segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25423: Estórias do Juvenal Amado (64): A estória de David Leão que queria ser mobilizado para Angola para combater o IN que lhe matou o irmão em 1963

Memorial aos Combatentes de Gondomar, inaugurado em 1971


1. Em mensagem de 17 de Abril de 2024, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), enviou-nos a estória do seu camarada de Batalhão, David Leão, que depois de ver morrer o seu irmão mais velho em Angola, acabou mobilizado para a Guiné.

Caros camaradas
Cá estou a enviar o que recolhi sobre o meu camarada David Leão, de Rio Tinto, que foi parar à Guiné com a esperança de ir para Angola.

Juvenal Amado



José Carlos Cordeiro Pinto, trolha de profissão, natural de Rio Tinto, morreu em combate em 1963, 12 dias depois de desembarcar em Angola.

Os pais receberam a dolorosa notícia e também documentação, que livraria de mobilização qualquer filho quando chegasse a altura de ser chamado à vida militar.

O irmão David Leão, oito anos depois é incorporado no exército em 1971 no R14 de Viseu, fez a especialidade de Sapador de Infantaria no BC 3 de Bragança, acabando colocado no BC 5 Lisboa.

Mobilizado, apresentou-se em Novembro de 1971 no RI 2 de Abrantes, para formar batalhão. Este seria o seu destino, o BCAÇ 3872 que iria para a Guiné.

A mãe perguntava-lhe se ele tinha metido os papéis que o livrariam de uma mobilização, ele dizia que sim, mas no íntimo esperava ser mobilizado para Angola e ter oportunidade de combater contra quem lhe tinha matado o irmão. Uma ideia um pouco romântica e de difícil concretização na verdade.

O Batalhão 3872 embarcou para a Guiné no Angra do Heroísmo no dia 18 de Dezembro de 1971 e o nosso David vai integrado no Pelotão de Sapadores.

A promessa feita à mãe não passou disso mesmo de uma promessa.

O nosso camarada passou por aquilo que os outros passaram. Picagens, colunas, emboscadas, patrulhas nocturnas, armadilhar sítios para evitar infiltrações do inimigo, etc. No fim da comissão, em Janeiro de 1974, todo o Pelotão de Sapadores acabou por ser enviado para Buruntuma onde, sobre as ordens de Marcelino da Mata, foi encarregue da minagem em redor do referido destacamento.

Não foram boas noticias pois já tínhamos acabado a comissão, mas a zona leste junto à fronteira estava a ferro e fogo, e o comando achou no maior secretismo, enviar uma coluna para levar esses elementos bem como o equipamento necessário para o efeito.

O esperado ataque acabou por não vir porque o PAIGC acabou por atacar com foguetões outros destacamentos. Se não estou em erro, Canquelifá foi um dos premiados com a atenção do IN.

Felizmente para todos o camaradas, tudo correu bem e o regresso fez-se a Galomaro já o 3872 está espera de ser rendido, o que aconteceu em Fevereiro, acabando por embarcar em Março para Bissau.

A 28 do mesmo mês embarcou no Niassa, desembarcando em Lisboa no dia 4 de Abril de 1974.

Bem, é mais uma história com gente dentro, com os seus desejos e anseios talvez com uma grande dose de ingenuidade.

David Leão, na foto, o terceiro a partir da direita, sentado no chão

O David é figura presente sempre que pode nos almoços da CCS, embora com grande dificuldade pois tem que pedir boleia a quem vá o que nem sempre é possível.

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Nota do editor

Último post da série de 29 DE DEZEMBRO DE 2019 > Guiné 61/74 - P20510: Estórias do Juvenal Amado (63): Galomaro, 1972 - Outros Natais

Guiné 61/74 - P25422: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (27): Melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho...

Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934. São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje ignorados ou mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.

Contos com mural ao fundo: 
nada como ter um bom pai

por Luís Graça

− Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…

 Quem, o Ulisses?

  Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

  Já agora retifica: ex-cunhado... E,  se queres que te diga, nunca fomos muito à bola um com o outro.

O Fernando (Nando, para os amigos) aproveitou  então para esclarecer o seu interlocutor, o Jorge, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… 

Mal saiu a amnistia, da Junta de  Salvação Nacional, aos faltosos, refratários e desertores, o Ulisses voltou à sua terra para abraçar o "paizinho" e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, o Nando mal conseguiu pôr-lhe a vista em cima. Mas ainda se lembrava dele na escola, ao ex-cunhado do Jorge, hoje o senhor embaixador, com nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses  C...

Foi um puto mimado, pelo menos  na escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente nos ditados de português (à compita), no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

 Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola  acrescentou o Jorge.

 Foi um sortudo, o Ulisses!... E era  competitivo!

 Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"

 A dona Natércia?!...  exclamou o Nando.  A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o meu velho mestre, o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

 Há,  sim. E a nossa terra não teria agora uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...atalhou o Jorge.

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira da terra a salvara a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe"..., estou a ver!

− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele  , confidenciou o Jorge, uns bons anos mais velho do que o Nando. 

Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... 

− Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos − interrompeu o Fernando (que era médico).

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.  Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa. Como o Jorge,o Nando e todos os demais da sua geração...

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrou o Fernando.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o historiador da terra, o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da vila,  o Fernando veio  a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

− Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão  comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. 

− A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época, se bem me lembro − atalhou o Nando.

Claro, o paizinho, o sr. Anselmo,  visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado uma amante... 20 e tal anos mais nova, com casa posta num concelho vizinho.

 Mas… exilado, dizes tu?!   − interroga-se o Fernando.

 É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.

  À tropa ou da tropa?... Não é a mesma coisa: legal e tecnicamente, ele não foi um "fujão", como se costuma dizer em relação aos desertores.  Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era bem mais grave do que faltoso na época, até porque estávamos em guerra.

Aqui o Jorge gracejou com o Fernando,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorge a completar a  frase do seu  amigo.

E depois elucidou-o:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do Pandita Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos… 

− Só soube isso muito mais tarde... Também não sei de semelhante humilhação aos nossos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos. 

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste o primeiro ou dos primeiros da terra a marchar em 1961, para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o sr. Anselmo.  

Das suas origens do sr. Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais.  Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios. E ganhou muito dinheiro...

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…  

− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros e promissores, com países da Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... 

− Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadamizada.− disse o Jorge.

Os negócios do sr. Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a crescente abertura da economia, a eletrificação e a industrialização do país, etc., ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. 

− Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos em Jerusalém − acrescentou o Jorge sobre o currículo do seu ex-sogro.

Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. 

Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. (Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos"; mas convenhamentos, um conto de réis,  no início dos anos  50, não era um fortuna, seriam a preços de hoje qualquer coisa como pouco mais de  550 euros...).

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. E até se dizia, as más línguas do costume, que era "maçon" (coisa terrível e misteriosa que ninguém sabia o que era).

− O sr. Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a esposa. Claro, nunca o viram comungar...

O Jorge achava que ele era mesmo "maçon" (a maçonaria estava proibida) e, claro, do "reviralho", do "contra"...Durante a II Guerra Mundial, dizia-se que era "anglófilo" (até pro ter uma bomba da Shell).

− Mas finório como ele sempre foi,  nunca falou de política  comigo. Nem nunca o ouvi falar de política com os filhos.

Também é verdade, declinou em 1958 o  convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca pelos quais nutria, de resto, um profundo mas secreto desprezo.  

Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. 

Em boa verdade, a razão não era essa: ele já movimentava mais dinheiro que a câmara toda... A autarquia, pobretana, nessa época, dependia do "fundo para o desenvolvimento da mão-de-obra"  e das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...

Com uma grande superioridade moral, elevação de espírito, e sobretudo talento para os negócios, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida... 

Comprou e restaurou o melhor palacete da vila, para inveja de muitos. Acabou,   todavia, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Em contrapartida, sabia-se pouco ou nada da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indagou o Fernando (que, como médico, conhecia a história  da Marinha Grande).

 Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. 

O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que  parecia mais verosimil, aos olhos  do dr. Fernando ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.

Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes ainda viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distância, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir ao espetáculo da  arte xávega  ( com "os bois a lavrar o mar") e passar lá  uns dias na terra da sua mãe... 

Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a mulher e os filhos detestavam,  preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial, o empresário capitalista, era menos considerado socialmente do que o comerciante ou até o funcionário público.  O Salazar era um "rural".  O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos, mais conservadores,  reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil, barata e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada imparável, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) dessas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores... Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano ou tiraram um curso médio,  o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE, a  Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, e outra,  assistente social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório da empresa.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, antes que fossem ocupadas. 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Não foi "vira-casacas", como muitos outros, logo a seguir ao 25 de Abril. 

Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.

 O Ulisses não era propriamente um amigo do peito do Fernando. Eram apenas conterrâneos, vizinhos e colegas de escola...

− Três anos nos separavam... além dos seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de "menino rico". 

Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que o Fernando nunca pôde frequentar (era filho de caseiro). 

Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro, com o pai,  por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). 

Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.

Podia ter acabado o curso de germânicas, nas calmas (desde que não chumbasse), antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos e negócios. 

−  Tudo combinado com o paizinho, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

− Mas a vida (ou a guerra de África)  trocou-lhe as voltas − adiantou o Nando.

De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena patética que terá feito lá em casa, "preferia mil vezes ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". 

− A mãe, a minha ex-sogra,  era uma boa senhora, conservadora,   beata e amiga dos pobres. 

E não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se da  "porca da política" (sic) naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo... E o sr. Anselmo aqui também não abriu os cordões à bolsa...Dez contos era muito dinheiro...

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente na sua nova terra... Formou-se em direito europeu em Maastricht, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá.

− Mas tem cá nome de rua, desde que passou a ser comendador...

− Em boa verdade, não sei o que é que ele fez pela nossa terra... O pai, sim,  mas esse nem um nome de beco tem...

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematou o Fernando. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  

− Teve um bom padrinho... o sogro holandês.

− Eu diria antes:  melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho − concluiu o  Fernando.

© Luís Graça (2023). Revisto em 20 de abril de 2024,
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25394: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (26): um país de gente porreira - II (e última) parte

domingo, 21 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25421: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (34): A fortaleza da Amura





Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura > Abril 2024 > 

Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2024) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Patrício Ribeiro mandou-nos, por estes dias, mais umas fotos da cidade que ele adotou como sua, Bissau. Publicamos hoje quatro imagns da velha fortaleza da Amura, setecentista.

No nosso tempo, foi restaurada a partir da década de 1970, sob orientação do Arquiteto Luís Benavente.

Aberta à visitação pública, actualmente abriga o "panteão nacional" (incluindo o mausoléu de Amílcar Cabral e o Museu Militar da Luta de Libertação Nacional).

Recorde-se que o Patrício Ribeiro é o nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau, onde vive desde 1984, e onde é empresário, fundador e diretor técnico da Impar Lda; tem mais de 150 referências no blogue; autor da série, entre outras, "Bom dia desde Bissau".
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P25420: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (14): "Aquela janela"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"



Aquela janela

Abri a janela de par em par e o sol encheu a sala. Respirei fundo e o ar fresco daquela manhã inundou os pulmões. O sangue como que adormeceu na quietude do pensamento. O magnífico impressionismo de Monet, desdobrado pelas amplas salas do Grand Palais, deixaram-me a alma cheia.

Sentei-me numa cadeira com os braços apoiados no parapeito da janela, a olhar o mundo e os tetos cinzentos da grande cidade que se estendiam para lá do fundo da rua. Devo ter semicerrado os olhos, pois não dei pela veloz queda do seu corpo frente à minha janela, apenas o estrondo no solo me fez levantar.

Ela vivia no andar de cima, na Rue Mouffetard, e a sua janela era mesmo por cima da minha. Há uma semana, quando tomávamos um esporádico café, segredara-me que a vida já nada lhe dizia. Falámos de homossexualidade e homofobia, tema que não me interessava particularmente. A ela parecia dizer-lhe muito, pois ia aos arames com a cara e o ar das pessoas do bar em frente à nossa porta, quando a viam com a mulher com quem vivia. E logo em Paris, ainda se fosse na sua aldeia transmontana!

Sempre que vou a Paris e passo pela Rue Mouffetard, levanto os olhos para a janela que estava acima da minha, olhos que logo me caem nas pedras da rua. Lembro-me do corpo curvado, metade em cima do passeio e outra metade fora, rodeado por uma dezena de curiosos. Uma mancha de sangue deslizava vagarosamente sobre as pedras. Eu sabia que era o sangue dela, pois ela vestia a mesma roupa da véspera quando a encontrei nas escadas, uma saia negra debruada a veludo vermelho-escuro e uma blusa azul.

Não penses que sou lésbica e que não gosto de homens, disse-me, um pé em cada degrau. Gosto muito de ti, por exemplo, que és o gajo mais porreiro que já conheci. Ia para a cama contigo de olhos fechados. O que me fez afastar deles foi ter caído nas garras do bandalho do meu patrão quando vim para esta cidade. Deixei a meio o curso de educadora de infância e fui sobrevivendo como ajudante na sua padaria. Ele e a mulher foderam-me bem fodida, o corpo e a alma, durante três anos. Perdi a coisa mais preciosa da vida, a dignidade. Salvou-me uma prima minha que trabalhava no hospital da Salpêtrière, onde tu estás, e que me arranjou um emprego na sua cabeleireira.

Quando vou a Paris e passo na Rue Mouffetard, paro a olhar as duas janelas, e ainda hoje me envergonho por me ter mantido estático e paralisado no parapeito, sem coragem para descer, quando vi o seu corpo estatelado. Apenas uma coisa me obrigou a acertar os óculos: o livro que jazia meio aberto ao seu lado. Apesar de a capa estar voltada para cima, eu não conseguia ler o título, mas a cor da capa e a disposição das letras não me deixaram dúvidas de que se tratava do livro que eu lhe havia emprestado uma semana antes. Desci a correr os dois lanços de escadas, tomei-lhe o pulso que me pareceu parado e peguei no livro.

- Sempre que vou a Paris e decido ir à Rue Mouffetard não deixo de levantar os olhos para as duas janelas e pousá-los de imediato na rua sobre um livro meio aberto com pintas de sangue, que a polícia me obrigou a entregar, não sem antes me bombardear com perguntas, para que revelasse a minha vida e a dela, o meu tipo de relação com a vizinha e, sobretudo, para que lhes dissesse a quem pertencia e o que significava aquele poema de amor escrito à mão na primeira página do livro.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25384: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (13): "Acertar à primeira"

Guiné 61/74 - P25419: No dia 25 de Abril de 1974 eu estava em... (31): Lisboa, de licença de férias, e depois de uma noitada o meu cunhado acordou-me às 9h00: "Eh, pá, já não voltas mais para a guerra" (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)





















Lisboa >Av Lierdade e Marquês de Pombal>  28 de abril de 1974, domingo > Um alferes de Fulacunda, de férias na metrópole, transformado em fotojornalista,captou estas imagens...

Fotos (e legendas): © Jorge Pinto (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagemcomplemene: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]



Jorge Pinto
1. O Jorge Pinto (ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) mandou-nos, há tempos, fotos do seu arquivo pessoal relativas ao 25 de Abril de 1974.(*)

Escreveu ele: "Como sabes, tive o privilégio, de estar de férias na 'metrópole' , nessa data. No próprio dia 25, vim de Alcobaça (Turquel) para Lisboa e por aqui permaneci, até regressar a Bissau no dia 3 de Maio."

Nessa altura, enviou-nos fotos f tiradas no primeiro domingo (28.04.74), a seguir ao 25 de Abril, que fora numa quinta feira. (**) 

E explicou-nos que foram  "tiradas junto ao Marquês de Pombal, apanhando manifestação (ões) espontânea(s) que subia(m) a Avenida da Liberdade".

Ontem almoçámos juntos, em casa de amigos comuns, no lugar da Estrada,  
Geraldes, Peniche. (Um belíssimo almoço, acrescenta-se  de "arraia com batata e cebola cozida",  em dois panelões, éramos 16 à mesa, à moda das aldeias ribeirinhas do concelho da Lourinhã.)

Em Fulacunda
Depois de folgar em saber que ele está melhor das suas mazelas músculo-esqueléticas (foi operado ao fémur), falámos desta história do 25 de Abril. E ele esclareceu algunas das minhas dúvidas... 

Se bem percebi, ele já estava em Lisboa no 25 de Abril, deitou.se muito tarde, depois de estar com amigos até às tantas, ficou na casa da irmã,ali perto do Marquês de Pombal e às nove horas, foi acordado abruptamente pelo cunhado, que eufórico lhe disse:
- Jorge, tu já não voltas para a Guiné!

Ele estava a acabar de licença de férias, com viagem marcada  para o dia 3 de maio. 

Como muitos de nós, face à escassez de notícias nerdsa manhã,  ficou na dúvida se se tratava de um golpe militar encabeçado pelo Kaulza de Arriaga, do Spínola ou de outros generais...Com o passar das horas, as coisas começaram a clarificar-se. Não conseguiu chegar ao Terreiro do Paço nem ao Carmo, mas já não saiu de Lisboa, até ao regresso a Fulacunda.

Tomou o avião no dia 3, voltou a Fulacunda que foi atacada em força com canhão s/r no dia 7...Terminou a comissão em junho, mas só regressou em setembro... Nessa altura, além do 3ª C / BART  6520/72,  Fulacunda dispunha  do Pel MIl 221 e do 31º Pel Art (obus 14 cm).  

PS - O Jorge Pinto trabalhava na União Gráfica, como revisor de texto,  e já tinha o 1º ano da licenciatura em História, quando foi chamado para  tropa.

2. Comentário do editor LG:

Jorge, recuperei e reeditei as tuas fotos, que ficam para a história do nosso blogue

São de uma manife (o vocábulo já foi grafado pelos nossos dicionaristas...) do dia 28, domingo...

Como escrevi na altura (28 de fevereiro de 2016, também domingo), há 8 anos, há um certo olhar "naïf" do fotógrafo de Alcobaça, ou se calhar, mais de Fulacunda do que Alcobaça ... Afinal, só agora fico a saber que já vivias e trabalhavas em Lisboa.

Nessa altura eu estava a viver e a trabalhar em Mafra, e o dia 25 de abril de 1974, quinta-feira, foi de alguma inquietação, ansiedade, incredulidade e depois de alegria... Também eu bão sabia de que lado é  que estavam as tropas sublevadas... Pela "Máfrica", a EPI, estava tudo aparentemenet calmo... Já não tenho a certeza se nesse fim de semana fui a Lisboa, mas fui, isso sim, ao 1º de maio... Irrepetível, esse 1º de maio histórico.

Tenho pena de nessa época não fazer fotografia!... Nem se quer tinha máquina...

De facto, foste fotojornalista de ocasião, e estas fotos, mesmo de amador, vão ter daqui a muitos anos grande valor documental... Aliás, já têm... Não é todos os dias que a História nos entra pela porta dentro... No teu caso, pela porta dentro do quarto adenetro de um alferes miliciano, em férias, e com bilhete marcado de regresso a Bissau (e depois Fulacunda, na região de Quínara, lá no cu de Judas)...

Por outro lado, até o analista do mercado automóvel e o sociólogo é capaz de achar piada às tuas fotos: está ali o Portugal no seu melhor em autorrodas: os Fiat 127, os minis, a carroça do burro, a Panhard AML 60... para além os marinheiros aventureiros, os briosos cavaleiros do RC 7, e até as "flausinas" da Reboleira e arredores!...

É um retrato socioantropológico do teu, do nosso Portugal dos anos 70... Espantoso, ternurento, humano, ingénuo, lírico, desconcertante, espontâneo, mágico, solidário, piroso, popular, desenrascado, enrascado, generoso, sonhador, interesseiro, sublime...

O Portugal no seu melhor, que o Zé Povinho éramos todos nós, fomos todos nós, que aguentamos há mil anos a insustentável leveza deste estranho e fascinante país à beira mar plantado, destruído,replantado, recontruído, inventado, reiventado... Representado, aqui, neste blogue pelos melhores dos seus filhos!
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Notas do editor:

(**) Último poste da série > 18 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25404: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (30): Em Bolama, à espera do meu "periquito"... Embarquei nos TAM, em meados de maio, a expensas minhas (João Silva, ex-fur mil at inf, CCAV 3404, Cabuca; CCAÇ 12, Bambadinca e Xime; CIM, Bolama, 1972/74)

Guiné 61/74 - P25418: 20º aniversário do nosso blogue (6): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (V): Canjadude, pânico no abrigo Norte: Ei!!!!!… malta… um Crooocoodiiiloooo!!!... (José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", 1969/71)

Foto nº 1


Foto nº 2 


Foto nº 3

Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > CCAÇ 5, "Gatos Negros" (1969/71) >  Fotos do álbum do José Corceiro

Fotos (e legendas): © José Corceiro  (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Excertos do poste P5669 (*), do José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos"(Canjadude, 1969/71), membro da nossa Tabanca Grande desde 25/12/2009 (**)

(...) Estarei certo se afirmar que, nos dois anos e tal que passei na Guiné, na CCAÇ 5, em Canjadude, em situações normais (excluindo doença ou descanso por trabalho nocturno) não me deitei na cama meia dúzia de vezes no período entre as 12.00h e as 15.00h, o chamado “almoço e dormir a sesta”, é um hábito que nunca consegui adquirir e nunca senti falta dele.

Nesse período do dia (considerado de descanso) eu, se o tempo o permitisse, após o almoço era frequente ir até às rochas de Canjadude (Foto nº 2), que me ajudava a suavizar o desconforto da tensão do passar dos dias, alentando-me a escrever uns aerogramas, cartas, ou outras escritas que para mim eram essenciais. Era neste local de inspiração, expansão e tranquilidade, que eu amenizava a minha paz interior. (...)


José Corceiro
Encontrava amenidade ao ir até à Tabanca, ilusão de porta aberta que me deixava partir para a descoberta da terra da fantasia que eu sonhava, onde alguém por mim esperava. Envolvia-me com o seu povo, a tentar compreender e analisar os seus costumes, vivências e necessidades, que despertavam no meu íntimo, sentimentos consistentes de amizade e solidariedade. 

Deleitava-me, nesta hora, ir até à bolanha para ter contacto de proximidade com as lavadeiras, apreciar a destreza e desembaraço com que amanhavam a roupa.

(...) O dia 8 de Novembro de 1969, vá lá o diabo saber porquê,        o meu relógio biológico, neste dia, não me despertou para após o almoço ir para as rochas, Tabanca, ou   Bolanha e fiquei no abrigo                                                  Norte,   o meu hotel de 5 estrelas, todo refastelado no 1.º andar do beliche,                                  esparramado na minha cama, descontraído e absorto a ler o livro A Selva,                                      do Ferreira de Castro. 

Era perto das 13.30h, os alojados do abrigo estavam quase todos nas suas camas deitados, cada um a ruminar o seu abrolho, uns a cabecear, a sonhar, a ninar, a ressonar, a rosnar, outros a sonhar acordados, praticamente silêncio nocturno!

Eis senão, quando no meio deste sossego, agitando toda a tranquilidade, ouve-se uma voz aflita e horrorizada, dar um grito de alerta e perigo:
Brasão da
CCAÇ 5


- Ei!!!!!… malta… um Crooocoodiiiloooo!!!!!…..

Tudo alarmado olha e fica apavorado, pois toda a minha gente vê um crocodilo 
dentro do abrigo!!!!!.. Entra tudo em pânico, cria-se ali colossal agitação e sobressalto, com a inesperada visão do arrojado e assustador visitante, ouvem-se gritos de alvoroço por todo o lado. 

Num abrir e fechar de olhos transforma-se o abrigo em abrupta balbúrdia, que mais parece uma capoeira, cujos galináceos se excitam e aterrorizam com a entrada duma raposa matreira, no poleiro.                    Os aquartelados das camas do rés-do-chão, do beliche, quais macacos trapezistas começam a trepar emaranhados, para as camas do andar de cima,                        para encontrar protecção e afastar-se do perigo de tão ameaçador intruso. Outros, pegam na G3, posição em riste, dedo no gatilho, enquanto outros, de granada numa das mãos e a outra orientada para argola da cavilha, preparam-se para o assalto final ao temível e tímido bicho. Este, por sua vez, tentava descobrir refúgio e ocultação, procurando alguma toca debaixo das camas onde se pudesse abrigar e aninhar. 

Eu, curioso e incrédulo, observo com olhar mais atento e vejo parte do bicho, pois era descomunal, certifico-me que já em tempos tivera, nas rochas, contacto com um irmão deste, em tudo igual, ainda que de tamanho inferior. Daí, o meu grito sedativo:

- Ei!!!… rapaziada, tenham calma, que o réptil é da família das Iguanas, é um lagarto,  não faz mal a ninguém…!

Mas, o meu alerta de apelação para amainar o rebuliço, não surtiu efeito nenhum, palavras caídas em saco roto, estavam todos tão apavorados que só viam ameaças e perigo de vida, causada pelo indefeso animal.

O espaço no abrigo era acanhadíssimo, pois havia beliches de duas camas dum lado e do outro, um corredor estreitíssimo ao centro. A falta de espaço, aliada ao desalinho e confusão no abrigo, provocaram uma desarrumação caótica, devido às deslocações das camas e ao desorganizar objectos que se apoiavam nestas. O bicho encurralado movimentava-se naquela anarquia sem que ninguém o conseguisse imobilizar.

Eu, ao ver que os meus apelos lenitivos entravam por uma orelha a 5km/h e saiam pela outra a 100km/h e ao constatar que ninguém conseguia infundir um pouco de calma naqueles desgovernados militares, fiquei receoso e inseguro, pois temia que a todo o momento rebenta-se ali uma granada, que estavam distribuídase colocadas nos locais menos apropriados, ou que algum mais distraído, sentindo-se ameaçado começasse a dar tiro de rajada de G3. Ao ver-me envolvido em tamanha patacoada,  esgueirei-me dali, fui dar uma volta à Tabanca. Regressei passado meia hora, encontro o abrigo numa barafunda assustadora, até havia dificuldade para entrar, e, deparo-me com os meus haveres em displicência total, muitos deles caídos e espalhados pelo chão e o desgraçado do bicho já tinha sido sacrificado.

Logo depois de arrumar os meus objectos, que estavam num desmazelo de inspirar piedade, fui tentar investigar como chegou o “lagartão” ao abrigo. Consegui descobrir os últimos passos do atormentado animal, antes de se enfiar no corredor que o conduziu ao cadafalso.

Os répteis foram os primeiros vertebrados a libertar-se do meio aquático. São quanto à temperatura do corpo, devido ao seu sistema circulatório, ectotérmicos (calor vem de fora) isto quer dizer o seguinte: são animais que para regular (subir ou baixar) a temperatura do corpo, procuram ambiente adequado para equilibrá-la. Se têm o corpo muito quente, intuitivamente, acção de sensores, procuram sombra, se tem o corpo frio, procuram Sol, fonte de calor. Esta particularidade está definida no seu código genético e têm sensores que determinam o agir comportamental, mediante a temperatura do organismo.

O nosso “lagartão”, da ordem dos sáurios (esquamates), deve ter-se empanturrado de calor em cima de alguma rocha, (as rochas são concentradoras de calor e os répteis procuram-nas para se aquecer) às tantas, porque aqueceu excessivamente, teve necessidade de encontrar sombra para se refrescar, vai daí, deixou-se cair para dentro de uma das valas (trincheira) que ia desde as rochas à porta do abrigo Norte. Sendo assim, entrou no corredor que o conduziu, sem pedir licença, à porta da forca. Foi uma aventura sem retorno para o nosso animal ectotérmico.

Na foto do lagarto, que tinha quase dois metros de comprido, à frente do lado direito, são visíveis as pegadas do lagarto que confirmam os passos até cair na vala. Depois de cair nesta, não tinha capacidade de sair pelos próprios meios, pois a vala tinha mais dum metro de profundidade e era estreita de paredes na vertical. (Esta foto, não dá a real corpulência do animal porque foi tirada de muito longe, para grande enquadramento e agora teve que ser reduzida)


PS - Legenda da Foto n.º 1  > "O lagarto que procurou refúgio no abrigo Norte. Tinha cerca de 2m de comprido a foto devido a ter sido tirada de longe não dá a real corpulência do animal. Lado direito é visível as pegadas do bicho."

(Seleção, revisão / fixação de texto, edição das fotos: LG)


2. Comentário do editor LG:


Na Guiné, viu-se de tudo: manadas de elefantes junto ao arame farpado,  ou de gazelas a comer a mancarra da tropa, mulheres a alimentar ao peito cabritinhos órfãos, "jacarés" (que é coisa que não há), "mabecos" (que também não há), etc., para além de Mig 17 a sobrevoar Bissau à noite... E até "foguetões" a cair na sopa...

A história que o José Corceiro nos contta é uma delícia, e merece ser conhecida de todos... Podemos pô-la no anedotário da Spinolândia... Mas o soldado português não tinha que saber tudo, nem teve tempo, na recruta, na especialidade e na IAO, de aprender a distinguir a diferença entre um "lagarto" e um "lagarto preto"... (animais, de resto, de difícl observação).

Quanto ao bichinho da histótia, tudo indica, pela foto nº 1 e pela  descrição do autor, tratar-se de  um "Lagarto Preto" (em crioulo) (Osteolaemus tetrapis), animal hoje protegido na Guiné Bissau...É um réptil pacífico, inofensivo para o ser humano. Também lhe chamam noutras partes da África Equatorial crocodilo-anão.



Fonte: Guia de Identificação dos Animais da Guiné-Bissau. República da Guiné-Bissau, Direcção Geral dos Serviços Florestais e Caça, Departamento da Fauna e Protecção da Natureza, s/l, 34 pp. s/d (Disponível em formato pdf, aqui, no sítio do IBAP ,


Não confundir com o "Lagarto" p. d. (o crocodilo-do-Nilo, a que a tropa chamava "alfaiate")  nem com as iguanas... Sobre os répteis da Guiné-Bissau, vd. poste P22401 (***)

Por último, este poste  é publicado no  âmbito do 20º aniversário do nosso blogue (****).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5535: Tabanca Grande (196): José Corceiro, ex-1º Cabo Trms, CCAÇ 5 (Gatos Pretos) (Canjadude, 1969/71)

(**) Vd. poste de 15 de março de  2010 > Guiné 63/74 - P5996: José Corceiro na CCAÇ 5 (6): Pânico no abrigo norte, crocodilo à vista

(***) Vd. poste de 24 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22401: Fauna & flora (16): Répteis da Guiné-Bissau que é preciso conhecer e proteger: 2 crocodilos, o crocodilo-do-Nilo (Lagarto) e o Lagarto preto; 
e duas linguanas (a de água e de mato)

Vd. também poste de 24 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22399: Fotos à procura de... uma legenda (153): Uma vez por todas, não havia nem há "jacarés" na Guiné-Bissau, mas "crocodilos" (e outros répteis)