domingo, 18 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5127: Historiografia da presença portuguesa em África (23): Aquela Guiné dos anos 50 (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos*, (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Outubro de 2009:

Malta,
Fiquei suspenso pela leitura do texto do casal Cabral.
Até imaginei o que teria acontecido se as autoridades portuguesas lhe tivessem reconhecido o mérito, o talento e a capacidade de preparar a Guiné para outros rumos, na hora própria.
O devaneio é meu, a desgraça é de dois povos.

Um abraço do
Mário


Aquela Guiné dos anos 50
Beja Santos

A heroína de uma obra de ficção que estou a preparar (e que a seu tempo proporei a sua publicação em primeira mão no blogue) irá viver na Guiné entre 1952 e 1962. Fui alegremente arranjar a minha desgraça, as fontes de informação são poucas, nem sempre convincentes e casos há em que são fantasiosas. É por isso que o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa é o meu permanente porto de abrigo: é ali que encontro notícias de grupos como o Sporting Clube de Bissau, o Sport Lisboa e Bissau e o Atlético Clube de Bissau (dou comigo a imaginar o grau de rivalidades de gente que partiu de Alvalade, Benfica e Alcântara); é ali que encontro anúncios de actividades económicas e das grandes personalidades do meio como Jamil Younis e Jamil Zaidara, ambos em Farim, descobri um Samuel Benoliel, despachante oficial, a Nosoco – Nouvelle Société Commerciale Africaine, em Bissorã. Em 1952, o governador é o engenheiro Raimundo Serrão, em 1954 o capitão-de-fragata D. Diogo António José Leite Pereira de Mello e Alvim, virá a seguir outro marinheiro, Peixoto Correia, que fora chefe de gabinete de outro marinheiro, Manuel Maria Sarmento Rodrigues.

O Boletim Cultural foi criado por Avelino Teixeira da Mota, ao tempo colaborador de Sarmento Rodrigues, é uma revista de uma importância incalculável para acompanhar o público, o semi-privado e a cultura nos mais variados matizes, desde a história até à medicina tropical. O grande acontecimento de 1952 foi a inauguração da ponte de Ensalmá, ligando a ilha de Bissau ao continente (conhecia em boas condições, em 1968, e já numa perfeita ruína, em 1991). Folheava o número de Janeiro de 1954 quando dei conta de um artigo com um título intrigante: “Breves notas da razão de ser, objectivos e processos de execução do recenseamento agrícola da Guiné”, assinada por Maria Helena Cabral e Amílcar Lopes Cabral. As datas coincidem com a novela que eu arranjei de uma ida de ambos, separadamente, a Bissorã. A minha heroína nunca escondeu o derriço pelo charme de Amílcar Cabral, surpreendeu-a sempre o cosmopolitismo e a estruturada cultura europeia desse engenheiro de solos que fora aluno brilhante no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa. Muito mais tarde, já na luta armada, Amílcar Cabral diria que foi este recenseamento agrícola que lhe deu a possibilidade de conhecer as realidades da Guiné e de estabelecer contactos que lhe permitiram fundar o PAIGC na clandestinidade. O que para o caso me interessa é resumir esse punhado de notas que apresentam um documento, único no seu género, ao tempo e no Ultramar Português.

Segundo o casal Cabral, Portugal tinha contraído o compromisso de levar a efeito o recenseamento agrícola em todas as parcelas ultramarinas, em finais de 1947, em instâncias internacionais. Com esse recenseamento procurar-se-ia apurar: superfícies cultivadas e superfícies consagradas às diferentes culturas; número e características da população; importância do gado; dados sobre a produção das principais culturas. O casal de engenheiros enuncia o rol de dificuldades que obstaculizaram um trabalho rigoroso: nada havia de previamente lançado, tudo teve que ser improvisado em cima da hora. Com o trabalho de campo conheceram-se as culturas principais, a variedade de explorações agrícolas de “chão” para “chão”, apurando-se que a terra era um bem colectivo e que a propriedade privada incidia sobre os produtos obtidos pela agricultura praticada pelos elementos constituintes da família. Mas que não houvesse ilusões, o limite deste recenseamento era de uma mera estimativa. Recorrera-se ao método de amostragem, tendo-se escolhido povoações que, pelas características da sua agricultura, se podiam considerar representativas de uma dada região. Procurara-se igualmente efectuar um estudo detalhado dessas povoações nos aspectos social, económico e cultural. Para o casal Cabral havia que destacar as seguintes características deste recenseamento: cada povo tinha estrutura agrária constante; a presença de um povo numa região prendia-se aos imperativos da estrutura agrária; a exploração da terra era sempre feita em regime familiar; a extensão das terras cultivadas dependia principalmente do número de unidades de trabalho da família.

Foi reconhecido este recenseamento como obra modelar. O comportamento de Cabral, no entanto, já lançava suspeitas, ele foi transferido para Angola. Verdade ou não, ficara a conhecer todo o território por cuja causa veio a dar a vida.

O que impressiona, quando se lê este texto preparado para informação numa revista de âmbito local é a qualidade do português, o esforço de síntese, a boa comunicação de coisas herméticas de uma forma tão simples. Parece que é um dom daqueles que estão convencidos do que sabem e do que fazem.

O Boletim Cultural tinha sempre uma secção de imagens intitulada “Aspectos e tipos da Guiné Portuguesa”. Junta-se um felupe de Sucujaque, é pena que a máquina da Sociedade de Geografia de Lisboa não permita realçar o esplendor de quem parece ter um trono atrás de si.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5104: Notas de leitura (29): Um Amor em Tempos de Guerra, de Júlio Magalhães (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 7 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5069: Historiografia da presença portuguesa (22): África, da Vida e do Amor na Selva, Edições Momentos, 1936 (Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

Ao Camarada Beja Santos,
pelo grande amor que ganhou àquela Guiné e que o faz "devorar" tudo o que se publicou sobre aquelas Gentes e suas terras, mais uma vez nos surpreende com este "relatório", dos muitos que naturalmente o Ilustre Engenheiro Agrónomo e sua primeira mulher, igualmente Agrónoma e Transmontana escreveram.
Trabalhavam na MEAU, como todos aqueles agrónomos que então trabalhavam para as Províncias Ultramarinas, antes de lá se fixarem ou mesmo que não desejassem esse vincúlo permanente.
Faziam o chamado trabalho de campo nas épocas secas, nas zonas onde existem as duas épocas, e vinham para a sede em Lisboa fazer o trabalho de gabinete ou laboratório.
Já agora aproveito para sugerir uma correcção no P4883 de Beja Santos, que acabei de ler há 2 ou 3 dias, sobre o legado teórico de A. Cabral.
No 3.º parágrafo, ultima linha está escrito "convidado para assistente do Instituto Superior de Economia". julgo que é uma gralha, pois ele foi convidado para assistente do ISAgronomia, dada a elevada classificação obtida na obtenção do título de Eng.º Agrón.º
Para esclarecimento de quem não sabe, o título de Eng.º Agrón.º não se obtinha terminado o 5.º ano de estudos académicos. Só era concedido depois do estágio e defesa pública perante júri, dum Relatório Final.
Abraços
Jorge Picado