre Bissau e Bafatá, embora precisasse de segurança militar próxima, no troço Xime-Bambadinca-Bafatá.. Foto do 
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Retomada a marcha, ficámos todos surpresos por virarmos à direita em direcção ao rio em vez de à esquerda para Santa Luzia. Conforme descíamos a avenida da República víamos que algo devia estar a acontecer pois cada vez havia mais pessoa aglomeradas e maior era a agitação que demonstravam. 

A certeza tive-a quando, já perto da Casa Gouveia, vi, em cima de um camião que seguia para o hospital, vários homens em grande exaltação. Um deles ficou-me na memória: de pé, escorrendo sangue de um ombro, barafustava e agitava os braços, dava punhadas no peito como um possesso. Impressionante! Ainda hoje, passados todos estes anos, quando se fala destes acontecimentos do Pidjiguiti, é esta a imagem que me ocorre.

Chegados ao local, vi uma considerável multidão nas imediações, os portões do Pidjiguiti encerrados e uma força da PSP, constituída por pouco mais de uma dezena de seguranças, como chamávamos aos polícias africanos, armados com es
pingardas Lee Enfield 7,7 mm, enquadrados por 2 ou 3 graduados europeus.

Na altura já tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia. Fomos mandados apear das viaturas e só então nos deram as indicações da nossa missão que foi, simplesmente, cercar os terrenos anexos ao Pidjiguiti (no local onde mais tarde nasceram as Oficinas Navais e instalações da Marinha e Fuzileiros) que na altura eram terrenos baldios. Não devíamos deixar ninguém sair por esse lado que não tinha vedação. Ainda vimos alguns tentando fugir por aí, atravessando o lodo, mas desistiam ao ver o cordão por nós ali formado. 

Nós, militares intervenientes, não demos nenhum tiro. Aliás, nem podíamos pois nem tínhamos munições. Como já referi estávamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local. Deve ter sido bem caricata a nossa postura, de luvas brancas, num cenário daqueles.

Ali nos mantivemos, aproximadamente 30 minutos, até os ânimos acalmarem (era o que se pretendia) e regressámos ao quartel.

Nos dias seguintes não se falava de outra coisa. Como não tinha assistido ao início dos acontecimentos, fui perguntando aos que mais de perto o tinham seguido e a versão generalizada era a seguinte:

Nessa tarde, mais uma vez, aproveitando a presença do gerente da Casa Gouveia no local [o intendente António 
Carreira],  os marinheiros e descarregadores pertencentes a essa firma comercial reclamaram pelo aumento de salário que todas as outras empresas já estavam a praticar.

– Casa Gouveia, nada. Então como é, senhor Intendente? 

As coisas começaram a azedar e teve que retirar apressadamente a bem da sua integridade física. Chamou-se a polícia. Um subchefe  que para lá se dirigiu, não sei se por falta de tacto em situações como aquela ou porque a exaltação dos marinheiros e trabalhadores era já considerável, foi agredido com um remo na cabeça e teve de imediato que ser socorrido e levado para o hospital. 

Vieram reforços, já armados, e como se organizava no cais um movimento em direcção à Casa Gouveia, armados de remos, ferros e do que havia à mão com a intenção de tudo escavacar, fecharam os portões para impedir a sua saída. Mesmo assim não desistiram e começaram a galgar o portão e a vedação.

Entretanto, o comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues, chegado ao local inteirou-se da situação e, ao ver aquele grupo armado de remos, paus, etc. a marchar agressivamente em direcção à Casa Gouveia, deu ordens aos polícias para dispararem por ser a única forma de os deter.

E foi assim que aconteceu. O resultado foram 16 mortos e não 50, ou até mais, como já tenho visto escrito. Por mim, um que fosse já era demais. Mas, atendendo às circunstâncias do momento, hoje questiono-me: que teria acontecido se não tivesse sido travada aquela multidão da única forma que foi possível? Certamente teríamos muita destruição e bastantes mais mortes a lamentar. E ter-se-ia gerado uma espiral de violência de consequências muito mais graves.

Da narração destes tristes acontecimentos podemos realçar os seguintes factos:

(i)  O PAIGC não esteve por detrás da ocorrência. Ela foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos meramente laborais. Os marinheiros das outras empresas não estiveram envolvidos, pelo menos no início dos acontecimentos. É possível que, por solidariedade, alguns se lhes tenham juntado. O PAIGC aproveitou-se inteligentemente deste movimento, como sempre fez - o que só nos merece admiração - para conquistar mais uns tantos seguidores.

(ii)  Não se pode considerar o ocorrido como uma simples greve, conforme é vulgarmente referido. Foi mais do que isso. Tendo começado por greve, rapidamente se transformou numa revolta violenta cujas consequências são difíceis de prever se não tivesse sido travada. Se a referida revolta era ou não justificada, é-me difícil concluir. Sim, atendendo à injustiça de que estavam a ser vítimas. Não, pelas proporções que lhe deram.

(iii) Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

(iv) Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada (****), embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado.

(v) E já que estamos a tratar de massacres, assunto tão melindroso e de que frequentemente acusam as nossas tropas, só tenho a dizer que durante toda a guerra colonial a que assisti e em que participei (depois da Guiné tive uma comissão em Moçambique e duas em Angola) massacres, massacres mesmo, na verdadeira acepção da palavra, só conheci um: foi o perpetrado pela UPA (mais tarde FNLA) no Norte de Angola em Março de 1961 sobre os fazendeiros brancos e suas famílias bem como sobre os negros bailundos fiéis aos seus patrões. Mas esses já estão esquecidos ou, convenientemente, nunca são referidos.

[Revisão / Fixação de texto / Negritos / Parênteses retos: LG]



Guiné-Bissau > Bissau > 2005 > Também eles, os filhos, netos e bisnetos do Pidjiguiti, os filhos, netos e binetos das vítimas da repressão da manifestação dos marinheiros e trabalhadores do Porto do Pidjiguiti, em 3 de agosto de 1959, têm direito à verdade.(*****)

Foto: © Jorge Neto (2005). Todos os direitos reservados
 [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas de L.G.:



(...) Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM - Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.

Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné. (...)


(****) Fui eu que fiz referência, em 2006, em e-mail interno que só circulou pela nossa tertúlia, a alegados "massacres de populações balantas e beafadas" que terão ocorrido na região de Bambadinca, no início da guerra,reportando-me apenas a conversas, soltas, que eu fui tendo, durante a minha comissão (Maio de 1969 a Março de 1971) com os meus queridos soldados (leais, valentes, insuspeitos, fulas) da CCAÇ 12 mas também com outras fontes como o malogrado Seco Camará, mandinga do Xime, extraordinário guia das NT (morto em 26 de Novembro de 1970, na Op Abencerragem Candente > post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

(*****) Vd. poste de 21 de março de 2023  > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959

terça-feira, 21 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959

Imagem alusiva aos incidentes de 3 de agosto de 1959 no Pidjiquiti, retirada de Esquerda.net, com a devida vénia

1. Comentário do Valdemar Queiroz (*):

A fotografia em que aparecem policias e corpos de mortos pelo chão, não tem nada a ver com o
massacre do Pidjiquiti em Bissau.

É fácil de verificar tratar-se de polícias e ambiente da África Sul racista.

Valdemar Queiroz 20 de março de 2023 às 21:58 

2. Comentários posteriores  do editor LG:

(i) Valdemar, obrigado pelo teu olho clínico. A foto em questão é um embuste. Não tem nada a haver com Bissau. Temos de ter mais cuidado com a escolha das fotos que andam por aí nas redes sociais com falsas legendas... Vamos continuar a investigar melhor... a sua origem e autoria.

(ii) A imagem, polémica, deve ter sido retirada da entrada da Wikipedia, em português, sobre o "massacre do Pidjiguiti" (sic).

Lamentavelmente não se indica a fonte.

(iii) Na Wikipedia em inglês essa falsa imagem não aparece...

https://en.wikipedia.org/wiki/Pidjiguiti_massacre

A sua origem pode ser portuguesa... Creio que é da Esquerda Net, ilustrando um artigo, de 3/8/2021, da Sílvia Roque, uma jovem investigadora da Universidade de Coimbra que não deve ter idade para (mas tem a obrigação de, como académica, historiadora, doutorada...) saber distinguir a PSP, colonial,  de Bissau, em 1959, e a polícia do regime sul-africano do tempo do "apartheid".

https://www.esquerda.net/dossier/3-de-agosto-de-1959-massacre-de-pindjiguiti-bissau/63784

A imagem, sem indicação de fonte e de créditos fotográficos, tem a seguinte legenda: "Massacre de Pindjiguiti, Bissau. Reprodução" (sic).

Não sabemos de quem é a responsabilidade por este dislate: se dos editores da Esquerda Net, se da Sílvia Roque.


Sugestão (**): confira-se esta imagem, que reproduzimos acima,  com outras em que aparece a antiga polícia do regime  sul-africano do apartheid (cujo equipamento incluía as "shortguns"...). As fardas dos oficiais não condizem com as da nossa PSP... Os agentes nativos  usam "capacete colonial"... O fundo, com estruturas edificadas ao fundo, também não parece condizer com o cais do Pijiguiti que todos nós  conhecemos nos anos 60 e 70... Enfim, os corpos não parecem ser de marinheiros e trabalhadores portuários... 

De qualquer modo, não queremos ignorar ou branquear o hediondo crime que foi a repressão brutal  da greve de 3 de agosto de 1959, trágicos acontecimentos  que o partido de Amílcar Cabral (na altura um grupúsculo) "cavalgou", aproveitando-se para fazer deles a sua propaganda... Mas a luta política é assim, em todo o lado e em todos os tempos.  As autoridades portugueses, o Grupo CUF, a Casa Gouveia e o António Carreira, por seu turno,  ficarão sempre mal na foto da História...
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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 28 de janeiro de 2023  > Guiné 61/74 - P24017: Fotos à procura de... uma legenda (170): um "aerograma"... da Suécia com, brrr!, muito frio (José Belo)

Guiné 61/74 - P24159: Os nossos seres, saberes e lazeres (563): O Estado a que isto chegou (Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 16 de Março de 2023:


O Estado a que isto chegou

Para mim a guerra não foram só problemas. A capacidade de liderança, tolerância e a resistência aprendi-as na tropa, essa tolerância e resistência foram fundamentais quando iniciei uma nova atividade em 1976.

Numa empresa é fundamental dizer "o cliente tem sempre razão", mas para engolir tantos sapos e aguentar tanta razão, foi precisa muita resistência, tolerância e ouvir muita m..da. Eu sou empresário desde 1976.

Nem sempre há tempo para responder em devido tempo aos comentários, mas neste caso, com um barco da nossa Marinha de Guerra na Madeira, tive de arranjar tempo para escrever esta mensagem, porque ela me trouxe as recordações de um amigo com idade de ser meu pai chamado Maximiliano de Sousa, mais conhecido por Max.

Pouco tempo convivi com ele, mas aquela do "magala", numa conversa com ele numa mesa do café Nicola, depois da sua actuação no salão de festas do Casino da Figueira no outro lado da rua foram inesqueciveis.

Max era um homem vivido, com muita categoria, que não deixava ninguém indiferente, que saudades tenho daquele tempo. A primeira conversa com ele começou numa simples mesa do café Nicola e terminou com a mesa rodeada de assistência.

No que a mim me toca sendo eu um "reacionário" eleito pela CCaç 4541/72 para o MFA, que acima de tudo procura honrar os antigos combatentes, vou voltar a ouvir o "magala" de Max e meditar.

Depois deste desabafo vou responder ao último comentário da minha anterior mensagem.

A carta militar de 1947, mostra o estuário do rio Mondego, junto à Figueira e depois o início do baixo Mondego, que depois continua para Nascente até Montemor o Velho. A constituição do terreno (aluvião) é igual, mas as culturas são diferentes.

Da Ínsua, passando pelo marco geodésico (Pontão), até à Ribeira, para Noroeste é o Estuário do Mondego, para Sudeste da Quinta do Canal, Lares e Carrapatosa e até Montemor o Velho fica o Baixo Mondego, como mostra a simbologia da carta.

Durante mais de 4 anos fiz um trabalho de pesquisa no Arquivo da Universidade de Coimbra sobre escrituras do século XVIII e XIX, relativas a terrenos privados no Estuário do rio Mondego.

Este trabalho permitiu-me conhecer, a evolução da escrita, heróis da época, as virtudes do nosso povo e a covardia de alguns dirigentes que fugiram para o Brasil. Com as invasões francesas, veio o "aliado", o Duque de Wellington para organizar a resistência, este estabeleceu o seu Q.G. no Porto de Lavos em 1808.

A Figueira da Foz era então uma pequena vila em pleno crescimento devido à exportação de sal. Portugal tinha então um cobarde como Rei e com a falta de Forças Armadas capazes, as tropas de Wellington chegaram e fizeram uma política de "Terra Queimada" na região.

A maioria da população refugiou-se na Vila da Figueira que não estava preparada para este aumento de população. Seguiu-se um período de doenças, sofrimento e miséria tais que não constam dos manuais de História, mas que está registada nos velhos livros do Arquivo da Universidade de Coimbra.

Nas escrituras de aforamento do princípio do século XIX, do notário Manuel Peregrino de Carvalho, consta o Dr. Manuel Fernandes Tomaz, um ilustre figueirense do século XIX, deputado do Reino e o seu pai João Fernandes Tomaz. Da descrição consta a utilização de terrenos de aluvião na região de Lares e Carrapatosa, para instalar marinhas, que foram até aos anos 60 do século XX, actualmente são campos de arroz.

A constituição dos terrenos é igual, mas as culturas são diferentes devido ao tipo de água que utilizam. No Estuário a água é salgada e as culturas são Marinhas, Sal, Peixe, Crustáceos e Bivalves e no Baixo Mondego até Montemor o Velho, predomina a cultura do arroz, onde as águas são doces, ambas estão representadas na carta com simbologia diferente.

As invasões registadas na História de Portugal a nós trouxeram muitos problemas, mas também nos trouxeram conhecimento. No Estuário do rio Mondego junto ao mar a invasão do Império Romano trouxe-nos o conhecimento das marinhas para levar o sal até Conimbriga, a influência da água salgada chegava a Montemor o Velho vulgarmente chamado de Baixo Mondego.

A invasão dos mouros trouxe-nos o conhecimento da cultura de produção do arroz e a tecnologia dos canais de irrigação que conduziram a água doce para jusante até ao início do estuário.

As marinhas de sal são constituídas por diversos compartimentos, sendo o primeiro deles o viveiro ou reservatório da marinha, aqui através da comporta entra além de água salgada, peixe, crustáceos e Bivalves, daí que a produção extensiva destas culturas já venha do tempo do Império Romano.

Nos anos 80 do século passado alguns produtores converteram as marinhas de sal e construíram novas instalações para produção de peixe e com a utilização de novos equipamentos, alteraram as instalações para o regime semi-intensivo.

Para exercer esta atividade é preciso saber lidar com a vida animal, a DGRM, ex-Direção Geral das Pescas passou a chamar-lhe Aquacultura Marinha, eu sou um dos pioneiros ainda vivos.

Como a História mostra as invasões e as guerras trouxeram sempre problemas, mas não podemos esquecer aquilo que aprendemos com os romanos e os árabes e também não devemos esquecer aquilo que ensinámos a outros povos, por esse Mundo fora.


O Estado Fascista, o Estado Comunista e o Estado a que isto chegou.

Há gente neste País que colaborou com o IN, outros fugiram cheios de "coragem" e são hoje apresentados como heróis, há outros "democratas" que pediram ao regime "fascista" um adiamento à sua integração nas FA. Esse direito foi-lhes concedido e tratam os ex-combatentes com peste. Há ainda os filhos do papá, que não foram à guerra e opinam sobre tudo e todos e desprezam tudo o que deixámos em África e no Brasil.

Há ainda alguns que procuram o "ouro do Brasil", ou do quinto dos infernos que vinha na Nau dos Quintos para devolver aos "Brazileiros". Deste ouro, ainda só encontrei pedras já que as jóias da coroa foram roubadas na Holanda, está a decorrer a "investigação" e eu como "homem de fé ainda não perdi a esperança", porque a fé é a última a morrer.

Quando regressei da Guiné em Outubro de 1974, a Presidente da C.M. da Figueira da Foz, convocou-me para uma reunião cujo objectivo era a criação de uma comissão para elaborar os Cadernos do Recenseamento Eleitoral da Freguesia de Lavos.

A minha abertura a esta tarefa foi imediata, a caloirice falou mais alto, foi um trabalho que durou dois meses, as eleições de 25 de Abril de 1975 foram realizadas graças ao trabalho deste e de outros "parolos" deste País. Se a velhice fosse um posto, eu devia debitar os serviços prestados pela elaboração dos Cadernos Eleitorais, das inúmeras vezes que pertenci a várias mesas de voto, quatro anos como 1.º Secretário da Assembleia de Freguesia, só para falar destas e tudo isto a custo zero, mas não o vou fazer porque vivemos num "Estado de direito democrático". Hoje até os membros de uma simples Mesa de Voto, recebem 75 Euros pela execução daquela "tarefa dificil".

Já só falta o Presidente, numa qualquer comemoração atribuir um prémio aos parolos, "habituem-se", porque o valor que é dado às coisas depende das "costelas".

Se as "costelas" forem de esquerda, levam-se as facturas ao contabilista para registar, esperamos pelo relatório no fim do ano e sabendo que há contas por pagar, vamos para casa descansados e dizemos ao vizinho "as contas estão certas."

Se as "costelas" forem de direita, além das contas certas, sabemos que é importante pagar as dívidas e ter lucro para não deixar problemas aos filhos.

Estes são os novos tempos, por este andar ainda vou morrer reacionário. Os Donos disto tudo continuam a reclamar o Estado de direito democrático, mas o que nós temos, é o Estado a que isto chegou. Quer gostem ou não, o que está em causa é o Estado de Direito. Quem sabe se não precisamos voltar ao "ferro", ou a outro 25 de Abril?

Antes de terminar quero agradecer ao Luís Graça, Carlos Vinhal e restante equipa pela coragem que têm demonstrado na defesa da liberdade de expressão e pedir-lhes desculpa por não saber elaborar um texto que possam perceber, mas há uma razão para isso, eu sempre gostei mais de lidar com números.

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf


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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24154: Os nossos seres, saberes e lazeres (562): Os meus livros. Ao todo, quinze (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico)

Guiné 61/74 – P24158: Efemérides (383): 50.º Aniversário de instruendos e cadetes que passaram por Penude, Lamego (José Saúde)


Entrega dos livros de José Saúde e de José Casimiro Carvalho onde relatam as nossas presenças na Guiné, ao Comandante do CTOE, Coronel Sousa Rodrigues


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

50º Aniversário de instruendos e cadetes que passaram por Penude, Lamego


      Num recanto, já anichado em “poeira”, guardam-se memórias de um serviço militar obrigatório que nos levou a conhecer a guerra colonial e as suas óbvias consequências.

Gratidão a Lamego


Camaradas,

Fomos instruendos do 1.º Curso de Operações Especiais (Ranger) do ano de 1973 em Penude, Lamego. No contexto de infindáveis memórias, bem como numa combinação de prazeres conjunturais onde a saudade inevitavelmente prolifera, estivemos no passado dia 18 de março de 2023, sábado, em Lamego para recordar, e sobretudo comemorar, os 50 anos do período em que por lá andámos.

Registe-se que este grupo de camaradas, alguns acompanhados pelos seus familiares, se reúne, anualmente, uma ou duas vezes em vários locais deste soberano solo português. A razão fundamental destes encontros, onde comandante Alberto Grácio, um alferes miliciano que conheceu a guerra da Guiné, junta as tropas, afina o clarinete e toca a reunir os camaradas, sendo o emaranhado das conversas processadas ao redor de uma mesa sempre infindáveis.

Presentemente, todos já septuagenários e naturalmente aposentados, desfrutamos do prazer de uma velha camaradagem, de uma amizade que perdura e de um laço eficaz de união que nos fez mais fortes numa especialidade na qual um camarada que, por motivos vários, não acompanhava o andamento dos outros, jamais ficaria para trás, prevalecendo no íntimo de cada um de nós, então instruendos, o sentimento de solidariedade entre jovens que diariamente se deparavam com as mais díspares adversidades militares.

Deste grupo, que por força de uma razão maior ainda se vão juntando, subsistem camaradas que pisaram os três palcos da guerra colonial – Angola, Moçambique e Guiné -, sendo o meu caso, tal como muitos dos outros camaradas, o solo guineense.


Formatura no pátio do CTOE

O CTOE recebeu antigos militares rangers com pompa e circunstância

A escrita é, na sua sucinta forma de expor acontecimentos em público, uma matéria fundamentalmente essencial, onde as panóplias de emoções vagueiam com uma gigantesca atividade humana por interioridades de vidas em que as sinuosidades dos tempos, assim como a sua multiplicidade das ocorrências, deixa antever que recordar é viver. E foi precisamente nessa multiplicidade de factos que eu, tal como muitos dos camaradas do meu curso, partimos um dia de Lamego rumo ao conflito da Guiné.

Lá longe, em África, ou seja, na Guiné, o meu destino reservou-me uma estadia em Nova Lamego, região de Gabu, onde conheci, tal como todos os camaradas, os efeitos cruéis de uma guerra que não dava tréguas às nossas tropas.

É um facto, creio que real, que todos transportamos nos nossos já usados “cabedais” confecionadas ocorrências que fizeram de nós os homens que hoje somos. É certo que alguns dos nossos camaradas já ficaram pelo caminho, partindo para a tal viagem sem regresso, ficando aqui expresso o nosso sincero e sentido pesar: Paz às suas almas!

Lamego recebeu-nos com pompa e circunstância. Eureka! Terá sido o “grito” comum de toda a rapaziada aquando o nosso reencontro pelas terras lamecenses, onde a escadaria do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios nos trouxe à memória as loucas correrias, quer escadas abaixo, quer escadas acima. Para história da cidade, e obviamente para os rangers, ficará sinalizado que aquela majestosa obra se apresenta como um dos ex-libris de uma urbe na qual expelimos muito suor e lágrimas.

A cidade de Lamego é antiquíssima e foi reconquistada aos mouros em 1057 por Fernando Magno de Leão. Narra a história do Condado portugalense que terá sido em Lamego que decorreram as lendárias Cortes de Lamego, Cortes estas que terão proporcionado a aclamação de D. Afonso Henriques como Rei de Portugal e ali se estabelecerem as "Regras de Sucessão ao Trono".

A sua gastronomia é vasta, destacando-se desse élan gastronómico os seus presuntos e o cabrito assado com arroz de forno, de entre outros manjares sobejamente apreciados, a que se junta a produção de vinhos, nomeadamente vinho do Porto, mas, sobretudo, os vinhos espumantes.

Com a afabilidade do Comandante do Centro de Operações Especiais (CTOE), Coronel de Infantaria Jorge Manuel de Sousa Rodrigues,que se disponibilizou para nos receber com a devida honra, sucedendo-se uma visita às instalações da Unidade, onde o Comandante foi exímio em explicar a evolução de uma Unidade marcadamente exemplar, fazendo-o de forma simplesmente distinta e, sobretudo, acessível, e eis-nos a percorrer alguns dos recantos de um quartel, agora remodelado, que nos recebeu há 50 anos atrás.

Por outro lado, o Chefe da Secção de Operações, Informações e Segurança do Centro de Tropas de Operações Especiais, Tenente Coronel de Infantaria Carlos Cordeiro, terá engendrado o programa abaixo exposto com o qual os rangers do 1º Curso de 1973 foram contemplados:

10h00 – Chegada ao Quartel de Stª Cruz
10h30 – Receção e cumprimentos de boas vindas (Cmdt do CTOE)
Apresentação de cumprimentos pela comissão organizadora
10h40 – Início da cerimónia:
Cerimónia de Homenagem aos Mortos (CHM)
Leitura dos Mandamentos Ranger
Descerramento da placa comemorativa
Visita ao espaço visitável do CTOE
Visita à Igreja de Stª Cruz
11h30 – Visita ao Aquartelamento de Penude
Exposição de material
Foto de grupo junto ao monumento “Ranger”
12h30 – Fim da visita.


Homenagem aos mortos da Unidade na guerra Colonial

Houve, depois, uma visita ao Aquartelamento de Penude, onde todos revivemos os tempos que por lá andámos a desbravar o que, para nós, era desconhecido.

Seguiu-se um almoço no Restaurante Paraíso de Ouro, localizado na Serra das Meadas, com uma visão privilegiada sobre uma paisagem encantadora onde o rio Douro também nos deu as boas-vindas, servido com dignidade, houve abraços, o reviver de memórias de antigos camaradas que “passaram as passinhas do Algarve” para conseguirem ganhar os crachás da dura especialidade, seguindo-se, naturalmente, a despida, mas ficando, entretanto, o nosso profundo reconhecimento pela forma como fomos recebidos. Obrigado!


O camarada ranger Peixoto e o nosso antigo e então capitão Gomes Pereira

Fica aqui também referido, e com toda a nossa maior honorabilidade, a presença neste Encontro do nosso então Capitão José Gomes Pereira, um Ranger que muito nos ensinou e, logicamente, por nós muito “puxou” para reconhecermos capacidades escondidas.

Abraços camaradas e um até breve.

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 

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Nota de M.R.:

Vd. últimos postes desta série em:  

18 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24151: Efemérides (382): Homenagem aos antigos combatentes da guerra do ultramar, do Concelho de Resende, vivos e caídos em campanha, dia 29 de Abril de 2023, que contará com uma represenção do nosso Blogue

Guiné 61/74 - P24157: O nosso livro de visitas (218): Luís Reis Torgal, conhecido historiador e professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra: "por vezes passo os olhos pelo blogue, fui alf mil trms, Cmd Agr 2952 e COMBIS, Mansoa e Bissau, 1968/69"

1. E
m comentário de 9 de abril de 2022, a uma das páginas do nosso blogue. de que só agora demos conta, o Luís Reis Torgal, conhecido historiador e professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra, escreveu:

Por vezes passo os olhos pelo blogue, porque estive na Guiné em 1968-1969 (oficial de transmissões do Comando de Agrupamento 2952, de Mansoa, e do COMBIS), tendo regressado, a convite da embaixada de Portugal em Bissau, por duas vezes. 

Como hoje me apareceu no meu computador, desta vez sem o procurar, lembrei-me de informar os camaradas que jamais esqueci a Guiné, onde o meu filho fez 2 anos quando fui transferido para Bissau com todo o Comando, tendo mais tarde, como professor da Universidade de Coimbra, orientado a tese de doutoramento de um guineense, Julião Soares Sousa, sobre Amílcar Cabral. É considerada por muitos o melhor trabalho de investigação sobre o líder do PAIGC. Foi várias vezes publicada com o seguinte título: Amílcar Cabral (1924-1973). Vida e morte de um revolucionário africano. Lisboa: Vega, 2011 (1.ª edição).

Grande abraço
Luís Reis Torgal



2. Comentário do editor LG:

Meu caro professor e camarada Luis Torgal:

Muito nos honra a sua visita. Desconhecia de todo a informaçáo que nos dá: (i) foi nosso cmaarada em Mansoa  e Bissau, nos anos de 1968/69; (ii) e foi o orientador da tese de doutoramento do  Julião Soares Sousa (que tem no nosso blogue nada menos que 37 referèncias).

Fica desde ká convidado a integrar a nossa Tabanca Grande e assim poder partilhar as suas memórias da Guiné, que do seu tempo do C,md Agr 2952 e do Combis quer das visitas que fez depois da independência. Tem aqui um resumo do nosso livro de estilo.

Para os nossos leitores, que o não conhecem da vida académica, aqui fica um resumo curricular, retirado da Wikipedia:

Luís Manuel Soares dos Reis Torgal (Coimbra, 14 de Janeiro de 1942) é oriundo da Beira Baixa e foi um professor universitário português, lente de História da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Actualmente intervém na área de História do Estado Novo. (...)

Licenciou-se em História em 1966, doutorou-se em 1978 e tornou-se catedrático em 1987. Leccionou disciplinas de História Moderna e Contemporânea e de Teoria da História na Universidade de Coimbra.

Em 2010 declarou publicamente que a decisão do governo português abolir 4 feriados (dois civis e dois religiosos) foi muito mal organizado e uma trapalhada completa e ilegítima. (...)

É coordenador de investigação do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20). Foi director da Revista de História das Ideias e da revista Estudos do Século XX. (...)

É primo do prelado D. Januário Torgal Mendes Ferreira.

 3.  Ficha de Unidade: Comando de Comando de Agrupamento nº  2952

Identificação Cmd Agr 2952
Unidade Mob: RAL 1 - Lisboa
Cmdt: Cor Art António dos Santos Gonçalves | Cor Inf José Martiniano Moreno Gonçalves
CEM: TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas | Maj Inf José Bonito Perfeito
Divisa: "Para bellum ad pacem"
Partida: Embarque em 10Jan68; desembarque em 15Jan68
Extinção: Foi extinto em 7Jan69, passando a integrar o Comando de Agrupamento de Bissau (COMBIS)

Síntese da Actividade Operacional

Em 16Jan68, assumiu a responsabilidade da zona Oeste, com sede em Mansoa, rendendo o Cmd Agr1976, com o dispositivo dos batalhões sediados em S. Domingos, Farim, Bula, Teixeira Pinto, Mansabá e Mansoa.

Desenvolveu intensa actividade operacional de comando e coordenação das forças instaladas na zona e das atribuídas de reforço, planeando, impulsionando, e controlando a respectiva actuação sobre as linhas de infiltração e bases inimigas existentes.

Em 10Ju168, foi rendido na zona Oeste pelo Cmd Agr 2951 e transferido para Bissau, onde assumiu a responsabilidade operacional da zona respectiva, então criada a nível Agrupamento e integrando o sector do BCaç 1911, com a missão de comandar e coordenar a actividade das unidades e subunidades ali existentes e garantir a defesa da ilha de Bissau e dos seus pontos sensíveis.

Em 7Jan69, o Cmd Agr 2952 foi extinto, passando os seus elementos a integrar o Comando de Agrupamento de Bissau (COMBIS), então criado por despacho do Ministro do Exército.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 123 - 2." Div/ 4* Sec., do AHM).

Fonte: Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 150
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de dezembro de 2022 Guiné 61/74 - P23887: O nosso livro de visitas (217): Pedro Galriça, filho do ex-cap art Fernando Manuel Jacob Galriça, cmdt da CART 1647 / BART 1904 (Bissau, Quinhamel e Binar, 1967/68)