Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 7 de julho de 2023
Guiné 61/74 - P24458: Notas de leitura (1595): "Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Março de 2021:
Queridos amigos,
O romance infantil de Fernanda de Castro que tem por fundo a Guiné revelou-se um verdadeiro bestseller, dez edições. A autora estava atenta ao politicamente correto e foi introduzindo modificações, designadamente na década de 1960. Há estudos sobre estas representações e no texto indica-se um deles, que me parece bastante elucidativo. Os desenhos de Ofélia Marques são um valor acrescentado nestas edições de 1940 e 1947, a artista modernista possuía um dom para o desenho gráfico e pelas imagens que aqui se publicam avulta imediatamente a segurança do traço, o talento com que se encontra equilíbrio na ocupação do espaço, a candura das figuras, o sábio uso da profundidade e da proximidade, veja-se Mariazinha com o óculo a avistar o navio, Mariazinha de carabina ao ombro, com o seu estojo de Kodak, caminhando para a embarcação e entre ela e o barco o sol nascente; o modo como ela comunica com Vicente e a espetacular imagem do regresso a Portugal, Vicente, todo lampeiro, extravagantemente vestido a cumprimentar os irmãos de Mariazinha; e há uma imagem de perfeição, quando o príncipe Mamadu, acompanhado pelo seu séquito a vem pedir em casamento, nada falta, desde o formigar deste séquito do jardim da casa até à surpresa de Mariazinha dada em perfil. Uma história que encantou crianças favorecida por uma admirável artista modernista imbatível na modelização da ternura infantil.
Um abraço do
Mário
Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (2)
Mário Beja Santos
Em termos de literatura infantil de caráter colonial, não houve obra que competisse com as já dez edições que conheceu "Mariazinha em África", obra de Fernanda de Castro. A primeira edição foi de 1925, teve desenhos de Sarah Afonso, a edição de 1940 e a seguinte, de 1947, teve desenhos de Ofélia Marques. Fernanda de Castro nunca escondeu que este livro era marcadamente autobiográfico, em pequena acompanhou a mãe e foi para Bolama, onde o pai dirigia a capitania. Há algo de catártico nesta história de ternura, a sua mãe morrerá inopinadamente na capital da colónia, Fernanda de Castro dedicar-lhe-á versos de uma grande beleza.
São, pois, memórias as que Fernanda de Castro transpõe para o romance infantil: a viagem de barco, a chegada a Bissau e a transferência para Bolama, o dormir protegida por um mosquiteiro, o pai apresenta-lhe a criadagem: o criado de mesa e acompanhante do irmão, Afonsinho, o criado dá pelo nome de Lanhano; Adolfo, que é como os crocodilos, tem dentes a mais; Undôko, o jardineiro, Mamadi, filho de régulo, está lá em casa para aprender português e o cozinheiro Vicente. Mariazinha assiste a festas, passeia-se no rio, vê um tornado, faz amizade com a filha do governador, Ana Maria, têm um passeio acidentado, a viatura empana, regressam numa espécie de maca com troncos entrelaçados e feixes de palha, suportada por dois nativos; há mesmo uma caçada e o deslumbramento dos indígenas quando veem aquela menina de cabelo de cor de palha.
Mariazinha adora animais e lá vai conseguindo juntá-los numa espécie de jardim zoológico, não faltam macacos nem aves. No seu aniversário o pai oferece-lhe uma casa para os macacos. Surge uma garça-real que tem uma perna partida e depois de curada de vez em quando regressa para visitar a Mariazinha. Naquela ilha de Bolama há sempre surpresas, uma vez chega um gramofone, outras vezes entra um chimpanzé bebé no Jardim Zoológico, o dia de aniversário decorre com imensas alegrias para a criança. E chega uma canhoneira, o cozinheiro Vicente prepara galinha, cabrito e pudim para os convivas, Mariazinha prepara uma jarra de flores, é uma receção admirável, os marinheiros elogiam o caril delicioso, o cabrito assado, os doces.
Organiza-se um passeio a Buba, lá vai Mariazinha com a sua mala, o seu Kodak e a sua carabina, avistam-se crocodilos e na chegada a Buba há uma receção triunfal, mete dança e batuque, bem curiosa é a descrição que Fernanda de Castro faz do protocolo:
“Depois dos cumprimentos, a caravana pôs-se em marcha. À sua frente, ia o governador, o capitão do porto, o comandante da canhoneira e o régulo de Buba; em seguida, as senhoras, as meninas, os oficiais e o ajudante do governador; depois, os músicos, as crianças e as bajudas, que são as raparigas solteiras; e, finalmente, a multidão dos Fulas – pretos claros, de bonitas feições, amigos dos brancos e, por isso, talvez, muito simpáticos”. Também há batuque de bajudas, e não deixa de ser curiosa a apresentação que delas faz a autora: “As bajudas, raparigas solteiras, em geral com menos de 15 anos, envolvidas em panos coloridos da cintura até meio da perna, com o peito e os ombros cobertos apenas por colares de contas e de sementes, dançam graciosamente, agitando as pulseiras de prata e as anilhas de cobre dos pulsos e dos tornozelos”. O governador manda distribuir presentes.
No dia seguinte, faz-se uma apresentação ao governador, aparecem cavaleiros, emissários de régulos amigos que vêm cumprimentar o governador, aparecem cavalos ricamente ajaezados com arreios de couro lavrado, os cavaleiros trazem camisas de seda e obrigam os cavalos a executar uma espécie de dança. As meninas não deixam de observar que os cavalos têm as barrigas em sangue, espicaçadas pelas esporas de prata, e protestam contra esta selvajaria. Aparece o príncipe Mamadu, o herdeiro do régulo de Buba, alto, esbelto, com feições corretas, vem ricamente vestido, parece que este príncipe está perdido de amores pela Mariazinha. A menina vai aprendendo os usos e costumes da colónia. Por exemplo, a propósito dos Bijagós: “Mariazinha já ouvira o pai dizer que não havia nada mais difícil do que obrigar os Bijagós a receber dinheiro em notas. Como só se alimentam de arroz, de azeite de palma e de peixe seco, como os raros panos que usam são tecidos pelas mulheres, como são elas também que fazem aquelas esquisitas saias de palha, os Bijagós não querem dinheiro em papel, querem dinheiro em cobre e em prata para com ele fazerem colares, pulseiras e amuletos”.
Surge o príncipe Mamadu que traz lindos presentes, penas de avestruz, colibris, pulseiras de prata, chinelinhas de pele de gazela. Faz um discurso na sua própria língua, é Vicente quem traduz, diz que quer casar com a menina. Escreve Fernanda de Castro: “Então o capitão do porto compreendeu! Na Guiné, as raparigas casam muito novas e os casamentos são ajustados entre o noivo e o pai da noiva, muitos anos antes de se realizarem… Mamadu, que era príncipe e além disso muito rico e bem parecido, não pensou um só instante que o pai da Mariazinha rejeitasse a sua tentadora proposta. Por isso, caiu das nuvens quando o capitão do porto avançou para ele, furioso”. E corre o príncipe a pontapé e a sua comitiva.
Surge uma doença misteriosa, nunca chegaremos a perceber se é febre amarela, mas febre é e já há muita gente doente. O pai de Mariazinha decide que a sua família deve voltar, a despedida é de grande emoção, Vicente, o cozinheiro, insiste que quer vir com os patrões para Portugal, vai viajar de chapéu de coco e grande flor de lapela.
O regresso é uma viagem tormentosa, o navio vem sobrelotado, Ana Maria também regressa, passam por Cabo Verde, aportam no Mindelo, as meninas ficam impressionadas com a falta de árvores de flores e frutas, a mãe explica-lhes que ali se vivem secas intermináveis. Vicente diz que a comida é boa, mas precisa de arroz. E assim se chega a Lisboa, o vapor atraca no Cais da Rocha do Conde d’Óbidos, os manos ficam surpreendidos com o Vicente, que traja sobrecasaca e calça branca, gravata amarela e flor ao peito, sorridente e de botas de verniz, dá pulos de contente, Ana Maria despede-se de Mariazinha e assim termina esta história que tem a Guiné por fundo:
“Duas horas depois, já na velha casa da Outra Banda, enquanto as pessoas crescidas conversavam, enquanto as criadas punham na mesa pratos e travessas de arroz-doce e leite creme, os meninos recomeçavam, sob a amoreira da quinta, as suas eternas, as suas alegres brincadeiras de sempre. E sobre as suas cabeças desocupadas, leves como ventoinhas, brilhava de novo o sol, o lindo sol de Portugal!”.
Para o leitor mais interessado no estudo das representações coloniais desta obra, recomenda-se o trabalho de Margarida Isabel Melo Beirão intitulado Mariazinha em África, de Fernanda de Castro – Representações coloniais, tese de Mestrado do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2018: https://ria.ua.pt/bitstream/10773/25216/1/Documento.pdf.
Na antiga Calçada dos Caetanos, hoje Rua João Pereira da Rosa, muito perto do edifício da Liga dos Combatentes, que foi a habitação da escritora Ana de Castro Osório, perfila-se um prédio onde viveram Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, José Gomes Ferreira, Fernanda de Castro e António Ferro, Ofélia Marques e Bernardo Marques. Lá em baixo é a Rua do Século e lá em cima o Conservatório Naiconal e a Igreja dos Inglezinhos. Felizmente que todo este património arquitetónico está classificado.
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Nota do editor
Último poste da série de 3 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24448: Notas de leitura (1594): "Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (1) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P24457: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXI: Na ocupação da península de Gampará, com a farda do PAIGC, a G3 e um maço de cigarros "Português Suave"... (pp. 207-211)
Guiné > Brá > c. 1965/66 > Mulheres a trabalho na bolanha. (Foto do álbum de Virgínio Briote, 2005) (Foto reproduzida na pág. 208, do livro do Amadu Dajló)
Guiné > Brá > c. 1973 > Batalhão de Comando dos da Guiné > Tenente graduado 'cmd' Zacarias Saiegh, à direita do Major 'cmd' Raul Folques Foto reproduzida na pág. 210, do livro)
O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149) |
(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;
(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;
(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;
(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;
(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);
(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;
(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)
(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;
(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);
(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;
(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,
(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.
(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.
(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;
O nosso camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra, facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.
Guiné > Região de Quínara > Carta de Fulacunda (1955) (Escala: 1/50 mil) : Posição relativa de Gampará, rios Geba e Corubal, tabancas de Braia e Cubajal, bem como Uaná Porto.
O sol estava a pôr-se e passámos a noite ali perto. De manhã, logo que o dia começou a clarear, retomámos a progressão até atingirmos uma bolanha, onde vimos mulheres[2] a fazerem as últimas colheitas.
Dirigimo-nos a elas, que ficaram muito surpreendidas com a nossa chegada. Dissemos-lhes que éramos do PAIGC e que tínhamos recebido G-3, para confundir os tugas. E que nos estávamos a deslocar para as proximidades de Tite, para atacarmos o aquartelamento nessa noite ou na próxima. Pareceu-me que ficaram convencidas, não sei se todas, e por volta das 16h00 despedimo-nos delas.
Quando estávamos a abandonar o local recebemos uma mensagem para arranjarmos um local para pernoitarmos, mas numa zona onde pudéssemos ser retirados por helicópteros.
Escolhemos uma grande bolanha de lavra de arroz onde os helis podiam aterrar à vontade. Nessa madrugada adormeci por uns momentos e estava a sonhar que um avião, um Dakota, cheio de passageiros, se estava a dirigir na nossa direcção, a baixar, a baixar, até que acabou por cair com um grande estrondo. Gritei bem alto e acordei sobressaltado, com os companheiros a perguntarem o que estava a acontecer.
De manhã voltámos a encontrar as mulheres, que ficaram surpreendidas quando nos viram. Uma começou a falar muito à vontade connosco e, a certa altura perguntou-nos:
– Vocês não disseram ontem que iam atacar Tite?
O tenente Saiegh respondeu que tínhamos recebido ordem para esperarmos aqui nesta zona, que os aviões nos vinham buscar.
A mulher perguntou se os aviões podiam aterrar neste local. Que sim, que podiam, respondeu. No meio desta conversa, ouvimos o ruído de uma avioneta que pediu a nossa localização.
Localizados facilmente, pouco tempo depois chegaram os helis que pousaram na bolanha e não demorou muito estávamos todos no ar. Entregaram-nos novas cartas topográficas, a missão tinha sido alterada.
Fomos largados junto a uma tabanca, na roda do rio Geba. Andámos um pouco, cortámos à direita e entrámos num carreiro com muitas marcas de pegadas. Ia direito a Cubajal. No trajecto encontrámos um velhote que nos disse que ia para a tabanca, onde tínhamos acabado de ser largados, e que vinha de Cubajal.
Perguntámos-lhe se nos podia acompanhar. Respondeu que tinha medo de estar na tabanca, que um avião andava lá em cima desde manhã. Saiegh garantiu-lhe que não ia acontecer nada e ele foi connosco. Enquanto caminhávamos ia conversando com o velhote e a certa altura disse que era o chefe da tabanca de Cubajara, informação que transmiti ao Saiegh.
Quando chegámos reunimos a população da tabanca. Era muita gente. Dissemos-lhes que éramos do PAIGC, que já tínhamos G-3 para confundirmos os tugas. E que tínhamos a informação que Gampará tinha sido ocupada pela tropa. Responderam que sim, que tinha sido ocupada. Estava ali o chefe da tabanca de Gampará que se levantou para se apresentar.
Continuámos a reunião dizendo-lhes que tínhamos vindo com uma missão, falar sobre mantimentos.
– Vocês sabem perfeitamente que nada nos falta na República da Guiné-Conakry. Mas não podíamos trazer connosco tudo o que precisávamos, por isso, têm que ter paciência, tem que nos reabastecer durante o cumprimento da nossa missão.
Foi assim que nos dirigimos à população da tabanca de Cubajal.
Foram rápidos a responder. Que podíamos contar com eles, que tinham arroz em quantidade suficiente para sustentar todos os combatentes pela Liberdade da Pátria que passassem em Cubajal.
O tenente Saiegh voltou a tomar a palavra para dizer que brevemente o quartel de Gampará iria cair nas nossas mãos, do PAICG, claro. Quando acabou de falar começaram a ouvir-se palmas e de um momento para o outro toda a gente aplaudia. Foi uma salva de palmas da população para o comandante da 1ª companhia de Comandos. O almoço ficou pronto e convidaram-nos a comer à vontade.
Perguntei a um rapaz que estava próximo se todos os chefes das famílias estavam ali connosco. Não, havia, ali em frente, uma família, respondeu-me.
Peguei na minha arma, chamei um soldado para me acompanhar e fui ao encontro de um homem que estava a comer com os filhos ao lado. Depois dos cumprimentos e do convite para almoçarmos com eles, perguntou-me de onde tínhamos vindo.
– De Conakry – respondi.
– De Conakry, com G-3?
– É por isso mesmo – comecei a responder – que estamos a convocar reuniões para toda a população saber que nós também temos G-3 para confundir os tugas.
Ele levantou-se e disse aos filhos para continuarem a comer.
– Também podes continuar a comer à vontade – disse eu.
Eu estava a fumar um cigarro, um Português Suave, e ele pediu-me um. Meti-lhe um cigarro na boca para o acender mas ele disse que primeiro gostava de lavar a boca. Pegou no cigarro, virou-o até à marca e depois meteu-o na boca, abanando a cabeça. Peguei-lhe num braço, levei-o até ao local da reunião, mandei-o sentar-se ao pé de mim e disse-lhe que não fizesse qualquer sinal às outras pessoas da tabanca.
Um dizia que desde o começo da guerra nunca a tropa lá tinha posto os pés, que tinha havido um ataque da aviação que tinha causado apenas um ferido ligeiro. Outro dizia que Cubajal era um local sagrado. Estava toda a gente a falar quando vimos uma avioneta aproximar-se. Quando estava quase em cima de nós, com todos a olhar para o ar, alguns disseram que era melhor afastarmo-nos e escondermo-nos.
Então dissemos quem éramos. Que os aviões não lhes iam fazer mal. Uma pessoa perguntou se aquele, o Saiegh, que estava ali com um aparelho estava a falar com o avião.
– Está – respondeu alguém. – Nós somos dos Comandos da Guiné, que alguns de vocês chamam criminosos. Estivemos convosco de manhã até agora, não matámos nem batemos em ninguém. Se formos atacados respondemos, isso é verdade. Quando há guerra é assim e tem que ser encarada com seriedade, não é brincadeira.
Toda a gente da tabanca estava surpreendida, menos um, o que eu tinha ido buscar. Ele sabia perfeitamente que não éramos do PAIGC. Não falou nem uma vez, manteve-se sempre calado. Quando uma pessoa se levantou para falar, reparei que o homem fixava o olhar no orador, como se quisesse fazer um sinal, mas eu também nunca tirei os olhos dele. O erro do Português Suave não me saía da cabeça.
Cerca de uma hora mais tarde recebemos ordem para nos dirigirmos para o porto de Uanazinho. Uma marcha de um dia inteiro, sem nada para comer. Tínhamos começado a andar às 08h00 da manhã e chegámos por volta das 18h30. Depois de ter comunicado a nossa chegada, o tenente Saiegh recebeu ordem para seguirmos para Gampará.
Dormimos um pouco, iniciámos a caminhada às 06h00 até que, por volta das 10h00, encontrámos uma tabanca com muitas cabras amarradas. Saiegh deu instruções para reunir a população da tabanca e para um grupo ficar de vigilância. Deu também ordem para se matarem três cabras, para as assarmos, porque já não víamos comida há muitas horas.
Na caminhada de regresso vimos manchas de sangue no caminho. Era sangue de páras que por ali tinham passado, viemos a saber depois. Nessa mesma operação tinham acabado de passar por ali, mesmo antes de nós. Já traziam um ferido e um deles pisou uma mina, que atingiu mais dois companheiros. (**)
Em Gampará soube que em vez de três tinham sido mortas quatro cabras, embora só nos tivessem apresentado três. A outra, pelo que vim a saber, era para levarem para Bissau. Mandei chamar o soldado e dei-lhe ordem para me trazer a cabra. Nem disse uma palavra, foi buscá-la e trouxe-a inteira.
Perguntei aos soldados o que é que pretendiam que se fizesse à cabra. Cozinhá-la, responderam. Que um tinha arroz e outro óleo de palma, acrescentou outro.
Dirigi-me em seguida para o aquartelamento e fui procurar o Saiegh para saber o que íamos fazer a seguir. Regressar a casa, missão terminada. Amanhã vem um barco que nos vai levar de regresso.
Avisei os meus soldados e aproveitei para lhes dizer que podemos roubar para matar a fome, não para levar para casa. Roubar e levar para casa é um crime e um mau vício.
Antes de embarcarmos, chegou um heli com o General Spínola. À frente da nossa companhia e da dos páras fez um pequeno discurso.
[1] Nota do editor: as CCmds participaram nas operações da instalação do COP7 na península de Gampará, designadamente a “Satélite Dourado”, entre 11/15Nov71, e a “Pérola Amarela”, entre 24 e 28 Novembro 1971.
Vd. poste de 21 de fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1540: Os pára-quedistas também choram: Operação Pato Azul ou a tragédia de Gampará, em 4 de Março de 1972 (Victor Tavares, CCP 121)
(i) seis mortes, Alf Mil Paraquedista Abreu, Furriel Pára-quedista Cardiga Pinto, PCB/Pára-quedista 47/68 Santos , PCB/Pára-quedista 129/69 Almeida , Sol/Pára-quedista 318/69 Jesus , PCB/Pára-quedista 412/69 Sousa;
(ii) 2 feridos graves e nove com menos gravidade , Furriel Pára-quedista Casalta (Comandante da 1ª secção do 2º Pelotão) , Sol Pára-quedista Inês (evacuado para a metrópole ), Ferreira , Tavares, Ventura, e 1º Cabo Pára-quedista Figueiredo, todos do 2º Pelotão, e o Sold Pára-quedista Salgado - Estilhaço de alcunha - do 1º Pelotão, faltando três por identificar pois, passado todos estes anos, já não me recordo, e ficará para sempre uma saudade enorme D’AQUELES EM QUEM PODER NÃO TEVE A MORTE. (...)
quinta-feira, 6 de julho de 2023
Guiné 61/74 - P24456: In Memoriam (481): Licínio Monteiro Cabral (Lamego, 1948 - Porto, 2022), ex-fur mil op esp, MA, CCAÇ 2792 (Catió e Cabedu, 1970/72)
Licínio Monteiro Cabral (Lamego, 1948 - Porto, 2022)
Foto de cronologia da sua página do Facebook (Com a devida vénia...)
1. Por informação de um amigo nosso, o dr. Joaquim Pinho, médico do trabalho, com data de 5 de agosto de 2022, soubemos que tinha falecido, no Porto, em 31 de janeiro desse ano, de doença de evolução prolongada, o ex-fur mil op esp e de Minas e Armadilhas, Licinio Monteir0 Cabral, CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72).
Na altura, não demos a devida atenção ao nome deste nosso camarada que, afinal, tinha página no Facebook:
(i) era natural de Lamego;
(ii) andou no Grande Colégio Universal, no Porto (turma de 1969);
(iii) vivia no Porto;
(iv) era casado;
(v) estava reformado da empresa Altice.
Infelizmente não partilhou nenhuma foto do tempo da Guiné.
2. Havia uma referência a este nosso camarada, no poste P11057 (**), com uma mensagem sua que voltamos a reproduzir:
Data: 4 de Fevereiro de 2013Assunto: CCaç 2792 - Catió e Cabedu - 190/72
Caro Dr. Luís Graça:
Soube do Blogue através de um amigo de Coimbra [provavelmente o dr. Joaquim Pinho, médico do trabalho].
Estive em Catió e Cabedu – Fur Mil Cabral, integrado na CCaç 2792, com a especialidade de "Operações Especiais" e "Minas e Armadilhas" [nº mecanográfico 02465269].
Acho que a Guiné, na minha memória, já a tinha arrumado num cantinho, não fosse saber da morte no ano passado do meu Comandante de Companhia, o Cap Augusto José Monteiro Valente, homem que eu admirava.
Vou enviar algumas coisas da Tabanca. Vou ao baú das (más?) memórias.
Agradeço o acolhimento no Blogue. Cumprimentos, Licínio Cabral.
Por isso, a CCAÇ 2792 continua sem nenhuma representação no nosso blogue, o que é triste. Dos militares desta companhia com o curso de operações especiais, havia, além do fur mil Licínio Monteiro Cabral, o cap inf Monteiro Valente, o alf mil J0rge Manuel A. O. de Quinta, e o fur mil Manuel Resende da Rocha.
Com o atraso de ano e meio, enviamos à sua família e aos seus amigos mais íntimos os nossos pêsames pela sua perda. E fazemos questão de honrar aqui a sua memória: é nosso dever não deixar os camaradas da Guiné na "vala comum do esquecimento" (***).
(...) Camarada Licínio Cabral:Más memórias, camarada? Quem as não tem, ou não teve? Estamos aqui justamente para "exorcizá-las" e fazer as nossas velhas contas com o passado, os nossos verdes anos, passados na guerra e na Guiné...
Partilhar, porquê e com quem?
Manda duas fotos tuas, digitalizadas, que eu terei muito gosto em apresentar-te aos mais de 600 grã-tabanqueiros [à data, 5/2/2013], que se sentam à volta do poilão, mágico, fraterno, protetor, da Tabanca Grande.
(...) Se aceitares entrar para esta "grande família" (a jóia são apenas 2 fotos + 1 história), passas a ser o primeiro representante da CCAÇ 2792... É verdade, não temos ninguém... Fala-nos ainda do capitão Monteiro Valente, cuja memória queremos também recordar e honrar. (...)
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 3 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24447: Casos: a verdade sobre... (34): A CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72), comandada pelo cap inf Augusto José Monteiro Valente (1944-2012), e depois maj gen ref, que embarcou para o CTIG sem três alferes (que terão desertado) e durante a IAO ficou sem o último, por motivos disciplinares...
(**) Vd. poste de 5 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11057: O Nosso Livro de Visitas (160): Licínio Cabral, ex-fur mil op esp, minas e armadilhas, CCaç 2792, Catió e Cabedú, 1970/72)Guiné 61/74 - P24455: História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte II: Período de 1 de novembro a 31 de dezembro de 1970: colocada nas zonas de acção de Catió e Cabedu
Guiné > Região de Tombali > Carta de Catió (1956) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Catió e alguns rios envolventes: Tombali, Cobade, Umboenque, Ganjola, etc.
Guiné > Região de Tombali > Carta de Cacine (1960) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Cabedú, e dos rios Cumbijã e Cacine.
Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)
1. Começámos a publicar alguns excertos da história da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedu, 1970/72), por ser também mais uma das subunidades, que estiveram no CTIG, e que não têm até à data nenhum representante (formal) na Tabanca Grande.
Por outro lado, chamou-nos a atenção a situação, anómala (e até, se calhar, inédita) de ser um subunidade que embarcou, no T/T Carvalho Araújo, em 19 de setembro de 1970, desfalcada de 3 dos seus oficiais subalternos. Mas não só: acabou a IAO, em 31 de outubro de 1970, em Bolama, sem qualquer alferes, sendo os pelotões comandados provisoriamente por furriéis (*)
Com base nos elementos de que dispomos (cópia parcial da história da unidade), vamos continuar a destacar aqui alguns dos pontos do seu historial, que nos parecem mais interessantes, para os nossos leitores. Em princípio são resumos feitos por um dos nossos editores. No caso de excertos, virão publicados com aspas ou itálicos.
Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > O quartel
Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Guiné> Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço (1943-2010) > Catió > Quartel > Legenda do autor: "Foto tirada de cima do depósito da água do quartel [Jul 1967]. Vista parcial da parte nova do quartel. A parada com o cepo (raiz) do Poilão, à esquerda as casernas nº 1 e nº 2, ao centro o edifício do comando, por detrás deste as camaratas de sargentos e depois destas as novas messes ainda em construção, tal como a camarata de oficiais à direita. O telhado vermelho era a messe e bar de sargentos".
Guiné> Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço (1943 - 2010) > Catió - Quartel > O Fur Mil Vitor Condeço sentado na raiz do Poilão, tendo por fundo o edifício do comando". [O Vitor, 63 anos, reformado, residente no Entroncamento, foi furriel miliciano mecânico de armamento, CCS do BART 1913, Catió, 1967/69].
Fotos (e legendas): © Victor Condeço (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Guiné > Região de Tombali > Cabedú - CCAÇ 1427 (1965-1967) > Vista aérea do Aquartelamento e pista de aviação. Foto do álbum de Manuel José Janes, "O Violas" - (Vd. poste P17336) (Com a devida vénia...)História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte II:
Período de 1 de novebro a 31 de dezembro de 1970: colocada nas zonas de acção (ZA) de Catió e Cabedu
Depois de mês e meio em Bolama, a CCAÇ 2792, comandanda pelo cap inf op esp Augosto Manuel Monteiro Valente (1944-2012), marchou em 16 de novembro de 1970 para Bissau a bordo das LDM 310 e 311, devendo seguir posteriormente para Catió e Cabedú, as zonas de acção que lhe foram atribuídos, em 6 de dezembro, no sul da Guiné, região de Tombali.
A 18 seguiram para Catió, em avião Nord Atlas, o comando e os 1.º e 2.º Gr Comb. O transporte para Cabedú, dos restantes Gr Comb (3.º e 4.º) só se realizou a 4 de dezembro em LDM.
Até 17 de dezembro, a CCAÇ 2792 ficou na dependência operacional do BART 2865, data em que o BCAÇ 2930 assumiu a responsabiliddae da ZA do Sector S3 (Sul 3).
"A divisão dos efetivos da Companhia pelas ZA de Catiõ e Cabedú foi o primeiro golpe para o seu moral. O espírito de corpo que, apesar das dificuldades de enquadramento, se conseguiu criar, manter e desenvolver, foi afetado substancialmente,.
Catió e Cabedú são duas regiões distintas, sem possibilidades de contacto pelo que as forças se separaram sem qualquer dúvida de que se não voltariam a reagrupar antes do final da comissão. Esta divisão tirou imediatamente à subunidade a sua capacidade ofensiva, pois que os efetivos nas ZA tornaram-se insuficientes para fazer frente ao Inimigo que se encontra instalado imediatamenmet para lá dos limites das ZA." (pág. 18/II)
(21) Milícias
Dependentes do comando da CCAÇ 2792, estavam as seguintes forças de milícias, constituídas por "voluntários nativos", utilizados (i) "na defesa local das populações onde não esteja estabelecida autodefesa"; e (ii) em reforço das NT em operações:
- Em Catió (dependência operacional):
- Comp Mil 13 (fula), a 3 pelotões;
- Pel Mil 272 / Comp Mil 25 (balanta);
- Em Cabedú (dependência total):
- Pel Mil 274 / Comp Mil 25 (várias etnias).
As duas ZA estavam separadas por um obstáculo natural chamado Rio Cumbijã. Os seus limites são definidos por:
(i) No caso do Catió (Comando, 1.º e 2.º Gr Com da CCAÇ 2792 mais 4 pelotões de milícias)
R Cumbijã | R Cobade | Foz R Umboenque | R Umboenque | Nascente R Binde | Estrada de Tombali | Catió 8 F0-30 | Nascente R Cantolom | Catió 8 I5-25 | Bedanda 2 A0-42 | R Carangaque | R Ganjola | R Catafaque | Canchumane 15 (Bedanda 1 E5 - 66) | Rio contornando a Este os ilhéus de Cuducó e Infanda até à sua foz.
(Vd. infografia acima, Carta de Catió)
(ii) No caso do destacamento de Cabedu (3.º e 4.º Gr Comb da CCAÇ 2792 mais 1 pelotão de milícia):
R Cumbijã desde a foz até Cacine Z 63-81 | Foz R Ualche | R Ualche | Cabanta | R Pachira | R Cacine até à sua foz.
(Vd. infografia acima, carta de Cacine).
(Continua)
(Seleção / resumo / negritos / itálicos: LG)
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Nota do editor:
(*) Vd. postes de:
4 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24450: História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte I: Mobilização, composição e deslocamento para o CTIG em 19 de setembro de 1970Guiné 61/74 - P24454: S(C)em comentários (11): "Na imensidão da Lapónia a Natureza é uma das terapias espirituais" (José Belo)
"José, será publicada, logo-logo (que possível...), o teu escrito, sem necessidade de invocares o democrático e universal direito de resposta em defesa da honra da tua bicharada de estimação, neste caso o alce, que é um bicho cornudo, não é peixe e muito menos cherne (...).
2. Mensagem do J. Belo (régulo vitalício da Tabanca da Lapónia):
Tu tens o nosso mar do Oeste que também é uma terapia espiritual e física."
quarta-feira, 5 de julho de 2023
Guiné 61/74 - P24453: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (4.ª estadia, 2023): crónicas de Rui Chamusco / ASTIL (excertos). Parte II: 23, 26 e 31 de março de 2023
Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Este projeto nasceu de um conversa entre dois amigos, em 2015: Gaspar Sobral (timorense residente em Portugal, topógrafo, retornado de Angola, em 1975) e o Rui Chamusco. O Gaspar "manifestou-me o seu grande desejo de construir uma escola na terra dos seus ascendentes em Boebau, pois na visita que lhes fizera em 2000 verificara que havia muitas crianças sem escolaridade. De imediato, eu como professor aposentado e livre de obrigações, anui ao seu desejo, respondendo prontamente: 'conta comigo' "(...)
Em fevereiro de 2016, o Rui e o Gaspar foram a Timor Leste visitar a localidade de Boebau (município de Liquiçá) e avaliar as necessidades no terreno:
A construção Escola São Francisco de Assis – Paz e Bem foi inteiramente financiada por fundos recolhos pela ASTIL (*). A organização e o funcionamento da ESFA continuam a ser assegurados pela ASTIL.
(...) "Este ano frequentam a ESFA 88 crianças no ensino pré-escolar e primário. Com muito esforço a ASTIL de Portugal e a ASTILMB (Manati/Boebau) têm conseguido manter a escola em funcionamento, graças ao voluntariado de amigos portugueses e timorenses.
(Declarações de Rui Chamusco ao"Jornal Tornado - Jornal Global para a Lusofonia" > Uma escola luso-timorense esquecida nas montanhas de Timor-Leste, por J.T. Matebian, em Timor-Leste 21 Março, 2023) (Com a devida vénia...)
Rui Chamusco, presidente da direção da ASTIL, voltou, depois da pandemia, a Timor Leste, agora pela 4ª vez, no passado dia 4 de março, para poder participar das cerimónias do 5.º aniversário da inauguração da escola e resolver problemas pandentes.
Do diário do Rui Chamusco, selecionámos, com a sua devida autorização, alguns excertos que nos falam não só deste projeto, tão acarinhado pela ASTIL (e a sua congénere timorense, a ASTILMB), como do quotidiano de Timor "Loro Sa'e", o país lusófono que fica mais longe de todos nós, fisicamente falando, mas não seguramente ao nível do carinho, da solidariedade e da amizade dos portugueses.
23.03.203, quinta feira - As receitas do Dr Eustáquio.
Já não é a primeira vez que escrevo sobre os conhecimentos que o Eustáquio (irmão
do Gaspar Sobral) revela nas mais diferentes áreas. A universidade da vida conferiu-lhe o grau de doutor, com toda a justiça. Sei que a casca do ailok, tomada em forma de chá, acalma as dores de barriga; sei que o chá de erva tira as dores de cabeça; sei que o chá feito da casca de ailok tira as dores de estômago. E eu sei lá quanta coisa mais jé aprendi com este doutor “Desenrasca”.
Desta vez, como o meu pé direito tem chamado a atenção devido às dores e ao inchaço que apresenta, o Eustáquio tentou logo aliviar-me deste fardo, e contou-me a seguinte história passada com ele.
Depois de 3 anos a viver nas montanhas devido a invasão dos indonésios, ele e a irmã Bene começaram a apresentar alguns sinais físicos preocupantes, talvez causados por carência alimentar, e que se traduzia em inchaço das pernas no seu caso, e inchaço de todo o corpo na irmã Bene.
Como nestas coisas não tenho nada a perder, talvez até a ganhar, aceitei que fizesse o mesmo comigo. Depois de procurar as folhas das plantas referidas, fez a aplicação. Então não é que as dores e o inchaço estão quase desaparecidos!?
E esta, hein!...
26.03.2023, domingo - Alif, meu amigo
Alif (Ali+f= Ali, da parte do pai Alino, e f, da parte da mãe Fátima) é o nome pelo qual, familiarmente, chamamos o Hermenegildo. Uma criança franzina que fraquentou a Escola São Francisco de Assis, em Boebau, e que agora está em Ailok Laran na casa da família Eustáquio (Painino).
Hoje quando me veio chamar, fiquei estupefato com o seu português. “Abô Rui arroz come”. Para bom entendedor meia palavra basta. Qual gramática, qual quê?!
E eu a pensar, a língua portuguesa é a segunda língua oficial de Timor Leste. Mas quando é que estas crianças pobres terão acesso à sua aprendizagem? Escola Portuguesa de Dili, escolas Cafe nos diversos distritos (12). Tudo bem. E as outras ciranças que não têm o privilégio ou a sorte de as frequentar? Quantos Alif(s) não existem neste país?!
29.03.2023, quarta feira - Sem rede, sem comunicações
Acontece em todo o lado, mas aqui com alguma frequência. A internet deixa de funcionar, e então é uma desgraça. Parece que tudo pára, que o marasmo se instala e não se sabe o que fazer. Trabalhos online interrompidos, ligações impossíveis de fazer, músicas que se deixam de ouvir, e mais... e mais... As contingências do noso tempo, das novas tecnologias.
(...) 31.03.2023, sexta feira - Contrariedades
O dia de hoje estava destinado para irmos à direção escolar de Liquiçá, e de lá seguirmos para Boebau, ao encontro solicitado pela ESFA. Azar doa azares! De Boebau informam-nos que tem chovido muito e que hoje o céu também está muito carregado. Sabendo do mau estado dos caminhos provocado pelas enchurradas, o Eustáquio achou por bem adiar a viagem. Iremos logo que houver condições. E vamos lá nós então desfazer o saco, à espera de melhores dias.
Sendo assim, vamos só até Liquiçá para serem assinados os papéis solicitados pela direção escolar, e conversarmos com o Dr. Carlos Lopes sobre a assistência à nossa escola.
31.03.2023, sexta feira - E, de repente...
E, de repente, tudo muda. É assim a vida! O Eustáquio aparece de novo e ordena: “Tiu, prepara tudo para irmos a Boebau”. E lá fomos nós.Em Liquiçá, houve uma paragem demorada para irmos à direção escolar entregar documentação; para ir a casa da prodessora Teresa carregar uma caixa de material escolar; para comprar três colchões destinados à casa dos professores; e para almoçar.
A seguir vem o caminho do calvário, com precalços e mais precalços, saltos e abanões que nos escangalham o corpo e afligem o olhar. Não fossem as belas paisagens e as gentes destas bandas que se desfazem em sorrisos abertos e nos cumprimentam à nossa passagem e tudo seria ainda mais difícil.
Mas pronto, depois de algumas horas para fazermos alguns quilómetros, eis-nos chegados sãos e salvos. Feitos os cumprimentos habituais e as arrumações, a Adobe preparou um bom petisco para a ceia, e toca a reunir e trabalhar. Foram tratados assuntos pendentes da ESFA e, devido ao cansaço, fomos descansar. Coube à comitiva (eu, o Eustáquio e a Adobe) estrear os colhões que, mesmo no chão, assentaram que nem uma luva. Uma noite plena de sons da natureza, de alguns receios, e de “pára-arranca” no sono. Amanhã há mais...
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(*) Último poste da série > 3 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24446: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (4.ª estadia, 2023): crónicas de Rui Chamusco / ASTIL (excertos). Parte I, 19 e 21 de março de 2023